Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
598/04.4TMCBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: DIVÓRCIO
EFEITOS DA SENTENÇA
Data do Acordão: 04/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1681.º; 1789.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Produzindo-se, em princípio, os efeitos patrimoniais do divórcio, apenas, a partir do trânsito em julgado da sentença, embora retroajam, nas relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da proposição da acção, não se encontra o cabeça-de-casal obrigado a relacionar o valor do produto do resgate de 10511 unidades de certificados de aforro, efectuado em momento anterior ao da propositura da acção de divórcio, e que aplicou ou despendeu, em seu proveito.
2. O outro ex-cônjuge interessado, sentindo-se prejudicado com o destino que foi dado ao produto do resgate dos aludidos certificados de aforro, por parte do cabeça-de-casal, poder reagir, através da propositura da correspondente acção de indemnização, por perdas e danos, desde que se mostrem preenchidos os pressupostos legais enunciados pelo artigo 1681º, nº 1, parte final, do CC.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


            A...., nos autos de inventário para separação de meações, em que é cabeça-de-casal e requerida a interessada B...., ambos residentes no lugar da ……, interpôs recurso de agravo da decisão que declarou como bens comuns do casal a partilhar 10971 unidades de certificados de aforro, no valor de aquisição de 27361,56€, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões:
1ª – O Meritíssimo Juiz a quo andou mal ao determinar o arrolamento dos 10971 certificados de aforro que existiam em nome do ora recorrente,A..... Com efeito,
2ª - Tais certificados foram resgatados entre 10 de Abril de 2004 e 23 de Setembro de 2004, sendo que apenas 460 unidades de tais certificados foram resgatados após a entrada em Juízo da acção de divórcio que dissolveu o vínculo matrimonial entre o ora recorrente e a interessada Dulce.
3ª - Tal acção deu entrada em 12 de Julho de 2004 tendo a sentença sido proferida em 1 5 de Fevereiro de 2006.
4ª - Os efeitos patrimoniais relativos ao divórcio decretado entre o ora recorrente e a interessada B....retroagiram à data da entrada em Tribunal da acção, isto é, em 12 de Julho de 2004. Ora,
5ª - Como se verifica pelo documento junto pelo Instituto de Gestão do Crédito Público todas as unidades dos certificados de aforro foram resgatadas antes dessa data com excepção de 460 unidades que apenas o foram em 23 de Setembro desse ano. Assim,
6ª - Só estas unidades deveriam ser relacionadas e não a totalidade, isto porque o património a partilhar apenas "nasceu" com a dissolução do casamento.
7ª - Porém, tais efeitos retroagem à data da entrada em Juízo da acção de divórcio e não antes.
8ª - Deste modo, ao decidir como decidiu o Meritíssimo Juiz a quo violou as normas constantes dos artigos 1789°, n°1 do Código Civil e bem assim, as constantes dos artigos 1345°, n°1 e 1404°, n°3 ambos do CPC.
9ª - Pelo que deve ser revogado parcialmente o despacho que decidiu as reclamações à relação de bens ordenando apenas o arrolamento de 460 unidades de certificados de aforro.
A interessada requerida não apresentou contra-alegações.
O Exº Juiz sustentou a decisão impugnada, por entender que não foi causado qualquer agravo ao recorrente.

Com interesse relevante para a decisão do mérito do agravo, importa reter a seguinte factualidade:

1 - A acção de divórcio que é pressuposto do presente inventário para separação de meações foi instaurada, em 12 de Julho de 2004, tendo sido proferida sentença, em 8 de Fevereiro de 2006, que transitou em julgado, em 2 de Março seguinte – Documento de folhas 21.

2 - A requerida B.... reclamou a falta de relacionação, pelo cabeça-de-casal, ora agravante, para além daquelas que este relacionou, de mais 10971 unidades de certificados de aforro, no valor de aquisição de 27361,56€ - Documento de folhas 43 e 44.

3 - Do acervo dos bens comuns do extinto casal formado pelo cabeça-de-casal, A...., e pela requerida e interessada, B...., faziam parte 10971 unidades de certificados de aforro, no valor de aquisição de 27361,56€ - Documento de folhas 43 e 44.

4 – À data da propositura da acção de divórcio, em 12 de Julho de 2004, existiam 460 unidades de certificados de aforro – Documento de folhas 22 a 42.

5 - O cabeça-de-casal resgatou as 10511 unidades de certificados de aforro, aludidas no nº 3, no valor de aquisição de 26214,13€, antes de 12 de Julho de 2004, ficando com o respectivo valor - Documento de folhas 43 e 44.

                                                    *

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

A questão a decidir, no presente agravo, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), consiste em saber se o cabeça-de-casal está obrigado a relacionar, no inventário para separação de meações subsequente à sentença que decretou o divórcio, bens resgatados durante o período da constância do matrimónio.

                  DOS EFEITOS PATRIMONIAIS DO DIVÓRCIO

Dispõe o artigo 1789º, nº 1, do Código Civil (CC), que “os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges”.

