Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
262/10.5TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
ENTREGA DOS DOCUMENTOS
CARTA DE CONDUÇÃO
Data do Acordão: 03/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - 2º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 348º E 353º, DO C. PENAL
Sumário: 1 - Existe crime de desobediência nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução, após ser condenado pela prática de contra-ordenação, a que corresponde sanção acessória de inibição de conduzir;

2 - Até à entrada em vigor do CP, na versão de 2007, não existia crime de desobediência - quer pela alínea a), do n.º 1, do art.º 348º, do C. Penal (inexistência de norma expressa que tal comine), quer pela alínea b), do mesmo artigo (inexistindo legitimidade legal para tal cominação casuística feita pelo julgador), nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução, após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir;

3 - Após 15/9/2007, pratica o crime do artigo 353º, do C. Penal (violação de imposições, proibições ou interdições), aquele que não entrega a carta, após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir.

Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO

1. No processo comum singular n.º 433/11.7TAPBL do 2º Juízo do Tribunal Criminal de Viseu, por sentença datada de 28 de Outubro de 2011, foi ABSOLVIDO o arguido A....

Nos termos da acusação deduzida pelo MP, era-lhe imputada a prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições p. e p. pelo artigo 353º do CP.

            2. Inconformado, o Ministério Público recorreu desta sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

                «1ª- Vem o presente recurso interposto da sentença que absolveu o arguido da prática de um crime de violação de proibições, p, e p, pelo artº 353° do Código Penal.

2ª- Porquanto tal decisão violou, por errada interpretação, o disposto no mencionado art. 353° do CP, bem assim como o artigo 69° do mesmo diploma.

3ª- Na verdade, entendeu a Mma Juiz a quo que o artigo 353° do CP não abrange a falta de entrega do título de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir, entendendo que aquela obrigação de entrega extravasa o âmbito de tal pena acessória (previsto no artigo 69°), o qual se resume à proibição de conduzir (obrigação de nonfacere).

4ª- Porém, tal interpretação contraria manifestamente o texto da lei e deixa por explicar as alterações introduzidas pela Lei 59/2007 no artigo art. 353.° do CP.

5ª- Resultando manifestamente da referida alteração que quando o legislador se refere à violação de imposições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória, está a abranger a violação da obrigação/imposição de entrega da carta de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir a que alude o artigo 69° do CP.

6ª- Na verdade, como decorre dos artigos 69°, n° 3, do Código Penal e
500°, n° 2 e 4, do CPP, a obrigação (sinónimo de imposição) de entrega da carta de condução é inerente à própria pena acessória de proibição de conduzir, não existindo esta sem aquela.

7ª- Como decorre de tais normativos, a condenação em pena de proibição de conduzir implica a imposição ao condenado da obrigação de entrega do título de condução.

8ª- Aliás, a interpretação efectuada pela Mma Juiz, salvo o devido respeito por opinião contrária, para além de violar o texto da lei, não tem em conta a unidade do sistema jurídico.

9ª- Na verdade, segundo tal interpretação teríamos de concluir que o legislador tratava de forma mais benévola a violação da «sanção» de natureza criminal do que a violação da correspondente sanção de natureza contra-ordenacional.

10ª- Pelo exposto, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de violação de proibições, previsto e punível pelo artigo 353° do CP, que lhe vem imputado na acusação».

            3. O arguido respondeu a tal recurso, pedindo a sua improcedência.

            Conclui assim:

                «I. O elemento objectivo do tipo do crime violações de imposições, proibições e interdições, previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal, é o de “proibição de conduzir” e não a entrega da carta de condução.

II. A entrega da carta de condução, voluntária ou coerciva, traduz-se num mero acto execução da sanção acessória e não da sanção em si mesma.

III. O cumprimento da sanção acessória de inibição de condução só se inicia com a sua entrega na secretaria pelo período de tempo que durar a proibição, cfr. o disposto no artigo 500º/4, do Código de Processo Penal.

