Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
117-H/2000.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ALMEIDA
Descritores: FALÊNCIA
DIREITO DE PROPRIEDADE
REGISTO PREDIAL
TERCEIROS
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
DOAÇÃO
POSSE
Data do Acordão: 09/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SÃO PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º N.º 1 ALÍNEAS A) E N); 4.º; 5.º; 7º DO CÓD. REG. PREDIAL; ARTIGOS 350º, Nº 2, 954º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Só em relação a terceiros, em face do registo, a regra da imediata transmissão da titularidade do direito de propriedade, inerente à válida celebração do negócio translativo, sofre excepção.
2. Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si (artigo 5.º, n.º 4 do Código do Registo Predial)
3. Não pode ser considerado terceiro, para efeitos de registo, o donatário dum bem posteriormente aprendido em processo de falência do doador e os credores da falência e seu administrador, promotores da apreensão levada a registo. Neste caso prevalece a aquisição anterior do donatário, mesmo que não registada.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I – RELATÓRIO
1. A... e mulher, B.., intentaram no Tribunal Judicial de São Pedro do Sul, a presente acção sumária, por apenso ao processo de Falência nº 117/2000, contra os
1º - Credores da massa falida de C.. e Esposa, D..
2º - E..; e
3º - F... alegando para tanto, e em síntese, serem proprietários de uma fracção autónoma de prédio urbano que identificam, a qual lhes foi doada, por competente escritura pública, pelos seus pais, os sobreditos Falidos, e sobre a qual exerceram actos de posse conducentes à sua aquisição por usucapião, sendo que no dia 5 de Julho de 2002 tal fracção foi apreendida à ordem do processo falimentar, privando os AA., indevidamente, do seu uso e gozo.
E como assim, terminam peticionando o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a dita fracção, a restituição a eles da mesma, bem ainda como o cancelamento dos actos de registo incidentes sobre a mesma fracção a favor de pessoa diferente do A., designadamente o registo de apreensão no âmbito do processo falimentar em atinência.
A Massa Falida deduziu contestação, impugnando, designadamente, os actos de posse invocados pelos AA., e por estes, ou com autorização destes, alegadamente praticados, refutando, por isso, a existência do direito de que os AA. se arrogam.
Concluiu pela improcedência da acção, reclamando ainda a condenação dos AA. como litigantes de má-fé.
Também a credora CCAM de S. Pedro do Sul deduziu contestação, impugnando o direito invocado pelos AA. e os actos de posse em que alegadamente aquele se fundaria, igualmente rematando com a improcedência da acção.
Os AA. apresentaram resposta, reeditando a sua pretensão inicial.
Seguindo os autos os seus ulteriores e normais trâmites, foi por fim proferida douta sentença, julgando a acção improcedente, em consequência absolvendo os RR. da totalidade do pedido. Mais absolveu os AA. do pedido de condenação como litigantes de má fé.

2. Irresignados com o assim decidido, os AA. interpuseram o vertente recurso de apelação, cujas alegações encerram com as seguintes conclusões:
1 - Inscrita no registo, em data anterior à escritura de doação, a aquisição a favor do doador de um bem, presume-se a existência, a tal data, do direito na esfera patrimonial do doador;
2 - Não posto em causa tal aquisição, é título suficiente para a prova do direito do donatário a escritura de doação, por ser acto idónea à transmissão do direito de propriedade, transmissão que opera por efeito do contrato.;
3 - A tal não obsta que tal inscrição não seja registada;
4 - Ainda assim, devem ser dados como provados os factos constantes dos n.ºs 1 a 10 da base instrutória, face aos depoimentos gravados,
5 - Foram violadas as normas dos artigos 954.º, a) do Cód. Civil, 1.º, 5.º, n.ºs 1 e 4 do Cód. Reg. Predial e 668,º n.º 1 c) e 156.º, n.º 1 do C.P .C.
6 - Deve o presente recurso ser julgado procedente, substituindo-se a douta sentença proferida por outra que reconheça o direito de propriedade do Autor sobre o prédio em causa, e ordenando a sua restituição ao Autor.

3. Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos que se mostram os competentes vistos legais, cumpre decidir.


