Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
169/18.8PBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Data do Acordão: 12/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 152.º DO CP
Sumário: I - O bem jurídico protegido pela incriminação do art.º 152.º do CP é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem-estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge ou pessoa em situação análoga, e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem-estar.

II – Muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças, está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano.

III - Na descrição típica da violência doméstica, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa.

IV – Pese embora, admite-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, isto é, quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal do cônjuge.

V – In casu, ao invés da visão redutora assumida pela 1.ª instância, resulta que os comportamentos provados do arguido se reconduzem a um típico exercício de domínio sobre o outro, de “coisificação da pessoa humana”, actuações que dentro de um relacionamento de união de facto que devia importar especial respeito e consideração, adquire uma intolerável afectação da dignidade humana, ainda mais, quando um dos parceiros pretende e demonstra que pretende terminar essa relação. Vontade que deve ser respeitada pois, as relações não podem ser impostas muito menos, com violência física e psicológica. Uma relação entre o casal tem que ser saudável, respeitável, um tango dançado em uníssono. Quando uma corda se parte, há que deixá-la solta e livre, sem amarras e ferros que vão destruindo tudo o que se criou e originando lesões incuráveis.

O arguido não só exerceu violência física sobre a ofendida como foi exercendo violência psicológica sobre a mesma. Portanto, o que se verifica é que o arguido, desrespeitou os seus deveres para com a ofendida, atingindo o corpo e a saúde da mesma de tal forma, que pôs em causa a dignidade pessoal da ofendida.

Decisão Texto Integral:





Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.

O Ministério Público, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, acusa:

AM, imputando-lhe a prática de factos susceptíveis de integrarem a autoria material, em concurso real e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, alíneas b) e d), n.º 2, alínea a) e n.º 4 e 5 (penas acessórias) do Código Penal, e de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, n.º 1 do Código Penal.


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 A ofendida CM constituiu-se assistente deduziu acusação particular contra o arguido, aderindo à acusação do Ministério Público.

Mais deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido a fls. 135-142 peticionando a condenação deste no pagamento de indemnização no valor de 4.500,00€ por danos não patrimoniais, para compensação das dores, sofrimento, humilhação e mal-estar sofridos em consequência da conduta do arguido, bem como de indemnização no valor de 1.834,46€ por danos patrimoniais, correspondentes ao custo de reparação do seu veículo em consequência dos danos causados pelo arguido.


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Procedeu-se a audiência de julgamento, com produção de prova. Previamente à leitura da sentença procedeu-se à comunicação ao arguido da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, bem como da alteração da qualificação jurídica de tais factos, convolando-se a prática de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152º, n.º 1, alíneas b) e d), n.º 2, alínea a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal na prática, em concurso efectivo e autoria material de um crime de ofensas à integridade física simples p.p. pelo art. 143.º n.º1 do Código Penal e de um crime de perseguição p.p. pelo art. 154.º-A, n.º1, 3 e 4, do mesmo diploma legal, nada tendo sido requerido

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Após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que decidiu:

A. Absolver AM pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º n.º 1 al. d) e n.º2 do Código Penal,

B. Condenar AM pela prática, em autoria material, em concurso efectivo, em dia não concretamente apurado do mês de Novembro de 2017, de um crime de ofensa à integridade física simples p.p. pelo art. 143.º n.º1 do Código Penal na pena de 80 (oitenta) dias de multa.

C. Condenar AM pela prática, em autoria material, em concurso efectivo, no dia 25.04.2018, de um crime de perseguição, p.p. pelo art.154.º -A n.º 1 do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa.

D. Condenar AM pela prática, em 26.03.2017, de um crime de dano p.p. pelo artigo 212.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa.

E. Em cúmulo jurídico de penas, condenar o arguido na pena única de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, á taxa diária de seis euros (6 €);

F. Condenar AM na pena acessória de proibição de contactos com a assistente, pelo período de 9 meses, incluindo a proibição de o arguido se aproximar ou deslocar-se à residência desta, bem assim como de lhe telefonar, enviar mensagens ou qualquer outra forma de comunicação.

