Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2475/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
ARRESTO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 07/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS: 46, Nº 1 ALÍNEA C); ARTº 3, Nº 1; 456 E 457 TODOS DO C.P.C.
Sumário: Se num procedimento cautelar de arresto, após ser deduzida oposição, não se admitiu que a requerente se pronunciasse sobre a excepção de pagamento e sobre o pedido de condenação como litigante de má fé, nem foi admitido fazer qualquer prova sobre tais matérias – pois foi mandado desentranhar o articulado de resposta por ela apresentado, onde também eram arroladas testemunhas –, não deveria a mesma requerente ser condenada como litigante de má fé, por a prova do pagamento ter resultado apenas da prova produzida pelos requeridos.
Decisão Texto Integral:
A..., requereu, em 18/10/2004, pelo Tribunal Judicial de Leiria, providência cautelar de arresto preventivo contra B..., C... e D..., com fundamento na emissão de uma letra de câmbio, aceite pela 1ª requerida e avalizada pelos 2º e 3º requeridos, no montante de 15.462,73 € (3.100.000$00), que não foi paga na data do vencimento (25/12/2001), nem posteriormente.

Por decisão de 17/11/2004, foi ordenado o arresto em diversos bens móveis e imóveis.

Os requeridos deduziram oposição, alegando nada deverem à requerente, designadamente o montante da letra, já integralmente liquidada, e pedindo a condenação daquela como litigante de má fé, em multa e indemnização a favor deles, requeridos, em montante a determinar segundo o prudente arbítrio do Mmº Juiz.

A requerente apresentou um articulado de resposta, arrolando testemunhas e juntando documentos.

Por despacho de 24/02/2005 (fls. 147), foi ordenado o desentranhamento de tal articulado e documentos, por inadmissíveis, em virtude de, no âmbito de uma providência cautelar apenas haver lugar a dois articulados – petição e oposição.


Inquiridas as testemunhas arroladas pelos requeridos e indicados os factos da oposição dados como provados, foi proferida decisão que ordenou o levantamento do arresto, em virtude de resultar dos factos indiciariamente provados que a quantia peticionada e a que alude a letra junta aos autos terá sido paga, e condenou a requerente como litigante de má fé na multa de 10 UC e na indemnização de 1.000 euros aos requeridos.
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Inconformada com a decisão, na parte em que a condenou como litigante de má fé, agravou a requerente, rematando a sua alegação com as seguintes (extensas) conclusões:
a) Nos termos do artº 684 nº 2, o recurso é interposto somente da decisão que condenou a requerente como litigante de má fé, em multa que foi fixada em 10 UC’s e em indemnização, a qual foi fixada em mil euros por D. Despacho, de fls. 197.
b) Nos autos de providência cautelar instaurados pela requerente/agravante contra os contra os requeridos, foi a mesma deferida, sem auição prévia dos requeridos, e decretado o arresto com base em factos indiciariamente provados.
c) Os requeridos, nos termos do artº 388, nº 1, alínea b) do C.P.C., deduziram oposição á providência cautelar, e juntaram documentos.
d) Tendo o tribunal recorrido, decidido, julgar procedente por provada a oposição á providência cautelar, ordenando o levantamento do arresto.
e) Tal D. Decisão foi tomada com base no depoimento de duas testemunhas e ainda tendo sido relevante a análise dos documentos juntos a fls. 40 e segs., feita na inquirição.
f) Concluindo, o D. Tribunal recorrido que “ resulta dos factos ora indiciariamente provados, que, afinal, a quantia peticionada e a que alude a letra junta aos autos terá sido paga.” Pelo que “O pagamento é uma excepção peremptória que extingue o direito do requerente” E ainda “ … estando esse direito extinto pelo pagamento, há que determinar o levantamento do arresto, pois que nenhum direito da requerente há a assegurar.”
g) Quanto á condenação como litigante de má fé da requerente, ao propor a providência, entende o D. Tribunal recorrido que “ … a lei impõe áquele que intenta uma acção, certos deveres de cuidado. E esses deveres, a nosso ver, foram claramente preteridos


