Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
82/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
FIANÇA
Data do Acordão: 03/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PENELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 610.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A diminuição da garantia patrimonial do crédito, decorrente dos actos posteriores do devedor, que justifica a impugnação pauliana, ao abrigo do art.º 610 do C. Civil, deve ser aferida pelo confronto entre a situação patrimonial daquele devedor no momento do acto impugnado e a que foi consequente a tal acto.
2. Tratando-se de fiança, dada a natureza pessoal que caracteriza a garantia, também é de considerar o valor do património do fiador no momento do acto por ele praticado, objecto da impugnação, e não esse valor reportado à data da constituição da garantia.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A A... propôs na comarca de Penela acção declarativa com processo ordinário contra B... e marido C..., e também D... e E..., filhos dos primeiros, pedindo que se declare impugnado determinado acto de doação e reserva de usufruto, realizado dos primeiros para os segundos RR., tendo por objecto dois imóveis daqueles, e que tal acto é ineficaz em relação à A., permitindo que esta satisfaça coercivamente o crédito que detem sobre os 1ºs RR..
Para tanto alegaram em síntese:
- Os RR. B... e C... são seus devedores da quantia de € 31.924,65, montante proveniente de fiança concedido à sociedade F...;
- Ao tempo em que os mesmos assumiram essas responsabilidades (fiança) eram titulares da propriedade dos imóveis misto e rústico, inscritos na matriz predial respectiva sob os art°s. 1262, 3171 e 3189;
- Com vista a impedir a A. e outros credores de penhorarem e arrestarem os prédios, por escritura de 11 de Agosto de 1989, os RR. B... e C..., doaram esses imóveis aos RR. D... e E..., reservando para si o usufruto;
- Com essa doação a A. ficou impossibilitada de satisfazer o seu crédito ou, pelo menos, viu agravada tal impossibilidade.
- A doação foi efectuada entre vendedores e compradores de forma concertada, com vista a frustrar a cobrança do crédito da A.

Contestaram os RR. B..., C... e D... dizendo, em súmula, que deve ser suspensa a instância até que se apure que a principal devedora F... deixou de cumprir as obrigações decorrentes da medida de recuperação que lhe foi imposta pelos credores; que, face aos abatimentos efectuados no âmbito do plano de pagamento aprovado e homologado, a dívida garantida pela fiança sofreu já uma diminuição considerável; que os prédios em causa foram adquiridos pelos doadores já depois de assumidas as responsabilidades perante a A.; e que a doação foi efectuada apenas por razões de necessidade familiar. Terminam pela improcedência da acção.
A A. respondeu às excepções e manteve o pedido formulado.

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O processo seguiu os seus termos e, a final, foi proferida sentença julgando a acção procedente por provada e ordenando a restituição ao património dos RR. B... e C..., na medida do interesse da A. relativamente ao pagamento dos créditos verificados nos autos, dos prédios objecto da doação efectuada por aqueles RR. através da escritura celebrada em 11 de Agosto de 1999.
Inconformados apelaram os RR., concluindo as respectivas alegações da seguinte forma:

1. Os apelantes entendem que não resulta do acto impugnado a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade da satisfação integral do crédito da apelada.
2. A. forma utilizada pelos RR. C... e B... para transmitir o património a seus filhos (doação) é reveladora da sua intenção lícita, apenas pretendendo beneficiar os filhos sem prejudicar terceiros.
3. Os prédios cuja transmissão foi impugnada não existiam no património dos RR. C... e B... aquando da efectivação das fianças e do aval que prestaram no âmbito dos contratos com a apelada.
4. Na altura em que os contratos com a F... foram celebrados, a apelada aceitou ambas as fianças e o aval, numa altura em que os prédios que foram objecto de doação e da subsequente impugnação não existiam sequer no património dos RR. C... e B...;
5. Assim, quando os RR. C... e B... assumiram as obrigações decorrentes da fiança e do aval prestados no âmbito do contrato realizado entre a apelada e a F...., não eram titulares dos prédios em causa.
6. A apelada aceitou as fianças e o aval prestados pelos RR. C... e B... tal como elas foram prestadas e ao tempo em que foram prestadas, não podendo vir, agora, impugnar a transmissão dos bens que não conhecia no património daqueles RR.
7. Ao aceitar a fiança e o aval prestados pelos RR. C... e B..., a apelada, fruto da pesquisa realizada sobre o património de ambos, sabia com o que podia contar e não contava, necessariamente, com os prédios que foram objecto de impugnação, uma vez que estes não se encontravam no património daqueles RR..
8. As fianças e o aval foram solicitados e aceites pela apelada tendo em atenção e levando em conta o património de que os RR. C... e B... eram titulares à data de celebração dos contratos com a F.... E no qual não constavam os referidos prédios.
9. As pesquisas levadas a cabo pela Banca aquando da solicitação de empréstimos constituem facto notório e por todos conhecido.
10. A. apelada deve ser, assim, responsabilizada pela forma como solicitou e aceitou as fianças e o aval prestados pêlos RR. C... e B....
11. Foi violado o disposto no art° 610° do Código Civil.

