Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2695/06.2YXLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
EXCEPTIO NON RITE ADIMPLETI CONTRATUS
Data do Acordão: 01/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 12º DO DEC. LEI Nº 359/91, DE 21/09; ARTº 428º C. CIV.
Sumário: I – Nos termos do nº 1 do artº 428º C. Civ., se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos crontraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.

II – Ao contrato de crédito ao consumo e ao contrato de compra e venda a que se encontra unido (união de contratos), aplica-se o Dec. Lei nº 359/91, de 21/09, que tem como objectivo assumido “assegurar o cumprimento do objectivo constitucional e legalmente fixado de protecção dos direitos dos consumidores”.

III – De acordo com o artº 12º, nº 2, do citado diploma, o consumidor pode demandar o credor em caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor, desde que, não tendo obtido do vendedor a satisfação do seu direito, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições: a) existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição dos bens fornecidos por este último; b) ter o consumidor obtido o crédito no âmbito do acordo prévio referido na alínea anterior.

IV – O consumidor-comprador pode opor ao credor, no caso de ser por este accionado, a excepção do não cumprimento ou do cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, designadamente a falta de entrega dos documentos relativos a uma viatura vendida em consequência da referida união de contratos, com a suspensão do pagamento das prestações acordadas.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

        A..., intentou nos Juízos Cíveis da comarca de Lisboa acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, nos termos do Decreto-Lei n.º 269/98, de 01.09, contra B..., pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de €10.900,32, acrescida dos juros de mora vencidos até 10.05.2006, no montante de €401,34 e os vincendos, à taxa anual de 15,1%, bem como a pagar imposto de selo à taxa de 4%, sendo o calculado sobre os vencidos no montante de €16,05.

         Para tanto alegou, em síntese, que, no exercício da sua actividade comercial, emprestou ao réu a importância de €11.475,00, a ser paga em 72 prestações mensais e sucessivas, sendo o valor de cada mensalidade de €227,09, importância essa destinada à aquisição de um veículo automóvel da marca Seat, modelo Leon, com a matrícula 72-89-SE; que o réu não pagou as prestações vencidas desde 10 de Fevereiro de 2006, o que implicou o vencimento imediato de todas as demais; e que, de acordo com o contrato, em caso de mora, à taxa de juro acordada, de 11,1% ao ano, acresceria, a título de cláusula penal, uma indemnização de 4%, ou seja, o juro ascenderia à taxa anual de 15,1%.

O réu, aceitando a celebração do contrato mencionado pela autora, contestou arguindo a incompetência territorial do tribunal e alegando que comprou ao «Stand Jet Set Automóveis», sito na localidade de Cubos, em Mangualde, a viatura Seat, modelo Leon, com a matrícula 72-89-SE, sem que tenha contratado directamente com o autor, mas sempre por intermédio do stand, cujo representante o informou da possibilidade de obter um empréstimo para a aquisição do veículo, na medida em que o stand tinha um acordo exclusivo com o autor; que aquele representante lhe exibiu o contrato junto com a petição inicial, tendo-se limitado a assinar o mesmo; que o mesmo representante o informou de que seria o autor a entregar-lhe o livrete e o registo de propriedade, logo após a constituição de uma reserva de propriedade a seu favor; que não lhe foram entregues o livrete e o registo de propriedade, motivo pelo qual suspendeu o pagamento das prestações que retomará depois de o autor lhe remeter os documentos em falta.

Foi proferido despacho a julgar incompetente o Tribunal da Comarca de Lisboa e competente o de Nelas, decisão que foi mantida por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 101 a 106) proferido no recurso de agravo interposto pelo autor.

Consequentemente, foi o processo remetido para o Tribunal Judicial de Nelas.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito o A. apresentou resposta à contestação, tendo, a final, sido proferida a sentença que constitui fls. 154 a 166 dos autos, pela qual, com base na excepção de não cumprimento do contrato, foi a acção julgada improcedente e o R. absolvido do pedido.

Inconformado, o A. interpôs recurso que foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo.

