Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
10562/12.4TCLRS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: DECLARAÇÃO NEGOCIAL
CONSCIÊNCIA
FALTA
ÓNUS DA PROVA
DEPOIMENTO DE PARTE
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 09/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – SEC.CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 246º E 257º DO CÓDIGO CIVIL; 7º, 8º E 542º, NºS 1 E 2, A) A E), DO NCPC.
Sumário: I – A consciência na declaração consiste na vontade ou consciência de acção, na vontade da acção como declaração, na consciência de se assumir um comportamento declarativo ou na aparência de uma declaração, na consciência e vontade de que o seu comportamento produza efeitos negociais no campo do direito e na vontade de, com esses gestos e sons, traduziu um certo conteúdo de pensamento, de se emitir uma declaração, seja em que termos for.

II) O ónus da prova da falta de consciência da declaração vincula o declarante.

III) É admissível a valoração, à luz do princípio da livre apreciação da prova, das declarações do depoente de parte, no segmento em que favorecem o declarante, contanto que o tribunal não se baseie exclusivamente nessas declarações para formar a sua convicção sobre a veracidade ou inveracidade dos factos controvertidos, i.e., que os enunciados de facto que sejam favoráveis ao depoente, obtenham de outros meios de prova – ou mesmo de regras de experiência ou de critérios sociais – um grau de confirmação adequado.

IV) O dever de verdade a que as partes estão adstritas, apenas as vincula à obrigação de alegar os factos tal como, na sua perspectiva eles se verificaram, de modo que, para aferir a boa fé da parte o que releva é, portanto, uma verdade subjectiva.

V) A litigância de má fé deve deixar incólume o direito das partes de discutirem e interpretarem livremente os factos, pelo que não é suficiente, para que a parte seja irremediavelmente considerada litigante de má fé, uma qualquer divergência ou desarmonia entre os factos, tal como a parte os descreve e como, ulteriormente, vêm a ser julgados provados e qualificados.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

Os autores, P... e cônjuge, O..., impugnam, através de recurso ordinário de apelação, a sentença, proferida no dia 15 de Janeiro de 2015, pelo Sr. Juiz de Direito da secção cível da Instância Central de Leiria, Comarca de Leiria que julgando improcedente a acção declarativa, com processo comum, ordinário pelo valor - na qual pediam, contra J..., Lda., a declaração da inexistência da declaração negocial constante do contrato promessa datado de 9 de Dezembro de 2004 – absolveu a última do pedido, os declarou como litigantes de má fé e os condenou na multa de duas unidades de conta e ordenou a notificação de AA. e R. para em dez dias dizerem o que lhes aprouver nos termos do artigo 543 n.º 3 do C.P.C.

Os recorrentes – que pedem no recurso a revogação desta sentença e a sua substituição por outra que, modificando a matéria de facto nos termos supra requeridos, julgue totalmente procedente a ação intentada pelos A.A., ora recorrentes, fazendo-se total justiça com a declaração, nos termos do artigo 246º do C.C., da nulidade/inexistência do contrato-promessa de compra e venda, datado de 09.12.2004, junto à P.I. como Doc. nº 11, já que, os recorrentes, no momento da sua assinatura não tinham a mínima consciência de estarem a fazer uma declaração negocial, na verdade, nem sabendo sequer que o que estavam a assinar se tratava de um contrato-promessa de compra e venda – remataram a sua alegação com esta constelação de conclusões:

...

Na resposta, a apelada – depois de observar, designadamente, que as conclusões com que os apelantes encerraram a sua alegação são extensas, prolixas e complexas, pelo que aqueles deveriam ser convidados a sintetizá-las - concluiu, naturalmente pela improcedência do recurso.

Todavia, o Relator, por despacho de 16 de Junho de 2015, obtemperando que, apesar de numerosas e de pouco contidas, as conclusões com que os apelantes remataram a sua alegação não deixavam de permitir a apreensão, pelo tribunal e pela contraparte, dos fundamentos do recurso – não convidou os recorrentes a proceder à sua contracção.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

2.1. O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto nestes termos:

2.1.2. Os factos provados:

a) Existe um escrito datado de 9 de Dezembro de 2004 no qual consta os seguintes dizeres: Contrato Promessa de Compra e Venda

Entre P... e mulher O(…) na qualidade de primeiros outorgantes e aqui designados promitentes vendedores e J... Lda. (…) aqui representada pelo seu gerente J (…) na qualidade de segunda outorgante e como promitente compradora (…)

Os primeiros outorgantes são legítimos proprietários e possuidores dos seguintes prédios urbanos: ...

Cláusula segunda: os promitentes vendedores prometem vender à representada do segundo outorgante ou a quem esta indicar, livres de ónus e encargos e a representada do segundo outorgante promete comprar os primeiros os prédios urbanos descritos na cláusula anterior nas seguintes condições: entrega no prazo de três anos contados da emissão da licença de construção, livres de ónus e encargos, devidamente concluídas e licenciadas pela Câmara Municipal de ... para o respectivo uso, de duas fracções de tipo T dois para habitação e uma loja com área de cinquenta metros quadrados para restaurante, fracções estas a construir nos prédios identificados na cláusula antecedente, entrega aquela a formalizar nos termos previstos neste contrato.

Parágrafo primeiro: Em simultâneo com a escritura definitiva do contrato prometido a favor da representada do segundo outorgante, será celebrado contrato promessa de venda pelo qual a ora representada do segundo outorgante promete vender aos primeiros as duas fracções tipo T dois e a loja com cinquenta metros quadrados, a construir nos prédios descritos na cláusula primeira.

Parágrafo Segundo: Compete à representada do segundo outorgante definir o valor a atribuir às duas fracções tipo T dois e à loja com cinquenta metros quadrados.

Parágrafo terceiro: As condições e cláusulas que farão parte integrante do contrato promessa de compra e venda a celebrar nos termos do parágrafo primeiro desta cláusula serão iguais ás do presente contrato, com as especificações aqui previstas, ficando desde já autorizado o procurador constituído nesta data pelos primeiros outorgantes a outorgar o referido contrato promessa. ---Cláusula terceira: A escritura pública necessária à execução do presente contrato será lavrada no prazo de noventa dias contados da aprovação do projecto de arquitetura do edifício a construir nos prédios prometidos vender neste contrato, no dia, hora, local e no Cartório de Leiria ou concelho limítrofes, a indicar pelo representante da segunda outorgante, a quem cabe a responsabilidade da sua marcação, devendo ser convocada para a escritura o procurador nomeado nesta data pelos primeiros outorgantes conforme procuração cujo teor se dá por reproduzida para os legais efeitos.

Parágrafo único: É da responsabilidade da representada do segundo outorgante contratar com pessoal técnico competente com vista à execução do respectivo projecto de arquitectura bem como das especialidades de forma a obter junto da Câmara Municipal de ... a aprovação do licenciamento da construção a edificar nos prédios prometidos vender, suportando os respectivos custos e encargos, requerer o processo de licenciamento, pagar as respectivas taxas e encargos legais, poderes estes que lhe são autorizados através de procuração outorgada nesta data para esse mesmo efeito, ficando desde já a segunda outorgante autorizada pelos primeiros outorgantes a apresentar o projecto de licenciamento nas condições e termos que entender e a assinar e tratar tudo quanto necessário for aos indicados fins. (…)

Cláusula oitava: Todos os outorgantes declaram livre e conscientemente que o texto e assinatura do presente contrato correspondem integralmente à sua vontade valendo como meio de prova suficiente quer para efeitos judiciais ou extrajudiciais, renunciando desde já ao direito de impugnar o texto e a assinatura do presente contrato.(…)

b) O escrito é composto por cinco páginas rubricadas pelo legal representante da R. e dos AA. da última página constam as assinaturas dos ora AA. e legal representante da R., bem como carimbo desta, tendo em 10.12.2004 sido as assinaturas reconhecidas no Segundo Cartório Notarial de Leiria, sob os dizeres: “Reconheço as assinaturas no verso de P... e de O..., feitas na minha presença pelos próprios cuja identidade verifiquei por exibição dos respectivos B.I nºs

Reconheço a assinatura no verso de J..., feita na minha presença pelo próprio cuja identidade verifiquei por conhecimento pessoal, na qualidade de sócio gerente da sociedade “J..., LDª, com poderes para o acto o que verifiquei por exibição da certidão do Registo Comercial de Leiria, emitida em 06.07.2004, que restituí. Não exibiram as licenças de habitabilidade, pelo que por declaração de ambas as partes, prescindem da apresentação das mesmas. ..".

