Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1063/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
ELEMENTO SUBJECTIVO
CIRCUNSTÂNCIAS QUALIFICATIVAS
Data do Acordão: 05/31/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 26º DO C. PENAL E 24º, AL. H), DO DL N.º 15/93 DE 22/1
Sumário: I- A acção típica, ainda que possuindo as suas valências conceptuais e segmentos de incidência valorativa, não pode deixar de ser vista na sua globalidade, isto é, nas suas assunções objectivas e subjectivas, sendo que elas se interpenetram e realizam num cauce fluente.
II- Qualquer circunstância (elemento acessório do crime principal) que tenha por função interferir na valoração da conduta de um sujeito responsável por uma acção delitiva, tem, para ser considerada no agravamento da responsabilidade penal, que ser traduzida em factualidade de referência típica, ou seja aquela factualidade que o legislador pretendeu incutir na descrição agravativa como relevante para a densificação do sentido axiológico-normativo com que pretende a salvaguarda de específicos bens jurídicos e a protecção dos valores ético-socialmente prevalentes.
Decisão Texto Integral: Acordam, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. – Relatório.
Desavindo com a decisão que, como autor material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos arts. 21º,nº 1 e 24º, al.h), ambos do DL nº15/93, de 22.1, com referência à tabela anexa I-B, com a agravação constante dos arts.75º e 76º do Cód.Penal, o condenou na pena de oito (8) anos de prisão, recorre o arguido A..., anteriormente residente no Bairro do Ingote, despedindo a motivação com as conclusões seguintes:
- “O recorrente foi condenado como autor material de tráfico de estupefacientes agravado, em reincidência, na pena de 8 anos de prisão;
- Não obstante a toda a matéria de facto dada como provada e descrita sob os nºs 2 a 9 e 20 a 22, o certo é que em lado algum da matéria de facto se colhe que o arguido recorrente tivesse conhecimento de que substâncias se tratava, enfim, elemento algum capaz de prefigurar o elemento subjectivo da eventual infracção penal cometida e pela qual já vem condenado em 8 anos de prisão;
- A condenação por negligência – se é que a houve – só pode acontecer nos casos expressamente previstos na lei – art.13º do Cód.Penal;
- Por isso, era tarefa indeclinável do tribunal recorrido a indagação postulada pelo objecto do processo definido pela acusação, daquele conhecimento ou falta dele, com vista a tomar a decisão de direito;
- Não o tendo feito, a decisão não pode vingar, importando reenviar o processo para aquele efeito – apuramento do elemento subjectivo da eventual infracção cometida pelo recorrente – e subsequente prolação de nova sentença em conformidade com os factos apurados;
- Termos em que, ao abrigo do disposto no art. 426º, nº1 do CPP, anulam parcialmente o julgamento efectuado, determinando o reenvio do processo para o tribunal a que alude o art. 426 –A, nº2 do mesmo diploma , devendo o novo julgamento reportar-se á única questão supra identificada, que complementará a já adquirida, e, em conformidade com o que nessa sede vier a apurar-se, a prolação de nova sentença em conformidade,
Sem prescindir, quando de outra forma se entenda,
- as circunstâncias agravantes no art. 24º do DL nº 15/93 não são de funcionamento automático, deve ter-se em conta a globalidade dos factos praticados, para se aferir se, no caso concreto, aquelas circunstâncias estão ou não preenchidas, tendo em conta o grau de ilicitude dos factos praticados;
- Este raciocínio não retira que, por estarmos perante um crime de perigo, basta a mera detenção para existir o perigo de, ao deter-se a droga no estabelecimento prisional, ela correr o risco de poder disseminar-se entre os reclusos;
- Mas aqui o ilícito basta-se pelo preenchimento da forma base do art. 21º do DL nº15/93, já que, apesar do recorrente ser o destinatário, ainda não tinha acesso ao produto, nem sequer se tinha apurado o destino;
- Daí que fosse correcta a punição no quadro do t5ráfico comum p. e p. no art. 21º do Dl nº 15/93, de 22.1;
Assim, revogando-se a decisão reclamada, nos termos sobreditos, far-se-á Justiça”.