Na alegação de recurso apresentada o apelante formulou as conclusões seguintes:

1) A não entrega ao R., ora recorrido, do título de registo de propriedade e do livrete respeitantes ao veículo a que referência é feita nos autos não legitima o dito R., ora recorrido, a suspender o pagamento das prestações de reembolso do mútuo que o A., ora recorrente, lhe concedeu.

2) A concessão do empréstimo no montante de € 11.475,00 pelo A., ora recorrente, ao R., ora recorrido, não ficou sujeita à condição de o A., ora recorrente, registar a propriedade do veículo com a matrícula 72-89-SE em nome do R., ora recorrido, nem tal foi sequer alegado nos autos.

3) Com efeito, como resultou provado nos autos, “O stand «Jet Set Automóveis» contactou o autor propondo-lhe que financiasse o crédito para a venda do veículo automóvel usado, de marca Seat, modelo Leon, com a matrícula 72-89-SE, para que recebesse a pronto o preço, enviando-lhe os documentos de identificação do réu e comunicando ao autor o montante do empréstimo directo a conceder ao mesmo com destino à aquisição daquele veiculo.” (cfr. n.° 1 da Fundamentação de Facto). “Depois de analisada a proposta que lhe foi enviada pelo dito «Jet Set Automóveis», em seu nome e em nome do réu, o autor aprovou-a e acedeu em conceder ao réu o empréstimo no montante de € 11.475,00, após o que a firma «Jet Set Automóveis» preencheu o escrito junto a fls. 9.” (cfr. n.° 2 da Fundamentação de Facto).

4) Ao A., ora recorrente, apenas foi proposto que “financiasse o crédito para a venda do veículo automóvel usado, de marca Seat, modelo Leon, com a matrícula 72-89-SE” por forma a que o vendedor de tal veículo – o Stand Jet Set Automóveis – “recebesse a pronto o preço”.

5) Foi essa proposta que o A., ora recorrente, aprovou, na sequência da qual veio a celebrar com o R., ora recorrido, o contrato de mútuo junto a fls. 9 dos autos, nos termos do qual entregou directamente ao Stand Jet Set Automóveis a quantia de €11.475,00.

6) Apesar de ter resultado provado que ao A., ora recorrente, incumbia proceder ao averbamento da propriedade do veículo com a matrícula 72-89-SE em nome do R., ora recorrido, e do registo da reserva de propriedade a seu favor, não pode deixar de ser ter atender (sic) que para a feitura de ambos os registos eram imprescindíveis: o requerimento-declaração (Modelo 2) assinado pelo R., ora recorrido, o requerimento-declaracão (Modelo 2) assinado pelo anterior proprietário na qualidade de vendedor, o livrete e o título de registo de propriedade do dito veículo.

7) Porém, como se provou, dos documentos necessários para que o A., ora recorrente, procedesse ao averbamento do registo da propriedade em nome do ora recorrido e respectiva reserva em seu nome, o «Stand Jet Set Automóveis» só enviou ao autor o requerimento-declaração para registo de propriedade assinado pelo réu, nunca tendo enviado o requerimento-declaração para registo de propriedade assinado pelo anterior proprietário na qualidade de vendedor, o título de registo de propriedade e o livrete do veículo. (cfr. n.° 11 da Fundamentação de Facto).

8) Sem o requerimento-declaração assinado pelo anterior proprietário na qualidade de vendedor o A., ora recorrente, ficou impossibilitado de proceder à feitura de qualquer dos ditos registos.

9) A não entrega ao R., ora recorrido, dos documentos – livrete e título de registo de propriedade – do veículo a que referência é feita nos autos não procedeu de culpa do A., ora recorrente.

10) Mal andou, pois, o Senhor Juiz a quo ao decidir pela improcedência da acção considerando procedente a excepção de não cumprimento invocada pelo R., ora recorrido.

12)[1] Ao decidir como fez na decisão recorrida o Senhor Juiz a quo interpretou e aplicou erradamente a lei designadamente os artigos 428° e 799° ambos do Código Civil.

13) Impõe-se, por isso, a inteira procedência do presente recurso de apelação com a consequente revogação da decisão recorrida, substituindo-se a mesma por acórdão que julgue a acção inteiramente procedente e provada e, em consequência condene o recorrido a pagar ao recorrente as importâncias peticionadas, como é de inteira JUSTIÇA.

