Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
57/08.6TBPNH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE DE SENTENÇA
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
COMPENSAÇÃO
Data do Acordão: 10/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PINHEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 668º Nº 1 D), 653º Nº 2 E 712º DO CPC E 428º Nº 1 E 847º DO CC
Sumário: I - A alteração da decisão sobre a matéria de facto, com base na existência de elementos fornecidos pelo processo que imponham decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, contende com a presença de elementos probatórios cujo valor não possa ser contrariado por qualquer das outras provas produzidas no processo, em conformidade com o que resulta da estrita aplicação dos critérios da prova legal.

II – A omissão de pronúncia, pelo Juiz, sobre questões que devesse apreciar ou o conhecimento pelo mesmo de questões de que não podia tomar conhecimento, enquanto causa de nulidade da sentença, ocorre quando o vício incide apenas na parte dispositiva da sentença e não na sua fundamentação.

III - Não tendo a ré efectuado a prova do cumprimento defeituoso da prestação, por parte da autora, não há lugar para a procedência das excepções do não cumprimento do contrato ou da compensação.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A...., com sede na ......, Aveiro, propôs a presente providência de injunção, posteriormente, tramitada como acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, contra B... , com sede na ....., Pinhel, pedindo que, na sua procedência, a ré seja condenada a pagar-lhe o montante de €7.035,91, correspondendo €6.519, a título de capital devido pelo fornecimento de bens e serviços, conforme facturas emitidas, que ainda se mostram, parcialmente, em dívida, €420,91, a título de juros de mora, desde 20 de Julho de 2007, e €96, relativamente a taxa de justiça.
Na oposição à injunção, a ré sustenta a improcedência da acção, invocando a excepção de não cumprimento, decorrente de cumprimento defeituoso, e a excepção de compensação, pelo valor dispendido com a reparação, referindo que a máquina, a que alude a factura A 171, foi fornecida inoperacional, tendo havido inúmeros contactos para reparações, que acabaram por ser atendidas, mas a mesma manteve-se inoperacional, não tendo sido reparada pela autora, pelo que a ré recorreu a outro fornecedor, tendo dispendido a quantia de €1.391,50, sendo certo, também, que o valor em dívida constante da aludida conta corrente seria de €5.314, deduzidos os €605, a que se referem as reparações efectuadas.
A sentença julgou improcedentes as excepções invocadas e a acção, totalmente, procedente, e, em consequência, condenou a ré B..., a pagar à autora A..., o montante de €6.519 (seis mil quinhentos e dezanove euros), a título de capital, e €420,91 (quatrocentos e vinte euros e noventa e um cêntimos), a título de juros de mora.
Desta sentença, a ré interpôs recurso de apelação, terminando as alegações, com o pedido da sua revogação, ou da renovação dos meios de prova produzida em 1ª instância, ou da diferente valoração da matéria de facto, reunidos que estão, no processo, os meios de prova – documentais e testemunhas (na síntese coligida) – decisivos, no cumprimento, respectivamente do nº3 ou da alínea a), do nº1, ambos do artigo 712º, do CPC, formulando as seguintes conclusões:
1ª – O julgamento da acção (procedência do pedido formulado pela autora) alicerçou-se na convicção de que a máquina foi fornecida operacional;
2ª - Contudo, a sentença reconheceu (em contradição) que em 19-07-2007, havia um problema no funcionamento da máquina;
3ª - E outras deficiências foram sendo, sucessivamente, denunciadas e individualizadas, sem que a Senhora Dra. Juiz as tivesse analisado e sobre elas tecido qualquer contradição;
4ª - Por outro lado, parece que a convicção que estriba a decisão recorrida reside no facto de haver uma qualquer deficiência na estrutura de apoio à máquina, que se diz ser não compatível com esta, e ser da responsabilidade da ré;
5ª - Só que esta “razão” está ausente dos factos provados ou não provados;
6ª - Resulta, pois, que a Sra. Juiz não se pronunciou sobre questões que devia ter apreciado;
7ª - E conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, porque ausentes do elenco dos factos provados ou não provados;
8ª - Desrespeitou o disposto na alínea a) do nº1 do artigo 668º, do CPC;
9ª - Bem como o estatuído nos artigos 653º, nº2 e 712º, nº 1, b), na medida em que a prova carreada para os autos, impunha na valoração antípoda;
10ª - Consequentemente, as excepções invocadas deviam ter sido julgadas procedentes;
11ª - Acresce que tendo a sentença condenado em juros, devia ter fixado a data da mora, o que não aconteceu.