c) Os AA. apuseram a sua assinatura ao documento com data manualmente aposta de 10.12.2004 e com o seguinte conteúdo: PROCURAÇÃO Os abaixo-assinados, P... e mulher O..., casados sob o regime da comunhão de adquiridos, ele natural da freguesia de ..., declaram constituir seu bastante procurador, J..., casado, natural da freguesia de ..., ao qual concedem poderes para prometer vender e ou vender e ou prometer comprar e ou comprar os prédios urbanos inscritos na matriz da freguesia de ... e ou as fracções autónomas a constituir em propriedade horizontal resultantes das construções a levar a efeito nos indicados prédios, a quem, pelo preço, condições, cláusulas que entender convenientes, mesmo nos termos do artigo duzentos e sessenta e um do Código Civil, outorgar e assinar as respectivas escrituras, pagar e ou receber os preços, receber e ou dar quitação e praticar tudo o que necessário for aos indicados fins; prestar perante notário, quaisquer declarações verbais ou por escrito, representá-los em quaisquer serviços públicos e privados ou quaisquer outros serviços cuja intervenção seja necessária para o processo de licenciamento camarário, designadamente, Câmara Municipal de ..., repartições de Finanças, Conservatórias do Registo Predial, CTT, EDP, Serviços Municipalizados, Telecom, Serviço Nacional de Bombeiros, Gás de Portugal, podendo nestes requerer pedidos de licenciamento municipal, pedidos de parecer para instrução de processos de licenciamento, pedidos de vistoria e ou licenças de utilização e ou habitabilidade, exercer o direito de audição, receber notificações, com ou sem aviso de recepção requerer a rectificação de áreas, de situação e de confrontações, requerer nas Conservatórias competentes registos provisórios e definitivos, averbamentos, nomeadamente averbamentos à descrição, cancelamentos e certidões, requerer nas Repartições de Finanças competentes e noutros serviços públicos quaisquer documentos, requerer e praticar tudo o que necessário for tão só quanto aos identificados prédios.

... ” Este escrito documento e as assinaturas do mesmo constante foram objecto de um termo de autenticação lavrado no dia 10.12.2004 no Cartório Notarial de ..., no âmbito do qual a escriturária do Cartório declarou ter lido o referido documento, tendo as parte referido que o mesmo exprime a sua vontade, após o que apuseram a sua assinatura.

d) Assente na procuração assinalada, J... mandatou pessoal tecnicamente habilitado para dar seguimento ao processo de licenciamento.

e) Passados meses, foi afixada pela R. um aviso de pedido de licenciamento emitido pela Câmara Municipal de ... no local dos prédios.

f) Por carta datada de 17.10.2006 os AA. comunicaram ao legal representante da R. que, naquele dia, procederam à revogação total e com efeitos a partir da data da procuração por eles outorgada e aludida em c).

g) Por carta datada de 10.11.2006, a ré, por intermédio do seu mandatário, comunicou aos AA. que pretendia recorrer a Tribunal no propósito de se ver ressarcida do incumprimento do contrato promessa celebrado no dia 10.12.2004, por via da revogação da procuração e alertou os AA. para o facto de que as partes haviam acordado na fixação antecipada de indemnização decorrente do incumprimento do contrato promessa por via de cláusula penal, a qual as partes haviam fixado no valor de EUR 200.000,00 (duzentos mil euros); No âmbito dessa mesma missiva, a R. requereu que os autores retomassem o cumprimento do contrato e que, para tanto, celebrassem nova procuração notarial nos mesmos termos e para os mesmos efeitos constantes daquela celebrada em 09.12.2004 e ainda que remetessem a procuração em questão para o escritório do seu mandatário, no prazo de 15 dias, sob a cominação de que se assim não procedessem, tal comportamento ser entendido como manifestação de vontade de incumprimento do contrato.

h) A ré deu entrada da Notificação Judicial Avulsa dos autores, que sob o n.º ... correu termos junto do ..., tendo dado conhecimento aos AA. que: marcou, para outorga de nova procuração a celebrar nos exactos termos daquela que havia sido celebrada no dia dez de Dezembro de dois mil e quatro no Cartório Notarial de ..., para o dia vinte e nove do mês de Janeiro de dois mil e sete, pelas 11H00, no Cartório Notarial de ...; Os autores deveriam comparecer no aludido Cartório, no dia e hora indicados, a fim de outorgarem a referida procuração; Deveriam os autores fazer-se acompanhar dos respectivos bilhetes de identidade válidos bem como dos respectivos cartões de identificação de número de contribuinte; Caso os autores não pudessem comparecer na data e local indicados ou caso se lhes revele conveniente, poderiam, em alternativa, e até essa data de 29.01.2007, fazer chegar à ré, através de carta registada com aviso de recepção, nova procuração notarial celebrada nos exactos termos e para os efeitos daquela que haviam outorgado no dia dez de Dezembro de dois mil e quatro no Cartório Notarial de ...; Caso os autores não comparecessem para a outorga da aludida procuração nos termos das alíneas anteriores e munidos dos documentos aí indicados ou caso não procedessem ao envio de nova procuração nos termos indicados previamente, a ré consideraria que os autores se recusavam, definitivamente, ao cumprimento do referido contrato promessa. Pelo oficial de justiça, foi lavrada certidão negativa da notificação dos aqui autores, nos seguintes moldes: “Certifico que em cumprimento do ordenado no(a) mandado precatório que antecede, não me foi possível levar a efeito a notificação judicial avulsa de: P... e O... na morada indicada em virtude de ninguém me ter aberto a porta ou respondido ao meu chamamento, apesar de um vizinho me ter dito que os mesmos aí residiam no Pateo ... Para constar lavrei a presente certidão que dato e assino. Comarca de ..., 04 de Janeiro de 2007.”

i) Em 29.01.2007, a ré compareceu no Cartório Notarial de ..., não tendo sido outorgada a referida procuração em virtude da não comparência dos autores.

j) Por carta registada de 27.02.2007 e com aviso de recepção carimbado pelos serviços postais de 28.02.2007, a ré notificou os autores nos seguintes termos: Por contrato promessa reduzido a escrito V.ªs Ex.as prometeram vender a esta empresa, a qual por sua vez prometeu-lhes comprar, os prédios urbanos inscritos na respectiva matriz sob os artigos ... da freguesia de ... Mais foi acordada a responsabilidade e encargo desta empresa em contratar pessoal técnico para a elaboração e para execução do respectivo projecto de arquitectura e especialidades com vista a obter a aprovação do licenciamento da construção de habitação colectiva a edificar nos prédios prometidos vender. Com vista aos indicados fins e à plena realização do contrato bem como das obrigações assumidas, consignou-se no referido contrato promessa a outorga de procuração a favor de J..., a qual veio a celebrada aos dez dias do mês de Dezembro do ano de dois mil e quatro. Por carta datada de 17.10.2006, V.ªs Ex.as comunicaram ao legal representante da empresa que, naquele dia, no Cartório Notarial de ..., procederam à revogação total e com efeitos a partir daquela data da aludida procuração. Assente em tal procuração e nos poderes dela emergentes, o referido J... havia mandatado pessoal tecnicamente habilitado para dar seguimento ao processo de licenciamento, poderes esses que se extinguiram por meio da revogação da procuração operada por V.ªs Ex.as que assim, e desde então, impedem culposamente esta empresa de continuar a cumprir com as obrigações assumidas no aludido contrato promessa, encontrando-se, nomeadamente, em iminência de caducar o processo de licenciamento pendente na Câmara Municipal de ... Desta feita, somos a comunicar a V.ªs Ex.as que deverão proceder à outorga de uma nova procuração notarial, nos exactos termos, efeitos e poderes conferidos na procuração anteriormente lavrada em 10.12.2004 no Cartório Notarial de ..., remetendo-a para esta empresa, no prazo máximo de 15 dias, sob pena de não o fazendo, se considerar resolvido, por incumprimento definitivo e com culpa exclusiva de V.ªs Ex.as., o contrato promessa celebrado. Mais se salienta que nos termos da cláusula sexta do contrato promessa, a presente carta presume-se ter chegado ao V/ conhecimento na data da assinatura do aviso de recepção ou no quinto dia útil posterior ao registo postal da mesma.

k) Os autores remeteram à ré carta datada de 21.03.2007 contendo confirmação e reiteração de que haviam revogado a procuração; a comunicação de que a revogação da procuração havia sido comunicada ao Presidente da Câmara Municipal de ...; a comunicação de que o instrumento de revogação da procuração havia sido junto ao processo de licenciamento que corria seus trâmites junto da Câmara Municipal de ...; a comunicação de que havia sido requerido o arquivamento do processo de licenciamento que corria seus trâmites junto da Câmara Municipal de Loures; a comunicação e confirmação de que os autores não iriam proceder à outorga da procuração requerida; a negação, por banda dos autores, de que haviam assinado o contrato promessa.