IV. Só podemos falar numa verdadeira violação de proibições ou imposições quando se inicia o cumprimento da sanção acessória, ou seja, da proibição, e não num momento anterior».  

            4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de que o recurso merece provimento.

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser este recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

II. Fundamentação

           

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1], a questão a decidir consiste em saber se é de manter ou não a absolvição do arguido pela prática do crime p. e p. pelo artigo 353º/1 do CP.

Ou seja, o que se discutirá, em 1ª linha, é se estão ou não perfectibilizados todos os requisitos objectivos e subjectivos para a subsunção ao citado crime do artigo 353º do CP do comportamento do arguido em não entregar a sua carta de condução após uma condenação em pena acessória, apesar da cominação feita por um juiz.

           

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

2.1. É este o elenco dos FACTOS PROVADOS:

· «O arguido foi condenado em 16 de Março de 2009, por sentença proferida no processo sumário n.º 44/09.7 GTVIS, que correu termos no 2º Juízo Criminal de Viseu, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses;

· O arguido foi notificado para, em 10 dias, após o trânsito em julgado da decisão, entregar a sua carta de condução no Tribunal ou em qualquer posto policial;

· Nos 10 dias após o trânsito em julgado da sentença e até ao dia 2 de Maio de 2009 (sendo certo que o arguido a teve em seu poder até ao dia 9 de Junho de 2009, data em que a entregou para cumprimento da decisão administrativa proferida no âmbito do processo n.º 251369889), o arguido não entregou a sua carta de condução como podia e devia;
· O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que estava obrigado a cumprir a imposição determinada na sentença proferida de proceder à entrega da sua carta de condução a fim de cumprir a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses, não obstante, não procedeu à referida entrega;

· O arguido tem um filho de 1 ano de idade a quem está obrigado a pagar a título de prestação de alimentos a quantia mensal de € 100,00;

· O arguido já sofreu a seguinte condenação:
o No processo sumário n.º 44/09.7GTVIS, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, foi condenado por sentença de 16/03/2009, transitada em julgado no dia 21/04/2009, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, sendo os factos de 14/03/2009 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses».

2.2. É este o FACTO NÃO PROVADO:
«Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, não se provando que:
· O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal».

2.3. Motivou-se, assim, tal decisão de facto:
«O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade dada como provada com base na análise crítica e ponderada da prova produzida, concretamente, no teor dos documentos de fls. 2 a 24, 53, 54, 78 a 87 e 100 a 127.
Quanto ao concreto facto vertido em 2.1.4. teve-se em consideração o teor dos documentos juntos aos autos a fls. 129 a 134
                        No que se refere aos antecedentes 53 e 54».

2.4. Fundamentou, desta forma, o tribunal «a quo» esta absolvição:
 «O arguido está acusado da prática de um crime de violação de proibições ou interdições nos termos do artigo 353º Código Penal.
Prescreve o artigo 353º do Código Penal que, “Quem violar proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.”
            O bem jurídico tutelado pelo crime de desobediência traduz-se na não frustração de sanções impostas por sentença criminal. (cf. Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, Tomo III, pág. 400).
            Sob o ponto de vista objectivo a descrição típica é aparentemente clara, uma vez que aponta a espécie de proibições ou interdições impostas por sentença criminal que devem considerar-se abrangidas: apenas as que integram uma pena acessória ou uma medida de segurança. (cf. Cristina Líbano, in ob. citada, na mesma página).
            Do ponto de vista subjectivo, este crime integra não apenas a representação de que a conduta que se adopta viola uma proibição ou uma interdição, mas também a consciência de que essa proibição ou interdição violadas forma parte de sentença criminal (cf. Cristina Líbano, in ob. citada, pág. 403).
            Da matéria de facto dada como provada resulta não estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos de tal ilícito.
            Na verdade, na esteira da mais recente jurisprudência dos tribunais superiores a propósito deste ilícito criminal, como aquela que se encontra plasmada nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra proferidos nos processo n.º 295/09.4 TAVIS. C1, n.º 2185/08.1 TALRA. C1 e 1745/08.2 TAVIS. C1, entende-se que a não entrega da carta de condução para cumprimento de pena acessória de proibição de conduzir não integra o ilícito criminal constante do artigo 353º do Código Penal.
            Com efeito, decorre da supra citada jurisprudência, que a violação de imposições prevista naquele preceito legal reporta-se a uma imposição relativa a pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, sendo certo que a entrega da carta de condução no prazo legal após o trânsito em julgado da decisão não é em si mesma uma pena acessória e sim antes o materializar e até controlo do cumprimento da pena acessória.
            Deste modo, a sentença não deve impor a entrega e, caso não se verifique a entrega voluntária, encontra-se solução no disposto no artigo 500º do CPP, cujo n.º 2 e n.º 3 prescrevem que: “2- No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo; 3- Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução”.
            Donde, a consequência da não entrega da licença de condução é apenas ser ordenada a sua apreensão».