II – DOS FACTOS
Na douta sentença foi vertida, como provada, a seguinte factualidade:

FACTUALIDADADE ASSENTE:

1 – Por escritura pública outorgada em 17.1.92, C.. e mulher, D.. declararam doar a José Augusto Pereira dos Santos Dias, e este declarou aceitar a doação, de uma fracção autónoma designada pela letra H, de um prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito no Lugar de Calvário, Santa Cruz da Trapa, inscrito na matriz sob o artigo 957, e descrito na CRP sob o nº 376.
2 - C.. e mulher, Maria Helena Tavares Pereira Dias foram declarados falidos por sentença de 13.10.00, transitada em julgado em 17.11.00.
3 - A apreensão, para a massa falida, do imóvel supra identificado ocorreu em 30.10.00.
DAS RESPOSTAS À BASE INSTRUTÓRIA:
4 - Quando residia em S. Pedro do Sul o A. habitava, conjuntamente com os seus pais C.. e mulher, D.. no prédio aludido em 1.
5 - Quando habitava no prédio aludido em 1 o A. aí guardava os seus bens e pertenças e aí tomava refeições.
6 - Aquando da declaração de falência e da apreensão do imóvel, o direito de propriedade sobre aquele encontrava-se inscrito, no registo predial, a favor dos falidos.

III – DO DIREITO
1. Como é sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos Recorrentes, nos termos do disposto nos arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1, ambos do Cód. Proc. Civil, circunscrevendo-se, em princípio, às questões aí equacionadas.
Assim, e atentando nas sintéticas proposições acima reproduzidas, vejamos das questões em tal quadro suscitadas, desde já se podendo antecipar que de tal complexo, apenas uma –como do teor da sequente exposição melhor se alcançará-, nos cumpre, efectivamente, conhecer e dilucidar.

2. Insurgindo-se contra a douta sentença, sustentam os AA./Recorrentes que encontrando-se inscrita no registo predial, a favor do doador de um bem, a aquisição desse mesmo bem em data anterior à escritura de doação, há que presumir, a essa data, a existência do direito sobre tal bem na esfera patrimonial do referido doador. Assim –mais aduzem-, não sendo posta em causa tal aquisição, é título suficiente para prova do direito do donatário a escritura de doação, por ser acto idóneo à transmissão do direito de propriedade para o mesmo, transmissão que se opera por efeito desse mencionado contrato, independentemente de este, por sua vez, ser ou não levado ao registo.
Na referida sentença o Mm.º Juiz, por seu turno, ponderou que à data da declaração de falência dos doadores o bem por eles doado aos AA./Recorrentes encontrava-se inscrito no registo predial em nome daqueles, pelo que, por força do disposto nos arts. 7º do Cód. Reg. Predial e 350º, nº 2, do Cód. Civil, tal bem se tinha de presumir, até prova em contrário, como sendo propriedade desses titulares inscritos. Ora –mais ponderou o mesmo Magistrado-, não obstante a celebração do negócio de doação entre os AA. e os falidos, o certo é que este negócio se achava excluído do registo predial, pelo que os seus termos e cláusulas apenas se apresentavam vinculativos para os respectivos intervenientes, não tendo qualquer eficácia perante terceiros.
Por isso –concluiu o mesmo Magistrado-, mantendo-se incólume a presunção legal derivada dessa inscrição registal a favor dos falidos-doadores, em perfeita conformidade com a lei se houve a apreensão efectuada para a massa falida desse bem doado, não podendo os pedidos deduzidos pelos AA. e aqui Recorrentes deixar de improceder, negativo veredicto com que o Exmº Julgador, consonantemente, findou a sua douta decisão.
Que dizer?

2. Como facilmente se alcança, a controvérsia que ora se vem de desenhar situa-se no âmbito da muito debatida delimitação ou definição do conceito de terceiros para efeitos de registo predial.

