Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
719/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: APOIO JUDICIÁRIO
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE INDEFERIMENTO
PEDIDO DEDUZIDO PELO ARGUIDO
ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA INTERPOSIÇÃO DE RECURSO NO INTERESSE DO ARGUIDO
Data do Acordão: 04/13/2005
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA - 1º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: RECURSO REJEITADO
Legislação Nacional: DECRETO-LEI N.º 387-B/87, DE 29 DE DEZEMBRO, LEI N.º 34/2004, DE 29 DE JULHO E ARTIGO 401º, N.º1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: Conquanto o Código de Processo Penal atribua legitimidade ao Ministério Público para recorrer de quaisquer decisões, ainda que no interesse do arguido, o Ministério Público carece de legitimidade para recorrer da decisão que nega ao arguido o apoio judiciário
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.
No processo sumário n.º 192/04, do 1º Juízo Criminal de Coimbra, no qual figura como arguido A..., com os sinais dos autos, foi proferida decisão que indeferiu pedido de apoio judiciário deduzido por aquele.

Desta decisão interpôs recurso a Digna Procuradora-Adjunta, que foi admitido como agravo, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo, sendo do seguinte teor a parte conclusiva da respectiva motivação:

1. Compete aos órgãos de polícia criminal coadjuvar as autoridades judiciárias com vista à realização das finalidades do processo, actuando sob a sua orientação e dependência funcional.

2. O tribunal pode solicitar aos órgãos de polícia criminal a recolha de informações sobre a situação económica e familiar do requerente do apoio judiciário com vista a apreciar e decidir o incidente de apoio judiciário.

3. Sendo tal meio idóneo a provar a insuficiência económica do requerente à luz do artigo 19º, n.º 1, da Lei n.º 30-E/2000, de 20.12.

4. Essa recolha de informações não pode deixar de ser feita, pelo menos, junto de quem conheça a pessoa visada.

5. Só assim sendo credível.

6. In casu, a P.S.P. apurou que o arguido/requerente do apoio judiciário não tinha bens nem emprego permanente.

7. Sendo essa informação credível e suficiente, conjuntamente com as declarações do arguido a esse propósito (que também serviram para a determinação concreta da pena, maxime do quantum diário da pena de multa), para considerar a insuficiência económica do requerente para custear os encargos com o presente processo.

8. Não menciona a P.S.P., na informação prestada, que ela tenha sido recolhida junto do próprio ou de familiares do mesmo.

9. Pelo que se dúvidas houvessem sobre a sua credibilidade deveria o Mm.º Juiz ter solicitado àquele órgão de polícia criminal que esclarecesse junto de quem recolheu aquela informação.

10. Ao apreciar tal pedido e ao indeferi-lo violou o Mm.º Juiz o disposto nos artigos 1º e 7º, da Lei n.º 30-E/2000, de 20.12.

11. E fez uma incorrecta interpretação do disposto no n.º1 do artigo 19º, da mesma lei.

12. Face ao exposto, deve a douta decisão de que se recorre ser revogada e substituída por outra que defira o benefício do apoio judiciário solicitado pelo arguido.

Não foi apresentada qualquer resposta.

O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se pronuncia no sentido da rejeição do recurso ou, pelo menos, da sua improcedência, por entender que o Ministério Público carece de legitimidade e de interesse em agir e que a decisão impugnada não merece qualquer censura.

No exame preliminar a que se refere o artigo 420º, do Código de Processo Penal, deixou-se consignado que o recurso deve ser rejeitado.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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Única questão a decidir é a que foi suscitada no exame preliminar, bem como pelo Exm.º Procurador-Geral Adjunto, qual seja a da rejeição do recurso.

Segundo aquele Exm.º Magistrado a decisão recorrida, qual seja a que indeferiu pedido de apoio judiciário deduzido pelo arguido, não afectou o exercício por parte deste de qualquer direito, uma vez que o mesmo acabou por exercer o direito para o qual requereu o apoio judiciário, qual seja o direito à interposição de recurso da sentença, para além de que a decisão impugnada apreciou e decidiu matéria não penal, única que, de acordo com a lei adjectiva (artigo 401º, n.º1, alínea a), do Código de Processo Penal), fundamenta a intervenção do Ministério Público em representação do arguido, razão pela qual, por falta de legitimidade e de interesse em agir, deve o recurso ser rejeitado.

Decidindo, dir-se-á.

O incidente de apoio judiciário, tal qual foi estruturado pelo DL 387-B/87, de 29 de Dezembro ( - De acordo com a jurisprudência maioritária desta Relação, os incidentes de apoio judiciário para cuja decisão os tribunais judiciais ainda mantêm competência, como é o caso do presente, estão submetidos, em matéria adjectiva, ao DL 387-B/87, de 20 de Dezembro – entre muitos outros os acs. de 02.02.26 e de 02.05.22, proferidos nos processos n.ºs 3102/01 e 1285/02.), apresenta-se como um processo de partes, adjectivamente sujeito, em matéria de recursos, à lei processual civil – artigo 39º daquele diploma, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro ( - Certo é que de acordo com o ponto 7 da exposição de motivos que acompanhou a Proposta de Lei n.º 52/VII – Diário da República, II série A, de 96.07.03: (…) como o incidente de apoio judiciário é susceptível de ser enxertado em diversos tipos de processos de áreas de jurisdição diversas, tendo em conta a unidade do seu regime substantivo e a vantagem de uniformização de tramitação adjectiva, justifica-se que, em qualquer processo ou jurisdição, o recurso deva seguir a forma de agravo prevista no Código de Processo Civil», sendo que nada resultou em contrário do proposto na discussão da proposta na Assembleia da República, como se vê do respectivo Diário, I série, de 96.07.11.).