O apelado respondeu defendendo a manutenção da sentença recorrida.

Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.


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         2. QUESTÕES A SOLUCIONAR

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste tribunal foi colocada apenas a questão de saber se a não entrega ao R. do título de registo de propriedade e do livrete respeitantes ao veículo por ele adquirido com a quantia que lhe foi mutuada pelo A. legitima ou não o dito R. a suspender o pagamento das prestações de reembolso do mútuo que o A. lhe concedeu.


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         3. FUNDAMENTAÇÃO

         3.1. De facto

         Por não ter sido objecto de impugnação, considera-se assente a factualidade dada como provada na 1ª instância e que é a seguinte:

3.1.1. O stand «Jet Set Automóveis» contactou o autor propondo-lhe que financiasse o crédito para a venda do veículo automóvel usado, de marca Seat, modelo Leon, com a matrícula 72-89-SE, para que recebesse a pronto o preço, enviando-lhe os documentos de identificação do réu e comunicando ao autor o montante do empréstimo directo a conceder ao mesmo com destino à aquisição daquele veículo.

3.1.2. Depois de analisada a proposta que lhe foi enviada pelo dito «Jet Set Automóveis», em seu nome e em nome do réu, o autor aprovou-a e acedeu em conceder ao réu o empréstimo no montante de €11.475,00, após o que a firma Jet Set Automóveis preencheu o escrito junto a fls. 9.

3.1.3. Posteriormente ao preenchimento do documento de fls. 9 e à aposição pelo réu da sua assinatura naquele documento, foi o mesmo enviado, pelo dito «Jet Set Automóveis», ao autor para que fosse assinado por um seu representante, após o que, pelo menos, um exemplar foi enviado àquele stand para ser entregue, como foi, ao réu.

3.1.4. Foi assim que o autor, no exercício da sua actividade comercial de financiamento de aquisições a crédito, em 19 de Janeiro de 2004, celebrou com o réu o contrato junto a fls. 9, denominado «contrato de mútuo», mediante o qual lhe emprestou a quantia de €11.475,00 (onze mil quatrocentos e setenta e cinco euros), destinada à aquisição do veículo automóvel usado, de marca Seat, modelo Leon, com a matrícula 72-89-SE.

3.1.5. Entre outras, foram estipuladas nesse documento, as seguintes condições:

3.1.5.1. Fornecedor do veículo: «Jet Set Automóveis», em Cubos, Mangualde;

3.1.5.2. O pagamento do empréstimo em 72 (setenta e duas prestações) mensais, iguais e sucessivas, no montante de €227,09 (duzentos e vinte e sete euros e nove cêntimos) cada, com início a primeira a 10 de Fevereiro de 2004 e a última em 10 de Janeiro de 2010, no montante total de €16.350,48 (dezasseis mil trezentos e cinquenta euros e quarenta e oito cêntimos);

3.1.5.3. Sobre a quantia de €11.475,00 incidem juros à taxa nominal de 11,1% e a TAEG. é de 13,2%;

3.1.5.4. No valor das prestações, além do capital, estão incluídos os juros do empréstimo, o valor dos impostos devidos, bem como os prémios de seguro no montante mensal de €2,89 (dois euros e oitenta e nove cêntimos);

3.1.5.5. O empréstimo considera-se utilizado com a emissão pelo autor de uma ordem de pagamento, a favor do mutuário ou do fornecedor do veículo financiado de valor igual ao «montante do empréstimo» (cláusula 3.ª);

3.1.5.6. O mutuário ficará constituído em mora no caso de não efectuar, aquando do respectivo vencimento, o pagamento de qualquer prestação (cláusula 8.ª);

3.1.5.7. A falta de pagamento de uma prestação, na data do respectivo vencimento, implica o vencimento de todas as restantes (cláusula 8.ª);

3.1.5.8. Em caso de mora, e sem prejuízo do disposto em 2.7., incidirá sobre o montante em débito e, durante o tempo da mora, a título de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual acrescida de quatro pontos percentuais, bem como outras despesas decorrentes do incumprimento, nomeadamente uma comissão de gestão por cada prestação em mora (cláusula 8.ª);

3.1.6. Em 21.01.2004 o réu autorizou que o pagamento das prestações referidas em 3.1.5.2. fosse debitado mensalmente junto da conta n.º 0045308040131415005, da CCAM de Nelas.