2.1. Com efeito, resulta dos autos que por escritura pública outorgada em 17.1.92, C.. e mulher, Maria Helena Tavares Pereira Dias doaram ao seu filho e aqui Recorrente, José Augusto Pereira dos Santos Dias, a fracção autónoma designada pela letra H, de um prédio urbano, sito no Lugar de Calvário, Santa Cruz da Trapa, inscrito na matriz, sob o artigo 957, e descrito na CRP sob o nº 376, aí se achando outrossim inscrito a favor dos doadores.
Tendo a aquisição dominial emergente dessa doação sido levada ao registo predial, posteriormente a respectiva inscrição foi objecto de cancelamento. E sem que nova inscrição se voltasse a operar, por transitada sentença de 13.10.00 os doadores foram declarados falidos e, em consequência, em 30.10.00, foi efectuada a apreensão para a massa falida de tal fracção.
Sem embargo, tendo a doação, similarmente à compra e venda, como efeitos essenciais –“ut” art.º 954º do CC-, além da obrigação de entregar a coisa, a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a qual –nos termos do art.º 408º, nº 1, do mesmo Código-, se dá por mero efeito do contrato, temos que a partir de tal escritura, e por força da mesma, o aqui Recorrente passou a ser o titular do direito de propriedade sobre a dita fracção.
E assim, frente a esta ocorrida transferência do direito de propriedade para o filho dos falidos, com a inerente saída do bem do património destes, parece de pensar que essa diligência judicial recaiu sobre um bem de terceiro, completamente estranho ao processo falimentar, não podendo, por isso, produzir quaisquer efeitos em relação ao mesmo.
Só que as coisas –tal como resulta da linha argumentativa doutamente expendida pelo Mm.º Juiz- não podem ser, de modo tão linear, perspectivadas.
Na realidade, a eficácia translativa de um negócio, como a enfocada doação, tem de ser vista em vários planos, que não apenas aquele –plano interno- respeitante aos intervenientes -doador e donatário (e eventualmente seus herdeiros). De facto, importa também considerar o plano exterior, relativo a terceiros e seus eventuais direitos, sendo que aqui há que tomar em conta, além das regras do direito civil, também as do registo predial.
Ora, à face destas últimas, tanto a doação, como a apreensão falimentar, estão sujeitas a registo, conforme respectivamente decorre das alíneas a) e n), do nº 1, do art.º 1º, do CRP. E, logo, por força do estatuído no nº 1, do art.º 5º, desse mesmo Diploma, apenas produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.

Deste modo, e no que tange à doação, pretendendo-se que a sua eficácia exorbite do referido âmbito meramente interno –cfr. também o art.º 4º, nº 1, do CRP-, impõe-se inscrevê-la tabularmente e mantê-la nessa situação, pois, de contrário, a mesma não logra eficácia em relação a terceiros, frente aos quais, por conseguinte, o doador ou “tradens” se evidencia (mantém) como efectivo titular do direito.

Mas sabido que o conceito de terceiros em direito civil comporta múltiplas realidades –ilustradas, a título de exemplo, nos Acs. do STJ de 22.06.2005, in Col./STJ, Tomo II, pág. 146 e da RC de 19.06.2001, in Col., Tomo III, pág. 33 -, releva para o caso em apreço, com é bom de ver, saber o que deve entender-se por “terceiros para efeitos de registo predial”, sendo que só em relação a estes especiais interessados a regra da imediata transmissão da titularidade do bem, inerente à válida celebração do negócio, sofre excepção. Justamente, e como começámos por dizer, a questão aqui decidenda.

2.2. Ora, e como sabido também é, com o escopo de pôr fim à cisão que vinha ocorrendo entre a doutrina e a jurisprudência a respeito desse conceito de “terceiros para efeitos de registo predial”, o STJ, em 20.05.97, proferiu o acórdão de uniformização de jurisprudência nº 15/97 (publicado no DR, I Série-A, de 04.07.97), em cuja súmula estatuiu que “Terceiros para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente.”

E em consonância com esta decisão, o mesmo Alto Tribunal, na improcedência dos embargos de terceiro à sua apreciação, julgou inoponível a compra de um bem imóvel não registada a penhora incidente sobre o mesmo bem, posteriormente a essa compra efectuada, mas devidamente levada a registo.

Todavia, de efémera duração se veio a revelar esta unificada doutrina, por isso que, logo em 1999, o mesmo Tribunal Supremo determinou-se pela revisão de tal doutrina e, em novo acórdão uniformizador de jurisprudência –mais precisamente o Ac. nº 3/99, de 18.05.99, publicado no DR, I Série – A, de 10.07.99-, proclamou que “Terceiros, para efeitos do disposto no art.º 5º do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.”

E de conformidade com este entendimento, julgou procedentes os embargos de terceiro então em causa, ordenando –em situação exactamente igual à daquele anterior e homólogo aresto-, o levantamento da penhora e o cancelamento do respectivo registo.