Formulado o respectivo pedido, é proferido despacho liminar, sendo a parte contrária notificada para o contestar ( - Obviamente, caso não ocorra indeferimento liminar.), devendo o Ministério Público, caso não seja o requerente, ter vista no processo a fim de sobre ele se pronunciar artigos 26º e 28º, do DL 387-B/87.

Daqui decorre que o Ministério Público assume naquele incidente uma posição autónoma e independente, não devendo nem podendo, por isso, assumir a representação de qualquer das partes – requerente ou requerido.

Por outro lado, certo é que a lei adjectiva penal ao atribuir ao Ministério Público legitimidade para recorrer no exclusivo interesse do arguido – artigo 401º, n.º1, alínea a) in fine –, apenas abrange decisões de natureza penal, cujos recursos estejam previstos no Código de Processo Penal ( Cf. Quanto à previsão do recurso no Código de Processo Penal, Simas Santos/Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado (2000), II, 681.).

Com efeito, decisões de natureza não penal, designadamente de natureza civil ou outra, ter-se-ão de considerar excluídas, posto que nessas decisões o arguido não se apresenta como tal ( - Tenha-se em conta que o arguido pode ainda assumir no processo outra veste ou vestes. É o caso de processo em que o arguido é simultaneamente ofendido ou assistente e/ou parte civil.), isto é, enquanto sujeito processual a quem a lei confere estatuto próprio (artigos 57º e ss., do Código de Processo Penal) ( - De acordo com o DL 387-B/87, a Lei 30-E/2000, de 20 de Dezembro e a Lei 34/2004, o arguido requerente de apoio judiciário não possui estatuto próprio ou distinto de qualquer outro requerente.).

Deste modo, consabido que no caso vertente estamos perante decisão em que o arguido não se apresenta naquela qualidade e com aquele estatuto, mas sim na de requerente de pedido incidental, pedido com tramitação própria, regulada em legislação especial, cujo recurso da decisão final não se encontra, obviamente, previsto no Código de Processo Penal, e cujo processamento se acha sujeito às regras previstas na lei adjectiva civil, entendemos que o Ministério Público carece de legitimidade para recorrer da decisão que negou àquele o pedido de apoio judiciário ( - Tenha-se em atenção que, actualmente, de acordo com a legislação aplicável – Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais (n.º 34/2004, de 29 de Julho), artigos 26º a 28º –, o Ministério Público não tem qualquer intervenção nos pedidos de apoio judiciário, a menos que seja ele o requerente, sendo que em caso de recurso (impugnação judicial), para o qual apenas dispõem de legitimidade o requerente e a parte contrária na acção judicial para a qual tenha sido concedido o apoio judiciário, o respectivo processo é imediatamente apresentado ao juiz, que, por meio de despacho concisamente fundamentado, decide, concedendo ou recusando o provimento.).

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A lei adjectiva penal manda rejeitar o recurso sempre que for manifesta a sua improcedência ou se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do artigo 414º, n.º 2, sendo que este preceito estabelece que o recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível, quando for interposto fora de tempo, quando o recorrente não tiver as condições necessárias para recorrer ou quando faltar a motivação.

A legitimidade é uma condição sem a qual se não pode recorrer – artigo 401º, do Código de Processo Penal.

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Termos em que se acorda rejeitar o recurso.

Sem tributação.

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Voto vencido

Desembargador, Dr. João Trindade


O art.º 219°, nº 1 da Constituição (Lei Constitucional n.º 1/97 D.R. I-A de 20-9-97) define que ao M.ºP.º compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.

Também o Estatuto do M.ºP.º (aprovado pela Lei n.º 60/98 de 27/8) no seu art.º 1° estabelece que o M.ºP.º representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar, participa na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exerce a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defende a legalidade democrática, nos termos da Constituição, do presente Estatuto e da lei. Por sua vez a alínea f) do art.º 3° do mesmo Estatuto diz que compete ao M.ºPº defender a independência dos tribunais, na área das suas atribuições, e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis. E a alínea o) impõe que o M.ºP.º recorra sempre que a decisão tenha sido proferida com violação de lei expressa (sublinhado nosso).

A interligação destes normativos permite-nos aderir à conclusão segundo o qual o interesse em agir do M.ºP.º está em correlação directa com a defesa da legalidade democrática e dos interesses que a lei determinar.

Assim tem o M.ºP.º legitimidade e interesse em agir para recorrer de qualquer decisão judicial que não esteja de acordo com as determinações constantes das leis, que não esteja de acordo com os interesses ou direitos que com elas se pretendem ver reconhecidos.

Nos casos, como o ora em apreço, não é o interesse privado do requerente do apoio judiciário que se procura acautelar, mas sim o interesse público em que a lei seja correctamente e igualmente aplicada. Até porque todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. (art.º 13° n.º 1 da Constituição.)

Concluímos, pois, pela legitimidade do M.ºP.º.


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Coimbra, 2005-04-13