Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9/09.9SJGRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL
ARGUIDO NÃO DETIDO
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 11/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 119º, C),141º, 142º,143º,144º,194º, 3 CPP
Sumário: 1. Dos vários interrogatórios previstos na lei (primeiro interrogatório judicial de arguido detido - artigo 141º -, primeiro interrogatório não judicial de arguido detido - artigo 142º - e outros interrogatórios - artigo 144.º), apenas no primeiro interrogatório judicial de arguido detido é imposta a intervenção do Juiz de Instrução (cf. 141.º), dispensando a lei, no artigo 143º, a intervenção do Juiz (apenas a impondo quando o Ministério Público não libertar o arguido - cf. n.º 3)
2. A audição de um arguido em sede do n.º 3 do artigo 194º do CPP não é necessariamente um acto de inquérito com vista à obtenção de prova conducente a uma acusação, sendo antes um mecanismo legal eventualmente enxertado em sede de inquérito e conducente à definição do estatuto processual de um arguido (as medidas de coacção tanto podem ser aplicadas em sede de inquérito como em sede posterior – artigo 194º, n.º 1 do CPP).
3. O direito à presença do arguido em determinado acto tem necessariamente o significado de presença física, e constitui uma superior garantia de defesa, ao permitir ao arguido a imediação com o julgador e com as provas que contra ele são apresentadas, estando naturalmente esse direito circunscrito a um número reduzido de actos, entre os quais sobressai o julgamento.
4. O direito de audição não envolve a presença física do arguido, nem sequer a sua intervenção pessoal: trata-se do direito a tomar posição prévia sobre qualquer decisão que pessoalmente o possa afectar e pode ser (e é normalmente) exercido através do seu defensor [daí que seja de rejeitar o conceito de “ausência processual”, ao menos enquanto equivalente à ausência física, para os efeitos do art. 119º, c) do CPP].
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

            1. No processo n.º 9/09.9SJGRD, da comarca da Guarda, recorre o Ministério Público do despacho da Mmª Juíza (de Instrução) que decidiu indeferiu o por si requerido primeiro interrogatório judicial do arguido D… para aplicação de medida de coacção mais gravosa do que o Termo de Identidade e Residência.

            O Ministério Público, motivando o seu recurso, conclui (em transcrição):

                «1º- O arguido encontra-se indiciado da prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no art. 21°, ou pelo menos no art. 25°, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22/1.

2ª- O arguido foi detido em flagrante delito pela Polícia de Segurança Pública ao que se seguiu a sua libertação e notificação para comparecer, no dia seguinte, perante o Ministério Público, nos termos do disposto no art. 385°, n.° 3, alínea. b), do Código de Processo Penal.

3º- Após a realização do interrogatório do arguido em liberdade pelo Ministério Púb1ico foi promovida ao Juiz de Instrução a audição do mesmo arguido que
se encontrava presente no tribunal, ao abrigo do disposto no art. 194°, n.° 3, do Código de Processo Penal, com vista à aplicação das medidas de coacção de obrigação de apresentação periódica e de imposição de obrigações, previstas nos artigos 198° e 200º, do Código de Processo Penal, com os fundamentos que constam da promoção de fis.
54 a 57 dos autos.

4ª- A Mmª Juíza de Instrução, na douta decisão de fls. 63 a 66, alegando que a realização de interrogatório de arguido em liberdade, no inquérito, é um acto da competência do Ministério Público, indeferiu a realização do interrogatório do arguido.

5ª- A Mmª Juíza de Instrução não se pronunciou relativamente à aplicação das medidas de coacção requeridas pelo Ministério Público nem tão pouco fundamentou essa falta de pronúncia, em violação do disposto no art. 97°, n.° 5, do Código de Processo Penal, o que torna inválida a decisão recorrida.

6ª- A promoção do Ministério Público, de fis. 54 a 57, sobre a qual incidiu o douto despacho recorrido, visa a aplicação de medidas de coacção ao arguido, para fazer às exigências cautelares que o caso requer.

7ª- A competência para a aplicação das medidas de coacção requeridas pelo Ministério Público, na aludida promoção, é do Juiz de Instrução — arts. 1940, n.° 1 e 268º, n.º 1, alínea b) do CPP:

8ª- Ainda que o tribunal a quo considere que no caso em apreço não há lugar ao interrogatório/audição presencial do arguido pelo juiz, não pode deixar de apreciar a promoção na parte que requer a aplicação ao arguido de determinadas medidas de coacção —  adoptando uma outra forma de cumprimento do contraditório.

9ª- A aplicação de medidas de coacção deve ser precedida da audição do arguido pelo juiz — art. 194°, n.° 3, e 61°, n.° 1, ai. b), do Código de Processo Penal.

10ª- Em nosso entender, salvo o devido respeito por opinião diversa, o direito de audição do arguido plasmado nas normas legais acima referidas, impõe que a audição do arguido seja efectuada de forma presencial perante o juiz, mesmo no caso do arguido se encontrar em liberdade.

11ª- A decisão recorrida, na medida em que afasta a audição presencial do arguido pelo Juiz — sendo possível de concretizar — precedendo a aplicação de uma rnedida de coacção, para além do Termo de Identidade e Residência, integra a nulidade insanável, cominada no art. 119°, al. c), do Código de Processo Penal.

12ª- Em nosso entender, o Tribunal deveria ter interpretado o disposto nos artigos 194°, n.° 3, 61°, n.°1, ai. b) e 268°, n.° 1, alínea. b), todos do Código de Processo Penal, no sentido de que durante o inquérito o Juiz de Instrução deve ouvir presencialmente o arguido com vista à aplicação das medidas de coacção requeridas pelo Ministério Público, ainda que o arguido esteja em liberdade.

13ª- Caso se considere que não compete ao juiz, durante o inquérito, ouvir presencialmente o arguido que se encontre em liberdade, sempre os referidos normativos devem ser interpretados no sentido de que o juiz tem de cumprir o contraditório, apreciar a promoção do Ministério Público e aplicar as medidas de coacção e de garantia patrimonial que em concreto se mostrem necessárias e adequadas ás exigências cautelares e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, com a limitação prevista no n.° 2, do art. 194°, do Código de Processo Penal.

14ª- Assim, a decisão recorrida devia ter determinado a audição do arguido ou, pelo menos, cumprido o contraditório, no que ao arguido diz respeito, e apreciado a promoção do Ministério Público que requer a aplicação de medidas de coacção.

15ª- A decisão recorrida violou ou interpretou de forma incorrecta o disposto nos artigos 61°, n.° 1, al. b), 97º, n.° 5, 194°, n.° 4, 268°, n.° 1, al. b), 385°, n.° 3, al. b) e 379°, n.° 1, al. c), todos do Código de Processo Penal, e 668°, n.° 1, al. d) e n.° 3, do art. 666°, do Código de Processo Civil.