G. A proibição de contactos será fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância (independentemente do consentimento do arguido, face ao superior interesse da vítima – cf. o art. 36.º n.º7 da Lei 112/2009, de 16.09).

H. Condenar o arguido nas custas criminais, fixando a taxa de justiça em 3 (três) UC.

I. Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil formulado pela demandante CG, e, em consequência, condenar o arguido a pagar àquela:

a. a quantia de 1.834,46€ (mil, oitocentos e trinta e quatro euros e quarenta e seis cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais;    

b. a quantia de 1.500,00€ (mil e quinhentos) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais;

c. absolvendo-o do restante pedido formulado.

J. Condenar demandante e demandado no pagamento das custas cíveis, na proporção dos respectivos decaimentos, sem prejuízo do disposto no art. 4.º n.º 1 al. m) do RCP.

 


***
Desta sentença interpôs recurso o Ministério Público.
            (...)
Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, cumpre agora decidir.

O recurso abrange matéria de direito e de facto já que a prova se encontra documentada.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:
1. CG e o arguido AM conheceram-se em Fevereiro de 2016, e mantiveram, desde Agosto desse ano e até sensivelmente Outubro de 2017, uma relação análoga à dos cônjuges, pernoitando em casa da vítima, nas (...), ou em casa do arguido, em (...) e (...).  
2. Em Setembro de 2016, na sequência de uma carta que o arguido recebeu, a falar da vítima e com teor ameaçador para com o arguido, o arguido criou a convicção de que alguém do círculo da assistente os pretendia separar e passou a controlar os telefonemas entre a assistente, as amigas e o filho daquela, bem como a evitar os convívios da assistente ou do casal com os mesmos.
3. Concomitantemente, na sequência de desentendimentos entre o casal, em várias ocasiões não concretamente determinadas, dirigiu à assistente expressões com o seguinte teor: …que tinha os nervos descontrolados; …que não se sabia vestir; …que não sabia conduzir; …que não sabia dançar; …que o tinha atraiçoado; …que não era “senhora” nenhuma (sendo certo que no inicio da relação o arguido elogiava a assistente, dizendo-lhe que ela era uma “senhora”).
4. Nomeadamente, no mês de Agosto de 2017, após um almoço na (...) e divergências sobre a refeição, no seio de uma discussão, o arguido referiu à assistente “Tu estás maluca! Não estou para te aturar! Deves ir procurar outro psiquiatra! Se não estás boa, podes ir ao (...) para te atirares!”.
5. E começou, progressivamente até Outubro de 2017, a passar períodos, primeiro de 2 dias e depois de 12 dias, sem a assistente, nas casas de (...) e (...).
6. Entretanto, a assistente começou a desconfiar que o arguido lhe mentia quanto ao motivo dessas deslocações e às chamadas que recebia, e a relação deteriorou-se, ocorrendo desentendimentos constantes entre ambos por via de tais ausências e desconfianças.
7. Na sequência de tais factos, no início de Outubro de 2017, aproveitando uma dessas ausências do arguido, a assistente, sem avisar ou justificar ao arguido, saiu de casa e esteve a viver em casa de uma amiga até final daquele mês.
8. Durante esse período de tempo, o arguido tentou por diversas vezes, através de mensagens e chamadas telefónicas, contactar a assistente para saber da mesma, sendo que esta nunca lhe respondeu.
9. Porém, no final de Outubro de 2017, o arguido interceptou a assistente junto da residência desta pedindo-lhe desculpa, tendo a assistente aceitado, então, reatar a relação.
10. O reatamento durou cerca de 4 dias, passados os quais o arguido ausentou-se de casa da assistente, enviando-lhe uma mensagem no sentido de que a relação não resultava por causa dos ciúmes da assistente.
11. Ao que a arguida respondeu: …fica cada um para o seu lado, agradeço-te que nunca mais ligues nem mandes mensagens.
12. O arguido ficou 2 ou 3 dias sem contactar a assistente e, depois, quando pretendeu fazê-lo novamente para reatar a relação, a assistente nunca mais o atendeu.
13. E, em consequência, desde então o arguido remeteu várias mensagens à assistente, quer no Messenger, quer no telefone e no Facebook, fazendo, entre pedidos para reatar a relação e para falar com ela, críticas às amigas da assistente.
14. E escreveu as cartas documentadas a fls. 12-15vs dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
15. Em meados desse mês de Novembro de 2017, em data não concretamente apurada, o arguido abordou a assistente na Pastelaria (...), nas (...), pretendendo falar consigo.
16. Quando CG disse que não havia nada a falar, o arguido começou a exaltar-se, tentando agarrá-la e questionando com quem estava ali a tomar café, o que levou a que aquela saísse da pastelaria, tentando, dessa forma, evitar conflitos à frente dos demais clientes.
