Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
170/1991.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDES DA SILVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PENSÃO POR MORTE
BENEFICIÁRIOS
CADUCIDADE DO DIREITO A PENSÃO
ADOPÇÃO PLENA DO BENEFICIÁRIO
Data do Acordão: 01/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: BASE XIX, Nº 1, AL. C), DA LEI 2.127 E AL. C) DO Nº 1 DO ARTº 20º DA NLAT; ARTº 152º, Nº 1, DO CPC.
Sumário: I – Nos casos de morte em sinistro laboral, a etiologia das pensões conferidas aos beneficiários legais é a salvaguarda de uma determinada expectativa de rendimentos que integram o património de sobrevivência de um agregado familiar.

II - As pessoas que o integram adquirem necessariamente um direito, pessoal e irrenunciável, que os acompanhará até que se verifique a única circunstância a que a lei subordinou a sua duração.

III – Decorre da análise comparativa das duas normas supra referidas que o alcance da cobertura vai para além da relação natural/biológica, assegurando-se o direito a essa “garantia de sobrevivência” também aos adoptados, plena ou restritivamente, à data do acidente, e mesmo aos enteados do sinistrado, equiparados aos filhos, para este efeito, desde que o sinistrado estivesse obrigado à prestação de alimentos.

IV – Este direito é património jurídico dos beneficiários até que se verifique o seu termo, legalmente estabelecido.

V – Contrariamente ao que acontece ao direito à pensão conferido ao cônjuge sobrevivente, o legislador condicionou a sua duração, quanto aos outros beneficiários, apenas ao decurso do tempo, à idade do beneficiário, pressupondo, em tese, que a partir de então as razões que postulavam aquela “garantia de sobrevivência” deixariam de justificar-se – artº 152º, nº 1, CPT.

VI – A adopção plena de um beneficiário de tal direito não faz parte do elenco das causas determinantes da caducidade do direito à pensão.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I –

1 – Nos Autos que correram termos, com processo especial emergente de acidente de trabalho, no Tribunal do Trabalho de Tomar, e em que são partes A..., por si e em representação de seus filhos então menores, e a C.ª de Seguros ‘B...’ e a sociedade ‘C...’, foi oportunamente obtido acordo, devidamente homologado, conforme consta de fls. 194-195.

2 – Em 5.9.2007 a co-responsável Seguradora veio requerer se declarasse a caducidade da pensão anual devida à menor D....
A tal pretensão se opôs desde logo o MºPº, promovendo o seu indeferimento, como se vê de fls. 7 do Incidente Apenso.

3 – Foi então proferido o despacho de fls. 295 em que, não se declarando extinta a pensão anual e temporária atribuída à beneficiária D..., por efeito de caducidade, se decidiu declarar a mesma extinta por impossibilidade superveniente da lide, ao abrigo do disposto no art. 287.º, e), do C.P.C., ‘ex vi’ do art. 1.º, n.º2, a), do C.P.T.

4 – O MºPº, irresignado com tal entendimento, veio dele agravar.
Alegando, concluiu:
· A pensão fixada a favor da beneficiária, D..., nascida a 31.3.1990, resultou da morte de seu pai, E..., falecido em 27.5.1991 – cfr. certidão do Assento de Óbito de fls. 48;
· Nos termos da Base XIX, n.º1, d), da Lei n.º 2127, de 3.8.65, sob a epígrafe ‘Pensões por Morte’, são contemplados como beneficiários: …’os filhos legítimos ou perfilhados, incluindo os nascituros, nas condições da Lei civil, até perfazerem 18, 21 ou 24 anos, enquanto frequentarem com aproveitamento respectivamente o ensino médio ou superior’;
· Estas pensões, ao contrário das fixadas na referida Base XIX, n.º1, e), não dependem da contribuição do sinistrado com qualquer quantia para a alimentação dos filhos nem da necessidade destes em receberem tal contributo;
· Das pensões fixadas ao abrigo da referida Base XIX apenas podem declarar-se extintas as atribuídas à viúva, recebendo esta o triplo da pensão anual se ‘passar a segundas núpcias’, ou perdendo o direito à pensão se ‘tiver porte escandaloso’;
· A constituição do vínculo da adopção plena não se encontra prevista na Lei 2.127 como causa da extinção da pensão devida à menor;
· Sendo certo que se trata de Lei especial, não se apura fundamento legal para declarar procedente qualquer incidente da caducidade da pensão, nem definitivamente extinta a obrigação de pagamento por parte da entidade responsável, à beneficiária;
· O direito persiste, respeitando os efeitos do caso julgado, nos precisos termos em que foi definido e atribuído;
· A beneficiária, nascida no dia 31.3.1990, conforme certidão do Assento de Nascimento junta a fls. 285, completou 17 anos de idade, devendo manter-se a pensão e sua actualização, por força do disposto na Base XIX da Lei n.º 2127, de 3.8.1965;
· Ao não entender assim, violou a Mm.ª Juíza, entre outras normas legais, o disposto pela Base XIX da Lei 2.127, o art. 152.º do C.P.T., não aplicável aos presentes Autos e o art. 287.º do C.P.C., por não se apurar qualquer impossibilidade superveniente da lide;
Assim, deve o despacho ser revogado e substituído por outro que, indeferindo a requerida declaração de caducidade, mantenha a lide e a pensão devida à beneficiária nos precisos termos em que lhe foi atribuída, com as actualizações impostas por Lei.

