Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | HENRIQUE ANTUNES | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DE FACTO DEPOIMENTO DE PARTE PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE NULIDADE DO CONTRATO REPRESENTAÇÃO EFICÁCIA DO NEGÓCIO | ||
Data do Acordão: | 07/11/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE – 1º JUÍZO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 655º; 668º, Nº 1, D), 1ª PARTE 669º, Nº 1, C); 685º-B, NºS 1, A) E B), 2 E 4 DO CPC; 262º; 358º, Nº 4; 361º; 892º; 894º E 899º DO CÓDIGO CIVIL. | ||
Sumário: | I – O não cumprimento pelo recorrente que impugne a decisão da matéria de facto do ónus de indicar as passagens do registo da prova em que se funda ou de proceder à sua transcrição importa a rejeição, na parte afectada, do recurso. II - Sempre que a arguição da nulidade da sentença seja apenas mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação e ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida, aquela nulidade deve ter-se por irrelevante. III - A exigência de fundamentação da decisão de facto é compatível com a possibilidade de fundamentação conjunta de mais que um facto, sempre que, por exemplo, os factos se encontrem ligados entre si e tenham sido objecto, no seu núcleo essencial, dos mesmos meios de prova. IV - Nos casos em que as declarações da parte não puderem valer como confissão, mas o depoente produziu declarações pro se e contra se, nada obsta a que o tribunal proceda à sua valoração, à luz do princípio da livre – mas prudente - apreciação das provas. V - A presunção decorrente do registo predial é meramente iuris tantum e a falta do registo tem como única consequência a restrição ao exercício do poder ou da faculdade de disposição do direito e vulnerabilidade das posições não registadas a possíveis aquisições tabulares. | ||
Decisão Texto Integral: | Proc. nº 781/09 Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 1. Relatório. R… e cônjuge, A… propuseram, no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, contra G…, M…, N…, F…, D… e cônjuge, S…, e P… e cônjuge, G…, acção declarativa constitutivo-condenatória, com processo comum, sumário pelo valor, pedindo a condenação solidária dos últimos a: a)- Ver declarada a nulidade ou anulabilidade da escritura e inerente cancelamento da inscrição matricial e da descrição registal. b)- Restituir aos AA. a quantia de 24.000,00€ a título de preço de aquisição. c)- Paguem aos AA. a quantia de 3.180,22€ a título de despesas com o projecto, reembolso dos impostos, despesas com escritura, imposto de selo, registo, plantas, certidões e IMI de 2007 e de 2008. d)- Paguem a quantia de 2.800,00€ a título de danos não patrimoniais. e)- Juros desde a citação até efectivo e integral pagamento. f)- Reembolsar os AA pelos eventuais impostos a liquidar, designadamente IMI e IMT. a) Declarou a nulidade da escritura de compra e venda realizada no dia 27 de Dezembro de 2007, no Cartório Notarial de …, entre o 1º Réu (na qualidade de procurador dos 2ºs Réus) e os Autores, do prédio urbano, sito no lugar de …composto de lote de terreno, para construção urbana, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …com o valor patrimonial para efeitos de IMT de € 5.456,53, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …; b) Determinou o cancelamento no registo predial da inscrição G-três, correspondente à Ap. 10/20080114 – a favor de R…casada com A…, por compra; c) Condenou o 1º Réu G… a pagar aos Autores a quantia de € 24.000,00 (vinte e quatro mil euros), correspondente à quantia entregue pelos segundos ao primeiro relativa ao preço de aquisição do prédio a que se reporta a escritura aludida em a), acrescida de juros de mora contados desde a citação do sobredito Réu até integral pagamento; d) Condenou o 1º Réu G… a pagar aos Autores, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 2.860,70 (dois mil oitocentos e sessenta euros e setenta cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a citação do sobredito Réu até integral pagamento; e) Condenou o 1º Réu G… a pagar aos Autores, a título de danos não patrimoniais, a quantia de €2.000,00 (dois mil euros), acrescida de juros de mora contados desde o trânsito em julgado da presente decisão até integral pagamento. ... …
Não foi oferecida qualquer resposta. ... Como é comum, o recorrente G… imputa à sentença o vício grave da nulidade substancial. De todas as causas possíveis deste desvalor, o recorrente aponta duas: a contradição intrínseca; a omissão de pronúncia. A decisão é nula quando os seus fundamentos estiverem em oposição com a parte decisória, isto é, quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem, logicamente, a uma conclusão oposta ou, pelo menos, diferente daquela que consta da decisão (artº 669 nº 1 c) do CPC)[1]. Esta nulidade substancial está para a decisão do tribunal como a contradição entre o pedido e causa de pedir está para a ineptidão da petição inicial. O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas, claro, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras[2]. O tribunal deve, por isso, examinar