Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3706/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARDOSO DE ALBUQUERQUE
Descritores: FALÊNCIA
EMBARGOS
ÓNUS DA PROVA
TRIBUNAL ESTRANGEIRO
Data do Acordão: 04/19/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 253º, 254º E 348º DO C. CIV. .
Sumário: I – Nos embargos à falência, o embargante tem o ónus de alegar e demonstrar os factos e as razões de direito que afectem a regularidade do processo ou a fundamentação da sentença .
II – Não satisfaz tal ónus a embargante que centrando a sua discordância na invalidade, por vício de consentimento nos contratos por ela assinados juntamente com o marido, como fiadores de empréstimos bancários concedidos a uma empresa deste e de que emerge o crédito ( em parte ) do requerente da falência, pretende questionar factos já assentes no processo, por falta de impugnação, atinentes à sua concreta situação de insuficiência de meios para cumprir as respectivas obrigações .

III – Invocando o requerente da falência, um banco espanhol, ter já proposto contra a embargante, de nacionalidade portuguesa, uma execução em tribunal espanhol com base em títulos particulares de dívida subscritos perante entidade pública credenciada nos termos da lei interna espanhola para assegurar a sua exequibilidade e em que não foi possível a citação pessoal da embargante, essa omissão em nada impede o credor de provar e fazer valer esse direito em tribunal português .

IV – O artº 348º do C. Civ., que regula a prova da existência e conteúdo do direito estrangeiro aplicável, não faz impender nenhum ónus de prova sobre o conteúdo do direito estrangeiro a aplicar, mas impõe apenas um dever de colaboração das partes com o tribunal, cuja inobservância não acarreta o indeferimento da pretensão, nem implica, necessariamente, a aplicação do direito material português .

V – O direito estrangeiro é, pois, de conhecimento oficioso, tem o estatuto de direito e o tribunal , uma vez determinada a questão de facto relevante para o efeito, pode chegar a esse conhecimento fazendo uso dos mecanismos estabelecidos em diversas convenções internacionais, designadamente a Convenção Europeia no Campo do Direito Estrangeiro, assinada em Londres em 1968 .

VI – Provando-se que a embargante foi induzida artificiosamente em erro pelo marido, ao assinar, como fiadora, apólices de empréstimos em Espanha com o banco requerente da falência, mas sem se provar que este conhecesse tais artifícios ou os tivesse concertado, tal vício é inoperante perante o banco, tanto à luz do direito material português, como à luz da lei interna espanhola .

VII – Mesmo admitindo serem aplicáveis ao caso as normas de tutela dos subscritores dos contratos de adesão, no essencial contemplados na Ley General de Defensa de Los Consumidores e Usuários espanhola, e sendo certo que antes da assinatura das apólices de empréstimo foram as mesmas lidas e solenizada a sua aceitação pelas partes através de uma entidade pública espanhola devidamente credenciada para o efeito, é de concluir que com tal formalidade deu o banco cumprimento ao seu dever de possibilitar o seu conhecimento à embar4gante, com cujo marido, também subscritor, foram negociados os termos e formalização de tais contratos, podendo a mesma pedir os adequados esclarecimentos acaso não compreendesse o sentido e alcance dos mesmos .

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível da Relação de Coimbra:

I – No Tribunal Judicial de Tondela foi requerida a declaração de falência de A... e mulher B..., casados em regime de comunhão geral de bens e residentes na área da respectiva comarca, no lugar de Botulho, freguesia de Molelos pelo C... sediado em Madrid, vindo no seguimento dos autos, com oposição dos requeridos, a ser decretada a mesma.
Os requeridos vieram, então, deduzir embargos em requerimentos separados, os quais foram contestados pelo requerente.
Designado dia para julgamento, foi considerado pelo Exmo Juiz Presidente do Colectivo, em despacho ditado para a acta, não terem sido alegados factos novos, nem apresentadas razões de direito diferentes das equacionadas na sentença, razão pela qual se decidiu julgar os mesmos improcedentes.
Os embargantes/requeridos interpuseram, por isso, recurso de apelação, tendo esta Relação dado provimento ao mesmo e decidindo por via do Acórdão junto em fotocópia a fls 188 e ss, revogar a apontada decisão da 1ª instância, ordenando que se procedesse a julgamento e consequente apuramento e inserção nos autos da matéria de facto pertinente, designadamente no que respeita à embargante mulher, aos factos ventilados e controvertidos dos artºs 1ºa 40º da petição respectiva, consubstanciadores de um vício de consentimento nos contratos em que ela interviera como fiadora, com o marido e de que o banco fazia emergir os créditos legitimadores do seu requerimento de falência
Em cumprimento do assim decidido e depois de seleccionada a matéria de facto assente e da base instrutória, objecto aquela de uma reclamação da embargante, que foi indeferida, efectuou-se o julgamento, vindo, de novo, os embargos a ser julgados improcedentes.
(…)

II – Foram corridos os vistos legais, incluindo do nova Adjunta, por ter cessado funções o anterior, já depois da inscrição em tabela..
Cumpre, pois , decidir.

