Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
81-B/2001.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: EXECUÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE FACTO
NOTIFICAÇÃO
POSSE
ENTREGA DE BENS
Data do Acordão: 03/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OLIVEIRA DE FRADES
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTºS 809º,848º, Nº 2, 928º E 930º, Nº 3, DO CPC
Sumário: I – Em processo de execução para entrega de coisa certa, a notificação do possuidor, em nome próprio ou alheio, para que reconheça e respeite o direito do exequente deve ter lugar quando a sua posse tenha procedido do executado (ou do próprio exequente), deva subsistir e seja compatível com o direito do exequente.

II – Nos casos em que o terceiro tenha a posse da coisa a apreender por via de um título autónomo, isto é, originário ou procedente de outro terceiro, deve o agente de execução (que seja confrontado com a oposição de terceiro possuidor no acto de apreensão), regra geral, suscitar a questão perante o juiz, nos termos do artº 809º, nº 1, do CPC.

III – Suscitada a questão perante o juiz, é aplicável analogicamente o artº 848º, nº 2, do CPC e, seja a coisa móvel ou imóvel, a apreensão não será ordenada quando o terceiro produza prova documental inequívoca de que é o proprietário da coisa ou o titular de outro direito real que dela lhe conceda a posse.

IV – A notificação dos terceiros (vg. detentores) a que se alude na parte final do nº 3 do artº 930º do CPC, isto é, para que reconheçam e respeitem o direito do exequente, pressupõe que a posse ou direito dos mesmos seja compatível com o direito deste último.

V – Se essa compatibilidade não existir ter-se-á então que questionar, perante a situação concreta, se a execução deve prosseguir para a entrega da coisa ao exequente ou se deverá ficar suspensa, a aguardar que essa conflitualidade de direitos (incompatíveis) seja decidida a nível do direito substantivo.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. A... e sua mulher B... instauraram, em 2/6/2004, execução comum para entrega de coisa certa contra o C... alegando para o efeito, e em síntese, o seguinte:
Por acordão do STJ (de 11/12/2003), já transitado em julgado, proferido na acção ordinária nº 81/2001, que correu termos na comarca de Oliveira de Frades, foi o ora executado condenado a reconhecer o direito de propriedade dos ora exequentes sobre o prédio rústico ali melhor id., e bem assim como a abrir mão deles a favor dos últimos, para além de se ter ainda ordenado o cancelamento de todos os registos operados a favor de pessoas diferentes dos mesmos e efectuados com base em factos divergentes do que fora decidido.
Porém, uma vez que até ao momento o executado nada fez, “vêm agora os exequentes obrigar o mesmo a cumprir tal decisão”.

2. Citado que foi o executado, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 928 do CPC, veio o executado, através do seu requerimento de fls. 33/34, alegar, em síntese, não se opor a que os exequentes fossem investidos na posse do dito imóvel, sendo certo não se encontrarem já há muito no posse do mesmo.

3. Foi então proferido (a fls. 35) despacho judicial no qual, depois de se considerar não haver documentos e chaves a entregar, se ordenou a notificação do srº solicitador da execução para cumprir o disposto na parte final do nº 3 do artº 930 do CPC.

4. Na sequência de tal despacho, o srº solicitador judicial notificou, através de carta registada com AR, o ora executado de que os exequentes se encontravam investidos na posse do dito prédio, pelo que teria de respeitar e reconhecer o direito de propriedade daqueles (cfr. fls. 40 a 43).

5. Foi então proferido o despacho de fls. 46, no qual o srº juiz a quo, considerando efectuada a entrega e nada mais justificando a execução, sustou esta e ordenou a remessa dos autos à conta.

6. Notificados de tal despacho, os exequentes atravessaram nos autos o requerimento de fls. 49 a 51 – cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido -, defendendo, em síntese, o prosseguimento da execução por não se mostrar efectuada a entrega do dito imóvel, dado o mesmo estar a ser ocupado pela sociedade, D..., que ali, após o ter adquirido ao ora executado em 26/3/2003, construiu uma edificação, acabando ainda por solicitar que fossem, pedidos ao srº solicitador vários esclarecimentos.

7. Após o srº solicitador e o executado se terem, a pedido do tribunal, pronunciado sobre aquele requerimento, o srº juiz a quo proferiu, a propósito do mesmo, o despacho de fls. 60/61 no qual, além do mais, considerou que não existindo, no caso em apreço, chaves a entregar, a investidura dos exequentes na posse do dito prédio se bastava com a simples notificação do executado e detentores do mesmo nos termos e para o efeitos da parte final do citado nº 3 do artº 930 do CPC, pelo que, face à ocupação alegada naquele requerimento pelos exequentes, acabou no final de tal despacho por ordenar também a notificação daquela sociedade para reconhecer e respeitar o direito daqueles.