Frente a este panorama, e no claro objectivo de pôr de vez termo à polémica –na sua óptica “geradora de insegurança sobre a titularidade dos bens”-, o legislador resolveu então intervir e, aditando um nº 4 ao art.º 5º do CRP, através do DL nº 533/99, de 11 de Dezembro, nele preceituou que “Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.”

Nestes termos, forçoso se torna concluir –na linha do expedido no Ac. do STJ de 21.02.2006, in Col./STJ, Tomo I, pág. 86-, que o conceito de terceiros para efeito de registo é, no presente, o que emerge da conjugação do estatuído naquele último aresto uniformizador e nesse nº 4 do art.º 5, sendo que este, na sua patente índole interpretativa, mais não faz que consagrar a doutrina formulada nesse mesmo aresto- cfr. neste pendor, entre outros, além dos já citados Acs. do STJ de 21.02.2006 (pág. 88) e da RC de 19.06.2001 (pág. 35), também o Ac. da mesma RC de 06.12.2006, in Col., Tomo V, pág. 33.

2.3. Mas assim sendo, como é, volvendo ao caso dos autos, temos que concluir que o aqui Recorrente, donatário do bem aprendido, e os Credores da falência e seu Administrador, promotores da apreensão, não podem ser considerados terceiros para efeitos de registo.

Na verdade, e tal como se expende no predito acórdão desta Relação de Coimbra de 19.06.2001 (pág. 35), dessa conjugação do art.º 5º, nº 4, com a doutrina do Ac. nº 3/99, deflui que “em relação a actos que implicam uma intervenção judicial, não podem invocar a qualidade de terceiros, por inexistência de qualquer ´transmissão´ ou da correspondente ´aquisição´ (...) o credor que no âmbito de acção executiva movida contra o seu devedor penhora um bem que tenha sido do executado, mas que tenha sido efectivamente transmitido a outra pessoa, ainda que esta aquisição não tenha sido registada.” Nesse caso –mais se diz no mesmo aresto-, “prevalece a aquisição não registada, atribuindo o sistema preferência à realidade material, ainda que não publicitada, em relação à aplicação pura e simples das regras de registo.”– no mesmo sentido, cfr. o também antes referenciado Ac. da RC de 06.12.2005.

Visando a transcrita passagem, especificamente, a penhora, evidente se torna que no seu alcance se inscreve também a apreensão falencial, certo como é que esta tem uma função semelhante à daquela no processo executivo, sendo que –como elucida Pedro Sousa Macedo, in Manual do Dir. das Falências, Vol II, pág. 275-, “ a apreensão é um direito real de garantia privativo da falência”; em sentido equipolente, cfr., ainda, Antunes Varela e Henrique Mesquita, in RLJ, ano 127º, pág. 19, nota 1 de rodapé e José Lebre de Freitas, in BFDUL, Vol. XXXVI, 1995, pág. 374.

2.4. Não podendo, pois, os ora Litigantes serem havidos como terceiros para efeitos de registo, indúbio se torna que a anterioridade da aquisição da fracção por parte do Recorrente, mercê da doação a ele feita pelos seus progenitores, supervenientemente declarados falidos, não pode deixar de prevalecer sobre a apreensão e seu registo.

Com efeito, nada ocorrendo em excepção à regra geral contemplada no art.º 408º, nº 1, do CC, à data dessa apreensão nenhum direito tinham os doadores sobre tal fracção, na medida em que o haviam transferido “in totum” para o beneficiário da liberalidade, o sobredito Recorrente.

E mercê de tal, essa diligência incidiu sobre um bem alheio, sobre um bem de pessoa e património totalmente estranhos ao processo falimentar, não podendo por isso subsistir, antes se impondo o respectivo levantamento e cancelamento do atinente registo.

O douto recurso em apreço apresenta-se, pois, vitorioso, havendo que revogar a douta sentença por ele em crise.

3. Consoante antes se referiu, a mais da questão que vimos de analisar e decidir, no vertente recurso é ainda levantada, sequentemente a essa questão, a do indevido julgamento da matéria de facto inserta nos quesitos 1º a 10º da Base Instrutória.

Ainda que estando em causa o apuramento da base factual decisão -e logo, em princípio, pressuposto dela-, impõe-se-nos adequado guardarmo-nos, conforme anunciámos, de qualquer pronunciamento a respeito da questão, porquanto a mesma se apresenta, em nosso modesto ver, irrelevante para essa decisão e sua bondade.

Se não, vejamos.