3.1.7. O réu não pagou a 25.ª (vigésima quinta) prestação, vencida em 10 de Fevereiro de 2006, nem as seguintes.

3.1.8. O autor solicitou como garantia que, sobre o veículo objecto do financiamento dos autos, fosse registada a seu favor uma reserva de propriedade, ao que o réu acedeu, incumbindo ao autor proceder ao averbamento da propriedade do veículo em nome do réu e do registo da reserva de propriedade a seu favor.

3.1.9. O representante do «Stand Jet Set Automóveis» transmitiu ao réu que seria o autor a entregar-lhe o livrete e o registo de propriedade, logo após a constituição da reserva de propriedade.

3.1.10. O autor entregou directamente ao «Stand Jet Set Automóveis» a importância de €11.475,00.

3.1.11. Dos documentos necessários a que o autor procedesse ao averbamento do registo da propriedade e respectiva reserva, o «Stand Jet Set Automóveis» só enviou ao autor o requerimento – declaração para registo de propriedade assinado pelo réu, nunca tendo enviado o requerimento – declaração para registo de propriedade assinado pelo anterior proprietário na qualidade de vendedor, título de registo de propriedade e o livrete do veículo.

3.1.12. O livrete e o registo de propriedade não foram entregues ao réu, que, após a celebração do escrito de fls. 9, os reclamou junto do autor que, por sua vez, o informou da impossibilidade de proceder à feitura de ambos os registos atenta a falta dos documentos referidos em 3.1.11.

3.1.13. A mandatária do réu enviou ao autor a carta registada com AR de fls. 39 a 40, datada de 9.02.2006, recebida em 10.02.2006, que se dá por inteiramente reproduzida, e onde se refere, designadamente, que «o meu constituinte não pode utilizar um bem que se encontra a pagar, simplesmente porque não é detentor dos documentos do veículo. Conforme o estipulado, o Stand Jet Set Automóveis comprometeu-se a enviar os ditos documentos directamente para a V/ instituição, para que após procederem à constituição de uma reserva de propriedade para garantia do mútuo, fossem remetidos ao meu constituinte. Tal situação configura um incumprimento por parte da V/ instituição uma vez que, como ficou estipulado, que competia a V. Exas. o envio dos documentos ao meu constituinte, o que até ao momento não se verificou. Nesta conformidade, e no uso de um direito que a lei confere no art. 428.º do Código Civil, venho comunicar a V. Exas. que o meu constituinte irá reter a sua prestação, até que procedam à entrega do livrete e do registo de propriedade do veículo. (…) Pelo que, depois de lhe serem enviados os documentos em falta, retomará o pagamento da prestação mensal que lhe compete».

3.1.14. O autor enviou ao réu a carta de fls. 43, datada de 23.03.2006, que aqui se dá por inteiramente reproduzida, e onde se refere, designadamente, que «somos totalmente alheios aos problemas resultantes do fornecimento do automóvel que o constituinte de V. Exa. adquiriu com o financiamento que lhe concedemos, bem como à falta dos documentos relativos ao veículo. É exacto que solicitamos ao seu constituinte que constituísse em nosso favor uma reserva de propriedade sobre o dito veículo por ele adquirido, o que não se concretizou por o Stand a quem o mesmo adquiriu o veículo não nos ter remetido a documentação necessária. Consideramos assim a posição do constituinte de V. Exa. de ter deixado de pagar as prestações do contrato que connosco celebrou injustificada, pelo que iremos intentar contra o mesmo a competente acção judicial».