16ª- A decisão recorrida enferma de nulidade por falta de fundamentação, da nulidade insanável prevista no artigo 119°, al. c), por ausência do arguido, quando a lei impõe que o mesmo seja ouvido (art. 61°, n.° 1, al. b e 194°, n.° 3) e ainda a nulidade cominada no 120º, n.° 2, al. d), todos do Código de Processo Penal, na medida em que ao não ter determinado a audição do arguido pelo Juiz e proferido decisão que aprecie a requerida aplicação de medidas de coacção, foram omitidos actos
legalmente obrigatórios
.

17ª- Caso assim se não entenda, a decisão recorrida sempre está ferida de irregularidade, por inobservância do disposto no art. 97°, n.° 5, do Código de Processo Penal, que aqui também se invoca para todos os efeitos, designadamente para os previstos no art. 123°, do mesmo diploma legal.

Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogado o despacho recorrido e substituído por outro que determine a audição presencial do arguido pelo Juiz de Instrução e após seja apreciada a promoção do Ministério Público que requer a aplicação de medidas de coacção ao arguido».

            2. A fls 66, foi sustentado o despacho recorrido.

            3. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido de que o recurso merece provimento, seguindo, na íntegra, a argumentação do Ministério Público de 1ª instância.

            4. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

             Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, as duas questões a resolver consistem no seguinte:

a)- é obrigatória a audição presencial de um arguido, em sede de interrogatório judicial, com vista à aplicação de medida de coacção mais gravosa do que o TIR, promovida pelo Ministério Público?

b)- Não tendo ouvido presencialmente o arguido ou, pelo menos, cumprido o contraditório, no que ao arguido diz respeito, e apreciado a promoção do Ministério Público que requer a aplicação de medidas de coacção, enferma ou não a decisão recorrida de alguma nulidade ou irregularidade?

            2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:

«Os presentes autos encontram-se em sede de inquérito, sendo que, aos mesmos, não foi conferida natureza urgente pelo Ministério Público.

O arguido não se encontra detido (cf. fis. 20, 6º parágrafo).

O arguido foi ouvido em sede de inquérito sobre os factos cuja prática se indica nos autos (cf. fls. 14 e 15 e 51 a 53).

O Ministério Público, no termo do interrogatório não judicial, considerando que, em concreto, se indicia a prática pelo arguido do crime de detenção de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro e de dois crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, promove que o arguido seja ouvido em primeiro interrogatório judicial, nos termos do disposto no artigo 194., n.º 3, do Código de Processo Penal, com vista à aplicação de medidas de coacção - obrigação de apresentação periódica, prevista no artigo 198º e obrigação de imposição de obrigações, prevista no artigo 200º, do Código Penal.

Não se encontrando o arguido privado da liberdade - detido -, cumpre apreciar e decidir qual é a entidade que deve realizar o seu primeiro interrogatório em fase de inquérito - se o Ministério Público, se o Juiz de Instrução Criminal.

E, é entendimento do Tribunal o de que a resposta à questão acima delimitada, não pode deixar de se fundar primacialmente - sob pena de se postergar de forma flagrante o disposto no artigo 268º, do Código de Processo Penal - na convocação das competências do Juiz de Instrução, nomeadamente, em sede de inquérito.

Assim sendo, e recenseando apenas aquelas que, no presente contexto, merecem relevo, decorre do artigo 268º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de
Processo Penal que, “durante o inquérito, compete exclusivamente ao juiz de instrução, proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido” e “proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196º [TIR], a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público”.

Conforme se verifica, a lei procede a uma distinção, consoante o Juiz de Instrução seja confrontado com um arguido detido ou com a necessidade de aplicar a determinado arguido uma medida de coacção, para além do TIR.

Por outro lado, na busca da resposta à questão acima colocada, impõe-se considerar o que decorre do n.º 1, alínea a) do artigo 254.º do Código de Processo Penal, nos termos do qual, “a detenção [do arguido] é efectuada para [o mesmo] ser presente a juiz para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção”.

Mais uma vez, diferencia o legislador as situações em que o arguido se encontra privado da liberdade daquelas em que se trata somente de aplicação de medida de coacção, permitindo convictamente supor que a aplicação de uma medida de coacção, tanto pode ter lugar em acto de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, como fora dele.

Nesta sequência, é imperioso atentar no capítulo II do Código de Processo Penal (artigos 140º e sgs), no âmbito do qual a lei faz uma distinção entre primeiro interrogatório judicial de arguido detido (artigo 141.9), primeiro interrogatório não judicial de arguido detido (artigo 142º) e outros interrogatórios (artigo 144.º).

E, compulsado o teor das referidas disposições legais, constata-se que, apenas no primeiro interrogatório judicial de arguido detido, é imposta a intervenção do Juiz de Instrução (cf. 141.º), dispensando a lei, no artigo 143º, a intervenção do Juiz (apenas a impondo quando o Ministério Público não libertar o arguido - cf. n.º 3) e expressamente consagrando no artigo 144º. que - e na parte que ora releva - “os interrogatórios de arguido em liberdade são feitos no inquérito pelo Ministério Público e na instrução e em julgamento pelo respectivo Juiz (...)“.

Ora, o regime legal assim consagrado não deixa de estar em consonância com o artigo 28º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa segundo o qual “a detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa”.

Trata-se da positivação da ideia do Juiz de Instrução como o juiz das liberdades, como garante último da exigência de salvaguarda dos direitos fundamentais, argumento que não pode igualmente ser desprezado no presente contexto.

Conforme já se referiu, o arguido não está detido.

Considerando o Ministério Público a necessidade de, ao mesmo, ser aplicada medida de coacção, entende o Tribunal que, tendo sido o arguido já ouvido e libertado pelo Ministério Público, desnecessário se torna - porquanto o mesmo não se mostra privado da liberdade, inexistindo, por consequência, desnecessidade de salvaguardar prazos e de sindicar detenções ou apreensões -, ouvi-lo em primeiro interrogatório judicial.

Aliás, se nem a competência, por parte do Ministério Público, para realizar interrogatório de arguido detido e para a sua libertação devem considerar-se proibidas pela Constituição (vide Germano Marques da Silva, ia Curso de Processo Penal, volume II, Editorial Verbo, 2002, p. 182), claro se deve tornar que a competência para interrogar um arguido que não se mostra privado da liberdade cabe, em toda a sua dimensão, nas atribuições do Ministério Público.

E, não se diga que tal entendimento é posto em causa pelo n.º 3 do artigo
194º.