toda a matéria de facto alegada e todos os pedidos formulados pelas partes, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tenha tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta dada a outras questões. Por isso é nula, a decisão que deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 1ª parte). Também a falta de apreciação de matéria de conhecimento oficioso constitui uma omissão de pronúncia. Se, por exemplo, o tribunal não considera a nulidade – substantiva - de um contrato, de que lhe seja lícito conhecer oficiosamente ou – de harmonia com conteúdo do Assento nº 4/95, de 28 de Março, do Supremo[3] – não vincula as respectivas partes ao dever de restituição, o não conhecimento daquela nulidade ou a não imposição deste dever de restituição – por se tratar de questões de apreciação oficiosa – origina uma omissão de pronúncia, e, por isso, gera a nulidade da decisão. Face a este enunciado é bem de ver que a sentença impugnada não se encontra ferida com o valor negativo da nulidade que o recorrente lhe assaca. Não é patente a razão pela qual este recorrente acha que os fundamentos da sentença estão em colisão com a decisão que nela se contém. Tanto quanto é possível depreender da sua alegação, a contradição radicaria na circunstância de a sentença ter declarado a nulidade do contrato de compra e venda em que os autores intervieram na qualidade de compradores, com fundamento no carácter alheio da coisa vendida, sem se mostrar provado que o prédio não pertencesse aos co-demandados do recorrente e, muito menos, que pertencesse ao Município de …. Mas sendo esse o caso, então não estamos decerto perante a nulidade da sentença por contradição entre a motivação e a decisão – mas face a erro de julgamento - e a erro de julgamento de direito, na modalidade de erro na qualificação, visto que, não sendo exacto que a coisa vendida fosse alheia, segue-se que a sentença escolheu a norma errada para enquadrar o caso concreto. A sentença impugnada, com fundamento no carácter alheio do prédio objecto mediato do contrato de compra e venda, concluiu pela nulidade deste contrato e adstringiu aquele que, no seu ver, detém a qualidade de vendedor – o recorrente G… - aos deveres de restituição e de indemnização. Não há, assim, qualquer colisão entre a decisão e os fundamentos em que se apoia, dado que os fundamentos invocados pelo decisor da 1ª instância conduzem, logicamente, à declaração de nulidade nela expressa – e aos seus corolários – e não a decisão contrária ou diversa. Não se verifica, portanto, na construção da sentença qualquer vício lógico que comprometa, irremediavelmente, a sua coerência interna. Decerto, que a sentença pode ter-se equivocado quanto à verificação da causa de nulidade daquele contrato de troca ou relativamente ao sujeito a quem deve ser reconhecida a qualidade de vendedor. Admitindo que isso se verificou, o equívoco resolve-se num error in iudicando e não num error in procedendo como é aquele que está, caracteristicamente, na base da nulidade da sentença por contradição intrínseca. Do mesmo modo, também não é lícito dizer-se que a sentença impugnada deixou por resolver alguma questão que as partes submeteram à sua apreciação ou de que devesse conhecer oficiosamente. Um dos problemas que foi colocado à atenção sentença foi o da nulidade do contrato de compra e venda e da vinculação do vendedor ao dever de restituir ao comprador o preço passado e de indemnizar o dano suportado pelo último. E foi essa questão que – bem ou mal – a sentença apreciou e resolveu. É exacto que, de harmonia com a matéria de facto apurada no tribunal de que provém o recurso que o recorrente G… entregou aos co-réus a quantia de €10.000,00. Todavia, o fundamento da tradição de tal quantia não radica no contrato de compra e venda julgado nulo – mas num acto jurídico – rectior, contrato – bem diverso: o contrato promessa, bivinculante, de compra e venda celebrado entre o recorrente e co-réus, na qual aquele e estes ocupam as posições jurídicas de promitente-comprador e de promitente-vendedor, respectivamente, e que constitui, relativamente aos autores, res inter alios acta (artºs 406 nº 2 e 410 nº 1 do Código Civil). Ora, o contrato que a sentença apelada declarou nulo foi o contrato de compra e venda e as prestações que mandou restituir são as que foram realizadas no cumprimento desse contrato de troca – e não do contrato promessa. Dir-se-á: mas como através desse contrato promessa se prometeu vender uma coisa alheia relativamente ao vendedor, esse contrato é, também ele, nulo. Mas não. Do contrato promessa apenas emergem prestações de facto jurídico positivo – a obrigação de emitir, no futuro, as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido. Aquele contrato preliminar apenas produz, pois, efeitos obrigacionais, deixando intacta a titularidade da coisa prometida vender. Ergo, a promessa de venda de bem alheio é inteiramente válida, ficando sujeita ao regime da venda de bens futuros, o que excluiu a invalidade decorrente do carácter alheio daquela coisa e da ilegitimidade do vendedor (artºs 892 e 893 do Código