17. AM seguiu a assistente até ao exterior e, quando esta se introduziu na sua viatura, aquele, não tendo autorização para o efeito, abriu a porta da frente, do lado do passageiro, e sentou-se.
18. A assistente tentou, então, sair do veículo e o arguido, para a impedir, agarrou-a no braço e afirmou que não a deixaria sair dali sem falar consigo.
19. CG deu um safanão ao arguido, conseguindo sair do carro.
20. O arguido saiu atrás dela e, já na rua, agarrou a assistente, afirmando que a não iria deixar, que tinha errado e que queria reatar o namoro, tentando nesse momento dar-lhe um beijo na boca.
21. Nesse momento, através da intervenção da amiga da assistente, BM, a assistente soltou-se e fugiu, em passo de corrida, pela via pública.
22. O arguido seguiu atrás da assistente, levando a que esta se assustasse, desequilibrasse e caísse no solo.
23. De seguida, a assistente apressou-se para a sua viatura, para assim sair daquele local, altura em que o arguido também se apressou para a viatura dele com o intuito de continuar a seguir a assistente, sendo no entanto travado pela amiga de CG, A (...) (...), que colocou a sua viatura à frente da viatura daquele.
24. Na sequência dos agarrões e da queda referidos em 18), 20) e 22), CG sofreu hematomas nos braços e bateu com o joelho esquerdo no chão, causando-lhe dores, não tendo, porém, recebido tratamento hospitalar.
25. Com medo do arguido e receosa com o que se havia passado pudesse voltar a suceder, a assistente, no seguimento dos factos referidos, esteve até finais de Janeiro ou inícios de Fevereiro fora das (...), em casa de uma amiga, e passou a querer andar na rua acompanhada pelas suas amigas, evitando estar sozinha.
26. O arguido, desde esses factos e até 25 de Abril de 2018, continuou a telefonar cerca de cinco vezes por dia à assistente, tanto de dia como de noite, enviando igualmente cerca de duas mensagens por dia a solicitar o reatar da relação, tudo contactos aos quais a assistente não dava resposta.
27. Tal como passava várias vezes e com viaturas diferentes nas imediações da casa da assistente, no intuito de se mostrar e controlar os movimentos e acções da mesma.
28. Em data não concretamente apurada, mas que se situará em Fevereiro/Março de 2018, pelas 00H00, o arguido remeteu uma mensagem à vítima, afirmando estar no exterior da sua residência e que queria entrar para conversar, pretendendo que aquela abrisse a porta e que ninguém iria ver.
29. Tais acções geraram um sentimento de grande, nervosismo, inquietação e medo, levando a que tivesse telefonado à sua amiga A (...) (...), a chorar, pedindo auxílio.
30. Ali chegada, A (...) (...), face ao estado em que encontrou a assistente, decidiu levá-la para sua casa, sendo seguidas pelo arguido durante todo esse percurso.
31. No dia 5 de Março de 2018, pelas 9H01, o arguido, através do Messenger, remeteu uma mensagem à assistente, onde se lia: “C, mais uma noite sem dormir
Só quero ter a certeza quem é o teu dono ou dona
As coisas talvez não vão ficar assim”
32. No dia 8 de Março de 2018, o arguido remeteu uma mensagem à assistente, afirmando que poderia sair à vontade de casa com as amigas, que não a procuraria, ficando em casa e que não iriam, por isso, encontrar-se.
33. No mesmo dia, AM seguiu a vítima até (...), onde se havia deslocado para jantar com as amigas no Restaurante (...) e, com auxílio de um objecto que não foi possível identificar, efectuou diversos riscos na pintura na viatura da marca Volkswagen, (...), matrícula (...), o qual se encontrava estacionada no exterior do restaurante.
34. No dia 26 de Março de 2018, o arguido, sabendo que a vítima se encontrava em casa da sua amiga A (...) (...), sita na Rua (...), com auxílio de um objecto que não foi possível identificar, efectuou diversos riscos na pintura na viatura da marca Volkswagen, (...), o qual se encontrava estacionada na rua.
35. No dia 9 de Abril de 2018, nas (...), o arguido seguiu o veículo tripulado pela assistente durante cerca de cinco minutos, estando ambos de carro, e quando a assistente entrou na Volkswagen, na Estrada (...), o arguido imobilizou o seu veículo em frente daquele estabelecimento, onde permaneceu até a assistente se ausentar do local.
36. O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, com intenção concretizada de impor a sua presença em vários momentos contra a vontade da vítima, enviando mensagens, dirigindo as palavras referidas, seguindo-a na via pública, e de agarrar, tentando beijá-la, bem sabendo que tais actuações, eram susceptíveis de causar à assistente, como causaram, para além das dores e hematomas, medo, receio e inquietação.
37. Ao riscar o automóvel da vítima, o arguido agiu também de forma livre voluntária e consciente, bem sabendo que dessa forma estragava o carro e pintura de CG, não tendo autorização para o fazer e que actuava contra a sua vontade.
  (...)
***
Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (Ac do STJ de 19/6/96, no BMJ 458-98).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo penal”, III, pg 335).