III – Comecemos por reproduzir os factos que constando da especificação constante do processo de falência, foram de igual modo considerados assentes no âmbito dos embargos, bem como aqueles que resultaram das respostas à base instrutória adrede elaborada:
(…)
III – Sendo as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso, nos termos das disposições combinadas, inter alia, dos artºs 684ºnº3 e 690ºnº1 do CPC, aplicáveis obviamente ao processo especial de falência, regulado então pelo código aprovado pelo Dec. Leinº 132/93 de 23 de Abril (ainda aplicável, apesar de revogado entretanto pelo novo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas aprovado pelo Dec. Lei nº53/2004 de 18/03) verificamos serem as seguintes as questões que nos cumpre dilucidar:
1 – Indevida consideração como assentes, apesar de controvertidos, face à petição de embargos, ou erradamente decalcados dos doc.s juntos pelo embargado dos factos constantes das alns B) a V), e VV) XX) e ZZ) do despacho pertinente
2 – Omissão de pronuncia no tocante á questão da não citação da embargante nos processos executivos movidos no tribunal de Vigo.
3 - Indevida aplicação do direito português aos contratos de que a embargada fez derivar o crédito que afirma deter sobre a embargante e nulidades da sentença no tratamento dessa questão, por falta de fundamentação e contradição entre os fundamentos e a decisão
4 – Invalidade da declaração negocial da embargante por motivo do artificio usado pelo marido, por falta de cumprimento pele requerente dos deveres de informação e esclarecimento do teor e termos do contratos que foram dados a assinar à requerente
Apreciemos, então , cada uma dessas questões.

1 – Alteração da decisão relativa à matéria de facto assente
Quando confrontada com o despacho que no seguimento e em cumprimento do Acórdão desta Relação certificado de fls 188 a 215, decidiu em sede de audiência final, no sentido de fazer inserir na matéria assente os factos supra referidos das alns B) a V)e ainda os das alns SS)XX) e VV), dela reclamou a embargante, alegando em resumo ter impugnado tais factos articulados pelo banco embargado no req de falência na petição de embargos, nos artºs 32º e 33º e ainda nos artºs 78º e 113º em que repudia todas as declarações constantes e teor dos documentos contratuais que apenas assinara determinada pelo marido, com uso de artifício doloso na medida em que tais factos lhe possam ser imputados por de todo os desconhecer, o que na sua perspectiva implicava que toda essa factualidade assumia índole controvertida, sendo que os factos constantes das alns SS), VV) e XX) não assentava em prova bastante.
Esta reclamação foi indeferida pelo despacho certificado a fls 302, estribando.-se o Mmo Juiz em que a matéria constante das ditas alns B) a V) resultava da prova documental e outros elementos constantes dos autos de falência, não sendo nenhum deles directamente imputáveis à embargante, sendo que o fundamento dos embargos desta residia nos vícios da sua intervenção nos contratos por desconhecer que estava com a aposição da sua assinatura a afiançar empréstimos bancários à firma espanhola de que o seu marido era admnistrador, sendo os factos consubstanciadores de tal vício, objecto de pertinente quesitação.
Outrossim e no que respeita à especificação dos factos das alns SS), VV) e XX), pronunciou-se o Mmo Juiz pela sua pertinência, por os mesmos resultarem dos factos apurados na sentença embargada e não terem sido objecto de expressa impugnação na sua petição de embargos.
Que dizer, então?
No que concerne aos factos constantes das alns B) a V) e que decorrem do articulado pelo embargado no requerimento de falência, a embargante apenas os impugnou enquanto os mesmos lhe pudessem ser directamente imputados, por via da assinatura que apôs nos invocados contratos de mútuo bancário como fiadora, ( que não como avalista ) juntamente com o marido, da empresa mutuária IBERPEIXE.de que este último era admnistrador.
Ora nenhum desses factos, atinentes aos contratos celebrados e aliás documentados nos autos (e devidamente traduzidos) através de apólices bancárias certificadas oficialmente por um corretor de comercio ( estes corredores de comercio são “ empleados publicos” que fazem fé publica, além dos notarios, nos documentos em que intervêm, no domínio da sua competeência, em actos e contratos comerciais, conforme o CCivil espanhol – artº 1216º, como o explica Manuel Garcia Amigo, Institutiones de Derecho Civil, I-Parte General, Ed. Revista de Derecho Privado, 728 e ss) e às responsabilidades assumidas e não satisfeitas pela IBERPEIXE, representada pelo marido perante o banco embargante lhe foram directamente imputadas senão na medida em que ela também os assinara como garante,( fiadora e não avalista) sendo apenas essa declaração que ela alegou não ter sido validamente prestada, por vício de consentimento, excepcionado a sua nulidade.
Não se compreende pois a que título e recorrente venha clamar contra a inserção dos mesmos no rol de factos assentes já que directamente admitidos os empréstimos afiançados pelo marido, representante legal da sociedade com ele beneficiado e determinando o não pagamento do mesmo, a instauração (documentada) de execuções em tribunal espanhol.
Ora, além do mais, a embargante parece desconhecer que tais factos resultam de documentos emitidos de acordo com a lei espanhola, com a presença de um corretor de comércio ( corredor de comercio) com a apontada fé pública o valor definido no artº 365º, nº1 do CCivil ou seja faziam prova nos mesmos termos em que o fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal e no caso dotados de força executiva, como expressamente convencionado pelas partes e objecto, por isso, de execuções que correram termos em tribunais espanhois.
Mais, decorre do próprio código de processo espanhol – artº1249º- que um dos títulos documentados que podem servir de base à execução são justamente “ as polizas originales de contratos mercantiles firmados por las partes y por agente de Câmbio y Bolsa o Corredor de Comercio colegiado que los intervenga” ( autor e obra citadas , 727/8)