Civil)[4]. De modo que, não havendo qualquer razão para concluir pela invalidade do contrato no âmbito do qual foi realizada, pelo recorrente aos co-demandados, a prestação pecuniária – e correspondentemente para vincular o accipiens a qualquer dever de restituição – pode dar-se por certo que a sentença apelada não estava adstrita ao dever de apreciar tal questão e, portanto, que, ao não se pronunciar sobre ela, não ficou ferida de nulidade, por omissão de pronúncia. Não há, assim, fundamento para que se tenha a sentença impugnada por nula. De resto, a arguição da nulidade da sentença não toma em devida e boa conta o sistema a que, no tribunal ad quem, obedece o seu julgamento. O julgamento, no tribunal hierarquicamente superior, da nulidade obedece a um regime diferenciado conforme se trate de recurso de apelação ou de recurso de revista. Na apelação, a regra é da irrelevância da nulidade, uma vez ainda que julgue procedente a arguição e declare nula a sentença, a Relação deve conhecer do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 do CPC). No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 e 731 nº 1 do CPC). Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso. Exemplo desta última eventualidade é disponibilizado pelo recurso subsidiário. O vencedor pode, na sua alegação, invocar, a título subsidiário, a nulidade da decisão impugnada e requerer a apreciação desse vício no caso de o recurso do vencido ser julgado procedente (artº 684-A nº 2 do CPC). Neste caso, o tribunal ad quem só conhecerá da nulidade caso não deva confirmar a decisão, regime de que decorre a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso, sem o julgamento daquela arguição. Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum – como sucede na espécie sujeita - é que a arguição deste vício seja, a míngua de outro melhor, apenas mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação. Sempre que isso ocorra, admite-se que o tribunal ad quem possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (artº 137 do CPC). A arguição da nulidade da decisão – embora muitas vezes assente numa lamentável confusão entre aquele vício e o erro de julgamento – é uma ocorrência ordinária. A interiorização pelo recorrente da irrelevância, no tribunal ad quem, que julgue segundo o modelo de substituição, da nulidade da decisão impugnada, obstaria, decerto, à sistemática arguição do vício correspondente. Neste plano, é, pois, clara a falta de bondade do recurso do réu G… Quando a impugnação tem por objecto a decisão da matéria de facto, o recorrente deve especificar, sob a pena grave de rejeição do recurso, quais os pontos concretos que considera incorrectamente julgados e quais os meios de prova, constantes do processo ou do registo da gravação nele realizada, que impõem uma decisão diversa sobre esses pontos (artº 685-B nº 1 a) b) do CPC). Neste último caso, quando os meios de prova invocados como fundamento no erro na apreciação da prova tenham sido gravados, e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à indicação das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de, por iniciativa própria, proceder à sua transcrição; não sendo possível, por força dos meios técnicos utilizados para a gravação, a identificação precisa e separada dos depoimentos, o recorrente deve proceder à transcrição dos depoimentos em que se funda (685-B nºs 2 e 4 do CPC). Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, deve ser cumprido com particular escrúpulo ou rigor; caso contrário, a impugnação da matéria de facto banaliza-se numa manifestação, inane ou inconsequente, de inconformismo[5] De resto, o ónus de apontar claramente os pontos determinados da matéria de facto que o recorrente reputa de mal julgados, de indicar, com exactidão as passagens da gravação em que se funda ou de proceder à sua transcrição, e de fundamentar a imputação do error in judicando da decisão correspondente, constitui simples decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última extremidade, a seriedade do próprio recurso. Na espécie sujeira, é indubitável, de um aspecto, que foi utilizado no registo das provas um sistema que permite a identificação precisa e separada dos depoimentos, e, de outro, que o recorrente G… especifica na sua alegação, e nas conclusões que dela extraiu, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados. Da mesma maneira, este impugnante individualiza, na alegação, todos os concretos meios de prova que, no seu ver, foram mal valorados – mas não indica as passagens da gravação em que se funda, nem procedeu à respectiva transcrição. O primeiro fundamento de impugnação da decisão da matéria de facto alegada pelo recorrente G… consiste, precisamente, na omissão, pelo decisor da matéria de facto, da análise crítica das provas e da especificação dos fundamentos que foram decisivos para a sua convicção. Uma das funções essenciais de toda e qualquer decisão judicial, maxime da decisão da matéria de facto, é convencer os interessados do bom fundamento dessa mesma decisão. A exigência de motivação da decisão destina-se