Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1002/04.3TBTNV-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARDOSO DE ALBUQUERQUE
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PRESUNÇÕES DE INSOLVÊNCIA CULPOSA
Data do Acordão: 11/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 186º, NºS 1 E 2, DO CIRE
Sumário: I – A lei – artº 186º, nº 1, do CIRE – considera como culposa a insolvência quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência de actuação dolosa ou com culpa grave do devedor, ou dos administradores da sociedade (de direito ou de facto), nos três anos anteriores ao início do processo.

II – O nº 2 do artº 186º do CIRE estabelece, nas suas alíneas, presunções de insolvência culposa, devendo entender-se tais presunções como de “juris et de jure”.

III – Um dos comportamentos geradores da presunção “júris et de jure” de insolvência é o de ter incumprido o administrador da empresa insolvente, e em termos substanciais, a obrigação de manter contabilidade organizada, ou ter praticado irregularidades com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ªSecção Cível da Relação de Coimbra:

I – Por apenso aos autos de insolvência requerido no Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas pelo Ministério Público contra a sociedade A..., com sede em Barreira Alva, Torres Novas e por determinação da sentença que a declarou, proferida em 17/01/2005 (e confirmada no recurso dela interposto por nulidade mediante acórdão de 5 de Julho seguinte) foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência e marcado dia para a assembleia de credores.
Realizada esta para apreciação do relatório da Sra Administradora em 20 de Outubro seguinte foi deliberado com parecer favorável do requerente, da Segurança Social e da Caixa Geral de Depósitos o prosseguimento do incidente de qualificação da insolvência da requerida como culposa, tendo na sequência sido notificados por despacho do Mmo Juiz, os credores para alegarem o que tivessem por conveniente no âmbito do respectivo apenso.
Tanto a credora Caixa, como a requerida apresentaram alegações, tendo também a Sra Administradora dado parecer, considerando culposa a insolvência indicando como responsáveis os administradores e sócios gerentes que identificou como sendo B... e C..., ambos residentes em Atalaia, Vila Nova da Barquinha , D..., também daí e E..., residente em Azóia.
No seguimento, a Digna Magistrada do Ministério Público deu a sua concordância ao parecer da administradora, sendo a seguir notificados os indigitados gerentes da insolvente, tendo dois deles recusado qualquer ligação à sociedade, ou seja os requeridos D... e E... que deduziram a sua ilegitimidade, criticando o relatório por conter indicações inexactas
Também a sociedade declarada insolvente veio apontar as insuficiências do relatório, dizendo que à excepção do referido B..., nenhuma dos outras pessoas tinha a menor ligação com a respectiva gerência, sequer sendo sócios, além de que não estavam caracterizadas situações típicas de uma insolvência culposa, pedindo a improcedência e apresentando como única testemunha uma técnica de contas.
Veio então o M. Público em extensa promoção reconhecer o bem fundado da oposição daqueles dois indigitados gerentes, por não terem eles de facto ligação nenhuma à insolvente, mas sim a um outra denominada F... a funcionar no mesmo local e explicitando que verdadeiramente quem dirigia uma e outra era B..., representante legal dos menores seus filhos e sócios de uma e outra, sendo a sua companheira C... a única sócia gerente da dita MFA, aduzindo contudo haver nos autos prova mais do que suficiente da responsabilidade do mesmo para a situação de descalabro da empresa, pela inobservância de normas elementares até de contabilidade, sendo certo que o património desta, bem como os seus trabalhadores fora esvaziado para benefício de uma outra, em detrimento dos credores, assumindo o seu passivo elevadíssima dimensão.
E também exprimiu sérias dúvidas em ter a insolvente legitimidade para intervir no incidente, em lugar dos seus gerentes e responsáveis.
~De seguida o Mmo Juiz por se considerar já habilitado a proferir decisão , sem necessidade de mais provas, veio a exarar a douta sentença de fls na qual concluiu pela procedência do pedido de qualificação mas apenas contra o mencionado B..., considerandos os demais partes ilegítimas e nessa conformidade decidiu:
- Declarar o referido gerente da insolvente B... afectado com a dita declaração da insolvência como culposa e , como tal,
- Decretar a sua inabilitação por dois anos;
- Declará-lo inibido para o exercício do comércio, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou ci vil, associação ou fundação privasda , empresa pública ou cooperativa durante um período de três anos;
- Deciarar a perda de quaisquer créditos sobre a massa insolvente de que ele seja titular e ainda,
- Condená-lo no pagamento das custas do incidente.
Inconformado, recorreu o dito responsável da sociedade insolvente de apelação, apresentando na devida oportunidade, douta alegação, em que conclui nos termos seguintes :
- Não se provou a situação de insolvência fraudulenta do ora apelante
- Na verdade, foi ilidida a presunção de culpa da insolvente pelo que e nessa medida não se lhe pode imputar qualquer culpa
- De facto, as contas da insolvente não foram depositadas na CRP por se terem verificados graves problemas ao nível do Sfotware da empresa como se pode comprovar por declaração do Técnico Oficial de Contas ;
- Foi, assim, ilidida a presunção de culpa estabelecida no artº 186º, nº3 do CIRE;
- A sentença de homologação do plano de pagamentos deve ser fundamentada de facto e de direito, pelo que a mesma é nula e viola os artºs 185º nº3 do CIRE a 659º e 658º do CIRE
- E deve ser substituída por outra que não considere a insolvência como culposa.
Não houve contra alegação.