Por sua vez a alegada e indevida transcrição na aln Q) da cláusula do contrato por escritura pública, referente à cedência do crédito do banco Gallego SA para o banco embargado ( que na tese do recorrente não seria um cessão de créditos, mas uma cessão da posição contratual) não releva em nada para os embargos deduzidos pela recorrente, já que só contra o marido foi invocado o crédito transmitido, respeitando a responsabilidade da mesma aos contratos (dois) que ela admitiu ter subscrito em Vigo e de que veio alegar a nulidade na parte que lhe respeita por ter sido induzida em erro mediante artifício do próprio marido A....
Não tendo o marido recorrido, transitou em julgado nessa parte a sentença falimentar, pois não constituiu esse crédito fundamento para se decretar a sua falência, antes e apenas a falência do seu marido., sendo que, na qualidade de mero cônjuge, nunca lhe assistiria legitimidade para embargar a sentença, como decorre do artº 129º do CPEREF

Outrossim, os factos que foram dados assentes nas alns SS), VV) e XX) constam do rol dos factos assentes ( a aliás documentados pela requerente da falência) na sentença embargada, certificada a fls 177 a 183 e não foram específicamente impugnados pela recorrente na respectiva petição de embargos
Como aduz, com razão, o Mmo Juiz no seu despacho de indeferimento, o embargante seu marido reafirmou até tais factos na respectiva petição e o mesmo se retira dos artºs 39º e 40º e 106º a 112º da petição autónoma da embargante , ora recorrente, onde esta não discute as dívidas ao BCI e BNU (alns VV e XX) e que tenha participação social na Beira Frio(aln SS), apenas diz que os credores da Beirafrio viabilizaram, como também ficou assente, a medida de recuperação desta empresa, medida que foi homologada por sentença que entretanto transitou em julgado. em 25/06/1997.
Ora mesmo admitindo que pudesse dispôr a embargante de meios ou para pagar a dívidas alegadamente contraídas em função dos contratos firmados em Espanha, cuja nulidade invocou, deveria alegar especificadamente factos que pudessem afastar o facto ín dice previsto no artº 8º,nº1 aln a) do CPEREF, i.e. a de ter meios e crédito para suportar o elevadíssimo volume da dívida da empresa IBERPEIXE e que ela garantira, renunciando ao benefício de excussão e divisão, solidariamente com o marido e perante o mutuante, tudo conforme os termos, condições e cláusulas de tais contratos.
.A este respeito, há que repetir que nos embargos à falência, ( artº 129º do CPEREF) o embargante tem o ónus de demonstrar razões de facto ou de direito que afectem a sua regularidade ou a real fundamentação.
Se a embargante não questionou o montante daqueles débitos, que constam da sentença declaratória e antes até parece admiti-los, não pode pretender que o tribunal os não devesse levar ao rol de factos assentes..À embargante é que caberia alegar, pondo de lado a sua defesa quanto ao engano sobre o teor e real alcance dos contratos que assinou – tirando dessa forma, fundamento para o banco CH requerer contra ela a falência – dispor de crédito e meios para solver tão volumosa dívida, o que fez, ela e também o marido, mas sem êxito, dado que ficaram por provar os quesitos pertinentes, quesito 88º ( em que se perguntava se ela dispunha de crédito bastante para liquidação da dívida ) e 90º ( em que se perguntava se a manutenção das garantias pessoais prestadas nos termos referidos na aln FFF) decorria da exigência feita pelo BNU por reconhecer que a embargante dispunha de crédito para liquidar as suas dívidas ).