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A apelada respondeu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

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Colhidos os vistos cumpre decidir.
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São os seguintes os factos que foram dados como provados:

1. A autora A... é sucessora, por via de incorporação, do Banco Nacional Ultramarino S.A., dos direitos e obrigações deste, conforme escritura de fusão celebrada em 12 de Julho de 2001 na Nota Privativa da A..., acto o qual já foi levado a registo
2. No exercício da sua actividade, a autora celebrou com a F..., os contratos a seguir mencionados referentes às quantias que vão indicadas, neles se estipulando as taxas de juros que igualmente se referem:
(a) Empréstimo n° 06090000868820019.
Contrato de abertura de crédito em conta-corrente, até ao limite de €149.639,10/30.000.000$00, formalizado em 19/04/96, por troca de correspondência, à taxa de juro de 13,875%, alterável pela reclamante no início de cada período de contagem, destinado ao apoio de tesouraria (€49.879,70/10.000.000$00) e
plafond de exportação (€99.759,40/20.000.000$00).
Posteriormente, este contrato de abertura de crédito em conta-corrente foi objecto de várias alterações, formalizadas por troca de correspondência, a saber:
• Em 16/10/96 o limite foi elevado até €249.398,50/50.000.000$00, à taxa de juro de 13%, alterável pela reclamante no início de cada período de contagem, destinado ao apoio à tesouraria (€49.879,70/10.000.000$00) e plafond de exportação (€199.518,80/40.000.000$00).
• Em 19/10/97 o limite foi elevado até €349.157,90/70.000.000$00, à taxa de juro de 10,75%, alterável pela reclamante no início de cada período de contagem, destinado ao apoio à de tesouraria (€99.759,40/20.000.000$00) e plafond de exportação (€249.398,50/50.000.000$00).
• Em 15/12/98 o contrato de abertura de crédito em conta-corrente passou a contrato de empréstimo e garantias, até ao limite de €99.759,40/20.000.000$00, à taxa de juro de 5%, alterável pela reclamante no início de cada período de contagem.
(b) Empréstimo n° 6090002291820019
Contrato de empréstimo e garantias até €149.639,10/49.315.000$00, formalizado em 18/12/98, por troca de correspondência, à taxa de juro de 5%, alterável pela reclamante no início de cada período de contagem.
(c) Descoberto em conta, autorizado para pagamento de cheques para cujo valor a conta (0609007550431 conta da F...) não tinha saldo, no montante em capital.
(d) Empréstimo contratado pela rede BNU, no montante de € 84.468,26 (16.934.397$), titulado por livrança em branco (com pacto de preenchimento) subscrita pela F... e avalizada pelo réu Adelino Henriques Ferreira e então esposa Maria Ermelinda Carlos de Faria Ferreira.
3. Nos termos do estipulado nos contratos referidos no artigo supra foram creditadas na conta da F..., as importâncias constantes dos extractos de conta de fls. 48 a 55 e que aqui se dão por inteiramente reproduzidos.
