Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1157/05TACTB-A.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: RECUSA
DESPACHO QUE DECLARA ESPECIAL COMPLEXIDADE
REQUERIMENTO PRORROGAÇÃO DE PRAZO
Data do Acordão: 06/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: INDEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGOS 43º,107º, 6 DO CPP
Sumário: 1. Para que se possa configurar uma situação de recusa, necessário é que o juiz esteja a intervir nos autos. Não há recusa por antecipação.
2. Não basta um simples convencimento subjectivo por parte de quem requer a recusa ou pede a escusa, para que opere a existência da suspeição do julgador
3. Não há qualquer formação de convicção prévia que afecte a intervenção no julgamento no despacho em que é fosse reconhecida e declarada a especial complexidade do processo.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, o Tribunal da Relação de Coimbra:

O arguido J..., veio no âmbito do processo de instrução a correr termos no 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Castelo Branco, requerer a recusa do Exmº Juiz do 1º Juízo do mesmo Tribunal, alegando em síntese:
“ 5 - A 30/6/2008 o arguido veio nos termos do artigo 107°, n° 6 do Código de Processo Penal requerer que fosse reconhecida e declarada a especial complexidade dos autos e que fosse prorrogado por mais vinte dias o prazo para requerer a abertura de instrução previsto no artigo 287°, n° 1 do Código de Processo Penal.
6 - Alegou então o requerente, atento o crime pelo qual vinha acusado (um crime de intervenção e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo artigo 150°, n° 2 do Código Penal), que "a aferição da violação das legis artis impõe a prévia compreensão da correcta forma de execução do procedimento cirúrgico em causa, bem como das complicações naturalmente inerentes ao mesmo, formas e timing de intervenção medicamente adequados para resolução destas últimas".
7 - Tendo fundamentado que a especial complexidade dos autos derivava do "cariz altamente especializado, de natureza médica ortopédica, da factualidade constante dos autos", "que se traduz na utilização de linguagem específica (termos médicos), que deverá ser correctamente apreendida pelos intervenientes judiciários", "linguagem essa vertida, designadamente, na abundante prova documental constante dos autos, que contam já com mais de quinhentas páginas", "exigindo deste um estudo adicional e excepcional - que consome tempo - para efeitos de compreensão da referida linguagem médica e significado factual, a fim de poder assegurar uma correcta defesa do arguido ".
8 - Por despacho do Meritíssimo Juiz de Instrução proferido a 4/7/2008, veio a ser indeferida a pretensão do requerente.
9 - Todavia, o Meritíssimo Juiz de Instrução não se limitou a pronunciar quanto à validade e suficiência dos argumentos invocados como fundamento para a requeri da declaração da especial complexidade dos autos, como faz doutamente a fls. 3,4 e 5 do despacho proferido.
10 - Afirmando, designadamente:
a) Que pese embora o elevado número de páginas, as mesmas são na sua grande maioria repetidas por força da necessidade de expedição de cartas precatórias;
b) Que os elementos probatório de cariz técnico foram carreados para os autos pelo próprio arguido (fls. 216 a 219);
c) Que o arguido é médico ortopedista e foi ouvido ao longo do processo, pelo que estava perfeitamente ciente dos factos que lhe estavam imputados;
q) Que o arguido foi representado nos autos sempre pelos mesmos advogados;
e) Que o arguido teve também oportunidade de se defender no âmbito do processo disciplinar a correr contra aquele, junto da Inspecção Geral de Saúde, pelo que teria conhecimento reforçado dos termos em que devia conduzir a sua defesa.
11 - Dito isto, o despacho prossegue nos seguintes termos:
"Por fim de uma leitura meramente perfunctória, feita em poucas horas, dos diversos actos processuais praticados no inquérito, foi-nos possível perceber que segundo os conhecimentos médicos actuais, independentemente de qualquer complicação médica existente, quando em face de uma criança, é de boa prática clínica a vigilância prolongada de forma a prevenir atempadamente a ocorrência de complicações tardias.