A única defesa relevante que a recorrente fez consignar na sua petição de embargos ( pondo de lado os vícios assacados à sentença, e erro na aplicação do direito) foi que nada devia ao banco embargado e que não reconhecia como válidas as declarações que a vincularam ao contrato que lhe foi dado a assinar a ela e ao marido como garantes do mútuo celebrado e pre-negociado com a IBERPEIXE e, por isso, nem se podia pôr o problema de ela não poder pagar, antes o de nada ter de pagar, por nada dever, mas de todo o modo e à cautela, prevenindo a eventualidade de não proceder a nulidade dos contratos de que emergia o crédito alegado pelo embargado, sempre lhe caberia alegar factos mais detalhados e concretos da sua real situação económica e patrimonial que permitissem afastar a presunção de insolvência, o que está visto não ter acontecido.
Desta sorte, improcedem as conclusões, designadamente no tocante ao Mmo Juiz ter atribuido a força de caso julgado à mencionada especificação, o que não é exacto, bem andando, ao invés, em indeferir a reclamação contra a dita selecção de factos assentes que acima reproduzimos.

2 – Nulidade da omissão de pronúncia
È verdade que a recorrente alegou na petição de embargos que ela não chegara a ser citada para as execuções que correram termos no Tribunal de 1ª instância de Vigo e desse jeito nunca se poderia afirmar como se afirmou na sentença declaratória da falência que ela reconhecia o débito em causa
Percorrendo a sentença impugnada, verificamos, de facto que essa questão não foi objecto de qualquer pronúncia pelo Mmo Juiz, pelo que terá cometido a nulidade prevista no artº 668º, nº1 aln d) do CPC.
Mas suprindo essa nulidade, sempre adiantaremos que a sua não citação não impedia o banco de poder justificar o crédito invocado; como fez , por via dos mutuos devidamente certificados por um corretor do comércio como exequíveis, à luz do direito interno espanhol por motivo do seu não pagamento pelos devedores principal e pelos fiadores e mesmo na parte atinente à requerida, enquanto consta dos documentos juntos a respectiva assinatura na dita qualidade e sem prejuízo da arguida anulabilidade dessa declaração de fiança por vício relevante de vontade que adiante iremos analisar.
É evidente que a não citação da embargante em nada pode obstar a que, mesmo á luz do ordenamento jurídico espanhol, não resultasse serem os embargantes devedores do banco embargado, pela não restituição dos montantes disponibilizados à «IBERPEIXE» nos prazos e condições fixadas nas apólices, se assim fosse, nem seria possível a instauração dos processos executivos, com base nas certidões das ditas apólices, e tanto o contrato de mútuo, como a garantia de fiança estão previstos e são regulados no Código Civil espanhol em termos idênticos e similares aos do nosso, com as devidas adaptações ao regime bancário, como se pode ver, dos artºs 1740º e ss ( “ prestamo o mutuo “ ) e 1822º e ss ( “ la fianza “) e com as explicações detalhadas dos respectivos regimes que se podem colher, sem grande necessidade de tradução, in “Instituciones de Derecho Civile” de Luiz Díez Picaso Y António Gullon, Vol. I/II, Ed. Tecnos, 2ª ed. 1998 , .
E o mesmo se passa no que respeita às regras do cumprimento e incumprimento das obrigações contratuais, bem como aos meios dos respectivos contraentes lesados nos seus créditos por não pagamento pontual fazerem valer os respectivos direitos. contra os contraentes devedores.
Deste modo, afigura.–se- nos irrelevante para o banco embargado poder fazer valer o seu crédito, que não haja o mesmo logrado citar a embargante nas acções movidas em Espanha, não obstante ter ela e marido, como decorre da letra das apólices, escolhido domicílio em Vigo para qualquer comunicação judicial.ou extra judicial atinente aos contratos.em foco.