A autora não apresentou contra-alegações.

                                                     *

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:

I – A questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto.

II – A questão da nulidade da sentença.

III – A questão das excepções do não cumprimento e da compensação.

IV – A questão da condenação em juros.

                  I. DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO


Entende a ré que outra deveria ter sido a decisão sobre a matéria de facto, na medida em que a prova carreada para os autos impunha uma valoração antípoda, reclamando a sua modificação, com base no estatuído pelos artigos 653º, nº 2 e 712º, nº 1, b), ambos do CPC.

Estipula, a este propósito, a alínea b), do nº 1, do artigo 712º, do CPC, que “a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas”.

A alteração da decisão sobre a matéria de facto, com base no dispositivo legal acabado de mencionar, contende com a existência no processo de elementos probatórios cujo valor não possa ser contrariado por qualquer das outras provas produzidas nos autos, em obediência aos critérios do sistema da prova legal, tornando-se, assim, necessário que se verifique essa certeza jurídica produzida pelos elementos de prova, documentais ou outros, existentes no processo[1].

Esta invocada causa de modificabilidade da decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto, prende-se com a existência de documentos ou elementos fornecidos pelo processo que imponham decisão diversa que não possa ser contrariada por quaisquer outras provas, com acontece, v. g., quando o Tribunal não considera a força probatória de documento, não impugnado nos termos legais[2].

Ora, no caso em apreço, não está em causa, manifestamente, a existência desses documentos ou elementos insusceptíveis de poderem ser contrariados por quaisquer outras provas, mas antes a questão da diversa interpretação da matéria de facto, a que o Tribunal «a quo» procedeu, criticamente, após audição e apreciação das provas que efectuou, ao abrigo do princípio da convicção racional, consagrado pelo artigo 655º, do CPC.

Certo é que, mesmo quando do processo não constem todos os elementos probatórios que serviram de base à decisão sobre a matéria de facto, como acontece, no caso «sub judice», em que, igualmente, não se verificou a gravação dos depoimentos prestados, a Relação pode, oficiosamente, anular essa decisão, nos termos do preceituado pelo artigo 712º, nº 4, do CPC, “…quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta;…”.
Neste particular, a ré invoca que existe contradição na fundamentação de facto quando se diz, por um lado, que a máquina foi fornecida operacional e, por outro, que existe um problema no seu funcionamento.
Revertendo à factualidade que ficou consagrada, impõe-se considerar que, tendo a máquina multifunções, de cabeça giratória, sido colocada, nas instalações da ré, no dia 18 de Setembro de 2006, em 19 de Julho de 2007, ou seja, dez meses depois, ambas as partes acordaram em verificar e solucionar o problema da mesma, por, então, não se encontrar em perfeitas condições de funcionalidade, sendo certo, outrossim, que não foi dado como provado que aquela tenha sido fornecida inoperacional.

            De todo o modo, a ré não demonstrou que os problemas evidenciados pela referida máquina resultaram de um qualquer defeito congénito de que a mesma padecesse quando foi entregue pela autora, nas instalações daquela, e não da própria utilização do material, no decurso do prazo, de cerca de dez meses, desde aquela data, durante o qual não se provou que a mesma não deixou de se encontrar operacional, tratando-se de factos de natureza impeditiva que, nos termos do estipulado pelos artigos 342º, nº 2, do Código Civil, e 516º, do CPC, à ré competia demonstrar, de acordo com o princípio da distribuição do ónus da prova.