A retroactividade dos efeitos patrimoniais do divórcio, à data da propositura da acção, enquanto excepção à regra geral de que os efeitos do divórcio se produzem, a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, com base no disposto pelos artigos 1605º, nº 3 e 1826º, nº 2, ambos do CC, decorrente da natureza constitutiva desta, visa defender cada um dos cônjuges contra delapidações e abusos que o outro possa cometer, na pendência da acção[1], destinando-se a evitar que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a propositura da acção, sobre os valores do património comum[2].

Dissolvido o casamento, por divórcio, os bens comuns do casal, que constituem um património autónomo, passam a estar sujeitos, por força da retroacção considerada, desde a propositura da respectiva acção, por se tornarem numa simples universalidade de bens comuns, a dissolver-se por partilha.

Na verdade, a partilha dos bens comuns do casal é um resultado ou efeito da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, um acto a que, consequentemente, só se procede, após a cessação dessas relações patrimoniais, destinando-se, unicamente, a descrever, avaliar e a partilhar os bens em causa, segundo os direitos dos respectivos interessados.

Decorre, igualmente, do exercício da administração dos bens do casal, como uma proposição fundamental, que o cônjuge que administrar bens comuns ou bens próprios do outro não é obrigado a prestar contas da sua administração, ainda que a alienação ou oneração de bens móveis comuns de que tem a administração, por negócio gratuito, sem o consentimento do outro, determine que o respectivo valor seja levado em conta na sua meação, considerando-se, em princípio, que ocorreu, exclusivamente, à sua custa, quando se proceder à partilha dos bens do casal, de acordo com o estipulado pelas disposições concertadas dos artigos 1681º, nº 1, 1678º, nº 2, a) a f), 1682º, nº 4 e 1689º, todos do CC[3].

A alienação de bens móveis comuns pode ser efectuada pelo cônjuge administrador, quer antes da propositura da acção de divórcio, quer depois da propositura da acção de divórcio, ou, então, a título gratuito, por um dos cônjuges, sem o consentimento do outro, quando a administração do bem em causa pertencer a ambos.

Revertendo ao caso em análise, importa considerar que o cabeça-de-casal resgatou, antes de 12 de Julho de 2004, data da instauração da acção de divórcio, 10511 unidades de certificados de aforro, no valor de aquisição de 26214,13€, que embolsou.

Assim sendo, o resgate das aludidas 10511 unidades de certificados de aforro ocorreu, em data anterior à da propositura da acção de divórcio.

Atendendo à matéria factual que ficou consagrada, o cabeça-de-casal despendeu o produto do resgate daqueles certificados de aforro, dissipando-o ou aplicando-o, em momento anterior ao da propositura da acção de divórcio, razão pela qual, consequentemente, o mesmo não pode ser relacionado, porquanto os efeitos patrimoniais do divórcio apenas se produzem, a partir do trânsito em julgado da sentença, embora retroajam, nas relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da proposição da acção, a menos que a interessada B.... tivesse requerido a sua retroacção a uma data anterior, nos termos e para os efeitos do preceituado pelo artigo 1789º, nºs 1 e 2, do CC, o que, de facto, se não demonstrou.

E isto, sem prejuízo desta interessada, sentindo-se prejudicada com o destino que foi dado ao produto do resgate dos aludidos certificados de aforro, por parte do ora cabeça-de-casal, poder reagir contra este, através da propositura da correspondente acção de indemnização, por perdas e danos, desde que se mostrem preenchidos os pressupostos legais enunciados pelo artigo 1681º, nº 1, parte final, do CC[4].

Por tudo o que antecede, não está o cabeça-de-casal obrigado a relacionar a verba correspondente ao produto do resgate das aludidas 10511 unidades de certificados de aforro, no valor de aquisição de 26214,13€.

                                                    *

CONCLUSÕES:

I – Produzindo-se, em princípio, os efeitos patrimoniais do divórcio, apenas, a partir do trânsito em julgado da sentença, embora retroajam, nas relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da proposição da acção, não se encontra o cabeça-de-casal obrigado a relacionar o valor do produto do resgate de 10511 unidades de certificados de aforro, efectuado em momento anterior ao da propositura da acção de divórcio, e que aplicou ou despendeu, em seu proveito.

II – O outro ex-cônjuge interessado, sentindo-se prejudicado com o destino que foi dado ao produto do resgate dos aludidos certificados de aforro, por parte do cabeça-de-casal, poder reagir, através da propositura da correspondente acção de indemnização, por perdas e danos, desde que se mostrem preenchidos os pressupostos legais enunciados pelo artigo 1681º, nº 1, parte final, do CC.

                                                               *

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar provido o agravo e, em consequência, revogam a decisão recorrida, devendo, apenas, manter-se relacionado o valor correspondente a 460 unidades de certificados de aforro, isto é, de 1147,22€ (mil cento e quarenta e sete euros e vinte e dois cêntimos) e não a totalidade das pré-existentes 10971 unidades.


[1] Pereira Coelho, Reforma do Código Civil, 1981, 48.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, IV, 1987, 560 e 561.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, IV, 1987, 301.
[4] STJ, de17-11-1994, CJ (STJ), Ano II, T3, 148.