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

           

3.1. Alega o MP recorrente que apenas recorre de DIREITO.

Vejamos, contudo, em primeiro lugar, se surge algum vício da sentença que possa contender com a decisão de FACTO proferida pelo tribunal criminal de Viseu.

Tais vícios são de conhecimento oficioso.

3.2. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem:

- primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada (o que não é o presente caso);

- e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal.

Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

3.3. Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).

Em matéria de vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do CPP, cumprirá ainda dizer que, apesar de tudo o que tem sido dito e redito pacificamente na jurisprudência e na doutrina, continua a ignorar-se o melhor desses ensinamentos e a trazer aos recursos sempre o mesmo tipo de argumentação quanto à tipificação desses vícios.

Confunde-se sistematicamente o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova; confunde-se o da al. b) - (contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) - com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) - com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.

E, para cúmulo dos cúmulos, só raramente se não faz tábua rasa da invocação de vícios fora do quadro resultante do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência.

3.4. Ora, analisando a decisão recorrida, vislumbramos esses vícios oficiosos.

Expliquemos porquê.

Dá como não provado o tribunal que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, MAS depois de dar como provado que:

· O arguido foi notificado para, em 10 dias, após o trânsito em julgado da decisão, entregar a sua carta de condução no Tribunal ou em qualquer posto policial;

· Nos 10 dias após o trânsito em julgado da sentença e até ao dia 2 de Maio de 2009 (sendo certo que o arguido a teve em seu poder até ao dia 9 de Junho de 2009, data em que a entregou para cumprimento da decisão administrativa proferida no âmbito do processo n.º 251369889), o arguido não entregou a sua carta de condução como podia e devia;
· O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que estava obrigado a cumprir a imposição determinada na sentença proferida de proceder à entrega da sua carta de condução a fim de cumprir a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses, não obstante, não procedeu à referida entrega.

É sabido que, de acordo com a doutrina sustentada por Figueiredo Dias, a consciência da ilicitude é um elemento do dolo – o elemento que ele designa de «emocional» e que acresce aos elementos intelectual (representação, previsão ou conhecimento dos elementos do tipo de crime) e volitivo (vontade de realização daqueles elementos do tipo objectivo).

A atitude perante a proibição em que se consubstancia a consciência da ilicitude não exige a noção exacta de todas as consequências jurídicas da acção ou de toda a dimensão dos efeitos jurídicos desta.

Não se exige, pois, o grau de conhecimento do jurista, mas apenas o grau de conhecimento que decorre do senso do cidadão comum, a quem a proibição é dirigida.

No nosso caso, o tribunal deu como provado, além do mais, que o arguido foi notificado para em 10 dias, após o trânsito em julgado da decisão, entregar a sua carta de condução no Tribunal ou em qualquer posto policial; que o arguido não fez essa entrega a que estava obrigado; que o arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que estava obrigado a cumprir a imposição determinada na sentença proferida de proceder à entrega da sua carta de condução a fim de cumprir a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses.

A consciência de que a acção é ilícita e – apesar disso – o arguido decide levá-la a cabo assumindo uma atitude de contrariedade ou indiferença pela proibição, infere-se dos demais factos provados.