4. Para garantia do capital mutuado, respectivos juros e despesas dos empréstimos referidos em 2., os RR. B... e C... constituíram-se fiadores solidários e pagadores do capital, dos juros remuneratórios e moratórios, incluindo juros capitalizados, comissões e demais encargos, que viessem a ser devidos à autora pela ora F..., bem como avalista da operação contratada pela rede BNU.
5. (…)Tendo a F...., deixado de cumprir as obrigações emergentes dos contratos acima referidos, encontram-se em dívida à autora, à data de 07/10/2002, as seguintes quantias:
a) empréstimo n°.06090000868820019
Capital – € 69513,22
Juros até 07.04 - € 52,13
b) empréstimo n°.06090002291820019
Capital - € 28.458,43
Juros até 07.07.04 - € 21,34
c) descoberto em conta (0609007550431)
Capital € 29.202,21
d) empréstimo contratado pela rede BNU
Capital - € 31.900,72
Juros até 07.07.04 - € 23,93
6. Das diligências desenvolvidas pela autora não logrou esta identificar bens penhoráveis.
7. A sociedade F... já viu aprovado um plano de recuperação de empresa, que correu termos neste mesmo tribunal, sob o n.° 58/02, tendo os terceiros garantes renunciado aos direitos previstos pelo artigo 63° do CPEREF, conforme declaração de fls. 57.
8. Por escritura de 11/08/1999, celebrada no Cartório Notarial de Penela, os RR. B... e C..., declararam doar aos seus filhos menores D... e E..., consigo residentes, em partes iguais e por conta da quota disponível, reservando para si o usufruto, dos seguintes prédios:
a) prédio misto - casa de habitação e terreno de pinhal e mato - inscrito na matriz predial sob os artigos 1.262 e 3.171, descrito sob o n.° 1.851 na Conservatória do Registo Predial de Penela;
b) prédio rústico - terra de cultura - não descrito na conservatória do registo predial e inscrito na matriz respectiva sob o art. 3.189;
9. Os fiadores Maria Ermelinda Carlos de Faria Ferreira e marido Adelino Henriques Ferreira realizaram escritura de doação, com reserva de usufruto, no dia 11 de Agosto de 1999, no Cartório Notarial de Penela, tendo os bens sido doados aos seus filhos
10. Em virtude das doações a A., pelo menos, viu agravada a possibilidade de satisfazer o seu crédito.
11. A doação feita pelos réus C... e B... a seus filhos, foi feita no mesmo dia em que foi realizada a habilitação e partilha de fls. 112 a 130 e cujo teor aqui se dá por reproduzida.
12. Ao efectuarem a doação referida em 8, os RR. B... e C... pelo menos tinham conhecimento de que a CGD, por diminuição do património que poderia ser penhorado/executado teria maiores dificuldades em obter a cobrança dos seus créditos.
13. Ao efectuarem a doação referida em 9, Maria Ermelinda e Adelino Henriques pelo menos tinham conhecimento de que a CGD, por diminuição do património que poderia ser penhorado/executado, teria maiores dificuldades em obter a cobrança dos seus créditos.
14. Os fiadores / avalistas estavam cientes das dificuldades da sociedade mutuária e ainda mais da insuficiência do património desta para ressarcimento dos vários credores.
15. Os prédios mencionados em 8 chegaram à posse dos réus C... e da esposa B... no dia 11 de Agosto de 1999, tendo sido adquiridos por sucessão, um ano após o falecimento do pai da referida B..., Artur Brás de Faria.