            Como assim, não se verifica a alegada contradição nas respostas aos vários pontos da matéria de facto, justificativa da respectiva anulação oficiosa, por determinação desta Relação, nos termos do preceituado pelo artigo 712º, nº 4, do CPC.

            Assim sendo, este Tribunal da Relação entende que se devem considerar como demonstrados e não provados os seguintes factos:
A autora é uma sociedade comercial que se dedica à fabricação de máquinas e acessórios para a indústria de pedra - 1.
A ré é uma sociedade comercial que se dedica à produção e comércio de granitos - 2.
No exercício da sua actividade, a autora, a pedido da ré, entregou à mesma uma máquina multifunções, de cabeça giratória (corte e corta topos) manual e uma máquina de polir manual, ambas com o n.º de série C00053, ano de fabrico 2006, marca coma pedra, data da instalação/entrega 18/09/2006, garantia iniciada, em 18/09/2006, até 17/09/2006, tendo emitido e enviado a factura nº A 171, datada de 20/07/2007, no valor de €21.780, a pronto pagamento (fls. 7) - 3.
A autora emitiu e enviou à ré a factura n.º A 71, datada de 14/12/2006, no valor de €302,50, com IVA incluído, à taxa de 21%, com a designação deslocação continente assistência técnica n.º B/00037 (fls. 8) - 4.
A autora emitiu e enviou à ré a factura nº A 84, datada de 11/01/2007, no valor de €302,50, com IVA incluído, à taxa de 21%, com a designação deslocação continente assistência técnica nº A/00040/B/00040, de 04/01/2007 (fls. 9) - 5.
Relativamente à factura, referida em 3., a ré deve € 5.914 - 6.
A ré, anteriormente, usava a firma C... “ (fls. 16) - 7.
Em 23/08/2006, foi acordado a aquisição dos bens descritos em 3., pelo valor referido, deduzido de €4.000 de retoma, com as condições de pagamento de 40%, na desmontagem e assinatura do contrato de venda, e de 60%, na instalação (fls. 17) - 8.
Em 19/07/2007, entre autora e ré, através dos seus representantes, foi celebrado um pré acordo de pagamento/funcionamento de máquina, devidamente, assinado, do qual consta: (…) chegamos a um acordo com vista a solucionar o problema em causa da máquina multifunções cabeça giratória (corte e corta topos), modelo 00A4, ano fabrico 2006, n.º de série C00052, instalada na data de 18/09/2006, que consiste no seguinte:

a) Verificação do problema da máquina;

b) Marcação com o técnico assistente dia e hora para colocar a máquina a trabalhar (23/07/2007 pela manhã);

c) Após a mesma estar em perfeitas condições de trabalho, o segundo outorgante [a ré] compromete-se a liquidar o montante em débito. (…)” (fls. 18) - 9.

Em 08/08/2007, pela ré foi enviado fax à autora, da qual consta: “Assunto: Factura A 171, de 20/07/2007 (…) Acusamos a recepção da v/factura acima referida, com a qual não concordamos. Depois de analisada verifica-se que a mesma contém elementos não correctos no que se refere à garantia da máquina multifunções cabeça giratória (…) da qual dei conhecimento (…) tendo este ficado de a corrigir e até hoje nada fez. Como se depreende só após a máquina se encontrar em funcionamento é que a mesma é facturada e começa a garantia.

É do vosso inteiro conhecimento e responsabilidade, que a máquina em questão não ficou em condições de trabalhar, o que fez que até hoje nunca o tenha feito, pese embora as muitas tentativas que o v/técnico Sr. E... fez para remediar os problemas e que ainda não conseguiu.

(…) Como nada foi feito e o acordo de nada serviu, vimos por este meio dar-vos o prazo máximo até ao dia 17 do corrente mês de Agosto para que o problema se solucione (…).

Aproveitamos para informar que encerramos para férias de 18/08 a 03/09. (…).” (fls. 19) - 10.

Em 16/08/2007, a ré enviou fax à autora, do qual consta: “Vimos por este meio informar de que a nossa empresa esteve em período de férias de 03/08/2007 até 14/07/2007, tendo sido hoje levantada a correspondência no apartado, tivemos conhecimento da vossa carta no dia de hoje uma vez que o fax enviado por vós não está legível.