Como poderia o arguido, tendo em vista os demais factos provados, não ter consciência da ilicitude?

Não se vê, por exemplo, como sustentar que houve erro sobre os elementos essenciais do facto constitutivos do crime, pelo que não haverá lugar à aplicação do art.16º do CP porquanto não se provou que existisse algum erro sobre as proibições cujo conhecimento fosse razoavelmente indispensável para a consciência da ilicitude.

Tão-pouco se poderá dizer que o arguido agiu por engano ou erro de consciência ética. É que a questão da ilicitude, no caso em apreço, não se revela discutível ou controvertida, nem no plano social nem no plano axiológico.

A consciência da ilicitude do arguido está implícita no próprio facto tal como se encontra descrito - que estava obrigado a cumprir a imposição determinada na sentença proferida de proceder à entrega da sua carta de condução a fim de cumprir a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses e que, não obstante, não procedeu à referida entrega.

Ainda que existisse erro, o que não se vislumbra, o arguido não teria actuado com o cuidado imposto a uma pessoa portadora duma recta consciência ético-jurídica, informando-se e esclarecendo-se sobre a proibição legal. E, neste caso, a existência de erro seria censurável, o que não lhe afastaria o dolo.

Ou seja:

Tendo em vista que a consciência da ilicitude consiste numa percepção, ainda que genérica e difusa, que não exige que o agente tenha um conhecimento exacto e preciso das normas incriminadoras, facto a que chegamos por dedução lógica, temos para nós que, a partir dos próprios factos provados, resulta, por um lado, a existência de contradição na fundamentação e de erro notório e, por outro, não nos parece necessário recorrer ao reenvio para corrigir esses vícios e alterar a decisão da 1.ª instância, de modo a afirmar, como provado, que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Aliás, é a própria decisão recorrida a dizer que o arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que estava obrigado a cumprir a imposição determinada na sentença proferida de proceder à entrega da sua carta de condução a fim de cumprir a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses, e que, não obstante, não procedeu à referida entrega.

De tal facto decorre, por inferência, a consciência da ilicitude, se nada mais se disse que, com razoabilidade, a afaste.

E, na realidade, nada se disse na fundamentação de facto que possa justificar esse facto não provado (o que geraria até uma nulidade de sentença por falta de fundamentação).

Vê-se à distância que o tribunal recorrido apenas colocou tal facto como não provado para justificar a falta de tipicidade da conduta do arguido, de acordo com tese que seguiu, em termos jurídicos e de fundo.

Como tal, só há que corrigir o elenco dos factos provados e não provados, de imediato, sem necessidade de recorrer ao reenvio (artigo 426º/1, 1ª parte do CPP), assente que «é possível decidir da causa».

Ficarão, assim, do lado dos factos provados os seguintes:

· «O arguido foi condenado em 16 de Março de 2009, por sentença proferida no processo sumário n.º 44/09.7 GTVIS, que correu termos no 2º Juízo Criminal de Viseu, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses;

· O arguido foi notificado para, em 10 dias, após o trânsito em julgado da decisão, entregar a sua carta de condução no Tribunal ou em qualquer posto policial;

· Nos 10 dias após o trânsito em julgado da sentença e até ao dia 2 de Maio de 2009 (sendo certo que o arguido a teve em seu poder até ao dia 9 de Junho de 2009, data em que a entregou para cumprimento da decisão administrativa proferida no âmbito do processo n.º 251369889), o arguido não entregou a sua carta de condução como podia e devia;
· O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que estava obrigado a cumprir a imposição determinada na sentença proferida de proceder à entrega da sua carta de condução a fim de cumprir a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses, não obstante, não procedeu à referida entrega;
· O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

· O arguido tem um filho de 1 ano de idade a quem está obrigado a pagar a título de prestação de alimentos a quantia mensal de € 100,00;

· O arguido já sofreu a seguinte condenação:
o No processo sumário n.º 44/09.7GTVIS, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, foi condenado por sentença de 16/03/2009, transitada em julgado no dia 21/04/2009, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, sendo os factos de 14/03/2009 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses».