No caso em apreço, segundo os dados disponíveis, verificamos o menor L... foi observado em três consultas externas pelos Dr.s O... e J…, ambos eles arguidos nos autos, sendo este último quem o intervencionou na data da sua admissão na urgência, enquanto que o primeiro lhe deu alta no dia 07.03.2005, ou seja antes de decorridos três meses sobre a verificação da lesão, tendo-lhe na ocasião retirado o fio radial e o gesso, quando segundo os pareceres médicos existentes nos autos nos quais se estribou o órgão acusador, esse procedimento - o de lhe dar alta - terá sido prematuro, na medida em que, segundo aquelas legis artis anteriormente referidas, se justificava a manutenção das observações, de forma a poder prevenir atempadamente a ocorrência de complicações tardias.
Por outro lado, segundo aqueles mesmos elementos clínicos, depois de ter sido efectuado o diagnóstico de lesão do nervo cubital, o tratamento levado a efeito no H.S.Maria, em Lisboa, "deveria ter sido implementado no Hospital Amato Lusitano de forma tão precoce quanto possível na medida em que esta intervenção deverá estar alcance de qualquer ortopedista.
Este, em síntese, o cerne da questão discutida nos autos, assim apreendido da consulta sumária que fizemos dos mesmos. ".
Conclui o arguido que as afirmações feitas no ponto 11 espelham uma formação prévia da convicção do Tribunal.
O Mmº Juiz, proferiu então despacho a fls. 9, no qual entendeu que, tendo o processo de instrução sido distribuído ao 3º Juízo, não terá intervenção nos autos como JIC, sendo segundo o seu ponto de vista inúteis os fundamentos invocados para a recusa.
Notificado dessa decisão o arguido, apesar de reconhecer que o Sr. Juiz não terá intervenção na instrução, refere que pode vir a tê-la no julgamento e por isso entende que o requerimento de recusa deve ser apreciado.
Aquando do cumprimento do disposto no artº 45º, nº 3 do C.P.P., o Mmº juiz aduz bem elaborada argumentação tendente a demonstrar o sem razão do requerente e adianta que o processo lhe foi entretanto distribuído, por força do impedimento legal da colega do 3º Juízo que procedeu à instrução.
Conclui, assim, pela improcedência do incidente suscitado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Como é sabido o pedido de recusa do juiz deve ser deferido quando a sua intervenção “correr o risco de ser considerada suspeita por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” – art. 43º nº 1 CPP.
Ora como decorre do preceituado, para que se possa configurar uma situação de recusa, necessário é que o juiz esteja a intervir nos autos.
Se não intervém, não se pode conceber a figura da recusa, pois não há recusa por antecipação.
Assim tendo o processo sido distribuído ao juiz do 3º Juízo para Instrução, não faria qualquer sentido apreciar a possibilidade da recusa do juiz do 1º Juízo.
Sucede que entretanto o processo seguiu seus termos e foi distribuído para julgamento ao Sr. juiz do 1º Juízo, exactamente o Sr. juiz cuja participação no processo se pretende afastar.
Ora perante tal situação, parece-nos que nada obsta que se aprecie de fundo, já que mais não seja por uma questão de economia processual.
É o que se fará de seguida.
Assim e analisados os fundamentos expostos pelo requerente, desde já se dirá, que face ao disposto no artº 43º nº 1 CPP, a recusa do Exmº juiz não tem manifestamente qualquer fundamento, tratando-se, sim de um incidente que à sua partida tinha o destino traçado – o irreversível naufrágio.
Como sublinha o AcTC 186/98, Pº 528/97, de 98.02.18 www.tribunalconstitucional.pt:” …. salienta Ireneu Barreto (cf. «Notas para um processo equitativo, análise do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à luz da jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem», in Documentação e Direito Comparado, nºs. 49/50, pp. 114 e 115):
«A imparcialidade do juiz pode ser vista de dois modos, numa aproximação subjectiva ou objectiva.
Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário.
Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done.
Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.».
Pois bem dispõe o art.º 43.º n.º 1 C.P.P. que, “A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.
Não nos diz a lei o que deve entender-se por motivo sério e grave, capaz de gerar a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.
Contudo, e conforme o vem entendendo a jurisprudência, essa apreciação da seriedade e a gravidade do motivo causador do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, tem de ser feita objectivamente e não em função da maior ou menor sensibilidade de quem o requer.