l) Corre termos sob o número ..., acção ordinária proposta pela R. contra os ora AA. no âmbito do qual aquela formulou os seguintes pedidos: (…) deve a presente acção ser julgada procedente por provada, e em consequência: A) Ser reconhecida a resolução com justa causa, aqui declarada pela ré, do contrato promessa de compra e venda que celebrou com os autores, identificado nesta petição, designadamente nos seus artigos 1.º a 14.º, por incumprimento destes, ou não se entendendo assim, ser a dita resolução, naqueles termos, declarada pelo Tribunal; B) Serem os Autores condenados a pagarem à A. a quantia de EUR 200.000,00 (duzentos mil euros) a título de indemnização, esta correspondente ao fixado por acordo a título de cláusula penal; C) Serem ainda os autores condenados a pagar à ré juros moratórios sobre a importância identificada na alínea anterior, que a esta é devida como consequência da declaração de resolução do contrato promessa por incumprimento dos autores, calculados à taxa legal, desde a data da citação da presente até efectivo pagamento; D) Ser a importância indicada em B) devidamente actualizada de acordo com os índices preço ao consumidor, com exclusão de habitação, anualmente fixados pelo Instituto Nacional de Estatística, desde a data da citação dos autores e até efectivo e integral pagamento;

 2.1.3.Os factos não provados:

...

2.1. O Sr. Juiz de Direito adiantou, para justificar o julgamento referido em 1., esta motivação:

...

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

O âmbito do recurso é, antes de mais, delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e, dentro do objecto do processo, com observância dos casos julgados formados na acção, pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (artº 635 nº 3 do nCPC). Finalmente, o âmbito do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente (artº 635 nº 2 do nCPC). Esta restrição pode ser realizada no requerimento de interposição do recurso ou nas conclusões e, neste último caso, tanto pode ser expressa como meramente tácita (artº 635 nº 4 do nCPC).

Os autores alegaram, como causa petendi – do qual fazem derivar o seu direito à declaração da nulidade ou da inexistência do contrato promessa de compra e venda – na qual figuram na posição jurídica de promitentes vendedores – o facto de, no momento da sua assinatura não terem a consciência de estarem a fazer uma declaração negocial, nem sabendo sequer que o que estavam a assinar se tratava de um contrato promessa de compra e venda. Falta de consciência que resultaria, em essência, destes factos precisos: não saberem se algum dos papéis que assinaram era ou não, algum contrato promessa de compra e venda, pois alguns estavam em branco e outros detinham o logotipo da Câmara Municipal de ... e de durante a recolha das suas rubricas bem como da sua assinatura o representante da apelada – J... – ter tido o cuidado de dobrar as folhas de forma a deixar livre o local onde se encontrava a referida cruz e onde deveriam rubricar e assinar.

Sujeitos estes – e outros – enunciados de facto ao exercício da prova, a sentença impugnada, não se convenceu da sua veracidade e, por aplicação das regras de distribuição do ónus da prova, julgou a acção improcedente e estigmatizou os apelantes com o ferrete da má fé, tendo-os logo condenado em multa processual no valor de 2 UC.

Mas uma tal decisão – sustentam, longa e veementemente, os apelantes – só se explica pelo manifesto e extenso error in iudicando em que incorreu, por equívoco na valoração das provas, o decisor da 1ª instância. Erro que, uma vez corrigido – através da substituição da decisão impugnada – determinará a procedência da acção e a sua absolvição da condenação por litigância de má fé.

A impugnação dirige-se, pois, contra a decisão da questão de facto e assenta no erro em matéria de provas.

Maneira que, as questões concretas controversas que importa resolver são as saber se, realmente, a decisão da matéria de facto se encontra ferida com o error in iudicando que os recorrentes lhe imputam e se a litigância destes foi de má fé. Problema que vincula ao exame, leve mas minimamente estruturado, da finalidade e dos parâmetros dos poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto e dos pressupostos da condenação por litigância de má fé.

Dado que é patente a delimitação da matéria de facto em função da matéria de direito – dado que os factos são recortados e escolhidos, designadamente, nos acontecimentos sociais segundo a sua relevância jurídica, i.e., de harmonia com a sua importância para as – várias – soluções plausíveis da questão de direito, justifica-se que a exposição subsequente se abra com a indicação dos requisitos de relevância da falta de consciência da declaração.

3.2. Falta de consciência da declaração.

            Qualquer negócio jurídico só releva por corresponder a uma vontade. Mas esta vontade pode, no seu processo de formação, ser maculada por vícios. Os vícios na formação da vontade negocial compreendem naturalmente, desde logo, a ausência de vontade, que, de harmonia com a nossa lei civil fundamental, pode, designadamente, resultar de falta de consciência da declaração e de incapacidade acidental (artºs 246 e 257 do Código Civil).

O Código Civil de 1966 atribuiu à falta de consciência de declaração uma relevância autónoma, pelo menos relativamente ao erro na declaração (artº 246 do Código Civil)[1].

A consciência na declaração é definida por exemplo, como a vontade ou consciência de acção, a vontade de acção como declaração, a consciência de se assumir um comportamento declarativo ou a aparência de uma declaração, a consciência e vontade de que o seu comportamento produza efeitos negociais no campo do direito e a vontade de, com esses gestos e sons, traduziu um certo conteúdo de pensamento, de se emitir uma declaração, seja em que termos for[2].

Mas se a doutrina é relativamente acorde quanto à definição da consciência da declaração, já o mesmo não sucede com o valor negativo que se deve assinalar à sua falta. Face à estatuição da lei de que a declaração, naquele caso, não produz qualquer efeito, entendem uns que a declaração é nula e, outros, que é mesmo inexistente[3].

Seja qual for o valor negativo que se deva associar à ausência de consciência da declaração, esta verificar-se-á sempre que o autor de um qualquer comportamento não tenha a noção de que está produzir uma declaração negocial, o que parece significar, materialmente, que não está efectivamente a emitir uma tal declaração: sem consciência da declaração não há uma declaração negocial e, neste contexto, nada mais parece existir que uma simples aparência.

Como quer que seja, tal como sucede com a incapacidade acidental, a etiologia da falta de consciência da declaração pode ser múltipla e o momento relevante para a aferição da ausência dessa consciência é, naturalmente, o momento da emissão da declaração. Da mesma maneira, a ausência da consciência da declaração parece constituir uma questão de direito, pois traduz-se na subsunção de um conjunto de factos materiais a um conceito jurídico, embora assente num juízo de facto: se ao emitir a declaração, o declarante não sabia o que estava a fazer. Por tudo isto, e à semelhança do sucede com a incapacidade acidental, a demonstração, a posteriori, da falta de consciência do carácter negocial da declaração, é extraordinariamente difícil[4]. Do que decorre, além do mais a vinculação do declarante a um dever de cuidado ou de prudência na alegação desse vício, só devendo a alegá-lo quando, no seu ver, tiver provas, senão irrefutáveis ao menos que inculquem uma probabilidade subida da veracidade da alegação.

Consabidamente, o nosso direito probatório material orienta-se pela chamada doutrina da construção da proposição jurídica ou teoria das normas – de harmonia com a qual a repartição desse ónus decorre das relações das normas entre si – e que, numa formulação simplificada, pode enunciar-se deste modo: cada parte está onerada com a prova dos factos subsumíveis à regra jurídica que lhe atribuiu um efeito favorável (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil). O princípio geral em matéria do ónus da prova apela, nitidamente, à natureza funcional dos factos perante o direito do autor.

Assim, ao autor cabe a prova, não de todos os factos que interessem à existência actual do direito alegado – mas somente dos factos constitutivos dele; a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito, incumbe à parte contrária, aquele contra quem a invocação do direito é feita (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Portanto, ao autor cabe a prova dos factos constitutivos do seu direito – dos momentos constitutivos do facto jurídico, simples ou complexo, que represente o título ou causa desse direito. Assim – como é o caso – numa acção fundada na falta de consciência da declaração negocial, é aos autores que compete fazer a prova dessa falta de consciência (artº 342 nº 1 do Código Civil).

Numa questão de facto de que dependa o julgamento, a lei dá sempre a uma das afirmações alternativas que a compõem o carácter privilegiado de ser tomada como base da decisão em dois casos: se for provada em si ou então em caso de dúvida insanável ou irredutível; a afirmação contrária só será tomada em conta se for provada. Assim, numa acção em que se alega a falta de consciência da declaração, na questão de facto não tinha consciênciatinha consciência, a primeira afirmação só é tomada em conta se for provada; a segunda é tomada em conta se for provada e ainda no caso de dúvida irredutível[5]. O autor impõe-se o ónus de provar os elementos estruturais – constitutivos – daquele vício; o réu está apenas adstrito a um simples ónus da contraprova, de tornar incerto o facto alegado pelo autor.