3.1. Nesses falados quesitos 1º a 10º curava-se de indagar, na sequência da correspondente alegação dos AA./Recorrentes, se estes haviam exercido, por si e antecessores, posse sobre a fracção apreendida, posse essa com as características e duração, se conformes à realidade, conducentes à aquisição do bem pelos mesmos AA. mediante usucapião.

Todos esses quesitos foram alvo de resposta rotundamente negativa, pretendendo os aqui Recorrentes a reapreciação desse veredicto, através da prova gravada, e sua substituição por oposto e afirmativo pronunciamento.

Todavia, e como dissemos, essa pretendida diligência evidencia-se perfeitamente anódina, irrelevante.

3.2. Com efeito, uma de duas: ou se entende –em sintonia com o que vimos ocorrer connosco-, que os AA./Recorrentes podem vitoriosamente opor a doação de que o A.-marido foi beneficiário, malgrado não tabularmente inscrita, aos Credores da falência e seu Administrador, os quais tendo levado a efeito a apreensão do imóvel asseguraram também o respectivo registo, e então nenhum outro fundamento se faz mister invocar para aqueles verem reconhecido e tutelado o seu direito; ou, opostamente, entende-se que não se podem prevalecer de tal liberalidade, mercê dessa omissiva situação registral.

Neste caso, porém, os AA./Recorrentes também não poderão obter tal tutela através da via possessória e consequente usucapião do bem, invocando a posse dos transmitentes (e, porventura, de todos os antecessores destes), sob pena de –como advertem Antunes Varela e Henrique Mesquita, in ob. cit., ano 126º, pág. 382, e ano 127º, pp. 125 e ss-, o registo se tornar em grande parte inútil, resultando praticamente destruída a protecção e segurança que visa conferir ao tráfico imobiliário. Como se lê nesse emérito e conjunto trabalho, “... se os preceitos do registo não permitem que B oponha a C o direito de propriedade que adquiriu de A, também não podem permitir que B afaste a prevalência do direito de C mediante a invocação da posse do transmitente, pois essa posse mais não é que a face material ou concreta do direito que a lei declara inoponível a terceiros.” E a concluir: “A regra da inoponibilidade deve abranger não só o direito cujo registo se omitiu, mas também a posse (posse causal) que lhe corresponde.” –cfr. ano 127º, pág. 27.

No mesmo sentido, veja-se também, além do já citado Ac. da RC de 19.06.2001, o Ac. do STJ de 07.07.1999, in Col./STJ, Tomo II, pp. 167-168 e, ainda, Quirino Soares, in Boletim da Assoc. Sindical dos Juizes Portugueses, IV.ª Série, Nº 6, Set. 2005, pág. 48, onde impressivamente expende que não se pode permitir “... a invocação triunfante de uma presunção de propriedade a quem estava vedado invocar o próprio direito presumido, dada a ineficácia do acto fundador desse direito para com o terceiro que comprou e registou.”

Nestes termos, pois, resultando em qualquer das possíveis soluções irrelevante e inútil o apuramento da factualidade em apreço e vertida nesses quesitos 1º a 10º, daí a nossa abstenção no tocante ao pretendido reexame das respostas aos mesmos conferidas.

4. Antes de findar, ainda uma nota. Os AA./Recorrentes, no pedido com que rematam a sua douta inicial, impetram, além do mais, o “cancelamento de todas as descrições a favor de pessoa diferente do Autor, designadamente a inscrição da apreensão no processo de falência 117/2000”.

Como ressalta à evidência, apenas o cancelamento desta última inscrição poderá ser ordenado, por isso que quanto às demais descrições ainda operantes, não tendo a respectiva beneficiária sido demandada nos presentes autos, nenhuma providência em seu desfavor é lícito estatuir.

IV – DECISÃO
Atento tudo o expendido, e sem mais considerações, julga-se o ora apreciado recurso de apelação procedente e, revogando a douta sentença, julga-se a acção procedente e, conseguintemente, condena-se os RR. a reconhecer o direito dos AA. sobre a fracção autónoma designada pela letra “H” e acima melhor descrita, e ordena-se a sua restituição a estes, a par do cancelamento da inscrição registral F-8, operada mediante a Ap.11/2001031, e relativa à apreensão da mesma fracção no processo de Falência nº 117/2000, do Tribunal Judicial de São Pedro do Sul (fls. 49 v.º).
Custas em ambas as instâncias pelos RR./Recorridos.