E nenhum facto ficará nos NÃO PROVADOS.

3.5. Se assim é, então há que entrar na questão de fundo:

Decidamos se comete um crime de violação de imposições p. e p. pelo artigo 353º/1 do CP o arguido que não entrega a sua carta de condução após uma ordem dada nesse sentido por um juiz.

            Esta questão tem sido quase unanimemente decidida por esta Relação, no sentido de entender que inexiste o crime de desobediência, não obstante poder ter havido uma 1ª decisão judicial a tal cominar.

Quanto à fundamentação, reproduziremos a tese por nós defendida, entre outros, no Acórdão desta Relação de 14/10/2009 (Pº 513/05.8TAOBR.C1), não vendo nós relevantes razões para alterar a nossa anterior posição doutrinária.

3.6. Dissertemos.

Para nós, a não entrega da carta de condução não configura o crime de desobediência, p. e p. no artigo 348º, n.º 1 do Código Penal.

Mas haverá outro crime em causa?

Note-se que os factos narrados nos autos ocorreram em data[2] posterior à entrada em vigor da Lei n.º 59/2007 de 4/9 (diploma que veio rever o Código Penal), sendo, assim, abrangidos pelo seu novo regime.

Estaremos agora perante o crime de violação de imposições p. e p. pelo artigo 353º do CP (nova redacção)?

É o que importa decidir.

Recordemos o teor dessa norma:

«Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias».

Ora, o confronto do texto actual com a anterior redacção do preceito não deixa margem para dúvidas – aditou-se o substantivo «imposições».

E para quê?

A descrição típica do crime, anteriormente apenas epigrafado de “Violação de proibições ou interdições”, foi substantivamente ampliada, prevendo agora, não só o sancionamento por violação das proibições impostas por sentença criminal a título de pena acessória, mas também a criminalização dos casos consubtanciadores de violação de imposições determinadas a igual título.

Bem acentua Alberto Mira, no seu eloquente Acórdão desta Relação de 20/10/2010, citado nas alegações do Exmº PGA:

«A incriminação que, na lei antiga, apenas tratava de garantir o cumprimento de sanções impostas por sentença criminal que não possuíssem qualquer outro meio de assegurar a sua eficácia, foi alargada com a nova lei, de modo a contemplar também a violação de imposições onde se integra, inter alia, o não cumprimento de obrigação determinada na sentença, consubstanciada no dever de entrega, pelo arguido, da carta/licença de condução.

Como observa Cristina Líbano Monteiro, a propósito dos artigos 349.º-354.º do Código Penal, tais preceitos emprestam a certas decisões do foro criminal a força coactiva prática de que careciam. Quando o tribunal condena, constitui o condenado numa situação de sujeição, que se traduz na maioria dos casos em deveres a observar.

Na situação concreta, com a amplitude normativa supra assinalada, concedida pela Lei n.º 59/2007 ao artigo 353.º, quis o legislador estabelecer consequências jurídico-penais para a violação da imposição, determinada na sentença, de entrega da carta/licença de condução

Afigura-se-nos, pois, que a incriminação agora prevista no artigo 353.º foi obviamente alargada com o objectivo de incluir os casos de incumprimento de imposições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória, nos quais se integra a situação traduzida na omissão de entrega, por arguido a quem está imposta pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor nos termos do artigo 69.º do CP, no prazo legalmente fixado previsto (cfr. artigos 69.º, n.º 3 e 500.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal) e determinado na sentença, de carta/licença de condução.

Os artigos da lei adjectiva penal supra referidos não contêm, é certo, qualquer cominação de punição da não entrega da carta de condução como crime.

Mas não teriam que conter, pois apenas regulam os moldes pelos quais o ordenamento jurídico procura efectivar e garantir o estrito cumprimento da pena acessória imposta, cabendo à lei substantiva penal a definição do quadro criminalizador».