II – Nesta instância a que subiram os autos do incidente com certidões da sentença e acórdão proferidos no processo principal, foram colhidos os vistos legais, tendo também o Exmo Procurador Geral Adjunto aposto o seu visto.
Cumpre decidir.

III – Vejamos, antes de mais, os factos que foram dados como assentes e plenamente provados na sentença recorrida:
1 - A requerida é uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada que tem por objecto a fabricação, comércio, importação e exportação de máquinas para construção civil, industria de madeira, aluminio, PVC e produtos informáticos , matriculada na CRP de Torres Novas, sob o nº 01701/010115, com o capital social de € 6.000, integralmente realizado;
- A gerência da requerida é exercida por B..., solteiro, maior e residente em Atalaia, Vila Nova da Barquinha (seguem os nº do BI e de contribuinte);
- A insolvente foi matriculada em 19/01/2001, mas declarou o início da sua actividade nas Finanças em 29/12/2000, constando que já não exerce actividade desde o início do ano de 2004;
- E é devedora ao Estado por dívidas liquidadas pela DGCI no montante de €271555,99 e juros de 53.717,17 a que acrescerm outros encargos , nomeadamente juros de mora e custas reclamadas em processos de execução fiscal.
- Foi verificado no processo de execução fiscal nº2119-02/102640.2 que para cobrança das dívidas exequendas inexistiam bens penhoráveis suficientes ;
- Por despacho proferido em 19/06/2001, a sociedade comercial F... (que tinha por objecto social máquinas, acessórios, ferragens para as industrias de alumínio e PVC e metalo - mecânica, import, export de máquinas, acessórios e ferragens parta industria de alumínio) foi declarada falida no âmbito do processo de falência que correu termos no 1º Juízo com o nº 517/99;
- E eram sócios da referida sociedade C..., o ora requerido e os acima referidos D... e E...;
- Por despacho proferido no processo principal em 15/09/2005 foi o requerido B... notificado para entregar no prazo de 10 dias à administradora toda a documentação relativa à situação económica e financeira da empresa.
- Em consequência de tal despacho apenas foi entregue à administradora uma declaração da TOC com o seguinte teor : “ a contabilidade só foi devidamente encerrada em 31/12/2000 (…) “
- Nos termos do relatório apresentado pela administradora da insolvência e nos termos do artº 155º do CIRE : “A falta de documentos, nomeadamente os balancetes analíticos, mensais e anuais não permite confirmar a proveniência dos resultados, pois apenas são indicados os saldos , que como o próprio nome indica são resultados finais .
Não foram efectuados estudos estatísticos, nem analisados ratios de liquidez, de solvabilidade, entre outros porque não houve apuramento de resultados em 2001 e os anos subsequentes não possuem registos
É de realçar que todas estas faltas de registos também se verificaram na empresa já falida F... em que a TOC responsável era a mesma senhora .
Certo é que as entidades mais lesadas continuam a ser a DGCI e a Segurança Social. Poder-se–ão fazer algumas analogias, ou seja , através da descrição das dívidas pelo Serviço de Finanças de Torres Novas verifica-se que a empresa é devedora de IVA de 2001 a 2004 o que conduza a afirmar que existe uma base tributável, logo vendas sujeitas a IRC. O Estado não foi só prejudicado em IVA , bem como em sede de IRC, sem falar de coimas , custas e juros. Através da certidão emitida pelo ISS, verifica-se que nos anos de 2002, 2003, 2004 e 2005, a empresa reteve a segurança social e não pagou as contribuições que lhe competiam.
No meu parecer não houve vontade, por parte dos sócios e gerente da falida em deixar transparecer a realidade empresarial, pois só assim se compreende que uma empresa em início de actividade possa estar na situação de incumprimento em que esta se encontra “
5 – Em 21 /09/2005 Maria Graciete Nunes Serras declarou que “ (…) foi Técnica Oficial de Contas da sociedade A... até 31/12/2003 e que a contabilidade só foi devidamente encerrada até 31/12/2000 devido a problemas no software da contabilidade que estava instalada nos computadores da empresa e que não foram superados.
6 – Os credores requerente e a CGD e a administradora pronunciaram-se pela qualificação da insolvências como culposa
7 – A insolvente nunca procedeu ao depósito das contas anuais na Conservatória do Registo Comercial.