Questões a decidir:
(...)
- Erro notório na apreciação da prova
- Qualificação jurídica;
(...)
Assim, o Tribunal ao não dar como provado o elemento subjectivo acima referido violou o disposto no artº 410, nº 2 al c) do CPP.
Desta forma deve ser alterada a matéria de facto provada dela passando a constar o seguinte:
            37. A- O arguido actuou com intenção, concretizada, de atingir a assistente na sua saúde física e psíquica, pretendendo, com as acções levadas a cabo e supra descritas, fazer ressaltar o seu poder sobre CG (...) e lesar a sua integridade moral e dignidade pessoal, não se abstendo de levar a cabo tais condutas.
E, assim sendo, retira-se dos factos não provados a alínea c).
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  Sustenta, ainda o recorrente que o Tribunal a quo entendeu, que a factualidade dada como provada consubstancia a prática, em concurso efectivo, de um crime de ofensa à integridade física e de um crime de perseguição, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 143.º, n.º 1 e 154.º-A, ambos do Código Penal, e não um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal. Entendeu, para o efeito, que a factualidade provada não atinge a gravidade exigida pela noção de maus tratos físicos ou psíquicos, prevista na incriminação pelo crime de violência doméstica.
No entanto, o Ministério Público considera que preenche o elemento objectivo do tipo do crime de violência doméstica quer a conduta isolada do agente assume carácter violento, quer a reiteração de condutas que pela sua configuração global desrespeitam a pessoa da vítima ou configurem um desejo de prevalência de dominação sobre a mesma.
Dispõe o artº 152 nº 1 als b) e d):
            “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
.           (…)
            A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga á dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
            (…)
            “A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez, ou dependência económica, que com ele coabite;
152 nº 2:
            “No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão, de dois a cinco anos”.
            A necessidade de criminalização das condutas previstas neste preceito adveio da progressiva consciencialização acerca da gravidade de um fenómeno social de proporções tanto mais alarmantes quanto encapotadas e altamente lesivo, com repercussões quer a nível da formação individual, quer a nível da integridade do próprio tecido social. Fenómeno esse do qual são vítimas pessoas particularmente vulneráveis e indefesas em razão dos vínculos, nomeadamente de natureza familiar ou análoga, que as ligam às pessoas dos seus agressores e em resultado dos quais se estabelecem entre estes e aquelas relações de subordinação ou de domínio de facto, que as colocam em situação de dependência económica e/ou emocional. Pretendeu-se, pois, contrariar um sentimento de impunidade - encorajado pelo facto de tais condutas serem habitualmente praticadas em círculos privados ou muito restritos, longe dos olhares alheios, nem sempre denunciadas e ainda mais raramente reclamada a sua punição até às últimas consequências, seja por medo de represálias, vergonha de expor publicamente a situação ou falta de capacidade para o fazer (circunstâncias, aliás, propiciadoras da sua proliferação) -, bem como travar a espiral de violência em que se traduzem e os demais efeitos nocivos que desencadeiam, reprimindo a sua prática.
O bem jurídico protegido pela incriminação e, como vem referido no ac do STJ de 30/10/2003, proferido no Proc. nº 3252/03-5ª, in CJSTJ, 2003, III, pg 208 e segs, é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem-estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem-estar.
Na expressiva síntese de Taipa de Carvalho (“Comentário….”, Loc. Cit. 332), “o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental”, estando “na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana” a ratio do artigo 152.º do Código Penal.
Em sentido idêntico se tem pronunciado a jurisprudência, como é sublinhado no acórdão do STJ, de 02.07.2008, disponível em
www.dgsi.pt (relator: Cons. Raul Borges), citando-se aí o acórdão daquele Supremo Tribunal de 30.10.2003 (CJ/Acs. STJ, 2003, T. 3) em que se manifesta o entendimento de que “o bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem-estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem-estar».