Em tal caso, o demandado não tem de criar no espírito do juiz uma convicção positiva, de persuadir o juiz de que o facto em causa – a falta de consciência da declaração – não é verdadeiro: é suficiente deixar no ânimo do juiz um estado de dúvida ou incerteza, uma convicção negativa sobre a realidade daquele facto (artº 346 do Código Civil). E isto é assim, dado que a dúvida sobre a existência do facto da ausência de consciência da declaração – facto constitutivo favorável ao autor - resolve-se contra ele visto que é a parte onerada com a prova.

Neste contexto, são, nitidamente, os apelantes que estão adstritos ao ónus de provar que no momento da subscrição do documento que corporiza o contrato promessa de compra e venda – subscrição que os recorrentes não controvertem no recurso dado que foi constatada presencialmente por oficial público – não tinham consciência da declaração, dado que se trata, inequivocamente, de um facto constitutivo do direito a declaração da nulidade ou da inexistência daquela declaração (artº 342 nº 1 do Código Civil). Em caso de non liquet, a dúvida sobre a realidade daquele facto resolve-se contra os apelantes (artºs 414 do nCPC e 346, in fine, do Código Civil).

3.3. Pressupostos da litigância de má fé.

Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, as partes estão adstritas a um dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos (artºs 7, 8 e 542 nºs 1 e 2, a) a e), do nCPC).

A infracção do dever de honeste procedere pode, pois, resultar de uma má fé subjectiva, se é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte, ou objectiva, se resulta da violação dos padrões de comportamento exigíveis.

O dever de cooperação assenta, quanto às partes, no dever de litigância de boa fé (artºs e 7 nº 1 e 8 do nCPC). Sobre as partes recai um dever de verdade, não como mero dever moral - mas como verdadeiro dever jurídico. Insiste-se neste ponto, uma vez que a observação da realidade judiciária, mostra que as partes parecem, às vezes, comportar-se como se lhes fosse inexigível o cumprimento do dever de verdade ou mesmo como se lhes assistisse um direito de mentir, que servisse como causa justificativa da falsidade.

Note-se, no entanto, quanto ao dever de verdade, que ele apenas implica a obrigação para a parte de apresentar os factos tal como, em sua opinião, eles ocorreram, de modo que, para aferir a boa fé dessa mesma parte o que releva é, portanto, uma verdade subjectiva, dado que só litiga de má fé a parte que alega o que não conhece ou que omite o que conhece[6].

A litigância de má fé apresenta especificidades quer quanto à conduta sancionada, quer quanto à culpa e quanto às consequências jurídicas.

No tocante à conduta reprimida, comporta três tipos de actuação substancial e uma de conduta processual. Tem a ver com a primeira a dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não se deva ignorar, a alteração dos factos ou a omissão de factos relevantes para a decisão da causa e a omissão grave do dever de cooperação (artº 542 nºs 2, a) a c), do nCPC); no domínio da conduta processual, o tipo legal relata um uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, com um de três fins: conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, protelar, sem fundamento sério o trânsito em julgado da decisão (artº 542 nº 2 d) do nCPC).

Portanto, a má fé processual tanto pode ser substancial como instrumental. É substancial se a parte infringir o dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou alterar a verdade dos factos ou omitir factos relevantes para a decisão da causa (artº 542 nº 2, a) e b), do nCPC); é instrumental nos casos restantes (artº 542 nºs 1 2 c) do nCPC).

O dano não é pressuposto da má fé: castiga-se a litigância de má fé independentemente do resultado; apenas releva o próprio comportamento mesmo que, pelo prisma do prevaricador, ele não tenha conduzido a nada[7].

Só se penaliza a conduta cometida com dolo ou com negligência grave[8]; a negligência comum não releva. Além disso, o alargamento da relevância da negligência grave ou grosseira restringe-se às prevaricações substanciais (artº 542 nº 2, d), do nCPC); nas processuais apenas releva o dolo[9].

A conduta da parte é ilícita quando dela resulta a violação do dever processual de bona fide e essa parte actuou com dolo ou negligência grave.

Nos termos gerais, o que confere especificidade e autonomia à conduta negligente é a violação, pelo agente, de um dever objectivo de cuidado a que, no caso, estava juridicamente vinculado. Sempre que se infrinjam regras de cuidado, de prudência, de atenção ou diligência - ocorre um delito negligente

Na lei civil fundamental portuguesa, o cuidado objectivamente devido e concretizado com apelo ao bom pai de família, portanto, ao cidadão normal, ao homem médio (artº 487 nº 2 do Código Civil). O critério definidor do esforço que é objectivamente exigível a cada parte é, assim, além de normativo, objectivo e generalizador, e, portanto, não entra em linha de conta com as capacidades pessoais da parte concreta, caso estas sejam inferiores às do homem médio. De outro lado, as capacidades especiais ou superiores à média não podem deixar de conduzir à afirmação de um facto negligente, mesmo quando se não revele violado o cuidado objectivamente devido, i.e., adequado às capacidades do homem médio.

Nos termos gerais, o dolo comporta um elemento cognitivo e um elemento volitivo: a parte age com dolo quando representa um facto que preenche a violação do dever processual, ainda que não tenha consciência da ilicitude; mas a parte só actua dolosamente quando se decide por uma actuação contrária ao direito. Se essa violação constituir a intenção específica da conduta da parte, há dolo directo; se essa violação não é directamente querida, o dolo é necessário; finalmente se essa violação não é directamente desejada, mas é aceite como efeito eventual, mesmo que acessório, o dolo é eventual.

A litigância de má fé opera oficiosamente; apenas a indemnização – que está sujeita a regras mais restritivas de que o princípio geral do direito das obrigações – exige um pedido da parte (artºs 542 nº 1 do nCPC e 562 e ss. do Código Civil)[10].

 A multa processual tem por limite mínimo 2 UC e por limite máximo 100 UC e a sua fixação deve obedecer, entre outros, aos seguintes critérios regulativos: os reflexos da violação da lei na regular tramitação e na correcta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste (artº 27 nºs do RCP). É, claro, porém, que a fixação do quantum da multa deve ocorrer sempre sob o signo estrito do princípio da proibição de excesso, na sua composição tripartida de exigência de adequação, necessidade e de proporcionalidade ou de justa medida[11].

É relativamente comum, para fixar o quantum do valor da multa, o apelo à gravidade dos riscos de lesão patrimonial causado ao litigante de boa fé, aos interesses funcionais do Estado e ao valor da causa.

Mesmo na ausência de critérios orientadores vinculados, que o tribunal deva atender aos elementos subjectivos da ilicitude do comportamento da parte – dolo ou negligência grave – e ao seu grau de intensidade, é axiomático; que haja de tomar em consideração a gravidade dos riscos de lesão patrimonial causada à parte contrária e aos interesses funcionais dos Estado (?) e ao valor da acção – não o cremos.

A multa tem um carácter de pena processual: a má fé aparece aos olhos da lei como procedimento ilícito, que deve ser sancionado. A multa tem por fundamento final a finalidade de qualquer pena processual: a tutela necessária de bens jurídico-processuais no caso concreto, com um significado prospectivo, traduzido pela tutela da confiança e das expectativas de comunidade jurídica de que no processo reine sempre uma atmosfera de incondicional boa fé.

Dentro deste conceito, o juiz há-de fixar a multa por maneira a que ela desempenhe a função assinalada; e para que as desempenhe, os factores que tem naturalmente de atender são a intensidade da má fé – dado o carácter subjectivo da responsabilidade - revelada através de factos concretos, e a situação económica do litigante doloso ou gravemente negligente. Nem a gravidade dos prejuízos causados à parte contrária ou os interesses funcionais do Estado, nem o valor da acção são elementos a considerar na fixação do quantitativo da multa[12].

A pena processual de multa aplicável para reprimir a má fé da litigância deve, decerto, severa – mas é curial que também seja justa.

A situação económica do litigante de ma fé deve ser considerada na determinação do valor da multa, mas nenhuma influência deve exercer sobre a questão da indemnização: quando a esta releva apenas a conduta do litigante.

Um dos corolários mais relevantes do princípio instrumental do dispositivo - que determina que o processo se encontra na disponibilidade das partes – é decerto o da disponibilidade privada sobre o objecto desse processo que, por sua vez, determina que incumbe às partes à definição desse objecto e a realização da prova dos respectivos factos.