Não obstante decorrer de tal norma que “a aplicação das medidas de coacção é precedida de audição do arguido (...) e pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial”, facto é que, com isso, não está a lei a pressupor necessariamente que a audição do arguido tenha que ser levada a cabo em primeiro interrogatório judicial, pois que, da norma em referência, resulta apenas que tal audição “pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial”, sendo certo que, e na sequência de tudo o que já se referiu, o Código de Processo Penal apenas
prevê, em fase de inquérito, o primeiro interrogatório judicial de arguido detido (cf.
141.º e ss), razão pela qual em nada o disposto nesta norma contende com o
entendimento acima expresso.

Em conclusão é entendimento deste Tribunal o de que, não se encontrando o arguido detido e tendo o mesmo sido já ouvido em sede de inquérito nos Serviços do Ministério Público, a eventual aplicação de medida de coacção não pressupõe a realização de primeiro interrogatório deferido à competência do Juiz de Instrução.

Assim sendo, tendo por referências as considerações que precedentemente se fizeram, o Tribunal indefere o requerido pelo Ministério Público quanto à realização de primeiro interrogatório judicial do arguido D… .

Notifique».

            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Vejamos a primeira questão acima elencada.

Vem o MP recorrer de um despacho que indeferiu a realização de um primeiro interrogatório de arguido não detido para aplicação de medidas de coacção que não o TIR.

A lógica argumentativa do despacho recorrido é a seguinte:

Apenas no primeiro interrogatório judicial de arguido detido, é imposta a intervenção do Juiz de Instrução (cf. 141.º), dispensando a lei, no artigo 143º, a intervenção do Juiz (apenas a impondo quando o Ministério Público não libertar o arguido - cf. n.º 3) e expressamente consagrando no artigo 144º que - e na parte que ora releva - “os interrogatórios de arguido em liberdade são feitos no inquérito pelo Ministério Público e na instrução e em julgamento pelo respectivo Juiz (…)”.

Trata-se da ideação do Juiz de Instrução como o juiz das liberdades, como garante último da exigência de salvaguarda dos direitos fundamentais.

Considerando o Ministério Público a necessidade de, ao mesmo, ser aplicada medida de coacção, entende o Tribunal que, tendo sido o arguido já ouvido e libertado por si – logo não detido quando se apresenta ao JIC -, desnecessário se torna - porquanto o mesmo não se mostra privado da liberdade, inexistindo, por consequência, desnecessidade de salvaguardar prazos e de sindicar detenções ou apreensões -, ouvi-lo em primeiro interrogatório judicial., cabendo ao MP a competência para interrogar, em toda a sua dimensão - um arguido que não se mostra privado da liberdade.

Vejamos então.

3.2. O artigo 194.º, n.º 2, do CPP, na redacção anterior à revisão de 2007, dispunha que a aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial era precedida, sempre que possível e conveniente, da audição do arguido e podia ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial.

A lei determinava a audição, sempre que possível e conveniente.

A regra, no sistema processual penal português, era já, então, a do exercício do contraditório, no que toca à aplicação das medidas de coacção, no inquérito ou depois do inquérito.

Constituindo o exercício do contraditório a regra que se impunha observar, a impossibilidade ou inconveniência da audição do arguido deveria constar, fundamentadamente, do despacho que decidisse a aplicação de uma medida sem precedência da audiência prévia.

Era objecto de controvérsia a questão relativa às consequências da falta de audição sem que o juiz fundamentasse a sua impossibilidade ou inconveniência, com as soluções mais diversas na jurisprudência portuguesa (irregularidade, nulidade, nulidade insanável).

Essas soluções dependiam, assinale-se, do entendimento que se perfilhasse quanto ao modo de realizar a “audição”.

Alguns defendiam que a dita prévia “audição” implicava um acto presencial, ou seja, que o arguido estivesse presente e prestasse declarações. A preterição dessa “audição” constituiria a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea c), do C.P.P.

Já outros entendiam que a falta de audição se bastava com a notificação do arguido para se pronunciar.

Aqui chegados, sempre entendemos que se o juiz não declarasse e fundamentasse a impossibilidade ou inconveniência da prévia audição, preterindo o princípio geral de fundamentação dos actos decisórios, constante dos artigos 205.º, n.º1, da Constituição e 97.º, n.º 4, do CPP, a referida omissão constituía irregularidade processual, submetida ao regime do artigo 123.º do CPP.

Como tal, não se apoiava a tese segundo a qual a não audição do arguido, a quem se aplicasse uma medida de coacção (ou de garantia patrimonial), consubstanciava uma nulidade insanável, pelas seguintes razões, sumariamente indicadas:

· A regra do artigo 118.º do CPP é a do princípio da legalidade relativamente às nulidades processuais: só são nulos os actos praticados em desarmonia com a lei do processo penal que a lei qualifique dessa forma, ou seja, como nulos;

· Relativamente à nulidade prevista no artigo 119.º, alínea c), entendíamos que deveríamos distinguir entre dever de comparência, direito de presença e direito de audição;

· A nulidade do artigo 119.º, alínea c), ocorre quando a lei exige que o arguido esteja presente a determinado acto e esse acto de comparência obrigatória é praticado na ausência do arguido: nela não cabem, a nosso ver, as situações em que apenas não seja observado o direito de presença ou o direito de audição (e em que a lei não exija que o arguido esteja presente a determinado acto processual, ou seja, em que a lei não estabeleça o dever de comparência obrigatória);

· O artigo 61.º, n.º1, alínea a), refere-se ao direito de o arguido “estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito”, distinguindo-o do direito de “ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte”. O n.º3, alínea a), por sua vez, reporta-se a um dever de comparência. Temos, por conseguinte, um direito de presença e um direito de audição;

· O direito de presença não se confunde com o direito de audiência, o que não quer dizer que, em muitos casos, a garantia do direito de audiência não deva passar pela prática de um acto em que o arguido esteja presente e preste pessoalmente declarações;

· Não dizendo a lei quando estamos perante actos processuais que directamente digam respeito ao arguido, entendíamos que só caso a caso seria possível avaliar se o acto tem ou não essa configuração. O direito de presença do arguido diz respeito, essencialmente, aos actos de produção de prova e, em especial, à audiência, actos que, nos termos da lei, solicitem a sua participação pessoal;

· Diversos autores e arestos pareciam partir do pressuposto de que o “direito de audição ou de audiência” mencionado no artigo 61.º, n.º1, alínea a), do CPP, impõe que o arguido seja chamado a tribunal a fim de se pronunciar “em pessoa”, o que não era por nós secundado – um exemplo: o artigo 385.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dispõe o seguinte: “O tribunal ouvirá o requerido, excepto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência”. O artigo 386.º, n.º 1, prescreve: “Findo o prazo da oposição, quando o requerido haja sido ouvido, procede-se, quando necessário, à produção das provas requeridas ou oficiosamente determinadas pelo juiz”. Ora, nestas situações, é evidente que “audiência” e “audição” significam exercício do contraditório: o requerido é “ouvido” ao ser citado para, querendo, deduzir oposição;

· O mesmo ocorre quando, em sede diversa, o artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas se reporta, em epígrafe, ao «direito de audição e defesa do arguido», que pode concretizar-se através da prestação de declarações, mas também na audição por escrito, posto que o arguido esteja ao corrente de todos os elementos que o habilitem a pronunciar-se em sua defesa;

· A violação dos direitos de presença e de audiência constituiria mera irregularidade, a menos que se tratasse de caso em que a ausência ao acto fosse especificadamente sancionada de nulidade (artigo 118.º, n.º2).