a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz deve passar de convencido a convincente[6]. A motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível, de garantia do direito ao recurso. Por isso que as decisões sobre qualquer pedido controvertido ou sobre qualquer dúvida suscitada no processo serão sempre fundamentadas (artºs 208 nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 158 nº 1 do CPC). Correspondentemente, a lei adjectiva portuguesa actual é terminante na exigência da especificação, na decisão na matéria de facto, dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador sobre a prova, ou a ausência dela, dos factos (artº 653 nº 2 do CPC). Como, em regra, as provas produzidas na audiência final estão sujeitas à livre apreciação, o decisor da matéria de facto deve indicar os fundamentos suficientes para, que através das regras de ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado (artºs 655 nº 1 e 652 nº 3, b) e d) do CPC). Note-se que com a exigência de motivação não se visa a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz; a finalidade é, limitadamente, a de persuadir os destinatários da correcção da sua decisão. A apreciação de cada meio de prova pressupõe o conhecimento do seu conteúdo, a determinação da sua relevância e a sua valoração. De harmonia com a técnica que se tem por preferível, a fundamentação da apreciação da prova dever ser realizada separadamente para cada facto. Todavia, a exigência de motivação não exclui a possibilidade de fundamentação conjunta de mais que um facto, sempre que, por exemplo, os factos se encontrem ligados entre si e tenham sido objecto, no seu núcleo essencial, dos mesmos meios de prova[7]. Em tal caso, uma motivação conjunta além de admissível deve ter-se mesmo por aconselhável. O que decerto não é de boa técnica nem satisfaz a exigência legal, é uma motivação em bloco, reportada a todos os factos objecto da prova, mediante mera indicação das provas relevantes para a formação da convicção do juiz. Como, evidentemente, não é possível submeter a apreciação da prova a critérios objectivos a lei apela – e contenta-se – com a convicção íntima ou subjectiva, mas prudente, do tribunal (artº 655 nº 1 do CPC). A convicção exigida para a demonstração da realidade ou da inveracidade de um facto é uma convicção que, para além de dever respeitar as leis da ciência e do raciocínio, pode assentar numa regra máxima da experiência. A convicção sobre a prova do facto fundamenta-se em regras de experiência – que tanto podem corresponder ao senso comum como a um conhecimento técnico ou científico especializado - baseadas na normalidade das coisas – o id quod plerumque accidit - e aptas a servirem de argumento justificativo dessa convicção. A convicção do tribunal extraída dessas regras da experiência – i.e. do acervo de experiência da vida quotidiana, que atribui ao decisor de facto o indispensável background de vivência que lhe permite realizar o julgamento da questão de facto de acordo com parâmetros que melhor correspondam à normalidade da vida em sociedade - é uma convicção argumentativa, isto é, uma convicção demonstrável através de um argumento[8]. O que a maioria dos membros da sociedade, em face das provas produzidas, não espera do decisor de facto ou a convicção que não seja demonstrável através de um argumento, não deve ser escolhida como resultado do exercício da prova, ao menos nos casos em que sejam possíveis outros resultados probatórios. A violação, pelo tribunal da 1ª instância, deste dever de motivação, autoriza o uso de uma forma mitigada de poderes de cassação: a Relação pode ordenar, a requerimento da parte, o reenvio do processo para aquele tribunal, para fundamente a sua decisão mesmo que, para isso, tenha de repetir a produção da prova (artº 712 nº 5 do CPC). No caso do recurso, é certo que a fundamentação da apreciação da prova não foi feita separadamente para cada facto. No entanto, a motivação adiantada pelo tribunal da audiência para justificar o seu julgamento individualiza, de forma suficiente, as provas que serviram para formar a sua convicção acerca da realidade dos factos que teve por provados e não provados e mesmo os meios de prova que teve por inconclusivos, tornando possível um controlo exógeno da razoabilidade daquela convicção. De resto, a partir da indicação do conteúdo das provas – v.g. da prova testemunhal - é possível, sem dificuldade, identificar o facto que, através da sua valoração, se julgou provado ou não provado. Não há, assim, razão para que se conclua pela inadequação da fundamentação da prova realizada pelo decisor de facto da 1ª instância e, portanto, para lhe devolver o processo para que supra a deficiência. Como decorre da motivação adiantada pelo tribunal da audiência para justificar o seu julgamento, uma das provas que concorreu para formar a sua convicção foi o depoimento pessoal do recorrente, objecto, em parte, de redução a escrito. E como decorre da motivação mesma do decisor da 1ª instância, esse depoimento de parte foi valorado para além de uma perspectiva confessória. Diz o recorrente: como o depoimento de parte apenas