Note-se ainda que na “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei n.º 98/X, que esteve na origem da Lei n.º 59/2007, diploma que alterou o Código Penal pode ler-se que «O ilícito criminal de violação de proibições ou interdições é alargado. Entre as condutas típicas inclui-se agora também a violação de imposições, pelo que o tipo de crime englobará o incumprimento de quaisquer obrigações impostas por sentença criminal, tenham elas conteúdo positivo ou negativo».

Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pp. 226 e 834, deixa opinado que:

· «Se o arguido não entregar a carta no prazo fixado, comete o crime do artigo 353º do CP», devendo o juiz, na sentença condenatória proferida em processo penal, «ordenar a entrega do título de condução, com a advertência do artigo 353º do CP, se a mesma não se encontrar já apreendida», na medida em que «a previsão deste artigo foi alargada com o propósito de incluir precisamente estes casos de incumprimento de imposições resultantes de penas acessórias»;

· «O tipo objectivo – do artigo 353º do CP – consiste na violação de imposições (obrigações sanções de conteúdo positivo), proibições ou interdições (sanções de conteúdo negativo) determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade», nela se incluindo as sanções previstas «nos artigos … 69º …do CP».

Se assim não fosse, não se veria utilidade no acrescento do substantivo «imposições» na letra do artigo 353º.

Presume-se que as alterações legais sejam feitas com fitos determinados e objectivos precisos – neste caso, achamos que o legislador de 2007, perante o vazio legal ínsito nas nossas explanações de 3.1., e que estão na base da nossa consideração de que inexiste crime de desobediência no acto da não entrega de um título de condução após uma condenação em pena acessória, tomou finalmente a decisão de incluir no elenco de crimes essa actividade, usando o artigo 353º para tal efeito (entendendo que não seria curial usar o artigo 500º do CPP, como norma adjectiva que é, para tomar tal posição expressa e constitutiva).

Era importante deixar uma força coerciva suplementar, paralela à que já consta do artigo 160º, n.º 3, do Código da Estrada para as contra-ordenações. Sob pena de se deixar ao critério do arguido a decisão do melhor momento para cumprir a pena acessória (e sabemos que a execução da pena acessória só se inicia com a entrega da carta ou efectiva apreensão, como a jurisprudência tem sempre acentuado).

E ficarão finalmente satisfeitos aqueles que consideravam que haveria sempre de haver a cominação de um crime perante a omissão da entrega do título de condução, só se assim se compreendendo a letra do artigo 69º, n.º 4 do CP, quando impõe que «a secretaria do tribunal comunica a proibição de conduzir à DGV (…), bem como participa ao Ministério Público as situações de incumprimento do disposto no número anterior», encontrando-se assim, enfim, a coerência do sistema sancionatório em termos globais, nesta matéria de crimes ligados maieuticamente a infracções rodoviárias.

Não se ignora que há quem opine que o que a norma do art. 353.º do CP diz é que pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória, não falando a lei em imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória.

Para tal tese, sancionada pelo relator do Acórdão desta Relação de 12/5/2010 (Pº 1745/08.2TAVIS.C1), só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória: v.g. quem conduzir (art. 69.º do CP), quem exercer função (art. 66.º do CP) ou quem violar a suspensão do exercício de funções (art. 67.º do CP), já não o praticando quem não cumpre as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória: v.g, não entrega a carta de condução, não entrega a cédula profissional, não entrega a arma e carteira identificativa de serviço, estas obrigações processuais.

Argumenta-se que a obrigação de entrega da carta não faz parte do conteúdo da própria pena acessória, sendo certo que o legislador define o conteúdo desta no art. 69º/1 do Código Penal – se assim é, a imposição material penal é a “proibição de conduzir”, tão só.

O substrato material da pena acessória em causa é a proibição de conduzir, excluindo-se dela o acto de entrega da carta como elemento integrante desse substrato.

Perante a não entrega da carta, resta a apreensão da mesma (artigo 500º/3 do CPP), nada mais.