3 – Nulidade de falta de fundamentação e de contradição entre os fundamentos e a decisão pela não aplicação do direito espanhol.
Adiantemos que nesta parte assiste razão para a recorrente se insurgir contra a aplicação do direito comum português ao tratamento do vício inquinador da validade dos contratos de que emergem os créditos do embargado, posto que como teremos ocasião de esmiuçar., a solução jurídica dada ao caso pelos normativos do direito civil espanhol não ser substancialmente distinta da encontrada, ainda que pondo de lado o regime próprio dos contratos de adesão, com uso de cláusulas contratuais gerais
Com efeito, não discute a sentença sequer e nem o poderia fazer que às obrigações decorrentes dos contratos que ambos celebraram em Vigo e designadamente no que respeita às questões da perfeição, interpretação e integração da declaração negocial e respectivos efeitos jurídicos era aplicável a lei civil espanhola, por tal resultar das normas de conflito e, ainda, das convenções referidas nas conclusões, com especial incidência, da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável ás Obrigações Contratuais, assinada em Roma em 19 de Junho de 1980 e ratificada por todos os Estados – membros da União Europeia (v. também as indicações neste sentido de Carlos Ferreira de Almeida, Contratos I, 2ªed. 44 e JJ Gonçalves de Proença, DIP (Parte Especial) e Convenção de Roma (aplicável ás obrigações contratuais)11 e ss )
O que a recorrente questiona , sim, é a posição assumida na sentença de aplicar o direito material português, por as partes não referirem os conteúdos dos normativos aplicáveis segundo a lei espanhola no que respeita ao vício de vontade alegado pela embargante e as respectivas consequências jurídicas.
Vejamos.
Dispõe o artº 348º. do CCivil, o seguinte :
« 1. Àquele que invocar um direito consuetudinário, local ou estrangeiro compete fazer a prova da sua existência e conteúdo; mas o tribunal deva procurar oficiosamente, obter o respectivo conhecimento.
2 – O conhecimento oficioso compete também ao tribunal, sempre que este tenha de decidir com base no direito consuetudinário, local ou estrangeiro e nenhuma das partes o tenha invocado, ou a parte contrária tenha reconhecido a sua existência e conteúdo e não haja deduzido a oposição.
3 – Na impossibilidade de determinar o conteúdo do direito aplicável, o tribunal recorrerá ás regras do direito comum português»
Pronunciando-se sobre o alcance e significado deste preceito, diz-nos Lima Pinheiro ( Direito Internacional Privado, Vol I, 455) que não impende sobre as partes nenhum ónus de prova sobre o conteúdo do direito estrangeiro a aplicar, mas apenas um dever de colaboração que não tem como consequência o indeferimento da pretensão, nem necessariamente, aplicação do direito material português, embora possa contribuir para uma situação de impossibilidade de determinar o conteúdo da lei estrangeira.. Quer isto dizer que o direito estrangeiro é de conhecimento oficioso, tem o estatuto de direito ( anote-se que no mesmo sentido opinam P de Lima e A Varela, Anotado , I, 4ª ed., 311).
Ora para chegar a esse conhecimento, o tribunal para além da colaboração das partes que nestes autos – há que dizê-lo, sem subterfúgios - foi nenhuma, pois não juntaram aos articulados quaisquer textos legais, poderia servir-se não só de edições dos códigos no caso de direito civil ou mercantil espanhol a aplicar, como de obras de doutrina disponíveis nas livrarias, e em última análise, determinada a questão de facto relevante para o efeito, fazer uso dos mecanismos que tem ao seu dispôr para o conhecimento do direito estrangeiro, estabelecidos em diversas Convenções Internacionais, designadamente a Convenção Europeia no Campo do Direito Estrangeiro, assinada em Londres em 1968 e aprovada pelo Dec.nº43/72 de 24 /04, sendo a autoridade receptora e transmissora o Gabinete de Documentação e de Direito Comparado da Procuradoria Geral da República.( para mais detalhada exposição, cfr o CCivil Anotado, de Abílio Neto, 14ª ed., nota 6 ao citado preceito, p. 331).
E só havendo real impossibilidade, devidamente comprovada de determinar o conteúdo de direito estrangeiro, será lícito, senão houver a conexão subsidiária prevista no nº2 do artº23º do CCivil, aplicar o direito interno.