tem por escopo obter a confissão e o seu depoimento, como resulta da assentada, constitui uma negação dos factos perguntados, ao tribunal estava vedado fazer outras considerações sobre o teor das suas declarações. Nada de menos exacto. O depoimento de parte tem realmente por finalidade provocar uma eventual confissão do depoente, i.e., o reconhecimento por este de um facto que o desfavorece e que favorece a parte contrária – contra se pronuntiatio (artº 352 do Código Civil e epígrafe que encabeça o artº 552 do CPC). Se, porém, as suas declarações não puderem valer como confissão, mas o depoente produzir declarações pro se e contra se, nada obsta a que o tribunal proceda à sua valoração, à luz do princípio da livre – mas prudente - apreciação das provas. Trata-se de um procedimento probatório que uma jurisprudência e uma doutrina dominantes têm por perfeitamente admissível (artºs 358 nº 4 e 361 do Código Civil e 655 do CPC)[9]. Portanto, ao valorar o depoimento pessoal do recorrente, de harmonia com o princípio da livre convicção, no segmento em que não seja admissível atribuir-lhe o valor de confissão, o decisor da 1ª instância não ofendeu qualquer regra de direito probatório. E como, por virtude do não cumprimento, pelo recorrente G…, do apontado ónus da impugnação da decisão da matéria de facto, está excluída a aferição da correcção do julgamento dessa matéria, os factos capitais relativos ao preço – real - convencionado da venda do lote de terreno e à sua cedência, pelo antecessor dos co-réus, ao Município de …, que aquele apelante impugnava no recurso, devem ter-se por exactos. Um sistema tabular organizado sob o signo do princípio da instância pode construir-se como um sistema de registo obrigatório ou de registo simplesmente facultativo: o impulso que promove o funcionamento do mecanismo do registo, sendo embora privado, pode ser deixado ao critério dos interessados ou ser tornado obrigatório por lei. O Código do Registo Predial de 1967 consagrava o princípio da obrigatoriedade do registo (artº 14). O sistema era, nos seus traços mais largos, o seguinte: considerava obrigatório submeter a registo todos os factos a ele sujeitos e requerer os respectivos cancelamentos, sempre que respeitassem a prédios situados em concelhos onde estivesse em vigor o cadastro geométrico da propriedade rústica: essa obrigatoriedade só se tornava efectiva, em cada concelho, a partir da data fixada por despacho do Ministro da Justiça, publicado no jornal oficial. Deste sistema deriva esta consequência: havia concelhos nos quais o registo era obrigatório, outros nos quais o registo era facultativo, dependendo apenas da vontade dos interessados. Nos casos em que o registo era obrigatório, a não realização do registo, fazia incorrer os responsáveis em várias sanções: deviam pagar uma multa e requerer o registo; se não o fizessem eram instaurado procedimento criminal, fixando o juiz um prazo para que o registo fosse efectuado; se o registo não se mostrasse efectivado dentro desse prazo, o responsável ficava incurso nas penas correspondentes ao crime de desobediência qualificada (artºs 15 e 16 do CRP de 1967). Em qualquer caso, a validade e a subsistência dos actos jurídicos não registados ficavam assegurados. O sistema da obrigatoriedade do registo, tal como o Código do Registo Predial de 1967 o configurava, era notoriamente desadequado. Por estar dependente – numa conexão desnecessária - do cadastro geométrico da propriedade rústica, a obrigatoriedade do registo não vigorava em mais de metade do território nacional, facto de que decorria, nos espaços de registo não obrigatório, o desfasamento total entre o registo e as situações jurídicas prediais, o que, evidentemente, punha em causa o prestigio da instituição tabular e, sobretudo, a sua utilidade; nas zonas de registo obrigatório era também frequente o desacatamento do dever de registar: as sanções não eram automáticas e a sua actuação partilhava dos problemas que têm dificultado o desenvolvimento da função jurisdicional. Para estimular a realização do registo, o Código de Registo Predial de 1983, encontrou uma outra fórmula que, com alterações, transitou para o Código de Registo Predial de 1984: a proibição de titulação de factos de que resulte a transmissão de direitos ou a constituição de encargos sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire ou contra a qual se constitui o encargo (artº 9 nº 1). Solução que, devidamente reconformada, é depois estendida ao registo das acções (artº 3 nº 2). Eliminou-se, assim, uma referência expressa à obrigatoriedade do registo e, em sua substituição, adoptou-se um esquema indirecto, através da introdução do ónus ou do encargo do registo. Na prática, sem o registo, os bens ficam numa situação de inalienabilidade, forçando todos os titulares a ter o maior interesse na sua realização. Este esquema – que corporiza um verdadeiro princípio de legitimação registral – levanta o problema delicado da validade do negócio titulado em violação dele, sustentando alguma doutrina a invalidade, por vício de forma[10], desse negócio e outra – que se tem