No dito acórdão desta Relação, sancionadora de tese contrária àquela que é por nós aqui defendida, deixa-se escrito que:

«Só no período de execução da pena fará então sentido falar-se em violação de proibições judiciais. Até à entrega espontânea ou forçada da licença de condução não haverá execução da pena e consequentemente violação de proibição judicial.

Se bem se atentar na redacção do tipo e para o que ao caso interessa, nele se dispõe que comete o crime «quem violar imposições ou proibições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória».

Ou seja, o tipo prevê como conduta criminosa a voluntária violação de imposições ou proibições que integrem o conteúdo duma pena acessória.

E a pena acessória no caso consubstancia-se na “proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses”. Pergunta-se -, a obrigação de entrega no indicado prazo da carta de condução integra tal proibição? Obviamente que não! É apodíctico que não integra a pena a obrigação da entrega da carta nas indicadas condições».

Para tal tese:

§ o preceito (353º) quando fala em imposições não se refere à situação em apreço;

§ entende que o que no preceito está agora clara e completamente dito é que a condução no período da proibição aplicada constitui infracção penal - aquela infracção penal;

§ o cidadão que conduz no período em que está proibido de o fazer, em virtude da pena acessória imposta, pratica aquele crime.

§ o que a norma diz é que quem violar imposições, proibições… determinadas… por sentença criminal …a título de pena acessória é punido – ou seja, o que a lei quer é não deixar na impunidade o incumprimento (com culpa dolosa) da pena acessória aplicada.

§ o juiz na sentença (em consequência do julgamento) condena na proibição de conduzir – esta proibição é que é a pena (acessória) aplicada. O arguido não é condenado a entregar o título num determinado prazo.

§ a questão da obrigação de entrega do título de condução constitui parte de um procedimento coactivo de modo a levar o arguido a cumprir a pena, mas só.

        

Não comungamos da bondade desta tese, precisamente por entendermos que, se é certo que a obrigação de entrega em prazo da carta de condução não integra a proibição[3], já integrará a imposição ínsita no novo tipo legal.

Imposição é uma sanção de carácter positivo, QUE PODERÁ ATÉ TER INCIDÊNCIA PROCESSUAL, na medida em que funciona como uma mais-valia de coercividade a uma real proibição decretada por sentença.

Imposição é, segundo o Dicionário de Língua Portuguesa 2006 – Porto Editora, é o acto de impor, reporta-se a «coisa imposta», a «ordem que tem de se obedecer».

Existe proibição quando se manda não fazer, abster-se de uma conduta, estando previstas essas proibições nos artigos 66º, 67º, 69º/1 e 2, 90º-A, n.º 2, alíneas c), 179º, 246º e 346º

As interdições estão previstas nos artigos 100º e 101º do CP.

E onde estão, afinal, as imposições acrescentadas em 2007 no tipo legal?

Parece-nos que o sistema legal penal, sem ser ferido de morte, suporta a interpretação de que cabe nessa imposição a ordem dada por um juiz para entrega da carta de condução num determinado prazo a fim de que seja cumprida uma pena acessória de proibição (artigo 69º/3 do CP).

Como adianta Cristina Líbano Monteiro, no Comentário Conimbricense do Código Penal, p. 402, «afinal, o artigo 353º tem um papel parecido com o da prisão subsidiária no domínio da pena de multa: funciona como um incentivo, uma norma dissuasora do não cumprimento da reacção criminal, uma sanção penal de constrangimento».

Queremos melhor constrangimento que esta norma aplicada ao n.º 3 do artigo 69º do CP?

E não deixa de ser esta ordem – que não terá somente, por isso, uma fisionomia processual – parte integrante da pena acessória aplicada. Por tal motivo, consideraremos que essa ordem judicial de entrega da carta é determinada por sentença criminal, a título de pena acessória (não o sendo somente a proibição de conduzir).

Por tal motivo, somos remetidos de imediato para a letra do artigo 353º do CP.

O que, diga-se a finalizar, não faz a nossa tese violar o princípio da legalidade, o disposto no artigo 18º, n.º 2 da CRP e o princípio da intervenção mínima do direito penal.