8. Efectuada a notificação referida no número anterior da aludida sociedade (cfr. fls. 64), o srº juiz a quo proferiu o despacho de fls. 65 com o seguinte teor: “Em face da entrega simbólica do prédio rústico em causa, nada mais justifica a execução. Suste. À conta”.

9. Não se conformando com tal despacho-decisório, os exequentes dele interpuseram recurso, o qual foi recebido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

10. Nas correspondentes alegações que apresentaram desse recurso, os exequentes/agravantes concluíram as mesmas nos seguintes termos (e que aqui se deixam algo sintetizados quanto às duas primeiras conclusões):
“A- Por haver sido adquirido pelo exequente marido, por escritura de 11/9/1991, celebrada no Cartório Notarial de Oliveira de Frades, são os requerentes donos e senhores do prédio rústico id. no requerimento executivo.
B- O Acordão do STJ supra aludido condenou o ora executado nos termos referidos no requerimento executivo.
C- Na pendência deste processo, o C... loteou e vendeu parte do dito prédio à requerida, D...;
D- Este negócio é ineficaz (res inter alios);
E- O prédio está ocupado pela construção edificada pela sociedade D... e outras obras realizadas pelo Município;
F- O Meritíssimo Juiz “a quo” entendeu que com a notificação ao executado e detentor para que respeitem e reconheçam o direito do exequente estava feita a entrega simbólica da coisa;
G- Não houve entrega nenhuma, os exequentes vêem o seu prédio ocupado pela fabrica já referida e restantes obras, quando se deslocam ao seu prédio, não o podem usar e desfrutar na sua plenitude;
H- A investidura na posse e a notificação ao executado e detentor para que respeitem e reconheçam o direito do exequente não são a mesma coisa;
I- Nem a Sociedade D..., nem o C... respeitam a ordem do Tribunal, nem respeitam, nem reconhecem o direito dos exequentes;
J- Devendo prosseguir a execução para haver entrega efectiva da coisa;
H- O Meretíssimo Juiz “a quo” violou o artº 930º, nº. 3 do CPC”.