por preferível – a sua validade, dado que no caso se trata de uma legitimação formal, não estando em causa a legitimação substantiva, restringindo, assim, o valor do princípio da legitimação ao domínio específico do registo[11]. Neste contexto, perguntava-se se, realmente, ainda podia falar-se de um princípio da obrigatoriedade do registo e de um consequente dever de registar. A resposta exacta parecia ser a da caracterização do sistema como de obrigatoriedade indirecta, concretizada, segundo alguma doutrina, através de um ónus em sentido técnico[12], e segundo outra, através figura do encargo[13]. Não haveria, portanto, um dever, em sentido estrito e próprio, de registar: a adstrição serve um conjunto de interesses que transcende largamente os do onerado – com o ónus ou com o encargo – mas o registo não podia ser exigido por terceiros ou pelo Estado. Na sua falta, porém, os interessados ficavam sujeitos a desvantagens: a restrição ao exercício do poder ou da faculdade de disposição do seu direito. A pessoa que adquira um direito, de modo legítimo, pode exercê-lo – salvo o caso raro de registo constitutivo – independentemente de o inscrever no registo. A declaração da lei de que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo, não depõe em sentido contrário (artº 5 nº 1 do Código de Registo Predial). Uma interpretação doutrinária e jurisprudencial constante – embora com flutuações linguísticas – entende naquele preceito uma norma que torna inoponível o direito não registado perante a pessoa que tenha registo e enquanto este se mantiver. O que é dizer que aquele preceito se limita a proclamar a vulnerabilidade das posições não registadas às possíveis aquisições tabulares. O verdadeiro titular de uma posição jurídica, quando a registe, fica protegido contra aquisições tabulares de terceiros. Fala-se, então, de um efeito consolidativo do registo. Sendo esta a única consequência da omissão do registo – e nunca, por exemplo, a caducidade da licença de loteamento – é bem de ver que a falta do registo em nada tolheu a cedência ao Município de… e a integração no seu património, do lote objecto mediato do contrato de compra e venda (artº 54 do DL nº 400/84, de 31 de Dezembro). O recurso do réu G… não tem, pois, bom fundamento – excepto quanto a um ponto: o da sua responsabilidade pelo dever de indemnizar. Mas esta proposição, dada a imbricação das posições jurídicas deste réu e dos demais demandados, decorrente do negócio representativo que concluíram entre si, será objecto de melhor detalhe na apreciação do recurso dos autores.
3.3. Recurso dos autores. 3.3.1. Nulidade do contrato de compra e venda. A declaração de nulidade tem efeito retroactivo (artº 289 nº 1, 1ª parte, do Código Civil). Declarada a nulidade, estabelece-se entre as partes do negócio declarado nulo uma relação de liquidação, que vincula à restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não se mostrar possível, o valor correspondente (artº 289 nº 1, 2ª parte, do Código Civil). Na nossa lei civil fundamental a representação voluntária é dominada pela procuração. Esta tem, na linguagem jurídica corrente, um duplo sentido: traduz o acto pelo qual se confiram, a alguém, poderes representação – e, em simultâneo, exprime o documento em que tal negócio tenha sido exarado (artº 262 do Código Civil). Enquanto acto, a procuração é um negócio jurídico unilateral: reclama apenas um única declaração de vontade, não sendo necessária qualquer aceitação para que produza os seus efeitos: caso não queria ser procurador, o beneficiário terá de renunciar á procuração (artº 265 nº 1 do Código Civil). A procuração, enquanto negócio jurídico, está, naturalmente, submetida aos respectivos preceitos gerais. O Código Civil actual cindiu a procuração do mandato: a primeira promove a concessão de poderes de representação; o segundo dá lugar a uma prestação de serviço (artº 1157 daquele diploma legal). Contudo, a lei pressupõe a existência sob a procuração de uma relação entre o representante e o representado, de um negócio-base, em cujos termos os poderes e deveres dela emergente devem ser exercidos (artº 265 nº 1 do Código Civil). Por isso se diz que a procuração é um negócio jurídico incompleto, com o que se quer significar que, em princípio, se encontra integrada num negócio global, não operando de modo independente, antes funcionando em conjunto com uma relação jurídica que lhe está subjacente[16]. Normalmente, esse negócio-base é um contrato de mandato[17]. A procuração e o mandato ficam, assim, numa específica situação de união. De resto, é a própria lei a mandar aplicar ao mandato regras próprias da procuração (artºs 1179 e 1179 do Código Civil). Esta circunstância explica que, muitas vezes, a lei, tendo em vista a procuração, não se refira directamente a esta – mas ao negócio que lhe subjaz: o mandato. Assim, por exemplo, considera-se mandato forense, o mandato judicial para ser exercido em qualquer tribunal, incluindo os tribunais ou comissões arbitrais e os julgados de paz (artº 62 nº 1 a) do EOA, aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro e 2 