3.7. Em sede conclusiva, diremos, a propósito, que:

1º- Existe crime de desobediência nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução após ser condenado pela prática de contra-ordenação, a que corresponde sanção acessória de inibição de conduzir;

2ª- Até à entrada em vigor do CP, na versão de 2007, não existia crime de desobediência – quer pela alínea a) (inexistência de norma expressa que tal comine), quer pela alínea b) (inexistindo legitimidade legal para tal cominação casuística feita pelo julgador) nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir;

3º- Após 15/9/2007, pratica o crime do artigo 353º do CP aquele que não entrega a carta após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir

Diremos ainda que nos parece que, após a leitura da sentença condenatória, onde se venha a incluir uma pena acessória de proibição de conduzir, o arguido deve ser notificado/informado de:

A)- que deve entregar o título de condução no prazo de 10 dias, sob pena do mesmo lhe vir a ser apreendido, nos termos do artigo 500º, n.ºs 2 e 3 do CPP;

B)- que a não entrega da carta nesse prazo o fará incorrer na prática de um crime de violação de imposições p. e p. pelo artigo 353º do CP;

C)- que a condução de veículo motorizado no período de proibição o fará incorrer na prática de um crime de violação de proibições p. e p. pelo artigo 353º do CP[4];

Concluímos, assim, que os factos descritos na acusação preenchem os requisitos objectivos e subjectivos do crime de violação de imposições, proibições ou interdições previsto no artigo 353.º do Código Penal.

O que só pode significar que o arguido deveria ter sido condenado em vez de absolvido, devendo proceder totalmente a acusação pública (assente ainda que não convenceu a versão do arguido, segundo a qual não entregou a carta por estar a mesma apreendida no âmbito doutro processo, o que não corresponde à verdade por singela confrontação de datas – cfr. fls 15 e 127).

3.8. E QUEM CONDENARÁ O ARGUIDO?

Esta Relação ou a 1ª instância?

Poderíamos dizer que por imposição da necessidade de garantir um segundo grau de apreciação recursiva, a condenação do arguido deveria ser efectivada pelo tribunal recorrido , assim tendo decidido o Acórdão da Relação de Évora de 6/12/2011 (Pº 102/10.5TAPSR.E1).

Contudo, entenderemos que sempre deverá ser o tribunal recorrido a tal fazer pelo facto de não termos elementos suficientes no acervo factual apurado em julgamento (artigo 355º do CPP) sobre a condição económica do arguido, justificadora da concreta dosimetria da pena a aplicar-lhe – a 1ª instância, antes, porém, reabrirá a audiência para apurar tais elementos factos em falta.

De facto, a decisão sob recurso é facticamente omissa quanto aos elementos necessários à determinação da espécie e da medida da pena a aplicar.

Como tal, e com vista ao respectivo suprimento, determinar-se-á a devolução dos autos ao tribunal recorrido o qual deverá proceder à reabertura da audiência (Artigo 371º do CPP) com vista ao apuramento e fixação dos factos atinentes à escolha e medida da pena, que cominará.

3.11. Procederá, assim, o recurso do MP.

III. DISPOSITIVO

           

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - desta Relação em julgar procedente o recurso do Ministério Público, e, em consequência, revogam a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que condene em pena adequada o arguido pela prática de um crime de violação de imposições, proibições e interdições de que vinha acusado, reabrindo-se, previamente, a audiência para apurar mais elementos factuais sobre a condição económica do condenado.

            Sem custas.


Paulo Guerra (Relator)

Alberto Mira



[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões»).

[2] Logo posterior a 15/9/2007.
[3]E não precisávamos de todo deste novo preceito para considerar que incorria neste crime quem conduzisse em período de duração da dita «proibição», sendo certo que se teve sempre por assente tal incriminação.
[4]Já a violação da inibição de conduzir após prática de contra-ordenação é subsumida à letra do artigo 348º/2 do CP, por referência à norma do artigo 138º/2 do CE (mesma moldura penal abstracta do artigo 353º do CP).