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         3.2 De direito

         Em síntese, foi na sentença recorrida entendido que a factualidade provada permite concluir que se está na presença de dois contratos, um de compra e venda do veículo automóvel da marca “Seat”, modelo “Leon”, com a matrícula 72-89-SE e outro de mútuo. Tais contratos, mercê da estreita relação funcional e económica entre os dois existente, constituem uma união de contratos em que o de mútuo se enquadra juridicamente no âmbito dos contratos de crédito ao consumo cujo regime está previsto no Dec. Lei nº 359/91 de 21/09. De acordo com o artº 12º, nº 2 desse diploma legal, o consumidor pode demandar o credor em caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor desde que, não tendo obtido do vendedor a satisfação do seu direito, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições: a) Existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último; b) Ter o consumidor obtido o crédito no âmbito do acordo prévio referido na alínea anterior. No caso dos autos não se verifica o requisito da exclusividade do financiador, mas a factualidade provada permite concluir que a falta de entrega ao R. dos documentos – livrete e título de registo de propriedade – do veículo automóvel transaccionado resulta de culpa do A., circunstância que legitima o uso pelo R. da excepção do não cumprimento do contrato e a consequente suspensão do pagamento das prestações relativas ao mútuo.

         O A., aqui recorrente, discorda, pondo o acento tónico da sua argumentação na alegada inexistência de culpa da sua parte relativamente à falta de entrega dos documentos, sublinhando, além do mais, que a concessão do empréstimo não ficou sujeita à condição de registar a propriedade do veículo em nome do R.

         Nos termos do nº 1 do artº 428º do Cód. Civil, se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.

         O recorrente não questiona o nexo ou sinalagma que une a obrigação de pagamento do preço à obrigação de entrega da coisa, nesta se abrangendo os documentos a ela relativos (artºs 879º e 882º do Cód. Civil), nem esgrime com a existência de prazos diferentes ou com a falta de boa fé do recorrido.

         Não se abordarão, por isso, tais questões.

         Como facilmente se conclui da análise da factualidade provada e foi salientado na sentença recorrida, estamos perante dois contratos: um, de crédito ao consumo, na modalidade de concessão de crédito para financiamento da aquisição de bens mediante pagamento em prestações[2], em que figuram como credor/mutuante o A. e como consumidor/mutuário o R.; outro, de compra e venda, em que figuram como vendedor o “Stand Jet Set Automóveis” e como comprador o R.

         Embora conservando a sua individualidade e mantendo-se diferenciados, os dois contratos estão unidos um ao outro, havendo entre eles um laço de dependência, já que as partes os quiseram como um todo, como um conjunto económico[3].

         Com efeito, embora o R. figure como parte nos dois contratos, o impulso contratual por si desenvolvido dirigiu-se essencialmente à compra e venda do veículo automóvel e traduziu-se no contacto estabelecido e negociações feitas com o “Stand Jet Set Automóveis”.

Quanto ao restante iter contratual percorrido, com especial relevo para a negociação da concessão de crédito por parte do A., o R. apenas se deixou conduzir pelos representantes do dito stand. De facto, foi o stand que contactou o A. e lhe fez a proposta de financiamento; que preencheu o escrito que integra o contrato de mútuo e o deu a assinar ao R; e que enviou esse escrito ao A. que, por sua vez, o assinou e lhe devolveu um exemplar para ser entregue ao R. Além disso, o crédito concedido destinou-se à aquisição do veículo automóvel usado, de marca Seat, modelo Leon, com a matrícula 72-89-SE, sendo fornecedor o “Stand Jet Set Automóveis”; o autor solicitou como garantia que sobre o veículo objecto do financiamento fosse registada a seu favor uma reserva de propriedade, ao que o réu acedeu, incumbindo ao autor proceder ao averbamento da propriedade do veículo em nome do réu e do registo da reserva de propriedade a seu favor; o representante do «Stand Jet Set Automóveis» transmitiu ao réu que seria o autor a entregar-lhe o livrete e o registo de propriedade, logo após a constituição da reserva de propriedade; e o autor entregou directamente ao «Stand Jet Set Automóveis» a importância mutuada.

         Ou seja, entre o R. e o A. não houve qualquer contacto directo, tudo tendo sido intermediado pelo “Stand Jet Set Automóveis”, sendo inegável a existência de uma colaboração estreita entre o credor (A.) e o vendedor (Stand), justificativa da conclusão de que entre os dois vigorava um acordo prévio orientado para aquele tipo de situações negociais.