pela requerente que, em lado algum dos autos, referiu que a quantia peticionada estava paga ou que tinham sido feitos pagamentos dos quais ainda resultava algum crédito. Limitou – se a pedir o arresto, alegando que é credora e escamoteando os pagamentos que lhe foram feitos.” E ainda, que “Houve pela parte da requerente, a tentativa de esconder uma realidade e que é o pagamento do crédito de que se arroga titular.”
h) Concluindo que “Parece – nos manifesta a má fé da requerente, pelo que será a mesma condenada como litigante de má fé por se entender que assumiu esse comportamento processual nestes autos.”
i) E na sequência do exposto, a M.Juiz “a quo” condenou a requerente como litigante de má fé em multa que fixou em 10 (dez) UCs, e notificou as partes para o disposto no artº 457 nº 2 do C.P.C., tendo posteriormente fixado a indemnização em 1.000,00 Euros, por despacho a fls. 197 dos autos de providência cautelar.
j) Está na origem dos presentes autos a falta de pagamento de uma letra.
k) A letra é um título executivo conforme decorre do artº 46. do C.P.C., mais concretamente um documento particular, conforme decorre da alínea c) do nº 1.
l) Uma vez que estamos perante um título executivo, importa saber, se em sede de acção judicial, providência cautelar/acção executiva, é necessário invocar a relação subjacente á emissão de tal título.
m) A apresentação de um título executivo constitui o requisito formal para a instauração da acção executiva, porquanto a lei presume existir um direito para o credor e uma obrigação para quem figure no título como devedor, não havendo necessidade de invocar a relação subjacente, (vidé - Acórdão TRL, datado de 28.10.1999, BMJ, 490, pp. 311, “ O título executivo em geral constitui condição suficiente da acção executiva porque tem o relevo de dispensar a prévia indagação sobre a efectiva existência ou subsistência do direito de crédito que consubstancia e implica a presunção da existência da obrigação correspondente”
n) No mesmo sentido vide Ac. STJ de 29.10.1996- www.dgsi.pt “ quando o título executivo for um título de crédito (no caso, uma letra) a causa de pedir é a relação cambiária e não há que falar na subjacente…”
o) A agravante não era obrigada, na providência cautelar instaurada, a fazer prova da relação subjacente á emissão da letra, uma vez que tal título executivo constitui condição suficiente para instauração da acção cautelar e posteriormente da acção executiva,.
p) É em função da letra que se determina o fim e os limites da acção.
q) Presumindo – se a existência do direito da requerente, caberia aos requeridos, excepcionar ou impugnar a sua validade.
r) Na oposição á providência cautelar os requeridos vieram excepcionar, invocando o pagamento do montante inscrito na letra.
s) A requerente, uma vez que estamos no âmbito de um procedimento cautelar, não pôde responder ás excepção peremptória – pagamento do montante peticionado, levantada pelos requeridos.
t) O princípio do contraditório consagrado no artº 3º do C.P.C. no nomeadamente no nº 1, não é contemplado pela lei processual no tocante á resposta pela requerente ás excepções apresentadas pelos requeridos, em procedimentos cautelares.
u) As providência cautelares, revestem – se de características de provisoriedade, em que as decisões emitidas, são baseadas em provas indiciárias.
v) Apenas na acção definitiva, principal, onde o princípio do contraditório, é exercido em toda a sua plenitude, que será feita a averiguação exaustiva dos factos e aí proferida decisão definitiva, alicerçada no conhecimento profundo dos factos e do objecto do litigio.
w) A questão essencial na análise do presente recurso reside em saber se havendo decisão baseada em provas indiciárias, sem a requerente ter tido possibilidade de refutar as excepções invocadas pelos requeridos, se mesmo assim, poderia o Tribunal Recorrido ter proferido decisão, como fez, condenando a requerente como litigante de má fé, em multa e indemnização.
x) O artº 456 do C.P.C., identifica os comportamentos reveladores da má fé, abarcando os comportamentos dolosos ou negligentes graves.
y) Assim, se a letra constitui só por sí, o reconhecimento da existência de uma obrigação e suficiente para determinar a existência efectiva do direito, e nas providências cautelares não há legalmente lugar á resposta ás excepções deduzidas pelos requeridos, e assim o direito ao princípio do contraditório não é exercido plena e livremente, e se as decisões tomadas em providências cautelares revestem – de um carácter de provisoriedade, e só na acção definitiva há a averiguação exaustiva dos factos,
z) A requerente não pode ser condenada como litigante de má fé.
aa) Não poderia o D. Tribunal recorrido, ter condenado, em sede de providência cautelar, a requerente como litigante de má fé, com base na omissão de deveres impostos á requerente, nos termos do artº 456 do C.P.C.,
bb) Para que a requerente seja condenada como litigante de má fé, com base na omissão de deveres impostos, e que consubstanciam a litigância de má fé, nos termos do artº 456 do C.P.C., é necessário a existência de uma actuação, neste caso, um comportamento de omissão, mas consciente, e quando tal resulte de uma forma inequívoca e segura do processo.
cc) De acordo com o nosso entendimento, veja – se o Acordão (cfr. Ac. STJ, de 11.12.2003, em www.dgsi.pt). “Só quando o processo fornece elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente deverá a parte ser sancionada como litigante de má fé, o que pede prudência ao julgador, sabendo-se que a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico”
dd) Tendo o D. Tribunal recorrido, ao condenar a requerente como litigante de má fé, em multa e indemnização, violou o disposto nos artºs: 46, nº 1 alínea c); artº 3, nº 1; 456 e 457 todos do C.P.C.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O Sr. Juiz manteve o despacho recorrido.
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Cumpre apreciar e decidir, ao abrigo do disposto no artº 705º do Código de Processo Civil (diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência), atenta a simplicidade da questão apresentada.