11. O executado contra-alegou, pugnando pelo improcedência do recurso e pela manutenção do julgado.

12. O srº juiz a quo sustentou, tabelarmente, o despacho recorrido.

13. Após neste tribunal se ter solicitado o envio de certidão, com nota de trânsito, do acordão do STJ que serviu de título executivo à presente execução, foram colhidos os vistos legais, pelo que nos cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II- Fundamentação
A) De facto
Com interesse relevante para a decisão do presente recurso, devem ter-se como assentes os factos atrás descritos sob o ponto I, e que resultaram do teor das peças processuais juntas aos autos.
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B) De direito
Como é sabido, é pelas conclusões das alegações do recursos que se fixa e delimita o objecto dos mesmos (cfr. artºs 684, nº 3, e 690, nº 1, todos do CPC).
Ora, compulsando as respectivas conclusões do presente recurso – tal como, aliás, decorre do que supra se deixou exarado –, a única questão que importa aqui verdadeiramente apreciar e decidir traduz-se em saber se a presente execução deve ou não prosseguir os termos.
Questão essa que, no fundo, desemboca em saber se a presente execução cumpriu ou não a sua função, ou seja, se se deve ou não considerar como já se tendo procedido à entrega aos exequentes/agravantes do prédio rústico em causa.
Vejamos.
Como resulta do supra exarado, com a presente execução (e tal como resulta do seu requerimento executivo) visaram os exequentes obter o cumprimento da decisão do STJ que, no essencial, condenou o C.../ora executado não só a reconhecer o direito de propriedade daqueles sobre o sobredito prédio rústico como também a abrir mão dele (restituindo-lhe).
Execução essa que, com tal fito, foi instaurada contra o referido Município, com o fundamento de que o mesmo não teria cumprido a aludida decisão (devidamente transitada).
Estamos, assim, perante uma execução comum para entrega de coisa certa, cujo regime se encontra regulamentado no artº 928 e ss do CPC.
Dispõe o artº 930 do CPC que “a efectivação da entrega da coisa são subsidiariamente aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições referentes à realização da penhora, procedendo-se às buscas e outras diligências necessárias, se o executado não fizer voluntariamente a entrega...” (nº 1) e que “tratando-se de imóveis, o agente de execução investe o exequente na posse, entregando-lhe os documentos e as chaves, se os houver, e notifica o executado, os arrendatários e quaisquer detentores para que respeitem e reconheçam o direito do exequente” (nº 3). (sublinhado nosso)
A tal propósito, escreve José João Batista (in “Acção Executiva, 4ª ed., Universidade Lusíada, pág. 206”) que:
“(...) a entrega judicial (tenha-se em atenção, esclarecemos nós, que com a reforma executiva, introduzida pelo DL nº 38/03 de 8/3, a entrega da coisa passou a ser levada a efeito sob a égide do agente de execução) tem formalismo diversos conforme se trate de coisa móvel, imóvel ou bem de regime de compropriedade.
Assim, por um lado, se se tratar de coisa móvel, a lei prescreve que a entrega judicial deve ser feita por tradição material.
Por outro lado, se se tratar de coisa imóvel, verificam-se duas operações distintas:
A primeira é a entrega da chave (se existir) e dos documentos que titulam a propriedade da coisa (entrega simbólica).
A esta operação segue-se a notificação ao executado e outros detentores a qualquer título (vg. arrendatários), de que devem reconhecer e respeitar o direito do exequente”.
No mesmo sentido vai o prof. Lebre de Freitas ao afirmar que “a entrega da coisa ao exequente, pela qual fica investido ou constituído na sua posse, tem lugar mediante a tradição ou entrega material de coisa móvel... e a entrega simbólica de coisa imóvel, mediante entrega material de chaves e documentos e notificação do executado, bem como dos arrendatários e outros possuidores em nome próprio ou alheio (cuja situação jurídica, derivada do executado, ou do próprio exequente, porque compatível como o direito deste, deva subsistir), para que reconheçam e respeitem o direito do exequente” (in “Código de Processo Civil, Vol. 3º, Coimbra Editora, págs. 651/652” e in “Acção Executiva, 4ª Ed., Coimbra Editora, pág. 381”)
Postas tais considerações, debrucemo-nos, agora, mais de perto, sobre o caso em apreço.
Como resulta do supra exarado, após ter sido citado para a presente execução, o Município/executado não lhe deduziu qualquer oposição, tendo mesmo vindo ao processo declarar expressamente que não se opunha a que os exequentes fossem investidos na posse do prédio rústico em causa.
Face a tal, o srº solicitador da execução (na sequência do que lhe fora ordenado pelo srº juiz a quo, e considerando não haver no caso lugar a entrega de documentos e chaves) notificou o executado para reconhecer e respeitar o direito (de propriedade, dizemos nós) dos exequentes.
Porém, como entretanto os exequentes tivessem vindo ao processo declarar que o dito prédio rústico se encontrava ocupado com a construção ali edificada pela sociedade D..., (que o terá adquirido ao executado já depois da sentença proferida na 1ª instância), o srº solicitador da execução (igualmente sob a égide de despacho judicial que entretanto fora proferido pelo srº juiz a quo) veio a proceder também à notificação dessa mesma sociedade nos mesmos termos e efeitos em que já o fizera antes em relação ao executado, ou seja, para respeitar e reconhecer o direito (de propriedade) dos exequentes, sem que, pelo menos até ao momento, essa aludida sociedade tivesse reagido a tal notificação (nomeadamente através da instauração de qualquer processo como forma de defender algum eventual direito sobre o mesmo).