Nesse contexto, a incumbência ao A. da realização das diligências tendentes ao averbamento da propriedade do veículo em nome do R. e do registo da reserva de propriedade a seu favor, bem como a informação dada ao R. pelo representante do “Stand Jet Set Automóveis” de que seria o A. a entregar-lhe o livrete e o título de registo de propriedade permitem a presunção de que entre o A. e o vendedor ficou estabelecido que este forneceria àquele os documentos necessários ao sucesso dessa tarefa. O que é confirmado pela circunstância de se encontrar provado (ponto 3.1.11., supra) que dos documentos necessários a que o autor procedesse ao averbamento do registo da propriedade e respectiva reserva, o «Stand Jet Set Automóveis» só enviou ao autor  o requerimento- declaração para registo de propriedade assinado pelo réu (sublinhado nosso), nunca tendo enviado o requerimento-declaração para registo de propriedade assinado pelo anterior proprietário na qualidade de vendedor, o título de registo de propriedade e o livrete do veículo. Ou seja, até o requerimento-declaração para registo de propriedade assinado pelo R. passou pela mão do vendedor, não sendo directamente entregue ao A.

         Ao contrato de crédito ao consumo celebrado entre o A. e o R. e, reflexamente, ao contrato de compra e venda ao qual se encontra unido, aplica-se o Decreto Lei nº 359/91, de 21 de Setembro, que tem como objectivo assumido «assegurar o cumprimento do objectivo constitucional e legalmente fixado de protecção dos direitos dos consumidores» e transpôs para o direito interno as Directivas do Conselho das Comunidades Europeias nºs 87/102/CEE, de 22 de Dezembro de 1986, e 90/88/CEE, de 22 de Fevereiro de 1990.

         Estatui o artº 12º desse diploma:

         1 - Se o crédito for concedido para financiar o pagamento de um bem vendido por terceiro, a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da vaidade e eficácia do contrato de crédito, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e o vendedor na preparação ou na conclusão do contrato de crédito.

         2 - O consumidor pode demandar o credor em caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor desde que, não tendo obtido do vendedor a satisfação do seu direito, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições:

         a) Existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último;

         b) Ter o consumidor obtido o crédito no âmbito do acordo prévio referido na alínea anterior.

         3 - O disposto nos números anteriores é aplicável, com as necessárias adaptações, aos créditos concedidos para financiar o pagamento do preço de um serviço prestado por terceiro.

         No caso dos autos não estão em causa a validade e eficácia dos contratos de crédito e/ou de compra e venda, pelo que o nº 1 da disposição legal citada não tem aplicação.

         O que está claramente em causa é, como já acima se disse, saber se a não entrega ao R. do título de registo de propriedade e do livrete respeitantes ao veículo por ele adquirido com a quantia mutuada pelo A. legitima ou não o dito R. a suspender o pagamento das prestações de reembolso do mútuo que o A. lhe concedeu. Ou seja, saber se o R. podia opor ao A. a exceptio non rite adimpleti contractus consistente na falta de entrega dos documentos relativos ao veículo adquirido.

         Dado o teor do nº 2 do atrás transcrito artº 12º, é de concluir que, verificados os requisitos ou pressupostos aí previstos, tal como pode demandar o credor em caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor, também o consumidor/comprador pode opor ao credor, no caso de ser por este accionado, a excepção do não cumprimento ou do cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda[4].

         A questão está em definir os exactos contornos dos aludidos requisitos ou pressupostos, o que passa pela correcta interpretação do referido nº 2 do artº 12º., nomeadamente da alínea a) e, dentro desta, do advérbio «exclusivamente».

         A letra da lei inculca que o acordo prévio entre o credor e o vendedor terá de revestir-se de exclusividade, em termos de só aquele credor conceder financiamento aos clientes daquele vendedor para aquisição de bens fornecidos por este último.

         Porque tal interpretação se apresenta como menos favorável ao consumidor e, por isso, algo desajustada ao propósito do Decreto Lei nº 359/91, vem alguma jurisprudência ensaiando interpretações que, com recurso ao elemento teleológico do preceito, obstem a essa aparente contradição.

         Assim, como se refere na sentença recorrida, foi no Acórdão da Relação de Lisboa de 23/02/2006[5] sustentada uma interpretação restritiva do nº 2, do artigo 12.° do DL 359/91, defendendo-se a sua aplicabilidade mesmo quando não se verifique a «exclusividade» aí prevista, sempre que, no caso concreto, procedam as mesmas razões e interesses que estão na origem do consagrado na letra da lei.