5 – Foi oferecida contra-alegação em que se concluiu resumidamente que, com a adopção plena, se extinguiram os laços familiares da adoptada com a família biológica, pelo que, cessando a filiação jurídica, terminou a causa da atribuição patrimonial.
Assim, tendo a beneficiária perdido o direito à pensão, deverá ser mantida a decisão recorrida.

Tabelarmente sustentado, o recurso foi admitido e mandado subir.

Exposto sucintamente o desenvolvimento essencial da lide e colhidos os vistos legais devidos, vamos conhecer.
___

II –
Além das ocorrências de facto já referidas, as demais, relevantes para a compreensão e tratamento da questão decidenda – todas de natureza e comprovação processuais – serão retidas na sequência.
Assim:
- No aludido Acordo, obtido e formalizado a fls. 194-195, ficou a co-responsável Seguradora ‘B...’ obrigada ao pagamento da pensão anual e temporária, então no montante de Esc. 268.760$00, a favor dos três beneficiários menores, D..., Bruno e Joel, todos de apelido Santos Pinto, por morte do sinistrado seu pai, E..., ocorrida em 27.5.1991, no acto legalmente representados pela co-A., sua mãe.
- A beneficiária/co-A. menor, D..., nasceu no dia 31.3.1990, constando averbada, no respectivo assento de nascimento, a adopção plena, decretada por sentença do Tribunal de Alcobaça de 24.3.2000 – cfr. fls. 285.
- No Incidente Apenso, a identificada Seguradora veio requerer a declaração de caducidade da pensão devida, em virtude de, com a adopção plena da beneficiária D..., ter cessado o direito à pensão que lhe foi oportunamente fixada.
- Foi depois proferido o despacho de fls. 295, nos termos do qual se decidiu o seguinte:
‘Conforme decisão proferida no Apenso E do Incidente de caducidade da pensão, (cujo teor e conteúdo aqui se tem por integralmente reproduzido), ao abrigo do disposto no art. 287.º, e), do C.P.C., ‘ex vi’ do art. 1.º, n.º2, a), do C.P.T., face à constituição do vínculo de adopção plena por impossibilidade superveniente da lide declaro extinta a pensão anual e temporária atribuída à beneficiária D..., (hoje, F...), com data a partir de 30 de Junho de 2000’.