Desse modo, e face, por um lado, às considerações teóricas atrás expandidas, e considerando, por outro, estarmos na presença de um prédio rústico (em que em princípio não haveria lugar à entrega, quer de chaves, quer de documentos), ser-se-ia levado, num primeiro impulso, a considerar terem sido já os exequentes investidos na posse do dito prédio, considerando-se o mesmo ter-lhe sido entregue (simbolicamente), e, portanto, tendo a execução cumprido a sua função ou fim, já não haveria razões para prosseguir.
Seria assim se, todavia, os exequentes não tivessem entretanto vindo alegar ao processo que não poderiam usufruir do dito prédio em virtude de o mesmo se encontrar ocupado com uma construção ali edificada pela sociedade D..., (que o terá adquirido, em 26/03/2003, ao executado, já depois da sentença proferida na 1ª instância).
Alegação essa que, a comprovar-se (o que não foi feito até ao momento, nomeadamente pelo srº solicitador judicial), pode alterar a conclusão a que acima chegámos, e, desde logo, pelo seguinte:
É que para o facto de existir ou estar agora construída no terreno rústico uma edificação urbana (que impeça inclusivé a entrada dos exequentes nele) torna-se necessário também a entrega das respectivas chaves aos exequentes para que (como acima se deixou expresso, e resulta do citado nº 3 do artº 930 do CPC) se possa considerar que a entrega (simbólica) do mesmo lhes foi efectuada e para que eles se possam então considerar terem sido investidos na sua posse. Situação essa que, aliás, poderá, para que tal aconteça, ser susceptível de poder, inclusivé, desencadear o mecanismo previsto no artº 840, nº 2, ex vi nº 1 do artº 930, ambos do CPC.
Mas tal comprovação pode ainda suscitar outra questão.
E para a introduzir achamos por bem, a esse propósito, passar a citar o prof. Lebre de Freitas (in “Acção Executiva, 4ª Ed., Coimbra Editora, págs. 382 – finé - 383/384/385”):
“(...) A notificação do possuidor, em nome próprio ou alheio, para que reconheça e respeite o direito do exequente deve ter lugar quando a sua posse tenha procedido do executado (ou do próprio exequente), deva subsistir e seja compatível com o direito do exequente.
Mas pode um terceiro ter a posse da coisa a apreender por via dum título autónomo, isto é, originário ou procedente de outro terceiro, ou ter derivado do executado uma posse incompatível com o direito do exequente.
Deverá a execução ficar suspensa, por falta de título executivo contra terceiro, ou, no caso de ele existir, por o terceiro não ter sido demandado na acção executiva, ou deverá a apreensão ter lugar, sem prejuízo do direito do terceiro a fazer valer o seu direito em acção autónoma?
(...) Há que procurar nas normas do direito substantivo a solução do conflito de situações jurídicas que se apresente, tendo em conta que, diversamente do que acontece na acção executiva para pagamento de quantia certa, nem o titular do direito real de garantia nem o titular do direito real de aquisição têm modo de satisfazer os seus direitos no processo de execução e que o acto de apreensão não desempenha uma função normal de garantia.
Assim, o agente de execução que seja confrontado com a oposição de terceiro possuidor no acto de apreensão, deve, em regra, suscitar a questão perante o juiz, nos termos do artº 809, nº 1, do CPC.
(...) Suscitada a questão perante o juiz, é aplicável analogicamente o artº 848, nº 2 do CPC e, seja a coisa móvel ou imóvel, a apreensão não será ordenada quando o terceiro produza prova documental inequívoca (considerado, por seu lado, o título do exequente) de que é o proprietário da coisa, ou o titular de outro direito real que dela lhe conceda a posse, o mesmo se aplicando quando, realizada a apreensão, a prova documental seja subsequentemente apresentada ao juiz; não sendo inequívoca a prova apresentada e não havendo urgência na apreensão, pode o juiz ordenar que se aguarde o decurso do prazo para a dedução de embargos. O terceiro pode opor-se à apreensão através de embargos de terceiro ...ou lançar mão de acção de reivindicação (.....).
De qualquer modo, a prevalência do interesse do exequente ou do terceiro resulta dos regimes de direito substantivo aplicáveis”. Vidé ainda, a tal propósito, a doutrina, nacional e internacional, ali citada nas notas de págs. 383 e 384.
Resulta, desde logo, de tal que a notificação dos terceiros (vg. detentores) a que se alude na parte final do citado nº 3 do artº 930, isto é, para que reconheçam e respeitem o direito do exequente pressupõe que a posse ou direito dos mesmos seja compatível com o direito deste último (vg. prédio arrendado, comodato, etc).
Porém, se essa compatibilidade não existir ter-se-á então que questionar, perante a situação concreta, se a execução deve prosseguir para a entrega da coisa ao exequente ou se deverá ficar suspensa, a aguardar que essa conflitualidade de direitos (incompatíveis) seja decidida a nível do direito substantivo.
Daí que, para dar resposta às duas questões que atrás suscitamos, e que entroncam com a questão acima elencada como constituindo objecto do presente recurso, importe saber se o prédio rústico aqui em causa (cuja propriedade foi reconhecida aos ora exequentes pelo dito acordão do STJ) se encontra ou não ocupado com construção urbana, e, em caso afirmativo, que tipo de construção ou edificação ali foi levada a efeito, quem efectivamente faz tal ocupação e a que título?
Elementos factuais esses que deverão ser indagados pelo srº solicitador da execução e que depois os deverá transmitir ao srº juiz do processo, o qual em face deles deverá actuar e decidir em conformidade com aquilo que atrás se deixou expandido.
E nestes termos e para tais efeitos, impõe-se, assim, anular a decisão recorrida.
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em anular a decisão recorrida e, em consequência, ordenar ao srº juiz da 1ª instância que dê andamento ao processo nos termos e para os efeitos que atrás se deixaram exarados.
Sem custas.