Como escreve no AcSTJ 04.02.26 CJSTJ 1/04, pág. 211. “ a gravidade e seriedade do motivo de que fala a lei, hão-de ser aferidas em função dos interesses colectivos, mormente do bom funcionamento das instituições em geral e da Justiça em particular, não bastando que uma avaliação pessoal de quem quer, mormente do arguido, o leve a não confiar na actuação concreta do magistrado ou magistrados recusados.

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E então, medidas essas gravidade e seriedade sem apoio em seguros critérios de objectividade, teríamos o juiz a cada passo, sujeito aos interesses processuais das partes, a todo o momento objecto de suspeições reais ou imaginárias, com a inerente paralisia do sistema.

Não pode de facto ser esquecido que, se a imparcialidade do juiz é uma garantia e um pressuposto insuprível da actuação dos tribunais – como emerge do artº 32º, nº 1, da Constituição – o princípio ao juiz legal ou ao juiz natural, igualmente assume foros de dignidade constitucional com vista justamente a impedir a escolha ad hoc do tribunal da causa – artº 32º nº 9, também da Lei Fundamental”.

Assim não basta um simples convencimento subjectivo por parte de quem requer a recusa ou pede a escusa, para que opere a existência da suspeição do julgador.

Há que apreciar se de um ponto de vista objectivo existe fundamento para essa pretensão.
Ora da análise dos autos não se vislumbram motivos para se julgar procedente o presente incidente.
O caso dos autos não se integra claramente no ensino da doutrina e jurisprudência atrás mencionada.
O segmento do despacho transcrito pelo arguido e que foi proferido pelo Mmº juiz no âmbito da apreciação do requerimento em que pretendia que fosse reconhecida e declarada a especial complexidade do processo, mais não é do que a fundamentação para essa decisão, e que a própria lei exige (Cfr. artºs 107º nº 6 e 215º nºs 3 e 4 CPP).
É que a pretensão do arguido a que alude o artº 107º nº 6 CPP, consubstancia uma situação de excepção e nessa medida surge reforçada a necessidade do juiz apreciar o caso em concreto e decidir depois se está ou não perante uma situação que justifica alargamento de prazos.
E como é evidente a decisão tem de ser devidamente fundamentada com base nessa apreciação.
Foi o que foi feito pelo Sr. Juiz, face a todos os elementos de prova e designadamente os clínicos, que nesse momento – fase de inquérito - estava nos autos.
Não há pois qualquer formação de convicção prévia que afecte a sua intervenção no julgamento.
Houve tão só fundamentação de uma decisão judicial.
Por isso tal circunstância não configura, em nosso entender, no caso concreto, qualquer motivo para uma recusa
Como se escreveu no AcSTJ 00.04.05·, “Só deve ser deferida escusa ou recusado o juiz natural quando se verifiquem circunstâncias muito rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que ele deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.”.
Ora absolutamente nada disso acontece no caso vertente.
É que se não houvesse uma tal exigência estava encontrada a forma de afastar o princípio do juiz natural.
Em suma, a fundamentação invocada para a recusa é clara e manifestamente inadequada para que se instale a suspeita de que o Exmº Sr. juiz, não seja isento na apreciação e decisão das questões que lhe sejam colocadas no processo onde se pretende que deixe de intervir.
Por isso o pedido de recusa é manifestamente infundado.

DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em indeferir o pedido de recusa formulado pelo arguido, por manifestamente infundado e condenam o recorrente em duas Ucs de taxa de justiça (artº 84º nº 1 CCJ), a que acresce a sanção processual de seis Ucs nos termos do artº 45º nº 5 CPP.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP).
Tribunal da Relação de Coimbra, 17 de Junho de 2009.