É a exigência de especial gravidade da conduta maltratante que se acentua no acórdão da Relação de Lisboa, de 07.12.2010 (disponível em www.dgsi.pt), de que se transcreve o respectivo sumário:
“I - O tipo de crime de «violência doméstica» do art. 152º do C. Penal antes da reforma operada pela Lei nº 59/2007 designado como crime de «maus tratos» visa punir criminalmente os casos mais chocantes de maus tratos em cônjuges ou em pessoa em situação análoga. Pune-se um tratamento cruel, excessivo, sem respeito pela dignidade do companheiro, tudo com aproveitamento de uma autoridade do agente que lhe advém do uso e abuso da sua força física.
II – Com ele se visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano”. Na busca do exacto sentido da norma incriminadora em causa, no acórdão desta Relação, de 19.09.2012 (www.dgsi.pt) é posto em relevo o elemento histórico:
“I - Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.° 98/X, que esteve na origem da Lei n.° 59/2007, de 4/9, escreve-se: «na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa».
II - Para a realização do crime torna-se necessário que o agente reitere o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, isto é, quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal do cônjuge”.
Na mesma linha de exigência de que o acto ofensivo singular se revista de uma certa gravidade, situa-se o acórdão do STJ, de 06.04.2006 (C J/Acs. STJ, 2006, T. 2, 166), no qual se salienta não bastarem “as meras ofensas à integridade física” e que é indispensável “que um singular comportamento possa ter uma carga suficiente demonstradora da humilhação, provocação, ameaças, mesmo que não abrangidas pelo crime de ameaças, do acto de molestar o cônjuge ou equiparado”.
Ora, dos factos apurados resulta que, efectivamente, entre o arguido e a ofendida existia uma relação conflituosa que a ofendida pretendia terminar e que o arguido insistia na sua continuação, humilhando-a com as suas mensagens, perseguindo-a e, até danificando bens próprios da mesma, mostrando desta forma o seu poder e o seu controle sobre a ofendida. Aliás, a mensagem enviada á ofendida em que refere “só quero ter a certeza quem é o teu dono”, mostra que era o arguido que controlava ou pretendia controlar a ofendida e, portanto, tudo que com ela se relacionava, os amigos, as saídas…
Atento o que acima referimos acerca dos elementos do tipo de crime de violência doméstica, que também a sentença recorrida refere, para logo de imediato, no confronto com a factualidade provada, vislumbrar de modo redutor apenas uma ofensa à integridade física e um crime de perseguição, verificamos que os comportamentos descritos se reconduzem a um típico exercício de domínio sobre o outro, de “coisificação da pessoa humana” (como refere o AC desta relação 335/17.3PBCTB.C1 de 20/02/2019), actuações que dentro de um relacionamento de união de facto que devia importar especial respeito e consideração, adquire uma intolerável afectação da dignidade humana, ainda mais, quando um dos parceiros pretende e demonstra que pretende terminar essa relação. Vontade que deve ser respeitada pois, as relações não podem ser impostas muito menos, com violência física e psicológica. Uma relação entre o casal tem que ser saudável, respeitável, um tango dançado em uníssono. Quando uma corda se parte, há que deixá-la solta e livre, sem amarras e ferros que vão destruindo tudo o que se criou e originando lesões incuráveis.
O arguido não só exerceu violência física sobre a ofendida como foi exercendo violência psicológica sobre a mesma. Portanto, o que se verifica é que o arguido, desrespeitou os seus deveres para com a ofendida, ofendendo o corpo e a saúde da mesma de tal forma, que pôs em causa a dignidade pessoal da ofendida.
O arguido com o seu comportamento, ofendendo o corpo e a saúde da ofendida, da forma que o fez atingiu, o núcleo essencial do bem jurídico protegido pela incriminação.
Concluímos, pois, que a factualidade provada integra efectivamente a prática pelo arguido do crime de violência doméstica por que foi acusado, não só objectivamente, como também subjectivamente (cfr. factos provados 36, e 37-A).
Importa por consequência alterar a qualificação jurídica constante da decisão recorrida e condenar o arguido pela autoria do imputado crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e d) e nº 2 do Código Penal, punível com pena de prisão de dois a cinco anos.
(...)
**
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência decide-se:

- Alterar os factos provados passando a constar dos mesmos os seguintes factos provados:
  37. A- O arguido actuou com intenção, concretizada, de atingir a assistente na sua saúde física e psíquica, pretendendo, com as acções levadas a cabo e supra descritas, fazer ressaltar o seu poder sobre CG e lesar a sua integridade moral e dignidade pessoal, não se abstendo de levar a cabo tais condutas.

Elimina-se dos factos não provados a alínea c).

Condena-se, AM, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, alíneas b) e d), n.º 2 do Código Penal, na pena de dois anos e cinco meses de prisão.


Suspende-se a execução da pena de prisão pelo período de 3 (três) anos, com regime de prova assente num plano de reinserção social do arguido, nos termos dos arts. 50.º/1 e 5 e 53.º/1 a 3, do Código Penal;

Condena-se o arguido, AM, nas penas acessórias de proibição de contacto com a ofendida, CG, pelo período de 1 (um) ano, com afastamento da residência e do local de trabalho da mesma, de lhe telefonar, enviar mensagens ou qualquer outra forma de aproximação, em conformidade com o preceituado no art.º 152.º/4 e 5, do Código Penal;
A proibição de contactos será fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância (independentemente do consentimento do arguido, face ao superior interesse da vítima – cf. o art. 36.º n.º7 da Lei 112/2009, de 16.09).

No mais mantém-se a decisão recorrida.

Sem custas.

*
Coimbra, 18 de Dezembro de 2019

Alice Santos (relatora)

Belmiro Andrade (adjunto)