O tribunal da 1º instância não podia, pois, apenas com invocação do não conhecimento do direito espanhol, chamado a resolver a questão da caracterização e efeitos do vício de consentimento aduzido pela embargante para se eximir a quaisquer responsabilidades que lhe pudessem ser assacadas pela dívida da mutuante “IBERPEIXE” ao banco embargado, aplicar o direito comum português, tendo no caso havido erro na interpretação e aplicação daquele normativo que não consubstancia qualquer nulidade por falta de fundamentação ( pois existe fundamentação ainda que errónea) ou contradição entre os fundamentos e a decisão.( a decisão está de acordo com a fundamentação jurídica aduzida), isto para nos cingirmos à sentença recorrida e não à decisão embargada.
De facto e na decisão embargada, o Mmo Juiz produziu um juizo algo sumário sobre a existência da apontada dívida da recorrente, para com o requerente embargado dizendo, em substância, estar a mesma suficientemente demonstrada nos documentos juntos o que nos parece também claro, independentemente de não terem sido invocados os preceitos aplicáveis do direito comum espanhol, sendo a fundamental razão dos embargos a negação das responsabilidades decorrentes da fiança aos dois contratos de mútuo bancário , em função do erro em que incorreu ao assinar as apólices «polizas de prestamo», em castelhano, sendo que este deve ser apreciado quanto à verificação dos respectivos pressupostos e regime à luz de tais preceitos.
E saber se por aplicação de tais normas, se deverá concluir no sentido da plena relevância do vício invocado pela embargante, causado também pelo próprio comportamento negocial do requerente da falência é tarefa que analisaremos na item seguinte.
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4 - Invalidade da declaração negocial por dolo derivado também da falta dos deveres de comunicação do banco CH e violação das regras da boa fé contratual
Começaremos por acentuar que analisando o Código Civil vigente em Espanha, de 1888 ( que ainda segue, mau grado sucessivas alterações, a sistematização adoptada também pelo antigo Código de Seabra, por influência francesa ) e na parte atinente ao negócio jurídico e autonomia da vontade, resulta que o mesmo faz um tratamento sobre o vício de consentimento excepcionado pela embargante em tudo idêntico quanto aos seus pressupostos e efeitos. - excluindo, porém e, de todo, o dolo da terceiro- que o nosso código prevê nos artºs 253º e 254º..
Com efeito e a este propósito, pronunciou-se, assim, a sentença:
« A embargante invoca que assinou e celebrou os contratos sem que ninguém lhe explicasse o conteúdo dos mesmos, tendo o embargante seu marido lhe referido que eram papeis relativos a movimentos bancários, tendo este convencido - o a assinar, dizendo-lhe que se tratava de movimentos de contas bancárias, dissimulando dessa forma a operação, situação que era do conhecimento do embargado, pelo que os contratos que celebrou são nulos:
Ora, nos termos do artº 253º,nº1 do CCivil “ Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou a consciência de induzir e manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação pelo declaratário ou por terceiro , do erro da declarante “ sendo que nos termos do nº2 de tal normativo “ não constituem dolo ilícito as sugestões ou artifícios usuais, considerados segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, nem a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar a declarante resulta da lei , da estipulação negocial ou daquelas concepções”.
E o artº 254º no seu nº 1 estabelece que “ o declarante cuja vontade tenha sido determinada por dolo pode anular a declaração; a anulabildade não é excluida pelo facto do dolo ser bilateral” , sendo que nos termos do seu nº2 “ Quando o dolo provier de terceiro, a declaração só é anulável se o destinatário tinha ou devia ter conhecimento dele, mas se ak alguém tiver adquirido directamente algum direito por virtude da declaração, esta é anulável em relação ao beneficiário, se tiver sido ele o autor do dolo ou se o conhecia ou devia ter conhecido »
E prosseguindo, adianta o Mmo Juiz, com citação de vários acórdãos que o dolo não só existe quando se verifique o emprego de qualquer sugestão ou artifício, com a intenção ou consciência de induzir ou manter o erro o autor das declaração (dolo positivo ou comissivo ) mas também tenha lugar a dissimulação pelo declaratário ou por terceiro, do erro de declarante ( dolo negativo ou de consciência ) ainda havendo que se verificar a dupla causalidade ou seja a do dolo ser causa do erro e este por seu turno, causa do negócio .