Comunicamos que já não nos é possível marcar uma deslocação técnica antes da vossa empresa entrar em período de férias, fica desde já marcada para o dia 04/09/2007.” (fls. 20) - 11.

Em 11/09/2007, a ré enviou à autora, correspondência, da qual consta: “Dirijo-me a V.Exas na qualidade de mandatário da firma B... (…).

Como é do v/conhecimento e decorre do “protocolo” firmado em 19/07/2007 a máquina (…) adquirida no estado de nova, persiste em não funcionar.

Assim, venho solicitar a substituição da mesma, agradecendo que seja fornecido novo exemplar no decurso dos próximos 10 dias, estando, desde já, o equipamento avariado à vossa disposição. (…).” (fls. 21 e 22) - 12.

Em 19/11/2007, a ré enviou à autora correspondência, da qual consta: “Reiterando o conteúdo da comunicação que em 2007-09-11 vos dirigi, na qualidade de mandatário da firma (…) o certo é que, até à presente data V.Exas não repararam, nem substituíram a máquina (…).

Consequentemente, o referido equipamento mantém-se inactivo, uma vez que ainda não foi reparada a avaria que impede pôr a máquina a trabalhar.

Decorridos que estão mais de 60 dias, sobre o envio da nossa aludida missiva e face ao desinteresse de V.Exas. serve a presente para informar que, finda a dilação de oito dias, resolveremos, unilateralmente, qual a atitude a tomar. (1) desmontar a máquina, substituindo-a por outra; (2) mandá-la reparar onde se entender conveniente. (…).” (fls. 23 e 24) - 13.

Da conta corrente da ré, relativamente aos montantes referidos em 3., 4. e 5., consta o montante de € 5.919 (fls. 37) - 14.

Em 12/02/2008, D... emitiu a factura n.º 0560, com o valor de €1301,50, incluindo o montante de 21% de IVA, cuja descrição é: “Análise e reparação de máquina multifunções, casquilhos, porcas, freios e lubrificação, deslocações mão-de-obra” (fls. 38) - 15.

Não foi dado como provado que a máquina multifunções, de cabeça giratória, foi fornecida inoperacional.

                           II. DA NULIDADE DA SENTENÇA


Defende a ré que o Tribunal «a quo» desrespeitou o disposto na alínea d), do nº1, do artigo 668º, do CPC, uma vez que não se pronunciou sobre questões que devia ter apreciado e conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, porque ausentes do elenco dos factos provados ou não provados.
Constitui causa de nulidade da sentença, conforme decorre do preceituado pelo artigo 668º, nº 1, d), do CPC, a omissão de pronúncia pelo Juiz sobre questões que devesse apreciar ou o conhecimento pelo mesmo de questões de que não podia tomar conhecimento.
Porém, esta causa de nulidade ocorre quando o vício incide apenas na actividade de elaboração da sentença, na respectiva parte dispositiva, e não na sua fundamentação[3].
Ora, a ré sustenta que o Tribunal «a quo» conheceu de factos não alegados pelas partes e não apreciou outros que as mesmas invocaram.
Neste caso, o vício, a verificar-se, e já se demonstrou o contrário, consistiria na violação do princípio do dispositivo, segundo o qual, nesta particular manifestação, só às partes compete, por via de regra, ressalvando as excepções consagradas por lei e que agora não interessa considerar, proporcionar ao Juiz, mediante as suas afirmações de facto e as provas que tragam ao processo, a base factual da decisão[4].
Não ocorre, portanto, o apontado vício da nulidade da sentença.