No fundo, e em suma, a aplicação de uma medida de coacção só não era precedida de audição do arguido se tal não fosse possível e/ou conveniente.

Quando era limitada a liberdade de uma pessoa, pela aplicação de uma medida de coacção, existia o dever de prévia audição dela, apenas dispensado no caso de tal prévia audição se mostrar impossível e/ou inconveniente;

Para nós, tratava-se da consagração do princípio do contraditório, permitindo que o arguido expusesse previamente as suas razões relativamente à decisão judicial;

A falta de audição prévia do arguido, sem que se fundamentasse a impossibilidade ou inconveniência, constituía, segundo o nosso entendimento, mera irregularidade que, no caso de medida de coacção imposta no acto do primeiro interrogatório judicial, ficaria sanada se não fosse arguida de imediato.

Fora dos casos de interrogatórios judiciais de arguidos detidos, admitíamos que a salvaguarda do direito de “audição” se fizesse através da notificação para se pronunciar, posto que estivesse a defesa habilitada com todos os elementos relevantes para essa pronúncia.

Contudo, no domínio do regime processual penal vigente antes da revisão de 2007, admitimos como possível – não obrigatória, logo - a existência de interrogatórios judiciais, durante o inquérito, de arguidos não detidos.

Se o juiz entendesse que devia ouvir o arguido, em declarações, tendo em vista a aplicação de uma medida de coacção requerida pelo M.P., porque razão não o poderia fazer?

Sendo esse acto prévio e inteiramente instrumental de um acto da competência exclusiva do juiz, como era a aplicação de uma medida de coacção (para além do TIR), parecia-nos admissível a sua realização, ainda que essa não devesse ser a regra, repete-se.

A falta de abertura a esta possibilidade teve como consequência as cenas lamentáveis que todos conhecemos de detenções de pessoas, fora de flagrante delito, com a única e exclusiva intenção de que fossem apresentadas detidas a interrogatório judicial para aplicação de medidas de coacção - e que, por um lado, sustentava-se a necessidade de audição “presencial”; por outro, como só se admitia a existência de interrogatórios judiciais de detidos, havia que deter previamente as pessoas, fora de flagrante delito, para permitir que, nessa situação de detenção, fossem interrogados judicialmente.

3.3. A consequência desses abusos está na génese da alteração do regime da detenção fora de flagrante delito, agora mais exigente e de difícil aplicação, operada pela revisão de 2007.

Conforme já se disse,  face à redacção anterior do artigo 194.º, n.º 2, no que concerne à audição prévia do arguido sempre que possível e conveniente, entendíamos que essa audição traduzia-se na oportunidade de exercício dos direitos de defesa, através do contraditório, não exigindo necessariamente um acto de interrogatório, a não ser que o arguido estivesse detido.

O novo n.º 3 do artigo 194.º, resultante da revisão de 2007, ao prescrever que a audição pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º4 do artigo 141.º, veio recolocar a questão, pois este último preceito refere-se a um conjunto de informações que devem ficar a constar de auto.

Por via da alteração da lei, é natural que se problematize, novamente, se a audição prévia se basta com a oportunidade do exercício do contraditório ou se implica um acto pessoal de audição.

Desde logo, o referido preceito legal tem de ser interpretado com algum cuidado.

Veja-se que o n.º 3 do artigo 194.º reporta-se à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial referida no n.º 1, o que, na letra da lei, abrange a aplicação dessas medidas durante o inquérito e depois do inquérito.

No entanto, a remissão para o nº 4 do artigo 141.º (dever de informação) tem escasso sentido, sem adaptações, quando estivermos perante a aplicação de medidas de coacção na fase de julgamento, depois de delimitado o objecto do processo através da dedução de acusação ou da prolação de decisão instrutória de pronúncia.

Nesses casos, temos para nós que o que será fundamental é que o arguido (ou o responsável meramente civil) seja confrontado com os factos concretos e elementos de prova que consubstanciam os pericula libertatis - pressupostos de aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial - para estar em condições de exercer o contraditório. Para esse efeito, bastará a notificação do defensor, segundo julgamos, e a remissão para o artigo 141.º, n.º4, terá de ser feita com as devidas adaptações.

Do que concluímos que a audição do arguido prevista no art. 194.º, n.º 3, não tem que se realizar sempre da mesma forma. Ainda que na maior parte dos casos deva conduzir a um interrogatório nos termos do art. 141.º, mormente quando se trate de arguido detido, noutras situações bastar-se-á com o exercício do contraditório realizado mediante a notificação do defensor, como será o caso da aplicação de medidas de coacção requeridas após a acusação ou a pronúncia (ou mesmo requeridas na própria acusação).

3.4. Há, porém, um elemento que pode inculcar a necessidade de interrogatório judicial de arguido, ainda que não detido, durante o inquérito.

Trata-se do novo artigo 385º, n.º 3, al. b), do C.P.P.

A lei expressamente refere-se a um arguido que está em liberdade e que é submetido a primeiro interrogatório judicial para eventual aplicação de medida de coacção.

Contudo, não vemos que esta nova disposição legal – diversa do n.º 3 do artigo 382.º, parte final, que se reporta à apresentação ao juiz de arguido que está detido (essa apresentação surge como alternativa à libertação imediata com TIR) - tenha despertado grande atenção nos nossos tribunais.

E daí que se explique que o tribunal «a quo» insista com o velho argumento de que a realização de interrogatório de arguido em liberdade compete sempre ao M.P., sem atentar que o artigo 385.º, n.º3, al. b), prevê um interrogatório judicial de arguido previamente libertado, em ordem à eventual aplicação de medida de coacção.

Esta disposição veio baralhar os dados, podendo inculcar a necessidade da tal “audição” pessoal – aliás, a revisão de 2007 veio, noutras disposições, impor actos de audição pessoal, como é o caso da audição do condenado, no quadro do incidente por falta de cumprimento das condições da suspensão da execução da pena, que, nos termos do novo n.º2 do artigo 495.º, deve ser ouvido «na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão.»