Tudo para concluir que provindo o dolo de um terceiro que não da contraparte, ele só relevaria, produzindo nulidade, se esta tivesse agido com conhecimento da actuação dolosa de terceiro e não o devesse ignorar, e face a não ter ficado provado que o embargado conhecesse ou devesse conhecer o erro em que incorreu a embargante, por supôr destinarem-se as apólices que assinou a autorizar meras transferências bancárias, conforme lhe fora dito pelo marido, nisso ela fazendo fé,
Mas aplicando, como importa os preceitos equivalentes do CCivil espanhol. logo verificamos até serem no fundo idênticos os requisitos do dolo para poder ele operar como causa de nulidade( melhor dizendo, anulabilidade da declaração negocial , já que não opera «ipso jure» , nem se reconduz aos casos em que a lei fere com tal sanção, praticamente os mesmos previstos no nosso ordenamento jurídico, conforme resulta da obra de direito espanhol que atrás referenciámos )
Segundo artº 1269º« hay dolo cuando com palabras o maquinaciones insidiosas de parte de uno de los contraentes, es induicido el outro a celebrar un contrato que , sine ellas , nu hubiera hecho»
E como referem o autores atrás citados ( op. cit. ) « a esencia do dolo in contrahendo radica uma insídia produrtora de um engano, causada por la conducyta de una das parte de del contarto, se excluindo el dolo de tercero.
E de seguida, dispõe o artº 1270º« Para que o dolo produza a nulidad de los contratos , deberá ser grave y no haber sido empleado por las dos partes contratantes»
Todavia e como explicam aqueles mesmos autores, ( in Sistema de Derecho Civil, Tecnos, 1977, 495/496) mesmo excluindo-se o dolo de terceiro ele sempre relevará quando uma das partes tenha participado nas “maquinaciones” ou “tenga conciemento de ellas e y no lo manifesta a outra , traduzindo isto uma forma de dolo omissiva.”
Donde ser adequado concluir, conforme o estatuido no direito comum espanhol que a invocabilidade pela embargante da nulidade da respectiva declaração negocial (mais rigorosamente anulabilidade, que conforme o artº 1300º, tal como o nosso direito, se refere a um negócio em que concorrem todos os requisitos essenciais, definidos no artº 1296º mas padece de vício que o invalida de harmonia com a lei, entre eles , « la existencia de llos lhamados vícios de la voluntad: error,dolo, violencia e intimidacion, falsidad de la causa) dependeria igualmente de ela poder provar estar o banco ciente do artifício criado para que se dispusesse, como se dispôs a assinar os contratos, sem a consciência dos mesmos traduzirem a assunção de uma responsabilidade pessoal, qual seja, o de garantir o cumprimento pelo IBERPEIXE de dois empréstimos de elevado montante..
Ora certo é que embora a embargante alegasse, como fundamento dos embargos, essa excepção de direito material, dizendo que o banco embargado sempre soube a forma através da qual o marido conseguiu a assinatura desta e que doutra forma se soubesse o que queriam dela, nunca haveria declaração, não o logrou provar, como decorre da resposta negativa ao quesito pertinente no nº91 .
Mas será que no caso vertente, com apelo às regras de boa fé que constitui, igualmente no ordenamento jurídico espanhol, como em todos o demais da família de direitos em que o nosso se integra, o limite intransponível ao exercício de qualquer direito subjectivo, ( segundo artº7nº1 do Título Preliminar do C Cespanhol “ los derechos deberan ejercitar-se conforme las exigencias de la buena fe “ ) assumindo especial relevância no campo do negócio jurídico e na formação, celebração e execução do mesmo, se poderá entender, por presunção judicial que o erro em que foi induzida pelo marido para assinar as apólices decorreu igualmente da não observância pelo banco dos seus deveres de informação e esclarecimento, sequer se provando que lhe fosse facultada uma tradução em lingua portuguesa para que pudesse entender melhor o clausulado das apólices.?
Com efeito, sustenta a embargante que o seu erro, ou seja, o de se convencer que ao assinar as apólices do empréstimo como fiadora do mesmo, solidariamente com o marido e com a IBERPEIXE, estaria meramente a autorizar transferências de contas bancárias, decorreu também e necessariamente da omissão dos deveres da devida comunicação pelo banco do teor e finalidade dos documentos que lhe foram presentes, sem sequer lhe ter sido facultado uma cópia em lingua portuguesa, dessa forma fazendo incorrer o mesmo na previsão do dolo por omissão.