Para que melhor se perceba – na lógica da decisão – a razão por que se declarou extinta a pensão, (anual e temporária atribuída à beneficiária D...), não por efeito da caducidade, mas antes por impossibilidade superveniente da lide, importa lembrar as respectivas premissas.
Adiantando que o art. 152.º/1 do C.P.T. trata de alguns casos de caducidade do direito a pensões, (v.g. a idade, a morte, a passagem a segundas núpcias ou a união de facto do cônjuge supérstite), e que nele não consta como causa extintiva superveniente do direito à pensão a constituição do vínculo de adopção plena – … o que indiciaria a perduração desse direito não obstante a ocorrência de tal facto – entendeu-se porém que a isso se opõem as regras próprias da adopção plena taxadas no Cód. Civil.
E assim – considerando que nos termos do art. 1986.º/1 do Cód. Civil o adoptado adquire, pela adopção plena, a situação de filho do adoptante, integrando-se com os seus descendentes na família deste, com extinção das relações familiares entre o adoptado e os seus ascendentes e colaterais naturais – o vínculo biológico anterior extinguiu-se, tudo se passando legalmente como se o adoptado fosse filho dos adoptantes.
Em consequência disso, a partir de 30 de Junho de 2000, extinguiram-se os laços biológicos da beneficiária D..., que deixou de ser filha do sinistrado falecido, E..., passando a ser filha do casal adoptante, pelo que deixou desde então de ter a qualidade prevista na Base XIX, n.º1, d), da Lei n.º 2127.
E porque esta forma de caducidade da pensão não está prevista no referido art. 152.º do C.P.T., sempre terá de se entender – como se entendeu – que a constituição do vínculo da adopção tem de se extinguir por impossibilidade superveniente da lide.

Será esta realmente a solução?
Tudo visto e ponderado, afigura-se-nos que não.
Com efeito e antes de mais:
Percebemos perfeitamente a dificuldade percepcionada, mas – salvo o devido respeito – a via escolhida foi apenas uma forma de a contornar…
…Pois embora ‘matando’/extinguindo a Instância, ‘à força’, como se fez, não se resolveu o problema…
…Cuja resposta não poderia ser encontrada como mera consequência lógica da proclamada …impossibilidade superveniente da lide.

A questão decidenda é interessante e demanda reflexão.
Teremos de buscar a etiologia das previsões interpretandas para surpreender o seu alcance e sentido normativo, o seu desígnio último.
Intentaremos, primeiro, perscrutar a etiologia das pensões conferidas por morte aos beneficiários legais contemplados na alínea c) do n.º1 da Base XIX da Lei 2.127, na redacção da Lei 22/92, de 14 de Agosto (correspondente ora à alínea c) do n.º1 do art. 20.º da NLAT).
Depois, analisada a teleologia normativa, procuraremos saber por que não foi incluída no art. 152.º/1 do C.P.T. a adopção como causa de caducidade do direito à pensão.

Isto posto:
Como decorre da evolução do direito infortunístico constituído, que teve na sua base a preocupação/sensibilidade colectiva de não deixar a descoberto tantas e tão clamorosas situações decorrentes do infortúnio laboral, há vários indicadores que apontam, num passado mais recente, no sentido de que o sistema português – de responsabilidade privada, assente basicamente na teoria da responsabilidade objectiva ou pelo risco – vai assimilando, tímida mas progressivamente, soluções que demonstram, em alguma medida, a assunção de uma componente de responsabilidade social, nesta matéria.
(Lembramos, por exemplo, o percurso seguido relativamente às doenças profissionais – Cfr. Dr. Vítor Ribeiro, ‘Acidentes de Trabalho - Reflexões e Notas’ - Edição Rei dos Livros, pg. 153).

No que concretamente toca às pensões por morte, neste âmbito infortunístico, essa subjacente preocupação filosófica torna-se manifesta e reflecte-se, nos termos da política legislativa que enformou a nova L.A.T, num claro avanço relativamente à homóloga previsão da Lei anterior.
Com efeito, se o que está em causa, nos casos de morte em sinistro laboral, é, (como cremos que é), a salvaguarda de uma determinada expectativa de rendimentos que integram o património de sobrevivência de um agregado familiar, as pessoas que o integram – em tempo de vida do agente dessa ‘garantia’ – adquirem necessariamente um direito, pessoal e irrenunciável, que os acompanhará até que se verifique a única circunstância a que a Lei subordinou a sua duração.
Esse direito tem génese específica, natureza infortunística, não se reduz à dimensão civilista de um direito sucessório, não podendo, por isso, ser perspectivado em termos de puro direito civil.