         E no acórdão da Relação de Guimarães de 20/09/2007[6] foi defendido que o termo “exclusivamente” constante da disposição legal mencionada nada tem a ver com o quadro das relações comerciais entre o mutuante e o fornecedor, referenciando apenas a vinculação do financiamento à aquisição de bens a fornecedor determinado[7].

         No caso dos autos não se provou o requisito da «exclusividade» nas relações entre o credor e o vendedor, o que, à primeira vista, afastaria a possibilidade de o R. invocar perante o A. a excepção da falta de entrega dos documentos – livrete e título de registo de propriedade – do veículo adquirido.

         Contudo, vistas as coisas com mais profundidade, outra parece ser a solução adequada.

         A entrega dos documentos relativos à coisa vendida anda normalmente associada à entrega da coisa, constituindo obrigação do vendedor (artºs 879º e 882º do Cód. Civil).

         Daí que, normalmente, a excepção de não cumprimento ou de cumprimento defeituoso integrada pela falta de entrega dos documentos, nomeadamente no caso de compra e venda de veículo automóvel, se compreenda nas relações entre o vendedor e o comprador.

         Mas no caso em apreciação o contrato de compra e venda encontra-se unido ao de concessão de crédito, sendo inequívoca a existência entre o credor e o vendedor de um acordo prévio por força do qual – ainda que sem exclusividade – o primeiro financia os clientes do segundo para a aquisição de bens por este fornecidos.

         Ora, provou-se que no caso concreto da situação negocial protagonizada pelo R., com a aquiescência deste mas no interesse e em claro proveito do A., foi acordado entre o credor (A.) e o vendedor (Stand) que os documentos do veículo automóvel seriam entregues ao comprador pelo A. após constituição da reserva de propriedade a seu favor. O que, naquela relação trilateral, legitima o entendimento de que, perante o R., foi o A. – e não o “Stand Jet Set Automóveis” – quem ficou obrigado à entrega dos documentos.

         Em tais circunstâncias competia ao A. tomar todas as providências necessárias e suficientes para garantir que o vendedor faria chegar às suas mãos os documentos em causa, até porque, face ao contratado, era a si que o comprador acabaria por exigi-los.

         Se, porventura motivado pela relação de confiança existente entre si e o “Stand Jet Set Automóveis”, o A. não preveniu a hipótese de aquele, por não querer ou não poder, faltar à obrigação de lhe entregar os documentos, não é justo que pretenda alijar a sua responsabilidade e atirar para os ombros do R. o risco por si assumido.

         Ou seja, embora habitualmente a obrigação de entrega da coisa e dos documentos a ela referentes ao comprador recaia sobre o vendedor, no caso concreto dos autos, dada a união de contratos existente e o acordo a que, dentro da liberdade contratual de que gozavam, as partes chegaram, tal obrigação recaía sobre o A.

         Não tendo os documentos sido entregues ao R. (comprador), incumbia ao A. provar que tal não decorreu de culpa sua (artº 799º, nº 1 do Cód. Civil). Presunção de que, claramente o A. não logrou libertar-se, já que não demonstrou a inexistência de culpa da sua parte.

         É certo que se provou que o A. não entregou os documentos ao R. – nem registou a propriedade em nome do R., com reserva da mesma a seu favor – porque o “Stand Jet Set Automóveis” também lhos não entregou a ele. Mas isso não afasta a culpa do A., pois se não tinha no “Stand Jet Set Automóveis” confiança suficiente para tanto, não deveria ter-lhe entregue a quantia mutuada sem ter em seu poder os documentos; e se, fruto do relacionamento comercial existente entre os dois, tinha essa confiança, não é justo que, traída a mesma, pretenda repercutir no R. as consequências dessa traição. Que é o mesmo que dizer que no quadro negocial provado nos autos o risco decorrente da eventual falta de entrega dos documentos do veículo por parte do vendedor foi assumido pelo credor e não pelo R., por cujas mãos o crédito concedido para a aquisição da viatura nem sequer chegou a passar.