Todavia:

1º- tal artigo 385º apenas se aplica no âmbito do processo sumário, não tendo potencialidades para ser aplicado fora do âmbito de um processo tão célere que deve sempre ser o «sumário» (o que não é o nosso caso);

2º- quando a lei exige presença física do arguido, em sede do exercício do contraditório, di-lo expressamente como o faz no citado artigo 495º, não o tendo feito, de facto, na letra do artigo 197º, n.º 3.

Assim sendo, fora dos casos de interrogatório judicial de arguido detido e da previsão do citado artigo 385.º, n.º 3, al. b), o direito de audição não pressupõe, sempre, a existência de um acto de interrogatório.

            Audição quer significar aqui auscultação não necessariamente oral.

            Da mesma forma que, quando se escreve “o juiz ouve o MP e o arguido” no artigo 213º, n.º 3 do CPP, pretende-se que seja feita uma notificação de tais sujeitos processuais para dizerem de sua justiça sobre o reexame dos pressupostos da aplicação da prisão preventiva.

            De igual modo, o artigo 215º, n.º 4 do CPP não postula a obrigatoriedade de presença física do arguido (e aí também se escreve”ouve”).

            A esse propósito, dir-se-á que o direito de audição prévia do arguido sobre a questão da declaração da excepcional complexidade concretiza-se dando conhecimento ao arguido que essa questão vai ser ponderada e objecto de decisão pelo juiz de instrução, permitindo ao arguido que aduza o que entender adequado a influenciar essa decisão e no sentido que, para si, se mostre mais favorável ou conveniente.

Como tal, o direito de audição não envolve a presença física do arguido, nem sequer a sua intervenção pessoal: trata-se do direito a tomar posição prévia sobre qualquer decisão que pessoalmente o possa afectar e pode ser (e é normalmente) exercido através do seu defensor, que para o efeito deve ser notificado nos termos do art. 113.º n.º 9 do CPP (e tal é aceitável pois só o advogado estará, em princípio, tecnicamente habilitado a defender os interesses do seu patrocinado).

«O que importa é que o arguido saiba que a questão da declaração da excepcional complexidade do procedimento vai ser apreciada», sentencia o Acórdão da Relação de Évora de 29/4/2008 – Pº 739/08.1, consultado em http://dgsi.pt/jtre.nsf.

O direito de presença do artigo 61º, n.º 1, alínea a) do CPP requer necessariamente presença física perante o juiz ou o MP.

Já o direito de audição ou de audiência da alínea b) do citado artigo 61º/1 significa que o arguido beneficia da possibilidade de ser ouvido, sempre que se preveja que o juiz irá tomar decisões que pessoalmente o possam afectar.

São, pois, direitos distintos, com protecção jurídica também diferente, sendo evidentemente mais forte a do primeiro, que se reporta a situações em que o direito de defesa tem que beneficiar de uma mais intensa protecção.

O direito à presença do arguido em determinado acto tem necessariamente o significado de presença física, e constitui uma superior garantia de defesa, ao permitir ao arguido a imediação com o julgador e com as provas que contra ele são apresentadas, estando naturalmente esse direito circunscrito a um número reduzido de actos, entre os quais sobressai o julgamento.

O direito de audição não envolve a presença física do arguido, nem sequer a sua intervenção pessoal: trata-se do direito a tomar posição prévia sobre qualquer decisão que pessoalmente o possa afectar e pode ser (e é normalmente) exercido através do seu defensor [daí que seja de rejeitar o conceito de “ausência processual”, ao menos enquanto equivalente à ausência física, para os efeitos do art. 119º, c) do CPP].

3.5. No nosso caso, há que situarmos no artigo 194º, n.º 3 do CPP e na interpretação a dar ao termo “precedida de audição do arguido”.

Aqui, e na linha do – implicitamente - opinado pelo Acórdão da Relação de Coimbra de 27/10/2004 (CJ 2004-IV-50), entendemos que a lei quer apenas aí exigir um justo contraditório, não reconduzível à exigência de uma notificação para que o arguido venha fisicamente a tribunal.

Constituindo a imposição de uma medida de coacção uma clara restrição á liberdade individual do arguido, é perfeitamente compreensível que se ouça o visado para permitir que o julgador venha a ter uma mais ampla apreensão da situação vivencial do arguido.

E ouvir aqui, quer apenas dizer notificá-lo, em tom de contraditório…

Não obstante decorrer da norma convocada que “a aplicação das medidas de coacção é precedida de audição do arguido (...) e pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial”, facto é que, com isso, não está a lei a pressupor necessariamente que a audição do arguido tenha que ser levada a cabo em primeiro interrogatório judicial, pois que, da norma em referência, resulta apenas que tal audição “pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial”, assente que o Código de Processo Penal apenas
prevê, em fase de inquérito, o primeiro interrogatório judicial de arguido detido (cf.
141.º e ss).

Note-se até que na anterior revisão do 194º se escreveu “pode ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial”. Já o 194º revisto deixa escrito que «pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial (…)» - a mudança do DO para DE poderá reafirmar que o 1º interrogatório apenas ai está contemplado como possível palco para a aplicação das medidas de coacção (e só em é em caso de arguido detido) e não como assumpção de uma obrigatoriedade processual em tal se fazer em sede dessa diligência.

Na nossa situação, o arguido não é apresentado como detido ao JIC, não havendo qualquer obrigatoriedade legal, a nosso ver, para a marcação e realização desse acto processual presidido por um juiz

Na realidade, compulsados os artigos 268º, n.º 1, alíneas a) e b) e 254º, n.º 1, alínea a) do CPP, constata-se que o legislador diferencia as situações em que o arguido se encontra privado da liberdade daquelas em que se trata somente de aplicação de medida de coacção, permitindo supor que a aplicação de uma medida de coacção, tanto pode ter lugar em acto de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, como fora dele.

Dos vários interrogatórios previstos na lei (primeiro interrogatório judicial de arguido detido - artigo 141º -, primeiro interrogatório não judicial de arguido detido - artigo 142º - e outros interrogatórios - artigo 144.º), apenas no primeiro interrogatório judicial de arguido detido é imposta a intervenção do Juiz de Instrução (cf. 141.º), dispensando a lei, no artigo 143º, a intervenção do Juiz (apenas a impondo quando o Ministério Público não libertar o arguido - cf. n.º 3) e expressamente consagrando no artigo 144º que “os interrogatórios de arguido em liberdade são feitos no inquérito pelo Ministério Público e na instrução e em julgamento pelo respectivo Juiz (...)“.

In casu, o arguido foi libertado pelo MP (cf. fls 12 – 6º parágrafo), não estando detido na hora em que o MP faz a promoção de fls 42 a 45.