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Nos termos do disposto nos art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC o objecto do recurso está circunscrito ao âmbito definido nas conclusões da alegação.

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No que concerne ao teor da segunda conclusão, deve observar-se que é patente não assumir qualquer relevo no negócio gratuito realizado pelos 1ºs RR. a intenção ou a consciência destes de não causar prejuízo aos credores, cuja averiguação é prescindida pela lei – art.º 612 do CC.

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Perante a delimitação das restantes conclusões, a única questão a apreciar prende-se com a tomada de posição sobre a tese dos recorrentes segundo a qual a A. teria a sua garantia, decorrente das fianças prestadas pelos 1ºs RR, limitada ao património dos garantes ao tempo da prestação daquelas, ou seja, da constituição do crédito sobre os fiadores. Daí decorrendo que o art.º 610 do C. Civil deveria ser interpretado com esse pressuposto, pelo menos relativamente aos devedores meros garantes da obrigação principal.
Vejamos.
A fiança, tal como a subfiança e o mandato de crédito, integra o elenco legal das chamadas garantias pessoais, isto é daquelas garantias que estão vinculadas à pessoa do garante, que fica responsável com o seu património pelo cumprimento da obrigação principal. É o que claramente resulta do nº 1 do art.º 627 do C. Civil. Significa isto que a garantia do credor fica, em princípio, ligada às vicissitudes da administração e disposição do património do garante, estabelecendo o legislador, no entanto, determinados mecanismos de salvaguarda do interesse do credor para evitar o perigo de frustração do fim da garantia, em situações implicando forte violação da base de confiança em que assentou a respectiva aceitação. Diversamente das garantias reais, nas quais o credor apenas fica dependente do valor das coisas sobre que incidem os direitos reais correspondentes, tendo sobre estas o direito de sequela: verifica-se nestas um reforço eminentemente qualitativo da garantia do credor, ao invés das garantias pessoais, onde esse reforço é essencialmente quantitativo (Almeida Costa, Direito das Obrigações, Atlântida Editora, p. 357 e ss.).
Entendem os apelantes que a A., tendo obtido a prestação das fianças pelos 1ºs RR., para garantia dos capitais mutuados, juros e despesas dos empréstimos concedidos à devedora F... em 19/04/96 e 18/02/98, (cfr. os factos provados em 2 e 4), ficou com o objecto das fianças circunscrito ao acervo patrimonial dos fiadores existente nessa data, sendo público que os bancos pesquisam e avaliam sempre esse acervo em tais circunstâncias. E que tendo aqueles RR. adquirido, em 11/08/99, posteriormente à constituição das fianças, os dois imóveis doados, por via de sucessão mortis causa e da partilha da herança do pai da A. B... – cfr. os factos provados em 11 e 15 - não podia, por isso, a A. contar com essa maior garantia patrimonial.
Este entendimento é totalmente incompatível com a natureza pessoal da fiança e com os contornos subjectivos dessa espécie de garantia. Por virtude dessa natureza pessoal o credor confia na frutificação do património do fiador e na concretização de todas as expectativas que a este razoavelmente se deparem, nada justificando qualquer fixação objectiva do limite máximo da garantia, como pretendem os apelantes. Até pelo elementar argumento de que, até ao momento da satisfação do crédito, a solvabilidade do fiador é susceptível de sofrer modificações negativas e imprevistas. Por isso, o limite posto pela lei, na al.ª b) do art.º 610 do C. Civil, é um limite mínimo da garantia: a liberdade de disposição patrimonial do devedor não pode resultar na impossibilidade ou agravamento da impossibilidade da satisfação do crédito emergente do acto impugnado. Este agravamento é aferido pela diferença entre a situação patrimonial do devedor contemporânea do acto e a que dele resulta. Não tem como referência a situação do devedor à data da constituição do crédito na medida em que essa já pôde ser avaliada pelo credor quando se abalançou na aceitação da obrigação. De resto, já neste mesmo sentido se propendeu, de certo modo, no Acórdão desta Relação de 18/03/2003 (in CJ 2003, T. II, p. 22), porquanto aí se afirmou a irrelevância da aquisição do bem objecto do acto a impugnar em data posterior ao nascimento do crédito.
Mostram-se, desta forma, preenchidos os referidos requisitos das alíneas a) e b) do art.º 610 do CC, de que dependia a procedência da acção, tendo em conta a anterioridade do crédito da A. e a impossibilidade da sua satisfação integral, decorrente da não identificação de outros bens penhoráveis aos devedores (cfr. o facto provado em 6).
Não colhe, assim, nenhuma das conclusões do recurso.

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Em síntese:
1 – A diminuição da garantia patrimonial do crédito, decorrente dos actos posteriores do devedor, que justifica a impugnação pauliana, ao abrigo do art.º 610 do C. Civil, deve ser aferida pelo confronto entre a situação patrimonial daquele devedor no momento do acto impugnado e a que foi consequente a tal acto.
2 – Tratando-se de fiança, dada a natureza pessoal que caracteriza a garantia, também é de considerar o valor do património do fiador no momento do acto por ele praticado, objecto da impugnação, e não esse valor reportado à data da constituição da garantia.

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Pelo exposto, julgando improcedente a apelação, confirmam a sentença.
Custas pelos apelantes.

Coimbra, / /