     III. DAS EXCEPÇÕES DO NÃO CUMPRIMENTO E DA COMPENSAÇÃO

            Efectuando uma síntese do essencial da factualidade que ficou consagrada, importa reter que, no exercício da actividade de fabricação de máquinas e acessórios para a indústria de pedra a que se dedica, a autora, em 18 de Setembro de 2006, a pedido da ré, entregou-lhe uma máquina multifunções de cabeça giratória, no valor de € 21.780, a pronto pagamento, tendo ainda emitido e enviado à ré a factura n.º A 71, datada de 14 de Dezembro de 2006, no valor de €302,50, e a factura nº A 84, datada de 11 de Janeiro de 2007, também, no valor de €302,50, ambas com IVA incluído, à taxa de 21%, sendo certo que da conta corrente da ré, relativamente aos montantes referidos, consta o quantitativo de € 5.919.

Em 19 de Julho de 2007, a ré reclamou, junto da autora, a solução do problema da aludida máquina, o que reiterou em 8, 16 de Agosto, 11 de Setembro e 19 de Novembro de 2007, sem embargo de não ter sido dado como provado que a máquina foi fornecida inoperacional.

Porém, o dar-se como não provado um facto negativo, isto é, “que a máquina foi fornecida inoperacional”, trata-se de uma resposta negativa que apenas significa que se não provou a respectiva factualidade, sem que se possa afirmar que está demonstrado o seu contrário, ou seja, “que a máquina foi fornecida operacional”, tudo se passando como se esse facto não tivesse sido articulado pela parte que tinha o respectivo ónus de afirmação, no caso concreto, a ré, o que equivale à sua não formulação[5].

Quer isto dizer, em suma, que não ficou provado se a máquina foi fornecida inoperacional ou operacional, mas, tão-só, que, em 19 de Julho de 2007, cerca de dez meses após a sua entrega à ré, ambas as partes acordaram em solucionar o problema da mesma que, então, não trabalhava.

E era à ré a quem competia demonstrar os alegados defeitos da máquina giratória vendida pela autora, nos termos do preceituado pelos artigos 342º, nº 2, do CC, e 516º, do CPC, como já se referiu.

Tendo a autora efectuado a prova dos elementos gerais e dos elementos específicos do contrato de compra e venda que alegou ter celebrado com a ré, tendo demonstrado o facto constitutivo do seu invocado direito, impor-se-ia a esta provar, como, aliás, se propôs fazer, que o direito da autora foi destruído ou enfraquecido por um facto impeditivo, imputável à mesma, com a virtualidade de liberar o cumprimento da obrigação a que estava vinculada[6].

Na verdade, a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito alegado compete aquele contra quem a invocação é feita, nos termos do estipulado pelo artigo 342º, nº 2, do CC, ou seja, à ré, a quem pertence demonstrar que cumpriu ou não cumpriu, legitimamente.

E o ónus da prova traduz-se, para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não conseguiu realizar essa prova[7].

Um dos desenvolvimentos do princípio do ónus da prova, na hipótese de o facto se tornar duvidoso, consiste na impossibilidade de o Tribunal se abster de decidir a causa, deixando a questão em aberto, pois que à incerteza ou ao “non liquet” do Juiz, no domínio dos factos relevantes, segundo as normas aplicáveis, depois de consultadas as provas dos autos, por carência ou deficiência delas, deverá sempre corresponder um “liquet” jurídico, porquanto aquele tem de definir a relação substancial versada, tem de dirimir, de uma vez para sempre, a questão de fundo[8], sob pena de se dever reputar como antijurídico o “non liquet” fundado na falta ou insuficiência de provas[9].

Porém, quando o processo não fornece ao Tribunal provas ou provas suficientes para formar um juízo seguro sobre os factos relevantes para a decisão da causa, na hipótese de o facto ficar ilíquido, coloca-se a questão de saber sobre qual das partes deve recair o ónus da prova, isto é, a decisão desfavorável do litígio, ou seja, as consequências da falta ou insuficiência de provas.

O problema do ónus da prova consiste, precisamente, em determinar qual das partes, caso os autos não contenham prova bastante do facto, deva sofrer as desvantagens daí emergentes, ou seja, qual delas haja de suportar o correspondente risco processual, em cada caso concreto, sendo este risco uma ideia correlativa à de ónus, a consequência ou reflexo de um ónus[10].