         Conclui-se, portanto, que na situação negocial provada nos autos era ao R. legítimo, com base na excepção do não cumprimento, suspender o pagamento das prestações relativas à compra do veículo de matrícula 72-89-SE enquanto lhe não forem entregues os documentos ao mesmo veículo relativos[8]

         A assunção por parte do A. da obrigação de, após registar a propriedade do veículo em nome do R., com reserva da mesma a seu favor, entregar àquele os documentos do veículo, não se confunde com a sujeição da concessão do empréstimo à condição do registo da viatura em nome do R. (cfr. conclusão 2ª).

         Efectivamente, no quadro contratual evidenciado pela prova feita nos autos, o contrato de crédito tendo por objecto o financiamento da aquisição do veículo automóvel mediante o pagamento em prestações foi celebrado, não ficando sujeito a qualquer condição (seja suspensiva, seja resolutiva), nomeadamente à da feitura pelo A. do registo da propriedade do veículo em nome do R. Nem tal foi alegado por qualquer das partes, não defendendo o R., face à invocada falta de entrega dos documentos (que não à falta de feitura do registo) quer a não produção dos efeitos do contrato, quer a sua resolução.

         De resto, a consequência da falta de entrega dos documentos pretendida pelo R. com a invocação da excepção do não cumprimento do contrato – suspensão/retardamento das prestações em dívida até que lhe sejam entregues os documentos – pressupõe a validade do contrato. E a falta de verificação de eventual condição suspensiva, bem como a verificação de eventual condição resolutiva, originariam a ineficácia do negócio (artºs 270º e seguintes do Cód. Civil). O que faz ressaltar a desadequação da referência feita pelo recorrente à não sujeição do negócio a condição.

         Soçobram, portanto, as conclusões da alegação do recorrente, o que conduz à improcedência da apelação e à manutenção da sentença recorrida.


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         4. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, em manter a sentença recorrida.

         As custas são a cargo do recorrente.


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                                                        Coimbra,


[1] O recorrente passou da conclusão 10ª para a 12ª, omitindo a 11ª.
[2] Ac. STJ de 27/09/2007 (Proc. 07B2212, relatado Pelo Ex.mo Cons. Santos Bernardino), in www.dgsi.pt/jstj.
[3] Prof. Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, reprint 3ª edição 1965, pág. 397. Cfr. tb. Ac. STJ de 11/09/2007 (Proc. 07A2104, relatado Pelo Ex.mo Cons. Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt/jstj; Ac. Rel. Lisboa de 09/05/2006 (Proc. 12156/2005-7, relatado pela Ex.ma Des. Maria Amélia Ribeiro), in www.dgsi.pt/jtrl; e Ac. Rel. Porto de 15/10/2007  (Proc. 0723560, relatado pelo Ex.mo Des. Cândido Lemos), in www.dgsi.pt/jtrp.
[4] Ac. STJ de 24/04/2007 (Proc. 07A685, relatado pelo Ex.mo Cons. Nuno Cameira), in www.dgsi.pt/jstj.
[5] Proc. 10021/2005-.8, relatado pelo Ex.mo Des. Sérgio Gouveia, em www.dgsi.pt/jtrl. Cfr. tb. Ac. Rel. Lisboa de 24/04/2007 (Proc. 5676/2005-7, relatado pela Ex.ma Des. Isabel Salgado), in www.dgsi.pt/jtrl.
[6] Proc. 1612/07-2, relatado pelo Ex.mo Des. Gouveia Barros, in www.dgsi.pt/jtrg.
[7] Esta interpretação convenceria se o advérbio «exclusivamente» ocupasse outro lugar na al. a) do nº 2 do artº 12º do Dec. Lei nº 359/91. Colocado onde está, parece referir-se efectivamente às relações comerciais entre o mutuante e o fornecedor.
  Este nosso entendimento encontra respaldo, se bem vemos, no Ac. do STJ de 24/04/2007 Proc. 07A685, relatado pelo Ex.mo Cons. Nuno Cameira), in www.dgsi.pt/jstj.
[8] Ac. Rel. Lisboa de 09/05/2006 (Proc. 1254/2006-1, relatado pela Ex.ma Des. Ana Grácio), in www.dgsi.pt/jtrl.