O princípio da disponibilidade privada implica, assim, dois ónus distintos: o ónus de alegação, que respeita à invocação dos factos essenciais integrantes da causa de pedir ou da excepção, e o ónus de prova, que se refere à realização da prova desses factos se os mesmos forem controvertidos (artºs 342 e 346 do Código Civil e 414 do NCPC).

Simplesmente, do facto de uma parte não ter conseguido livrar-se do ónus da prova que a vincule, relativamente à causa petendi alegada ou à excepção invocada, não decorre, como corolário que não possa ser recusado, que adulterou a realidade de que tinha necessário conhecimento, alegando, por exemplo, um conjunto de factos inteiramente supostos.

A circunstância de a parte não ter demonstrado um facto ou factos que tenha alegado, não é, inelutavelmente, sinónimo de violação do dever de verdade, antes constitui, frequentemente, simples consequência do carácter contingente - e mesmo aleatório – da prova[13].

A litigância de má fé deve deixar incólume o direito das partes de discutirem e interpretarem livremente os factos. Assim, não é suficiente, para que a parte seja irremediavelmente considerada litigante de má fé, uma qualquer divergência ou desarmonia entre os factos, tal como a parte os descreve e como, ulteriormente, vêm a ser julgados provados e qualificados[14].

Entendimento diverso conflituaria, nitidamente com o direito, de matriz constitucional, de acesso ao direito[15].

Não sofre, realmente, a mínima dúvida a atribuição, na Constituição Portuguesa, de um direito à jurisdição ou de acesso à justiça, que se desdobra na garantia de acesso aos tribunais e de uma garantia de acesso ao próprio direito (artº 20 nº 1)[16]. Este direito que constitui, de resto, simples decorrência do estado social de Direito também constitucionalmente consagrado, garante, de forma universal e geral, o direito de levar a sua causa à apreciação de um tribunal (artº 2 da Constituição da República Portuguesa).

Como é evidente, não basta assegurar a qualquer interessado o acesso à justiça, sendo necessário que o processo a que se acede apresenta, quanto à sua própria estrutura, garantias de justiça. Tão indispensável como assegurar o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, é, por exemplo, garantir, àquele que recorre aos tribunais, um julgamento por um órgão imparcial, em plena igualdade de partes, o direito ao contraditório, uma duração razoável da acção, a publicidade do processo e a efectivação de um direito à prova[17]. O direito de actuar em juízo terá, pois, de efectivar-se através de um processo justo ou equitativo.

O direito de acesso ao direito ao direito e à tutela jurisdicional efectiva e o direito ao processo equitativo estão largamente dependentes de conformação através da lei e da disponibilização de processos garantidores de uma tutela judicial efectiva, dotados de uma estrutura informada pelo princípio da equitatividade.

Em qualquer caso, o direito à tutela jurisdicional efectiva – que substituiu o direito de acesso aos tribunais colocado na epígrafe do texto anterior da Constituição, vincando-se assim que se visa não apenas garantir o acesso aos tribunais mas sim e principalmente possibilitar aos cidadãos a defesa de direitos e interesses legalmente protegidos através de um acto de jurisdictio – concretiza-se fundamentalmente através de um processo jurisdicional equitativo[18].

Por processo equitativo deve entender-se não só o processo justo na sua conformação legislativa – mas fundamentalmente como um processo materialmente informado pelos princípios materiais de justiça nos vários momentos processuais.

Neste plano, constitui dimensão ineliminável do princípio do processo equitativo, o direito de defesa e o direito ao contraditório, concebido como princípio ou direito de audiência, isto é, como oportunidade conferida a todo ao participante processual de influir, através da sua audição, no decurso do processo, na possibilidade de saber que contra si foi proposta uma acção ou requerida uma providência, de conhecer todas as condutas da contraparte e de tomar posição sobre elas, de invocar as razões de facto e de direito, de oferecer provas, de controlar as provas produzidas pela outra parte e de se pronunciar sobre o valor e resultado dessas provas.

A pretensão de tutela jurídica efectiva, na sua dimensão garantística, impõe a consideração processual das pessoas, não como objecto da decisão judicial – mas como comparticipantes na criação dessa mesma decisão. Do que decorre que a administração da justiça não se relaciona apenas com a protecção de situações jurídicas substantivas, mas também e directamente com a da posição processual daqueles que sejam afectados por essa decisão. Nestas condições, um processo orientado por um princípio de equitatividade deve assegurar aos respectivos sujeitos uma participação constitutiva na declaração do direito do seu caso e, através dela, na conformação da sua situação jurídica futura, o que supõe a inexistência de constrangimentos desrazoáveis ou injustificados à liberdade de alegação e de controversão dos factos e de cominações processuais que se bastem com o simples não cumprimento do ónus de prova que, em cada caso, vulnere a parte.

O direito à tutela jurisdicional efectiva, nas várias dimensões em que é decomponível, não se identifica com o direito a uma decisão favorável, antes se reconduz, muito simplesmente, ao direito de obter uma decisão fundada no direito sempre que se cumpram os requisitos legalmente exigidos. Aquele direito não é, portanto, conflituante com a exigência do cumprimento de ónus processuais e com a observância de deveres de processuais: o direito à tutela jurisdicional efectiva só não pode ficar comprometido com a imposição daqueles ónus e deste deveres quando estes se mostrem desnecessários, desadequados e desproporcionados.

Assim, é perfeitamente compatível com o direito à tutela jurisdicional efectiva, o princípio da cooperação intersubjectiva, que se destina a transformar o processo numa comunidade de trabalho e que assenta, quanto às partes, no dever de litigância de boa fé (artºs 7 nº 1 e 8 do nCPC). De resto, um processo que não vinculasse as partes a um dever de honeste procedere – permitindo-lhes toda sorte de desmandos, de condutas disfuncionais e desviantes, de dilações e de chicana, de abusos e de comportamentos processuais mentirosos – não se construiria, decerto, como um processo equitativo, dado que impediria a obtenção, em tempo razoável de uma decisão fundada na verdade e no direito.

Mal vale a pena perder uma palavra para explicar que os factos que revelam a má fé da parte devem provar-se, embora a demonstração desses factos não exija um grau diferente do que é exigido para a prova dos factos da causa.

3.4. Fundamentos finais e parâmetros do controlo da Relação relativamente à decisão de matéria de facto da 1ª instância.

O controlo efectuado pela Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal da 1ª instância pode, entre outras finalidades, visar a reponderação da decisão proferida.

A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e, portanto, substituir - a decisão da 1ª instância se os factos tidos como assentes, a prova produzida – designadamente a prova produzida oralmente na audiência – ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (artº 640 nº 1 do nCPC).

Note-se, porém, que não se trata de julgar ex-novo a matéria de facto - mas de reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in iudicando. O recurso ordinário de apelação não perde, mesmo neste caso, a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.

Depois, essa reponderação tem por finalidade e é actuada sob os signos seguintes:

a) Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (artº 341 do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (artº 607 nº 5 do nCPC de 1961).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional;

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de argumento capaz de se impor aos outros;

f) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis;

g) O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis tem menor probabilidade de não ser a correcta.

h) O controlo pela Relação da decisão da matéria de facto não é actuado por imediação, i.e., através de numa percepção própria do material que lhe serve de base, mas através da audição de um registo sonoro ou da leitura, fria e inexpressiva, de transcrições, que torna indisponíveis todos os relevantíssimos momentos não-verbais da comunicação.

Agora, há que ter presente que de harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância, seja qual for a modalidade considerada, só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 130 do nCPC).

Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil, designadamente, a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância. Isso sucederá sempre que, por exemplo, mesmo com a substituição da decisão da matéria de facto impugnada, a solução ou enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, v.g., mesmo com a modificação, os factos adquiridos são insuficientes ou inidóneos para modificar a decisão de procedência ou de improcedência, da acção ou da excepção, contida no despacho ou na sentença recorrida.

Portanto, a actuação dos apontados poderes de controlo só deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objecto da acção[19].

3.3.2. Reponderação das provas.

Os recorrentes reputam de julgados em erro os enunciados – julgados não provados – identificados, na sentença, impugnada, com as letras a), b), c), d), e), f), h), i) j), k), l) e m). No seu ver, numa sã e prudente avaliação das provas, tais enunciados devem julgar-se provados, ainda que alguns só em parte.

Já adquirimos à certeza, todavia, que o momento relevante para a aferição da falta ou ausência da consciência da declaração é, naturalmente, o momento da emissão da declaração. Sendo isto indiscutível, então de todos os enunciados de facto que os apelantes reputam de mal julgados, só dois são, realmente relevantes – justamente por se referirem ao momento capital da emissão da declaração negocial de que os recorrentes dizem não ter tido consciência: os constantes em i) e j).