Fez-se um 1º interrogatório não judicial de arguido não detido, presidido pelo MP, na sequência do que promove tal entidade a realização de 1º interrogatório judicial para aplicação de duas medidas de coacção (que não TIR) – imposição de obrigações e apresentações policiais periódicas -, medidas estas aplicáveis, de forma exclusiva, pelo JIC.

Como tal, e no plano da pura legalidade, não poderemos deixar de dar razão ao tribunal «a quo», ao prescrever que não existe obrigação legal para a realização do dito promovido 1º interrogatório judicial de arguido não detido para aplicação de medidas de coacção.

Agora, não custaria nada ao JIC em causa, em nome de uma Justiça que se quer célere e eficaz, fazer logo ali o contraditório - esse sim imposto por lei -, podendo, e seria um seu critério de oportunidade a nortear uma decisão neste jaez, ouvir presencialmente o arguido, presente naquele dia no tribunal e apto a poder responder às perguntas obre o seu estatuto processual.

Perdeu-se uma chance para poder restringir e monitorizar os movimentos de um arguido suspeito de tráfico de estupefacientes…

Por isso, se bem andou, sob o ponto de vista legal, o Juiz «a quo», já terá ele perdido uma dourada oportunidade para fazer aquilo que se lhe exige – ouvir um arguido sobre o seu estatuto processual, assente que o MP entendia que lhe deveriam ser aplicadas medidas de coacção mais gravosas que o mero termo de identidade e residência.

Fazer justiça não é só cumprir na íntegra a lei – é também adaptar a lei a novas realidades fácticas que se colocam, agindo com o bom senso que sempre terá de ser o guia e farol de qualquer juiz português.

Como tal, e embora não nos mereça censura legal o comportamento do JIC em causa, sempre se dirá que poderia ter ele aproveitado a presença física do arguido em Tribunal da Guarda naquele dia 26/6/2009 para cumprir o contraditório imposto pelo n.º 3 do artigo 194º do CPP:

3.6. É certo que o n.º 3 do artigo 194º do CPP adianta que se aplica à audição do arguido o disposto no artigo 141º, n.º 4.

Contudo, tal não significa que a audição do arguido tivesse de ser pessoal e física. Já que havia sido previamente constituído como arguido nos autos (fls 16), e não sendo aplicável a alínea b) precisamente pelo facto de estarmos perante um arguido NÂO DETIDO, não haveria também que cumprir a alínea a) do citado n.º 4.

Restariam as comunicações das alíneas c) e d) do n.º 4 do artigo 141º.

E tais elementos estão já plasmados e devidamente descritos na promoção do MP  a fls 42 a 45, ficando assim tacitamente cumprido o artigo 141º, n.º 4 com a notificação ao arguido (ou ao seu defensor oficioso – cfr. artigo 113º, n.º 9 do CPP[1]) do dito requerimento/promoção – contudo, nada impede o juiz de, no despacho a ordenar a feitura do contraditório do n.º 3 do artigo 194º do CPP, colocar ali expressamente as referências do artigo 141º/4, caso não constem de forma muito explícita da promoção do MP.

Diga-se ainda que sempre poderá o arguido – residindo aqui uma cláusula de salvaguarda – pedir para ser ouvido presencialmente pelo JIC, podendo o JIC fazer tal “outro interrogatório”, se o achar conveniente e necessário (tal como se prevê para a instrução – cfr. artigo 292º, n.º 2 do CPP), convocando-o. Repetimos: pode fazê-lo mas não é obrigado a fazê-lo…

Como tal, basta-se aqui a lei com a simples garantia de contraditório, não exigindo um acto pessoal de audição – na realidade, a audição do arguido neste sede e com este móbil pode ser feito em 1º interrogatório judicial de arguido detido (justificando-se então a audição presencial perante o «o juiz das garantias e das liberdades» pela efectiva situação de privação da liberdade em que ele se encontra), não tendo de ser ouvido presencialmente, em situação de não detenção, em diligência “avulsa” visando unicamente tal audição pelo JIC (nada impedindo, não obstante, como se viu, que o juiz o decida fazer dessa forma mas apenas guiado por critérios de oportunidade e conveniência).

 

3.7. Aqui chegados, há que constatar que o tribunal a quo apenas se limitou, no despacho recorrido, a indeferir a promoção do MP na parte em que ele promove a realização de um 1º interrogatório judicial para aplicação das duas propostas medidas de coacção.

 O MP recorrente vem estribar o seu recurso numa série de vícios que imputa ao despacho recorrido, desde logo o da omissão de pronúncia quanto às medidas de coacção requeridas, a falta de fundamentação do despacho, a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, al. c) e a sanável prevista no artigo 120.º, 2, d), do CPP.

A invocação do artigo 119.º c) é injustificada, desde logo porque o despacho recorrido não aplicou qualquer medida de coacção, pelo que, ainda que se entendesse ser indispensável a prévia audição do arguido por meio de interrogatório judicial, certo é que o acto que seria ferido dessa invocada nulidade – o despacho de aplicação de medida de coacção – não chegou a ocorrer.

Quanto ao artigo 120º, n.º 2, alínea d) – nulidade sanável -, há que dizer que não estamos perante qualquer insuficiência de inquérito por não ter sido praticado um acto legalmente obrigatório – estamos em sede de despacho de aplicação de uma medida de coacção, não confundível com insuficiência de inquérito, fase processual ainda no seu início.

O artigo 262º do CPP estipula que o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas em ordem a uma decisão sobre a acusação.

A insuficiência do inquérito, como causa de nulidade, só pode respeitar à omissão de actos de inquérito que a lei prescreve como obrigatórios, se para essa omissão a lei não dispuser de forma diversa. Ora, a audição de um arguido em sede do n.º 3 do artigo 194º do CPP não é necessariamente um acto de inquérito com vista à obtenção de prova conducente a uma acusação, sendo antes um mecanismo legal eventualmente enxertado em sede de inquérito e conducente à definição do estatuto processual de um arguido (as medidas de coacção tanto podem ser aplicadas em sede de inquérito como em sede posterior – artigo 194º, n.º 1 do CPP).

Diremos, em conclusão, que é óbvio que não é possível a subsunção do vício ao da nulidade do n.º 2, alínea d) do artigo 120º, porquanto tal segmento normativo diz respeito à omissão de diligências de prova.

Mas a verdade é que ficou por despachar a segunda parte da promoção do MP – a apreciação do seu requerimento de aplicação de medidas de coacção que não TIR ao arguido, medidas essas só aplicáveis por despacho de um JIC (artigo 194º/1 do CPP).

Não ignoramos que o JIC em causa não ignorava tal preceito e tal exclusiva competência (veja-se o teor do despacho de sustentação de fls 66). Contudo, apenas indeferiu a forma de audição requerida pelo MP, entendendo, e bem, já o decidimos, que não é obrigatória a realização de um interrogatório judicial para o efeito pretendido.