A única questão a apreciar prende-se com a condenação da requerente como litigante de má fé, em multa e indemnização a favor dos requeridos.
Na parte final do despacho recorrido, quanto aos indícios de má fé, foi proferida a seguinte justificação para a condenação da requerente:


“A propositura de uma acção judicial é um acto sério, que normalmente acarreta prejuízos e incómodos para os demandados. Por isso, a lei impõe àquele que intenta uma acção, certos deveres de cuidado. E esses deveres, a nosso ver, foram claramente preteridos pela requerente que, em lado algum dos autos, referiu que a quantia peticionada estava paga ou que tinham sido feitos pagamentos dos quais ainda lhe resultava algum crédito. Limitou-se a pedir o arresto, alegando que é credora e escamoteando os pagamentos que lhe foram feitos. Houve, pela parte da requerente, a tentativa de esconder uma realidade e que é o pagamento do crédito de que se arroga titular. Parece-nos manifesta a má fé da requerente, pelo que será a mesma condenada como litigante de má fé por se entender que assumiu esse comportamento processual nestes autos.”.
Vejamos.
Face à actual redacção do artº 456º, é hoje claro que relevam para o efeito da má fé não só o dolo, como a negligência grave.
Ou seja, a lei passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a lide temerária, caracterizando agora a litigância de má fé, quer o dolo, quer a negligência grave, com o intuito de se atingir uma maior responsabilização das partes (preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95 e Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol 2º, pág. 195).
Não sendo fácil traçar os limites da litigância da má fé, a verdade é que, em princípio, não bastará o mero erro, a lide apenas ousada ou errada para justificar a condenação.
Com efeito, a ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direitos, gozando o litigante, quer tenha ou não razão, dos mesmos poderes processuais.
Contudo, o princípio da licitude do exercício dos meios processuais está limitado pela ordem jurídica, que impõe que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão (Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pág. 261).
De facto, a parte tem o dever de não formular pedidos ilegais, não articular factos contrários à verdade, nem requerer diligências meramente dilatórias. São os chamados deveres de verdade e de probidade – ínsitos no dever de se proceder de boa fé –, que a lei expressamente lhe impõe (artº 266º e Prof. Manuel de Andrade, Noções Elementares do Processo Civil, pág. 355).
O princípio de probidade ou de verdade - imanente a todo o sistema processual – consiste, além do mais, na obrigação de as partes exporem os factos em juízo, procedendo com lisura e boa fé, não formulando pretensões nem deduzindo oposição ou defesa destituídos de qualquer razoável fundamento (Pereira Batista, Reforma do Processo Civil, pág. 68).
Por isso, se a parte violar qualquer desse deveres, a sua conduta fá-lo incorrer em multa, ficando ainda sujeito a uma pretensão indemnizatória destinada a ressarcir a parte contrária dos danos resultantes da má fé (Cons. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, pág. 221).

Isto é assim em termos gerais.
Importa, no entanto, ver se o nosso caso se enquadra no que se acabou de expor.
Entendo que não.
Com efeito, como se recorda, os requeridos invocaram, na oposição, a excepção peremptória do pagamento, alegando nada deverem à requerente, designadamente o montante da letra, já integralmente liquidada, e pedindo a condenação daquela como litigante de má fé.
Ora, não foi admitido – e não importa ver se bem ou mal, já que isso não está aqui em discussão, sendo certo que o Tribunal Constitucional tem vindo a entender que é constitucionalmente exigível o cumprimento da regra do contraditório antes da condenação por litigância de má fé (Acs. do TC nº 440/90, DR, II, de 01/09/1994, nº 103/95, DR, II, de 17/06/1995 e nº 289/02, DR, II, de 13/11/2002) - que a requerente se pronunciasse sobre tal excepção e sobre o pedido de condenação como litigante de má fé, assim como também não foi admitido fazer qualquer prova sobre tais matérias, pois foi mandado desentranhar o articulado de resposta por ela apresentado, onde também eram arroladas testemunhas.
Não houve, assim, contraditório - cujo princípio, previsto no nº 3 do artº 3º, está constitucionalmente garantido no artº 20º da Constituição da República Portuguesa (cfr. P.G.A. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 28/29) -, resultando a prova do pagamento apenas da prova produzida pelos requeridos.
Por isso, e não obstante se ter provado (indiciariamente) o aludido pagamento - mesmo assim, parece que com dúvidas do Mmº Juiz, já que na sentença diz, a fls, 175, que “resulta dos factos ora indiciariamente provados que, afinal, a quantia peticionada e a que alude a letra junta aos autos terá sido paga” (o realce é nosso) -, não deveria a requerente ter sido condenada como litigante de má fé, em multa e em indemnização aos requeridos.
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Pelo exposto, dou provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida na parte em que condenou a requerente como litigante de má fé, em multa e em indemnização aos requeridos.

Custas pelos recorridos.