da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto). O mandato civil corresponde a uma das mais antigas formas de cooperação e resolve-se no contrato pelo qual uma das partes se obriga, gratuitamente ou mediante retribuição, a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra, que, por qualquer motivo, não quer ou não pode praticá-los pessoalmente (artº 1170 nº 1 do Código Civil). Na sua configuração mais típica, o assunto ou negócio que é objecto da gestão pertence ao mandante, sendo este o titular da necessidade a cuja satisfação se dirige a actividade do mandatário. Nos seus traços descritivos gerais, o mandato é um contrato consensual, sinalagmático imperfeito e supletivamente gratuito: a lei não sujeita o mandato a nenhuma forma solene; no caso de ser gratuito, as prestações a que o mandante se encontre vinculado não equivalem às adstrições do mandatário; o mandato presume-se oneroso quando é exercido no âmbito da profissão do mandatário[18] (artºs 1157 e 1158 nº 1 do Código Civil). O mandato implica, para o mandatário, uma prestação de facere: a prática de um ou mais actos jurídicos - por conta da outra (artº 1157 do Código Civil). É elemento essencial do contrato de mandato que o mandatário esteja obrigado, por força do contrato, a praticar um ou mais actos jurídicos (artº 1157 do Código Civil). A natureza do seu objecto - prática de actos jurídicos é, de resto, o que o mandato tem de específico em relação aos demais contratos de prestação de serviço[19]. Esse acto jurídico é um acto alheio, o que faz com que o mandato surja nitidamente como um contrato de cooperação jurídica entre sujeitos e, além disso, um contrato gestório (artº 1161 b) do Código Civil)[20]. É igualmente elemento essencial do mandato que o mandatário actue por conta do mandante. Um negócio jurídico é praticado por conta de outrem, sempre que os seus efeitos ou parte deles se devam projectar ou repercutir na esfera jurídica de pessoa que nele não interveio. Por conta de outra, significa que os actos a praticar pelo mandatário se destinam á esfera do mandante. Note-se, porém, que por conta de não significa no interesse de: o mandato pode ser exercido contra os interesses do mandante, mas nem por isso deixará de haver mandato[21]. Estruturante, neste domínio, é, por outro lado, a distinção entre mandato sem representação e mandato com representação. Pelo mandato simples, os efeitos do acto jurídico praticado pelo mandatário repercutem-se na sua própria esfera jurídica (artº 1180 do Código Civil); quando o mandato seja representativo, repercutem-se na esfera jurídica do mandante nos mesmos termos em que os actos praticados pelo representante se repercutem directamente na esfera do representado. A representação não faz, portanto, parte da essência do mandato: é algo que se lhe pode acrescentar, mas que não lhe é estrutural; com poderes de representação, o mandatário actua contemplatio domini, em nome do mandante. O mandato, na sua configuração típica, é sempre no interesse do mandante e este interesse mantém-se ainda que concorra interesse de terceiro[22]. O mandato deve ser cumprido pelo mandatário, no interesse do mandante. Actuar no interesse do mandante não é a mesma coisa que actuar um interesse de outrem: agir no interesse alheio é agir em benefício ou vantagem de outrem, defendendo aquilo que se sabe – ou se pensa ser – o interesse dessa pessoa. Não deve confundir-se a actuação da interposta pessoa no interesse do principal com a contemplatio domini, que constitui uma das condições da representação. A contemplatio domini não significa propriamente actuação do representante no interesse do representado – mas sim que aquele deve revelar que realiza o acto em nome deste. O conhecimento pela outra parte de tal situação – conhecimento que, aliás, pode resultar das circunstâncias – é indispensável para se dar a eficácia directa total do negócio representativo sobre a esfera jurídica do representado. O negócio representativo só produz os seus efeitos na esfera do representado se ocorrerem dois elementos: o poder de representação, concedido pela lei ou pelo representado, e a actuação do representante em nome deste. É evidente que não se torna indispensável empregar a expressão em nome de; pode usar-se de outras fórmulas, ou pode mesmo a contemplatio domini resultar das circunstâncias. A declaração de actuar em nome alheio tem um triplo significado e alcance: o mandatário não quer que o negócio produza efeitos na sua esfera jurídica; esses efeitos ficam à disposição da pessoa em cujo nome o negócio foi praticado; a outra parte não pode impedir que os efeitos se projectem sobre o representado, se este efectivamente declarou ou vier a declarar que deles se apropria. Quando o mandatário não declara, nem por qualquer modo, manifesta a vontade de actuar em nome alheio, nem esta intenção se extrai das circunstâncias, entende-se que actua em nome próprio – ainda que porventura a outra parte saiba que ele pratica o acto por conta de outrem[23]. Como actua em nome próprio, assume a posição de parte e, em princípio, recebe na sua esfera jurídica os efeitos