Não chegou a conhecer do fundo da causa, digamos.

E o fundo da causa seria, no caso, fazer ele – o JIC e não o MP, pois entendo que não se deve colocar a acusação a dialogar com a defesa - o contraditório do n.º 3 do artigo 194º do CPP e vinda a resposta decidir por despacho.

Ao não ter assim agido, incorreu o despacho em algum vício?

De acordo com um princípio de legalidade, preceitua o artigo 118.º do CPP que “a violação ou a inobservância das disposições da lei ou do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei” (n.º 1) sendo que, “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular” (n.º 2).

Afastado o vício das nulidades, resta a irregularidade do artigo 123º do CPP.

O actual art. 123.º, n.º 1, corresponde, grosso modo, ao corpo do art. 100.º[3] do Código Processo Penal de 1929, que, por sua vez, seguiu o preceituado no art. 132.º, § 3 do Código de Processo Civil nessa altura vigente, como no dá conta Luís Osório, no seu “Comentário ao Código Processo Penal Português”, Vol. II (1932), a pag. 209.

Como se sabe a irregularidade é dos vícios processuais, aquele que apresenta uma menor gravidade, daí que o regime da sua invocação seja distinto daqueles outros que pela sua relevância no desenrolar do processo, podem ser deduzidos em qualquer altura (nulidade absolutas ou insanáveis) ou então num lapso de tempo mais contido (nulidade relativa ou sanável).

Daqui podemos inferir que o prazo para se suscitar uma irregularidade, não deva ser, por razões de lógica e da sua menor relevância, mais extenso que o de uma nulidade relativa e o regime destas está contemplado no art. 120.º, n.º 3.

Quanto a estas a regra é que sendo uma nulidade a que o interessado assista deve suscitá-la no próprio acto [al. a)], tratando-se de ausência, cuja comparência é obrigatória, por falta de notificação do assistente e das partes civis, até cinco dias após a notificação do despacho que designar a audiência [al. b)], reportando-se a uma nulidade do inquérito ou da instrução até ao encerramento do debate instrutório, ou não havendo instrução até cinco dias do despacho que encerrou o inquérito [al. c)], relacionando-se com o processo especial logo no início da audiência [al. d)].

Concluímos assim que o interessado em suscitar uma irregularidade que se cometeu quando o mesmo não se encontrava presente, só se encontra em estado de o fazer quando a conhece ou está em condições razoáveis e aceitáveis de a conhecer.
Assim e tratando-se de uma irregularidade a que o interessado não tenha assistido, pode o mesmo suscitá-la nos três dias seguintes à sua notificação para qualquer termo do processo, caso não tenha até aí intervindo nos autos, desde que seja possível aperceber-se desse vício, pois caso contrário poderá fazê-lo no prazo de três dias após intervir em algum acto nele praticado.

E é uma irregularidade neste caso, porquê?

Primeiro porque não é nulidade (e só o seria a omissão de pronúncia em sentença ou acórdão – artigo 379º, n.º 1, alínea c) do CPP).

Depois, porque tem sido unânime a consideração de que a falta de fundamentação de um despacho (ou a omissão de pronúncia em despacho – artigo 97º, n.º 5 do CPP) salvo quando a lei dispuser expressamente de forma diferente, constitui mera irregularidade (artigo 118.º), a qual deve ser arguida pelos interessados nos termos previstos no n.º 1 do artigo 123º do CPP, o que, no caso, não foi feito em 1ª instância[2].

Em suma, vigora entre nós o princípio da taxatividade das nulidades – artigos 118º a 122º do CPP (sanáveis ou insanáveis) -, relegando-se os restantes actos realizados contra ou sem a observância dos formalismos legais para o campo das meras irregularidades.

A omissão cometida a propósito no Tribunal a quo não está prevista ou consagrada, na lei processual penal, como determinando uma nulidade. Donde que, e de acordo com aquele normativo, se haja de encarar como integrando uma mera irregularidade.

O regime de arguição deste tipo de vício vem definido, como se disse atrás, no artigo 123.º, n.º 1 do CPP, aí se impondo que “qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado”.

Revertendo novamente aos autos constata-se que o despacho ora impugnado foi proferido no dia 29 de Junho de 2009; foi notificado ao MP nesse mesmo dia (fls 52), tendo a arguição pelo MP da aludida irregularidade só ocorrido já no âmbito do presente recurso, o qual deu entrada no dia 6 de Julho de 2009 (fls 53).

Ora, do exposto resulta que foi intempestivamente arguida – pois para além dos 3 dias legais – em sede de recurso, entendendo nós que os eventuais vícios deveriam ter sido suscitadas, primeiramente, perante o juiz da 1.ª instância e não arguidas em recurso.

QUANTO AO PRAZO, algumas notas deixamos aqui.

De facto, o recurso interposto pelo Ministério Público apenas deu entrada na Secretaria do Tribunal no dia 6/7/2009, que corresponde ao primeiro segundo útil subsequente ao termo do prazo, e, portanto, fora do prazo, sem que o recorrente tenha alegado justo impedimento.

A prática de actos processuais nos três dias úteis posteriores ao termo do prazo, fora dos casos de justo impedimento e ao abrigo do disposto no nº 5 do art. 145º do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal ex vi do art. 107º, nº 5, do Código de Processo Penal, está condicionada ao pagamento da multa prevista naquela primeira disposição legal.

No caso de ser o Ministério Público que pretende praticar o acto em algum dos três dias úteis após o termo do prazo, ao abrigo do disposto no nº 5 do art. 145º do Código de Processo Civil, por se entender que está isento do pagamento da multa ali prevista quando age na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei, tem-se vindo a considerar, no âmbito duma interpretação correctiva daquela norma, que, em substituição da multa e no respeito pelos princípios do processo equitativo e da igualdade de armas, deverá apresentar uma declaração no processo, antes de terminar o respectivo prazo normal, de que pretende utilizar aquela faculdade, sob pena de se considerar o acto extemporâneo.

Neste sentido se pronunciam o Ac. nº 355/2001 do Tribunal Constitucional, de 11/07/2001, publicado no D.R., II Série, de 13/10/2001, e o Ac. do STJ de 2/10/2003, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. nº 03P2849.