Já atrás vimos que a embargante soçobrou na prova de que os representantes do banco, com que o marido ( e ela também, em certa medida) tinha estreitos contactos pessoais e profissionais, na qualidade de admnistrador de empresa espanhola por ele financiada e na base dos quais se dispôs a acertar os empréstimos em causa, tinham conhecimento da sua indisponibilidade absoluta em servir de fiadora dos mesmos e da forma como para ultrapassar essa recusa, congeminou ele o cenário da formalização dos contratos.
Mas também é certo e seguro que a embargante assinou as apólices já previamente elaboradas e impressas sem a sua participação ou conhecimento, sem tomar consciência do seu exacto conteúdo, o que porventura faria presumir não terem sido dadas adequadas explicações no acto de assinatura das apólices pelos representantes do banco.
Poderíamos entender que tal presunção estaria de algum modo afectada pela resposta negativa dada ao quesito 88º, decalcado da sua petição de embargos em que se perguntava se ela ao apôr a sua assinatura, ninguém lhe ter explicado que os papéis das apólices redigidos em língua castelhana nada tinham a ver com aqueles outros que habitualmente assinava para proceder a movimentos bancários, alegação que só por si inculca que a mesma não teria tão fraco entendimento da língua quanto parece inculcar, sendo certo ainda que ela alegara, embora isso ficasse por provar que o marido prescindiu da leitura dos documentos feita pelo corretor do comércio, adiantando ser desnecessário, por ele e a mulher já bem saberem do assunto que ali os levara.
Todavia , não se ignora que o ónus de prova da adequada informação e comunicação ao outorgante de um contrato sujeito à disciplina das cláusulas contratuais gerais já previamente elaboradas, preparadas e impressas no caso pelo banco agravado e sem a sua intervenção, como decorre da matéria provada, mas apenas com intervenção do seu marido cabe ao respectivo predisponente mas se isto é exacto à luz do nosso direito, por via dos artºs 5º e 6º do Dec.Lei 445/85 não é tanto à luz do direito espanhol, o qual apenas exige conforme o determinado na LCU ( Ley General de Defensa de Los Conmsumidores e Usuarios de 17 8/07/1984 ) que assegura o controle pela lei das condições gerais no âmbito dos contratos de adesão, sendo como aderente que a embargante, no fundo refere que as subscreveu) que o predisponente facilite a possibilidade do aderente as conhecer, não deixando elas de o vincular, não importa se como mero fiador, se por negligência própria, não adquirir esse conhecimento.
No caso e conforme decorre do texto das apólices cujos exemplares foram trocados pelas partes, consignou-se que elas foram lidas e aceites, tudo certificado e com a fé pública do corredor de comercio que as assinou e autenticou com o carimbo próprio, em posição similar à DE UM NOTÁRIO PARA OS ACTOS E CONTRATOS CIVIS EM GERAL e isto vale por dizer que com tais formalidades, o banco, CONVENHAMOS sempre deu possibilidade à embargante de conhecer as cláusulas ajustadas, ou seja, se esta, mesmo assim, não teve consciência do que assinava tal apenas se terá isso de imputar à actuação dolosa do embargante marido, preparando-a e predispondo-a antecipadamente a assinar os documentos em causa, sem sequer cuidar de os ler ou ouvir ler ou pedir, se não os compreendesse, a respectiva tradução. .
Aliás a sua própria alegação sobre os procedimentos adoptados no acto da assinatura dos contratos deixa pairar as maiores dúvidas sobre o agora invocado incumprimento pelo BCH daquelas obrigações e regras.
Por tais razões, não temos elementos suficientes senão para imputar ao próprio marido da embargante a actuação idónea a fazê-la incorrer no erro quanto ao conteúdo das apólices dos contratos que assinou, sem virtualidade, por não se provar que dela tivessem conhecimento os representantes do banco, para conduzir à nulidade que arguiu e sendo certo que ao ser chamado para intervir na formalização dos mesmos um funcionário com fé pública, « federatario» na terminologia do país vizinho, cumpriu o BCH as regras destinadas a possibilitar à embargante o conhecimento dos contratos e obrigações que neles assumiu que era suposto de resto, por presunção natural. serem delas conhecidas, por informação do marido com que foi previamente acordado os termos, bem como a data, o local E AS FORMALIDADES da respectiva celebração
Improcedem, assim, a nosso ver, as derradeiras conclusões.


. V – Nos termos expostos, decide-se, ainda que com diferente fundamentação, em parte, confirmar a douta sentença da 1ª instância.
Custas a cargo da massa falida