IV - Perante estes factos, vejamos se sim ou não, o recurso merece provimento, pelas razões aduzidas, ou seja, a nulidade da decisão, por falta de fundamentos de facto e de direito, nos termos do artº 668, nº1 aln b) do CPC e a ilisão da presunção de culpa prevista no artº 186º, nº3 do CIRE.
No que concerne a nulidade, parece-nos claro que ela não se verifica.
De facto e como vem sendo uniformemente entendido, apenas a falta absoluta de fundamentação de facto ou de direito constitui tal nulidade e não uma fundamentação eventualmente incompleta ou pouco convincente ( v. além de A Varela , Manual , 2^ed, 687, o longo rosário de acórdãos in derradeira edição do CPC Anotado de Abílio Neto )
Ora na decisão recorrida o Sr Juiz fez expressa referência aos factos que considerou assentes, bem como aos elementos de prova em que alicerçou essa decisão, no essencial baseados nos elementos extraídos do relatório da Sra Administradora da insolvência e nos documentos juntos.
Igualmente sustentou as posições de direito que assumiu no que respeita à qualificação como culposa da insolvência referindo que a razão aduzida pela Sra Técnica Oficial de Contas da empresa para justificar a falta de uma contabilidade organizada não era minimamente aceitável, por isso mesmo aduzindo a desnecessidade dos autos seguirem para julgamento.
Ora ainda que possa discutir-se essa dita opção, trata-se de matéria que respeita ao fundo da causa, sendo absurdo dizer-se que a decisão do Mmo Juiz não está fundamentada de direito.
Isto posto, passemos, então à questão de fundo e que respeita à invocada ilisão da presunção de culpa do requerido Aníbal Delgado pela situação de insolvência da sociedade que ele como legal representante dos seus filhos menores era o gerente tanto de facto, como de direito.
Como é sabido a lei – artº 186º, nº1 do CIRE -considera como culposa a insolvência quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência de actuação , dolosa ou com culpa grave do devdor , ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo.
Mas sem prejuízo desta noção geral, o nº 2 estabelece presunções de insolvência culposa.
Todavia, em face da sua letra, quando afirma que a insolvência se considera “sempre “ culposa, ocorrendo qualquer dos comportamentos elencados nas suas alíneas, deve entender-se que nele se estabelecem presunções “juris et de jure”
Neste sentido orienta além do adverbio “sempre” o confronto com o texto do nº 3, onde esta palavra não é usada, o que permite afirmar que a presunção deste último preceito é ilidível segundo a regra geral do nº2 do artº 350º do CCivil.
Ora justamente um dos comportamentos geradores de tal presunção “juris et de jure” é o de ter incumprido o administrador da empresa insolvente e em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada ou praticado irregularidades em prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
E justamente decorre do relatório apresentado pelo administrador que a empresa gerida pelo requerido não tinha (tudo indica que nunca teve) a sua contabilidade em devida ordem, já que e para além de não existir encerramento das contas nos três anos anteriores a 2004, não obstante ter declarado o início de actividade em finais de 2000 não possuía, o que não foi negado na oposição quaisquer elementos ou documentos que permitissem saber a origem das saldos apresentados, nem sequer registos dos movimentos que permitissem definir e caracterizar a situação económica da mesma.
Mais, foi constado que do antecedente e numa outra sociedade a funcionar nas mesmas instalações e com os mesmos dois sócios filhos menores do requerido e declarada em estado de falência, igualmente não possuía quaisquer registos dos resultados, sendo também certo que em três anos de actividade se verificou a acumulação de um elevadíssimo passivo em detrimento da Fazenda Nacional e da Segurança Social.
De resto e como se ajuizou na sentença a defesa apresentada de que a inexistência de contas anuais da exploração resultaria de um problema de “Software” (argumento também invocado na falência daquela outra sociedade) não era mínimamente convincente, pois mesmo que tal hipótese se verificasse, sempre a empresa deveria ter desencadeado na altura própria, verificada a anomalia, um processo de substituição das declarações em falta.
Aqui chegados, temos pois o comportamento do requerido preenche a previsão da referida alínea e, logo, sobre ele recaíria uma presunção inilidível de culpa na gestão ruinosa da empresa insolvente, além de que igualmente e como consta do respectivo processo que esta não tinha quaisquer bens, nem dispunha, sequer de trabalhadores ao seu serviço.
Nenhuma censura assim merece a sentença proferida.

V – Nos termos e pelas razões expostas, decide-se julgar improcedente o recurso.
Custas a cargo da apelante.