            Todos os demais enunciados revestem, quando muito, na hipótese mais benigna, a natureza de factos puramente instrumentais, i.e., de factos susceptíveis de ser utilizados para a prova indiciária dos factos principais, i.e., de factos de cuja prova se pode inferir, de algum modo, a demonstração dos correspondentes factos essenciais (artº 5 nºs 1 e 2, a), do nCPC).

            E dada a função nitidamente secundária ou subalterna que desempenham no processo – justificar a alegação ou a prova dos factos essenciais – não devem integrar os temas da prova nem, em regra, ser objecto de um juízo probatório específico[20]. E para a demonstração da inutilidade a reponderação de todos os demais pontos de facto, que não os indicados nas alíneas i) e j), basta atentar no seguinte: admita-se que – com excepção destes dois – todos os demais enunciados deveriam julgar-se provados. Mesmo nesta hipótese – na falta de prova daqueles dois enunciados – e sobretudo de um deles – a acção sempre improcederia, por não ter sido feita a prova de que no momento da emissão da declaração negocial – o da subscrição do documento que a corporiza – faltou a consciência dessa declaração.

            De resto, é manifesto que alguns desses enunciados – maxime o enunciado segundo o qual os apelantes não tinham a intenção de vender – sempre deveriam julgar-se não provados.

Decerto, que a testemunha M... – supervisor reformado, vizinho dos autores há mais de 50 anos – asseverou que o Sr. P... nunca mostrou vontade de vender os terrenosembora de negócios disse não saber de nada. É também exacto que M... – filha dos autores – que nunca assistiu a conversas entre o pai ou a mãe, nem se deslocou aos cartórios de ..., garantiu que o pai não tinha a intenção de vender o terreno; que mãe lhe disse que ia assinar uns papéis, mas não ouviu a palavra contrato promessa, que o motivo da procuração era saber o que é que dava para fazer no terreno, porque o meu pai que eu construísse a minha casa, o meu irmão a dele; (os) pais nunca me falaram em contrato promessa nenhum. Por certo que também a testemunha F... – agente da PSP – garantiu que de que ele tivesse conhecimento nunca mostraram esse interesse em vender os terrenos que lá tinham. É também verdade que a testemunha A... – cunhado do autor – assegurou que os autores nunca manifestaram vontade de vender o terreno, porque era um terreno doado ainda pelos pais do Sr. P..., eles têm filhos e queriam deixar esse terreno para um dia mais tarde se viesse a valorizar, deixar aquilo para os netos e que nunca falaram que tinham assinado um contrato promessa. É igualmente indiscutível que a testemunha M... – irmã da autora – garantiu que nunca ouviu falar do contrato promessa, que a irmã não queria assinar a procuração, procuração que era para avaliar, era para saber da luz e água e qualquer coisa, que nunca ouviu que os autores quisessem vender o terreno e que ouviu a irmã dizer que não assinava nada, nunca tendo ouvido falar em contratos.

            No entanto, por mais que estas testemunhas asseverem, a pés juntos, a falta da intenção ou do propósito de vender dos autores, há uma prova – plena - que desmente, irremissivelmente uns e outros: o instrumento de procuração, outorgado na mesma da data da subscrição do documento que contém o contrato promessa, no qual os apelantes conferem poderes representativos voluntários ao gerente da apelada – J... – para prometer vender ou vender – a si mesmo, em nome próprio ou em representação de terceiro – os prédios urbanos. Procuração cujo conteúdo e alcance os recorrentes não podiam ignorar dado que foi outorgada por documento particular autenticado, o mesmo é dizer, cujo conteúdo foi confirmado perante o notário e que, portanto, tem força probatória plena (artºs 371 nº 1, ex-vi, artº 377 do Código Civil, 35 nºs 1 e 2 e 150 nº 1 do Código do Notariado). Então os recorrentes nenhum intenção ou propósito tinham de vender e concedem a terceiro, voluntariamente – em acto contemporâneo - poderes representativos para vender – até a esse mesmo terceiro? Mas os apelantes acham razoável supor, em boa verdade, que alguém que não tenha a mínima intenção de vender passe uma procuração a terceiro concedendo-lhe latitudinários poderes representativos voluntários – para vender?  Terceiro que é justamente o gerente da sociedade comercial que, no contrato promessa, ocupa a posição de promitente.

            Note-se, como decorre dos documentos extraídos de processo de inquérito, objecto de decisão final de arquivamento - que a apelante – talvez por isso - ainda tentou furtar-se aquela vinculação, imputando ao procurador um crime de burla – por estão razão singular: ter-lhe atribuído poderes mais amplos do que aqueles que haviam sido pretendidos – engano que não é sequer verosímil em face da confirmação perante o notário do conteúdo da procuração. De resto, não pode deixar de ver-se nesta atitude um certo padrão de comportamento: a subscrição de um documento e, depois, a tentativa de, sob os pretextos mais variados, de subtracção às vinculações que dele decorrem.

E a existência daquela procuração torna também inverosímil a alegação relativa à habilidade, engenho ou artifício astucioso de que, segundo os apelantes, se socorreu o gerente da apelante no momento da assinatura do documento da promessa - a dobragem das folhas de modo de modo a deixar apenas livre o local da subscrição. Para quê, todo esse subterfúgio ou aquele acto astucioso, se o gerente da apelante dispunha de uma procuração que lhe permitia celebrar, até consigo mesmo, aquele contrato? De qualquer modo, um tal acto astucioso não impediu os apelantes de se aperceber – como eles mesmos alegam - designadamente, que alguns dos papéis estavam em branco. O que mostra que aquela alegação dos apelantes nem sequer é intrinsecamente coerente ou congruente: de um aspecto, alegam que a habilidade do gerente da apelada os impediu de percepcionar as páginas do documento que subscreviam e, de outro, afirmam que se aperceberam que estavam em branco.

 E tendo-se apercebido – segundo alegam - que alguns papéis estavam em alvo, ainda assim optaram por rubricar todas as páginas – cinco - e subscrever a última dessas páginas? Os apelantes saberão, decerto, que não saber o que se está declarar ou assinar um documento em branco, não são, fáctica e juridicamente, realidades equivalentes.

Seja como for – e como decorre da alegação mesma dos apelantes – nenhuma das testemunhas nas quais estes fundam a impugnação, assistiu à subscrição do documento. As únicas pessoas que assistiram a essa subscrição são, naturalmente, os apelantes, o gerente da apelada – autores dessa subscrição - e o documentador dela – a escriturária superior, que reconheceu as assinaturas, designadamente dos apelantes, por terem sido feitas na sua presença. De todos as pessoas que intervieram no acto, a última é, decerto, uma das melhores colocadas para asseverar o facto habilidoso, engenhoso ou astucioso, ocorrido no momento preciso da subscrição, que imputam ao gerente da apelada, dado que constatou, presencialmente, o facto da aposição das assinaturas.

É, portanto, deveras singular que os apelantes não tenham produzido como testemunha o oficial dotado de fé pública que presenciou o acto de subscrição, porque este, além de ter, necessariamente constatado o facto e o contexto da subscrição – e, portanto, ter estado num posto de observação que torna especialmente qualificado o seu depoimento – não tem, com qualquer das partes relação, vínculo ou subordinação susceptível de perturbar a sua imparcialidade ou de o privar da liberdade e espontaneidade necessárias para fazer um depoimento consciencioso e verdadeiro. É certo que os apelantes ainda insinuaram a conivência da ajudante do notário – através da alegação de uma enorme intimidade e cumplicidade com o gerente da apelada e da ideia de que tudo estava previamente combinado – mas um tal alegação foi julgada não provada e a correcção desse julgamento não é impugnada no recurso.

De todas as pessoas que intervieram no acto da subscrição apenas uma depôs da audiência: a autora, através do depoimento de parte. Depoimento que é tido como totalmente credível, por ser notória a total veracidade e isenção com que foi prestado. Por quem? Pela autora - ela mesma.