Contrariamente ao sustentado, a matriz desse adquirido direito, no casos a cuja cobertura se destinou a previsão, (então constante – repete-se – da alínea c) do n.º1 da Base XIX da Lei 2127 e ora alínea c) do n.º1 do art. 20.º da Lei n.º 100/97), não é necessária ou exclusivamente biológica.
Como decorre da análise comparativa das duas normas, é inequívoco que o alcance da cobertura vai para além daquela relação natural/biológica (ou mesmo jurídica, em termos de estreme direito civil), assegurando-se o direito a essa ‘garantia de sobrevivência’, (chamemos-lhe assim), também aos adoptados, plena ou restritamente, à data do acidente, e mesmo aos enteados do sinistrado, equiparados aos filhos, para este efeito, desde que o sinistrado estivesse obrigado à prestação de alimentos… – cfr. n.º5 do citado art. 20.º da L.A.T.

A noção de que se trata de um direito de etiologia própria, que se adquire pela simples circunstância de se integrar o universo dos dependentes, à data do acidente – na perspectiva de que a morte eventual do agente produtivo/sinistrado/patrono familiar é um risco social – torna-o independente de quaisquer vicissitudes sobrevindas, não se tendo o legislador preocupado sequer em fazer depender a sua atribuição de qualquer circunstância, nomeadamente de o sinistrado contribuir ou não para o sustento do beneficiário…e, ora, nem sequer do aproveitamento no ensino, quando prolongado o direito à pensão até aos 22 e 25 anos, bastando-se a Lei com a prova da frequência dos escalões do ensino secundário ou superior, respectivamente.

O direito adquire-se, no caso, pela simples circunstância de, ao tempo, o beneficiário depender, em termos de sobrevivência, de algum modo ou medida, da capacidade de ganho da vítima.
Este direito – como bem diz Carlos Alegre, in ‘Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais’, pg. 110 – assenta em critérios de ‘normalidade sociológica’.
É património jurídico do beneficiário até que se verifique o seu termo, legalmente estabelecido.
E foi certamente por isso o legislador – contrariamente ao que acontece ao direito à pensão conferido ao cônjuge sobrevivente – condicionou a sua duração apenas ao decurso do tempo, à idade do beneficiário, pressupondo, em tese, que a partir de então as razões (também sociais) que postulavam aquela ‘garantia de sobrevivência’ deixaram de justificar-se.

É por tudo isto que o legislador do C.P.T. – conhecendo, como não poderia deixar de conhecer, o instituto da adopção plena – não cuidou de incluir a verificação de tal hipótese no elenco das causas determinantes da caducidade do direito à pensão.
Não se trata, pois, de uma lacuna de previsão, que, a verificar-se, se integraria por recurso à analogia – art. 10.º/1 do Cód. Civil.
A analogia só existe – n.º 2 da norma – quando, no caso havido por omisso, concorram as mesmas razões justificativas da solução encontrada na Lei, a demandar, por imperativo de coerência do sistema de justiça relativa e certeza do direito, igualdade de tratamento, e se conclua, por isso, que o critério valorativo adoptado pelo legislador para compor o conflito de interesses num dos casos seja, por igual ou maioria de razão, aplicável ao outro – apud Baptista Machado, ‘Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador’, pg. 202, citado no Acórdão do S.T.J. de 27.3.2007, in C.J./S.T.J., Ano XV, Tomo I, pg. 152.
Não é o caso, pelas dilucidadas razões.

Em resumo e conclusão:
Os efeitos da adopção plena – art. 1986.º/1 do Cód. Civil – são de natureza estritamente civil, com repercussão apenas nas relações jurídicas de família, não afectando o direito infortunístico do beneficiário menor, pessoal e irrenunciável, previamente consolidado, cuja origem/causa e/ou medida não é a paternidade biológica, entendida nos termos restritivos, conforme sobredito.
A caducidade do direito à pensão do beneficiário ocorrerá tão-só, no caso, em razão da idade, nos termos do art. 152.º/1 do C.P.T., conjugado com a correspondente previsão da L.A.T., subsistindo entretanto nos moldes em que foi estabelecido, com as devidas actualizações.

Ante o exposto – procedendo o fundamento essencial que enforma a reacção do Exm.º recorrente – não poderá manter-se a decisão em crise.
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III – DECISÃO
Nos termos expostos, delibera-se conceder provimento ao agravo, revogando consequentemente a decisão impugnada.
Custas pela recorrida Seguradora – alínea g) do n.º1 do art. 2.º do C.C.J., ‘a contrario sensu’.
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Coimbra,