É o que defende o Conselheiro Paulo Mota Pinto, em declaração de voto aposta ao dito acórdão, dizendo: «a meu ver, as normas do artigo 145º, nºs 5 e 6, do Código de Processo Civil, interpretadas no sentido de permitir a prática de actos processuais pelo Ministério Público “dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo”, sem que a sua validade fique dependente do pagamento da multa prevista em tais normas, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade e do direito a um processo equitativo (artigos 13º, n.º 1 e 20º, n.º 4 da Constituição)». E justifica: «Não basta, assim, dizer que “o desempenho processual do Ministério Público é expressão de uma função de representante da legalidade ou do cumprimento de estritos deveres funcionais, que integram o essencial do seu estatuto”, para concluir que se justificaria “um certo tratamento diferenciado” (“nomeadamente no que se refere à possibilidade de vir a dispor, independentemente de multa, de um alargamento do prazo processual”). Há que ver em que sentido aponta a diferença de posições. Ora, é evidente que o Ministério Público, justamente porque na posição processual de defensor da legalidade, está obrigado (se não a dar o exemplo de cumprimento estrito dos prazos legais, sem prática do acto em dias subsequentes ao seu termo, pelo menos) a observar, quanto ao sentido do prazo que deve cumprir (mesmo que de duração justificadamente maior), um regime igualmente estrito ao das partes processuais, e não um regime genericamente mais favorável».

Por seu lado, o acórdão do STJ acima citado, acolhendo aquela interpretação do Tribunal Constitucional e questionando qual a «adaptação» que, em razão de o Ministério Público não dever pagar a multa, será necessário impor ao preceito do nº 5 do art. 145º do Código de Processo Civil, para que «a justificação da isenção da multa não implique um privilégio do Ministério Público relativamente ao não cumprimento dos prazos processuais», conclui que «o Ministério Público, não pagando a multa, emite uma declaração no sentido de pretender praticar o actos nos três dias posteriores ao termo do prazo», acrescentando que se trata de uma exigência que “equivalerá, num plano simbólico, ao pagamento da multa e será um modo suficiente e adequado de controlo institucional do cumprimento dos deveres relativos a prazos processuais pelo Ministério Público. O que tem que ver com o princípio da igualdade processual dos respectivos sujeitos, no âmbito do processo penal”[3].

Ora, neste caso, não foi alegado justo impedimento para aquele atraso, pelo que, querendo praticar o acto nos 3 dias úteis subsequentes ao termo do prazo, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 107º, nº 5, do Código de Processo Penal e 145º, nº 5, do Código de Processo Civil, e para efeitos da arguição da específica irregularidade, deveria o Exmº Magistrado do Ministério Público recorrente fazer chegar ao processo, dentro do prazo normal para a interposição do recurso, previsto no nº 1 do art. 411º do Código de Processo Penal, a declaração de que pretendia apresentar a arguição num dos 3 dias úteis após o termo do prazo, declaração que não fez (e poderia tê-lo feito expressamente no requerimento de recurso, este em tempo, para a susceptibilidade de se vir a considerar estarmos perante uma irregularidade processual, vício aliás que o recorrente admite como possível, embora em termos subsidiários).

Pergunta-se ainda: as nulidades/irregularidades directamente arguíveis por via de recurso não serão apenas as da sentença, desde que não estejamos perante a situação do artigo 410º, n.º 3 do CPP?

Como tal, não é manifestamente em sede do presente recurso que é adequado vir arguir esta patologia de irregularidade – ela deveria ter sido arguida, no momento e local próprios, nos 3 dias após a notificação do despacho recorrido e sempre perante a autoridade judiciária que o proferiu, ainda a tempo de ter algum efeito imediato útil.

Em conclusão, diremos que a decisão recorrida é inatacável, sob o ponto de visto jurídico-penal e que a omissão de pronúncia do despacho em causa, enquanto irregularidade processual, deveria ter sido arguida noutra sede que não a do presente recurso e em tempo, o que não foi feito (mostrando-se, consequentemente, sanada e logo sem capacidade de influir na tramitação dos autos).

O que tem consequência natural, e sem necessidade de mais considerações, a improcedência do recurso.

            III – DISPOSITIVO

            Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso.

            Sem custas, atenta a isenção legal do recorrente.


Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


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(Paulo Guerra)


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(Barreto do Carmo)


[1] Tal n.º 9 apenas estipula que deve ser pessoalmente notificado ao arguido o despacho judicial que aplica a medida de coacção e já não o requerimento do MP com vista a tal aplicação – bastaria assim a notificação do defensor oficioso do arguido, assente que estamos a falar de uma tomada de posição estritamente jurídica, melhor ponderada por um técnico profissional forense.
[2] Cfr., entre muitos no mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 28/1/2004, in procº n.º 4663/03.3.

[3] Note-se que o Acórdão do TC n.º 538/07 de 30/10/2007 defendeu uma diferente inconstitucionalidade.

Decidiu ele o seguinte:

«Julgar inconstitucional, por ofensa aos artigos 2.º, 20.º, n.º 4, e 219.º, n.º 1, da Constituição da República, a norma do n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de exigir ao Ministério Público que emita uma declaração manifestando a intenção de interpor recurso nos três primeiros dias subsequentes ao termo do prazo legal, antes de esgotado este mesmo prazo.

Note-se, contudo, que o referido recurso não tinha por objecto nenhuma das dimensões normativas do artigo 145.º, n.º 5, cuja conformidade constitucional foi julgada em dois diferentes arestos. Não estava em apreciação saber se a dispensa de pagamento de multa representa um privilégio inequitativo do Ministério Público, nem se a apresentação do recurso, nos três dias posteriores ao termo do prazo, faz impender sobre este sujeito processual o ónus de emitir uma declaração no sentido de pretender praticar o acto dentro desse prazo adicional, sob pena de extemporaneidade.

A questão de constitucionalidade que ali se suscitou era outra.

O que estava em causa era a dimensão normativa correspondente à interpretação do preceito no sentido da exigência de uma tal declaração antes do termo normal do prazo para a prática do acto. Ou seja, o que se questionava já não era o se da declaração, mas o quando, o momento processual em que ela deveria ser apresentada.

Na decisão recorrida, entendeu-se que integra o conteúdo normativo do preceito a exigência de que a declaração do Ministério Público manifestando a intenção de interpor recurso nos três primeiros dias subsequentes ao termo do prazo legal seja emitida no decurso deste prazo. Nesse entendimento, é pressuposto da utilização, pelo Ministério Público, do prazo adicional concedido pelo n.º 5 do artigo 145.º do CPC, a declaração prévia, dentro do prazo normal, de que o virá a fazer, sob pena de ficar definitivamente precludida a prática do acto.

Para o Ministério Público, pelo contrário, a declaração não tem que ser antecipadamente formulada, podendo sê-lo no próprio requerimento do recurso, apresentado nos três dias subsequentes ao termo do prazo. De outro modo, a exigir-se uma declaração anterior ao esgotamento desse prazo, estar-se-ia a criar uma situação de desigualdade, constitucionalmente censurável, entre o Ministério Público e os outros intervenientes no processo.

Foi essa, e apenas essa, a questão de constitucionalidade objecto do referido recurso.