Em primeiro lugar, cumpre notar que está aqui em causa a apreciação do depoimento de parte, não no segmento em que produz confissão – para cuja obtenção se mostra finalisticamente ordenado – mas a valoração desse depoimento, nos passos em que as declarações são favoráveis ao depoente, de harmonia com o princípio da livre apreciação das provas, valoração que, apesar de parecer contrário de alguma doutrina, uma jurisprudência[21] – que se crê maioritária – conclui ser inteiramente admissível, embora com uma ressalva importante – referida não à admissibilidade do meio de prova, mas à avaliação da sua força probatória: aquela valoração tem-se por admissível, contanto que o tribunal não se baseie exclusivamente nessas declarações para formar a sua convicção sobre a veracidade ou inveracidade dos factos controvertidos[22]. Quer dizer: a proibição de valoração deve considerar-se afastada desde que as declarações, mesmo referidas a enunciados de facto que sejam favoráveis ao depoente, obtenham de outros meios de prova – ou mesmo de regras de experiência ou de critérios sociais – um grau de confirmação adequado.

Não é – decididamente - o caso.

A particular falibilidade de qualquer depoimento – especialmente do depoimento da própria parte – radica em dois perigos; o de infidelidade; o de parcialidade, embora pareça que tudo se reduz ao perigo da infidelidade – a prova por declarações da própria parte é particularmente falível, porque é extremamente infiel. Infidelidade que pode derivar, desde logo, desta causa: o defeito de retenção – o depoente, por falta de memória, faz, ainda que involuntariamente, uma narração inexacta ou incompleta do que fez, viu ou ouviu. E no caso, não se pode, realmente, confiar na memória da autora.

A sujeição, como arguido, a julgamento, num processo penal é facto – até pelo carácter traumático – que marca indelevelmente. Quem responde como arguido – e mesmo noutra qualidade processual – encontra-se diante de um cenário que desconhece ou a que não está habituado; a solenidade do juiz ou juízes, a enormidade da sala, a ansiedade do público, oprimem e asfixiam; sente todos os olhares cravados na sua pessoa; tem de desempenhar um papel de primeira nesta representação espectacular para a qual não estava preparado; o clima solene e hierático do tribunal, que exerce uma influência perturbadora e inibidora, e sobretudo a angústia do risco de uma condenação – deixam vincos na memória.

 Ora a autora – como decorre inequivocamente da prova documental extraída de processo criminal – foi submetida a julgamento, no processo comum singular que correu termos sob o nº ..., tendo na audiência, realizada no dia 15 de Janeiro, apresentado publicamente desculpas ao ofendido – o gerente da apelada – o que determinou a extinção do procedimento por desistência da queixa. Todavia, tanto a perguntas do Exmo. Advogado da apelada como do Sr. Juiz de Direito – apesar de este lhe ter feito notar que o pedido de desculpa se encontrava numa acta de audiência de julgamento – a autora declarou – reiteradamente - não se lembrar – sinceramente - de ter sido julgado nem de ter pedido desculpa. E a par desta incompreensível falta de memória – que, todavia, veio a revelar-se selectiva – são múltiplas as incongruências e inconsistências do respectivo depoimento, mesmo que considerado isoladamente, i.e., independentemente do seu contraste com outros depoimentos. Assim a depoente negou – a perguntas do Sr. Juiz de Direito - que a procuração lhe tivesse sido exibida - mas depois admitiu que não a leu e mais a frente – a perguntas do Sr. Advogado da apelada – que ela lhe foi lida – o que não a impediu, depois, de se queixar pelo crime de burla.

Identicamente a apelante asseverou, a perguntas do seu Exmo. Mandatário, que não mostrou o terreno a ninguém, nem deu informação de nada, não mostrou, não me apareceu lá ninguém, ninguém a mando do Sr. Há, porém, um depoimento que induz ou inculca mesmo a inveracidade destas declarações. Realmente, a testemunha P... – engenheiro civil - contratado pelo Sr. J... para um projecto para um terreno que ele estava em negócio - que garantiu que nas deslocações que lá fez – ao terreno – conheceu os autores, que falou com eles acerca do projecto, falamos do terreno, falamos de bastantes coisas, fizemos lá medições, andamos levantamentos topográficos, a Sr. O... estava presente, e que eles – os autores – mostraram os limites da propriedade: a Sr. O... acompanhou-nos e o Sr. P... também, na altura da primeira vez também explicou onde é que eram os limites da propriedade. E noutro passo – e a interrogação do Sr. Juiz de Direito - repetindo uma resposta que já dera a perguntas do Sr. Advogado da apelada - afiançou que a D. O... falou, nomeadamente, que queria o terreno desembaraçado, limpo, e que quando foram lá da primeira vez, o Sr. J... é que os apresentou: este é o P... e aquele é o L..., são os meus projectistas, quando entramos no terreno a D. O... já estava dentro do terreno, fomos sempre bem recebidos, depois passaram à indicação dos limites da propriedade e houve várias conversas.

É verdade que a depoente – relevando aqui uma notável capacidade de memória e de retenção - declarou que assinou os papéis em branco, porque da parte que estava a ver ele – o gerente da apelada – dobrava o papel assim, e da parte que estava a ver, que não costuma assinar papéis em branco, mas naquele dia ele pôs ali, não viu nada do que lá estava escrita, não viu letras nenhumas. E também é certo que a perguntas do respectivo Mandatário, a autora asseverou – repetidamente - que ele – o Sr. M..., o Sr. J... - dobrava os papéis e que em frente, do lado de dentro do balcão estava uma senhora sentada a escrevera senhora do notário – logo tratou de esclarecer que não estava com atenção em nada, estava a escrever lá por baixo, e que o Sr. J... meteu-nos os papéis em cima e nós assinamos.

Simplesmente, estas declarações – ainda que se não deva supor que se encontram feridas com o defeito da parcialidade - não encontram o mínimo de conforto numa qualquer outra prova, sendo, portanto, inidóneas, numa avaliação prudencial dessa mesma prova – para concluir pela veracidade ou realidade dos factos correspondentes.

Todas as contas feitas, é lícito assentar-se nisto: apesar da distância entre esta Relação e as provas e o modo como conheceu de algumas delas – no tocante à prova pessoal, através da audição do registo fonográfico, conjugada com a leitura da transcrição desse registo apresentada pelos apelantes – não há motivo para concluir que a tribunal de que provém o recurso, no julgamento dos factos apontados, relativos à falta de consciência da declaração, no momento da emissão dela, tenha incorrido – por violação das regras da ciência, da lógica ou da experiência – em qualquer error in iudicando, por erro na avaliação das provas. Dito doutro modo: apesar dos condicionalismos em que conheceu algumas das provas – marcados pela ausência de imediação – a convicção que esta Relação extrai dos elementos de prova que tem disponíveis coincide com a convicção da 1ª instância, pelo que, não há qualquer erro, na fixação dos factos materiais da causa, que deva corrigir-se.

Não há, portanto, fundamento para modificar aquele julgamento: os factos materiais da causa são, por isso, aqueles que foram apurados na 1ª instância.

3.6. Concretização.

E em face deles, a improcedência da pretensão material dos apelantes de declaração da nulidade ou da inexistência da sua declaração negocial é irrecusável, dado que não estão adquiridos para o processo os factos integrantes da norma jurídica reguladora daquele valor negativo da declaração negocial, pelo que, em face do incumprimento pelos apelantes do respectivo ónus da prova, há que proferir uma decisão que os desfavorece (artºs 246 e 346, in fine, do Código Civil, e 414 do nCPC).

Resta, porém, saber se – como garante a sentença impugnada – os apelantes litigaram de má fé e como uma má fé dolosa. A resposta é claramente negativa.

Realmente, os factos averiguados não patenteiam, de todo, o elemento cognitivo nem o elemento volitivo do dolo, i.e. que os recorrentes representaram, logo no momento da proposição da acção ou em momento posterior, o facto da inveracidade da causa petendi que invocaram e da inexistência do direito que dela derivavam – o direito à declaração da nulidade ou inexistência da sua declaração negocial - e que, apesar do conhecimento de que não eram titulares da situação jurídica invocada, se tenham decidido por uma actuação contrária ao direito – a invocação daquela causa de pedir e a dedução deste pedido. Não há, pois, o mínimo motivo para que se conclua que os recorrentes tenham actuado, no tocante à dedução da causa de pedir ou à formulação daquele pedido dolosamente.

Resta, por isso, saber se a dedução daquele pedido – e a invocação da causa de pedir e a alegação daquele direito resultou da inobservância, grave, de um dever de diligência. Mas a resposta é, também, claramente negativa.

Decerto, que os recorrentes não demonstraram os factos essenciais alegados de que faziam derivar o direito à declaração da invalidade – lato sensu – da sua declaração negocial. Simplesmente, a falta de prova de qualquer dos factos essenciais da situação jurídica invocada, não é, evidentemente, sinónimo, da alegação de um direito subjectivo e de recurso à tutela jurisdicional, em violação de deveres objectivos de cuidado e de diligência. Recorda-se, aqui, uma consideração que acima se deixou: a extrema dificuldade da demostração, a posteriori, da falta de consciência do carácter negocial da declaração.