que decorrem do negócio. Convém reter este ponto: no mandato com representação o representante deve agir não só por conta do mandante mas, também, em seu nome – contemplatio domini; o mandato sem representação é o exercido em nome do mandatário e, por isso, sem contemplatio domini (artºs 1178, 1179 e 1180 do Código Civil). Isto significa que o mandatário poderá, porventura ter poderes de representação: se não os exercer declarando, na contratação, que age em nome do mandante, os direitos adquiridos e as obrigações assumidas operam na esfera jurídica do mandatário. Mas continua a haver mandato. E assim o mandatário fica obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato (artº 1181 nº 1 do Código Civil). Para que funcione o mecanismo da representação é conditio sine qua non que o agente tenha sido investido na qualidade de representante, através da concessão de poderes de representação, a qual se processa através da procuração. Mas não basta: é ainda necessário que o agente, titular do poder, actue contemplatio domini, invocando o nome do representado (artº 1178 nº 2 do Código Civil). O mandatário, embora munido de poderes representativos, pode actuar nomine proprio. Quando isso suceda, é na sua esfera que se repercutem os direitos e as vinculações resultantes do acto ou negócio jurídico que concluiu. Todavia, a verdade é que, ainda que se deva admitir na nossa ordem jurídica, a procuração no exclusivo interesse do procurador – conclusão que é mais que controversa[24] – dela não resulta, em caso algum, a transmissão da posição jurídica do dominus. Mesmo nos casos em que age com base numa procuração no seu exclusivo interesse, o procurador actua sempre em nome do dominus e sobre a esfera jurídica deste, não agindo em nome próprio nem no âmbito da sua esfera jurídica[25]. Portanto, se é exacto – como decorre da matéria de facto apurada na instância recorrida - que os autores sabiam que o réu G… se intitulava como dono do lote em causa, não é menos que no momento capital da conclusão do contrato de compra e venda e da outorga da respectiva escritura se tornou patente que o recorrente G… agiu com contemplatio domini, em nome e representação dos co-réus e, portanto, que os verdadeiros donos do bem imóvel vendido não era aquele mas estes e que, por força da procuração, a posição jurídica de vendedor radicava, materialmente, nos últimos e não no primeiro. E o termo da alternativa que se tem por exacto é o segundo: a representação no interesse do representado – ou de terceiro – envolve também um interesse do representado e não provoca qualquer alteração dos poderes de representação nem sequer a sua desfuncionalização. À luz do nosso direito, o representado conserva sempre a disponibilidade para, pessoalmente, dispor dos objectos ou praticar ele mesmo os actos a que se refere a procuração irrevogável. A única diferença entre uma procuração no interesse exclusivo do representado e outra, também, no interesse do procurador – ou de terceiro – resume-se a isto: a circunstância de a primeira ser livremente revogável enquanto a segunda é irrevogável, se se mantiver a relação subjacente. Não há, porém, qualquer modificação de uma alteração de natureza ou configuração do poder de representação, o qual se limita sempre, e só, a proporcionar a produção de efeitos directos na esfera do representado, ao negócio celebrado pelo procurator. Esta conclusão não é, porém, incompatível com a vinculação do réu G… – e só dele - ao dever de restituir, dado que este é imposto por um negócio diverso do negócio representativo, e que lhe acresce, por força do qual ficou autorizado a ficar o resultado económico do contrato de compra e venda que, representativamente, concluiu com os autores. e) A presunção decorrente do registo predial é meramente iuris tantum e a falta do registo tem como única consequência a restrição ao exercício do poder ou da faculdade de disposição do direito e vulnerabilidade das posições não registadas a possíveis aquisições tabulares. Tanto os recorrentes como os recorridos sucumbem, ainda que só parcialmente, nos recursos. Deverão, por esse motivo, suportar, na proporção dessa sucumbência, as respectivas custas (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC). Dada a pouca complexidade do tratamento do objecto processual dos recursos, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B, que integra o RCP (artº 6 nº 2).
4. Decisão. Pelos fundamentos expostos, concede-se parcial provimento aos recursos, revoga-se em parte, a sentença impugnada e, consequentemente: a) Condena-se os réus M…, N…, F…, D… e cônjuge, S…, e P… e cônjuge, G…, a pagar aos autores, R… e cônjuge, A…, as quantias de €2.860,70, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação, e de €2.000,00, acrescida de juros, à mesma taxa, desde a data deste acórdão, até pagamento; b) Absolve-se o réu G… do pedido de pagamento das quantias referidas em a); c) Mantém-se, no mais, a sentença impugnada. 12.07.11
Henrique Antunes
Regina Rosa
Artur Dias
[8] Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na acção declarativa, Lisboa, 1995, pág. 239. |