E o princípio do ónus da prova, de acordo com o qual compete às partes a produção dos meios de prova necessários à decisão, importa que sobre elas recaia todo o risco da condução do processo, em matéria probatória, isto é, as consequências desvantajosas da não produção dos meios de prova necessários à fundamentação das suas afirmações.

Ora, não tendo a ré efectuado a prova do cumprimento defeituoso da prestação, por parte da autora, não há lugar para a procedência da excepção peremptória modificativa do não cumprimento do contrato, a que alude o artigo 428º, nº 1, ou da excepção peremptória extintiva da compensação, a que se reporta o artigo 847º, ambos do CC.

Aliás, e, desde logo, no âmbito da responsabilidade contratual em que se situa a cauda de pedir da acção, presume-se a culpa do devedor pela falta de cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso da obrigação a seu cargo, a menos que demonstre que tal não procede de culpa sua, nos termos do preceituado pelo artigo 799º, nº 1, do CC, o que não aconteceu, conforme, sobejamente, já se salientou.

                        IV. DA CONDENAÇÃO EM JUROS

Sustenta ainda a ré que a sentença condenou em juros, sem ter fixado a data da mora.
A sentença recorrida, considerando que, independentemente de interpelação para cumprimento, por parte do credor, o devedor constituiu-se em mora, quando a obrigação tenha prazo certo e este ocorra, condenou a ré no pagamento, a título de juros de mora, do quantitativo de €420,91.
Dispõe o artigo 805º, nº 1, do CC, que “o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir”, acrescentando o respectivo nº 2 e a sua alínea a) que “há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação, se a obrigação tiver prazo certo”.
Ora, não se alcança da prova produzida nos autos que a obrigação da ré, relativamente às duas facturas que estão subjacentes ao saldo credor exibido pela conta corrente existente entre as partes, no montante de €5.919, tenha qualquer prazo certo de vencimento que, independentemente da interpelação judicial resultante da propositura da providência de injunção, permita à autora, antecipadamente, reclamar daquela qualquer quantitativo, a título de juros de mora.
Colhem, assim, apenas, em parte, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações da ré.

                                                               *

CONCLUSÕES:

I - A alteração da decisão sobre a matéria de facto, com base na existência de elementos fornecidos pelo processo que imponham decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, contende com a presença de elementos probatórios cujo valor não possa ser contrariado por qualquer das outras provas produzidas no processo, em conformidade com o que resulta da estrita aplicação dos critérios da prova legal.
II – A omissão de pronúncia, pelo Juiz, sobre questões que devesse apreciar ou o conhecimento pelo mesmo de questões de que não podia tomar conhecimento, enquanto causa de nulidade da sentença, ocorre quando o vício incide apenas na parte dispositiva da sentença e não na sua fundamentação.

III - Não tendo a ré efectuado a prova do cumprimento defeituoso da prestação, por parte da autora, não há lugar para a procedência das excepções do não cumprimento do contrato ou da compensação.

                                                               *

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar, parcialmente, procedente a apelação e, em consequência, condenam a ré a pagar à autora a quantia de €5.919 (cinco mil novecentos e dezanove euros), consoante resulta do saldo credor exibido pela conta corrente existente entre a autora e a ré, confirmando, quanto ao demais, a douta decisão recorrida.

                                                      *

Custas, a cargo da ré e da autora, na proporção de 4/5 e de 1/5, respectivamente.

                                                      *

Notifique.


[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 373; Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 3ª edição, revista e actualizada, 2001, 266.
[2] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, 1981,472, citando Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 209.
[3] STJ, de 1-6-73, BMJ nº 228º, 136.
[4] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 372 e 373.
[5] STJ, de 18-6-1996, BMJ nº 458, 323; e de 15-12-1977, BMJ nº 272, 196.
[6] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 1981, 266 e 269, 291 e 292; Antunes Varela, RLJ, Ano 116º, 342.
[7] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 196.
[8] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 197 e 198; Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, IV, 1968, 114.
[9] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 1981, 270.
[10] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 1981, 272.