Tudo somado, a conclusão que se tem por exacta é a de não há razão para que se conclua – em face da matéria facto averiguada – que, no recurso à tutela jurisdicional os recorrentes tenha actuado dolosamente ou com violação, grave, de um dever de diligência.

Como a estigmatização dos recorrentes com o ferrete da má fé exige uma prova – e uma prova stricto sensu - do dolo ou ao menos de um grau subido de negligência – o que da falta de prova desses elementos de ilicitude decorre para a procedência do recurso é meramente consequencial.

Importa, pois, revogar, neste ponto, a decisão impugnada e absolver os apelantes da condenação que nela se contém.

Síntese recapitulativa:

a) A consciência na declaração consiste na vontade ou consciência de acção, na vontade da acção como declaração, na consciência de se assumir um comportamento declarativo ou na aparência de uma declaração, na consciência e vontade de que o seu comportamento produza efeitos negociais no campo do direito e na vontade de, com esses gestos e sons, traduziu um certo conteúdo de pensamento, de se emitir uma declaração, seja em que termos for;

b) O ónus da prova da falta de consciência da declaração vincula o declarante;

c) É admissível a valoração, à luz do princípio da livre apreciação da prova, das declarações do depoente de parte, no segmento em que favorecem o declarante, contanto que o tribunal não se baseie exclusivamente nessas declarações para formar a sua convicção sobre a veracidade ou inveracidade dos factos controvertidos, i.e., que os enunciados de facto que sejam favoráveis ao depoente, obtenham de outros meios de prova – ou mesmo de regras de experiência ou de critérios sociais – um grau de confirmação adequado.

d) O dever de verdade a que as partes estão adstritas, apenas as vincula à obrigação de alegar os factos tal como, na sua perspectiva eles se verificaram, de modo que, para aferir a boa fé da parte o que releva é, portanto, uma verdade subjectiva;

e) A litigância de má fé deve deixar incólume o direito das partes de discutirem e interpretarem livremente os factos, pelo que não é suficiente, para que a parte seja irremediavelmente considerada litigante de má fé, uma qualquer divergência ou desarmonia entre os factos, tal como a parte os descreve e como, ulteriormente, vêm a ser julgados provados e qualificados.

Os apelantes e a apelada sucumbem, reciprocamente, no recurso. Deverão, por essa razão, suportar, na medida da respectiva sucumbência, as custas dele (artº 527 nºs 1 e 2 do nCPC). Dado que a sucumbência da apelada se restringe ao objecto, nitidamente complementar e subalterno, representado pela litigância de má fé dos apelantes, julga-se adequado fixar em 95% e 5% a responsabilidade dos últimos e da primeira, respectivamente, pela satisfação daquelas custas.

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, julga-se o recurso parcialmente procedente e, em consequência:

 a) Revoga-se a sentença impugnada, no segmento relativo à condenação dos apelantes, P... e O..., como litigantes de má fé;

b) Mantém-se, no mais, a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes e pela apelada, na proporção de 95% para os primeiros e de 5% para a última.

                                                                                              15.09.08

                                                                                              Henrique Antunes

                                                                                              Isabel Silva

                                                                                              Alexandre Reis

***


[1] Esta solução merece, por parte de alguma doutrina, uma crítica clara. É o caso, por exemplo, de Paulo Mota Pinto - Declaração Tácita e Comportamento Concludente, Coimbra, 1995, págs. 248 a 252 – e de Menezes Cordeiro - Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., Coimbra, 2000, pág. 575 a 578 que propõe mesmo uma interpretação restritiva do dispositivo correspondente, de modo a que declaração emitida sem consciência deva ser imputada ao seu autor com o sentido que lhe daria o declaratário normal, apenas podendo ser impugnada por aplicação do regime do erro, só assim não sendo, quando a falta de consciência seja de tal modo aparente quando, perante o declaratário normal, a declaração não possa ser imputada ao agente. Este último autor nota igualmente que a jurisprudência, de forma compreensível, tem evitado aplicar a figura.
[2] Cfr., por todos, Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente, Coimbra, 1995, pág. 228.
[3] No sentido da nulidade, v.g., Mota Pinto, Teoria, cit., págs. 445 e 493, Castro Mendes, Teoria, II, cit., págs. 134 e 293 e Menezes Cordeiro, Tratado, I, cit., pág. 578; sustentando a inexistência, cfr., v.g., Carvalho Fernandes, cit., pág. 480 e Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, vol. II, Acções e Factos jurídicos, 2ª edição, Coimbra, 2003, págs. 121 e 122 e Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 656.
[4] Assim, por exemplo, o Ac. do STJ de 09.10.96 – CJ, STJ, IV, III, pág. 41 – recusou admitir a inexistência, com fundamento na falta de consciência da declaração do testador, de um testamento lavrado notarialmente por funcionário competente.
[5] João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, AAFDL, Lisboa, 1980, pág. 192.
[6] Miguel Teixeira de Sousa, Introdução do Processo Civil, Lisboa, Lex, 2000, pág. 72.
[7] Ac. da RE de 21.03.00, BMJ nº 495, pág. 381.
[8] Que é entendida como a imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um. Cfr., v.g., o Ac. do STJ de 06.12.01, www.dgsi.pt., portanto, em termos muito restritivos.
[9] Ac. da RL de 4.05.00, BMJ nº 497, pág. 433. Comparativamente com o regime anterior – artºs 456 nº 3 e 457 nº 1 b) do CPC de 1961 – e à corrente maioritária da jurisprudência – v.g. Acs. da RP de 26.02.90, BMJ nº 394, pág. 528, do STJ de 16.04.91, ActJ, 18 (1992), pág. 17 e RP de 14.11.94, CJ, 94, V, pág. 264 – alargou-se justificadamente o âmbito da má fé processual aos casos de negligência grave. Basta assim, uma falta grave de diligência para justificar a má fé da parte.
[10] Por tudo isto, a má fé surge, assim, como um instituto processual, de feição pública e que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma manifestação de responsabilidade civil que pretenda suprimir danos ilícita e culposamente causados a outrem, através de actuações processuais. Esta razão explica a parca aplicação jurisdicional do instituto. Preocupados com uma pax processual imediata e confrontados com a estrita configuração legal do instituto, os tribunais só em casos absolutamente gritantes aceitam sancionar a litigância de má fé. Cfr. António Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in Agendo, 2006, pág. 29.
[11] Este princípio da proporcionalidade possui um claro fundamento constitucional. A faculdade de impor uma multa processual às partes representa, evidentemente, uma agressão a um património alheio e, portanto, ao direito de propriedade constitucionalmente consagrado, pelo que uma interpretação conforme à constituição daquele preceito, impõe o respeito da proporcionalidade consagrada no artº 18 nº2 da Constituição da República Portuguesa quanto às restrições aos direitos, liberdades e garantias (artº 62 nº 1). Além disso, a actividade dos tribunais – particularmente àquela que possui carácter sancionatório – é aplicável, pelo menos por analogia, o princípio da proporcionalidade imposto pelo artº 266 nº 2 da Constituição aos órgãos e agentes da administração.
[12] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Coimbra, 1981, pág. 269.
[13] Ac. do STJ de 28.05.09, www.dgsi.pt.
[14] Acs. do STJ de 09.07.98, 27.02.03 e 05.05.05, www.dgsi.pt e Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 353.
[15] Acs. da RC de 21.03.13 e 15.02.05 e do STJ de 09.01.03, www.dgsi.pt.
[16] Este direito à jurisdição ou de acesso à justiça é igualmente atribuído, por exemplo, pelo artº 10 da DUDH, pelo artº 14 nº 1 do PIDCP e pelo artº 6 nº 1 da CEDH.
[17] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, artºs 1º a 107º, vol. I, Coimbra Editora, 2007, págs. 415 e 416.
[18] José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Almedina, Coimbra, págs. 492 a 502.

[19] Acs. da RG de 09.04.15, RC de 06.03.12 e 24.04.12.

[20] António Santos Abrantes Geraldes, “Sentença Cível”, disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/estudos/Processocivil/asentencacivelabrantesgeraldes.pdf.
[21] Acs. da RG de 19.05.11 e de 19.01.15, do STJ de 05.11.08, 21.01.09, 10.12.09, 09.05.06 e de 02.01.04, da RP de 18.01.01 e de 04.04.02 e da RC de 12.04.11, www.dgsi.pt
[22] João Paulo Remédio Marques,” A aquisição e a valoração probatória de factos (des)favoráveis ao depoente ou à parte”, Julgar, Jan-Abr. 2012, nº 16, pág. 171.