Na comarca, o distinto Magistrado do Ministério Público, em lastrado e proficiente resposta, conclui que:
- “Sendo o STJ um tribunal de revista, pelo que só conhece matéria de direito, deverá rejeitar parcialmente o presente recurso, na medida em que o recorrente, a pretexto do conhecimento duma questão de direito, suscita questões de matéria de facto – a acórdão enfermaria do vício de insuficiência de matéria de facto, previsto no art. 410º, nº2, al.a) do CPP – pelo que requer a anulação parcial do julgamento e o reenvio do processo;
- Esse tribunal só poderá conhecer dos vícios da matéria de facto enunciados no art. 410º, nº2 do CPP, oficiosamente, caso os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugados com as regras de experiência, sendo que, n entanto, em nosso modesto entender, se não vislumbra qualquer um dos referidos vícios, pelo que a matéria fáctica apurada deverá ser dada como devidamente assente;
- Efectivamente sufragou este tribunal recentemente – Ac.de 21.4.2005 – que as circunstâncias agravantes previstas no art. 24º do DL nº15/93, de 22.1, não são aplicáveis automaticamente, devendo o tribunal ter em conta a globalidade dos factos praticados, para aferir se no caso concreto aquelas circunstanciasse mostram preenchidas, tendo em conta o grau de ilicitude dos factos;
- No caso vertente, entendemos bem ter andado o tribunal “a quo”, ao condenar o arguido pela circunstância agravante da al.h) do art. 24º do citado diploma, atento o facto de o mesmo já ter 3 condenações anteriores pela prática de crimes de tráfico de droga, que determinaram, aliás, que fosse condenado como reincidente, e pela finalidade que se propunha dar ao produto apreendido – venda a outros reclusos do estabelecimento prisional – conforme bem se percebe do conteúdo das escutas telefónicas realizadas nos autos e devidamente transcritas;
- Consequentemente, deverá o presente recurso, nesta parte, ser julgado parcialmente improcedente”.
Nesta instância, o preclaro Procurador-Geral Adjunto, em diserto parecer, é de opinião que o recurso não merece provimento.
Quanto ao apontado vício – de insuficiência da matéria de facto para a decisão - ele tem de resultar do texto da decisão recorrida e da análise da decisão respeitante à factualidade que o tribunal deu como adquirida torna-se patente que não ocorre o mencionado vício, pois a matéria de facto é suficiente para a decisão de direito prolatada.
Já no atinente á segunda questão que o recorrente pretende ver sindicada – agravação qualificativa prevista na al.h) do art. 24º do DL nº 15/93, de 22.1 – se exprime no sentido de que o seu funcionamento não é automático, “pois para a sua aplicação, em concreto, ter-se-á sempre de atender a uma visão global dos factos praticados – isto é, ao apuramento do grau de ilicitude – para assim se aquilatar se, no caso, se mostram ou não preenchidas”, mas que no caso dos autos, e “face ao conjunto material fáctico apurado, dúvidas insubsistem que a ilicitude de toda a conduta do arguido/recorrente é significativamente elevada, já que, desde data não concretamente apurada, se dedicava à venda de droga, em especial cocaína, nos estabelecimentos prisionais onde se encontrava em cumprimento de pena, contactando para o efeito o seu filho B..., que a introduzia no interior desses estabelecimentos, entregando-a ao pai, que, por sua vez e depois de a fraccionar, a vendia a número indeterminado de reclusos”.
Confina o recorrente as questões a conhecer pelo tribunal de recurso, a duas:
A – Indagar se a matéria de facto, em que o tribunal a quo travejou a sua decisão condenatória, incorpora e coonesta o elemento subjectivo do ilícito típico pelo qual o arguido foi condenado;
B – Indagar se a circunstância qualificativa contida no al.h) do art. 24º do DL nº 15/93, de 22.1 é de funcionamento automático.
II.A. – De facto.
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1 – O arguido A... encontrava-se recluso no Estabelecimento Prisional de Coimbra (EPC) /Estabelecimento Prisional Regional de Coimbra (EPRC) em cumprimento de pena de prisão.
2 - Desde data não apurada que este arguido se dedicava à venda de droga, em especial de cocaína, no interior desses estabelecimentos prisionais a reclusos consumidores de tais substâncias.
3 - A droga que revendia provinha do exterior do meio prisional, sendo-lhe entregue, por grosso, pelo arguido B..., filho daquele, na ocasião ainda em liberdade, tudo de acordo com o plano previamente gizado entre os dois.
4 - Para tanto, muitas vezes via telemóvel, os arguidos combinavam as quantidades de estupefaciente que era preciso levar para o EPC/EPRC.
5 - Assim, o pai transmitia tal ao arguido B..., após o que este providenciava pela aquisição do pretendido, designadamente na zona do Porto, a pessoa (s) não identificada (s).
6 - De seguida, de acordo com o combinado, na posse da droga, o B... deslocava-se ao EPC/EPRC, onde, aproveitando o horário das visitas a reclusos, a pretexto de visitar o seu familiar e iludindo a vigilância dos guardas prisionais, entregava-lhe o estupefaciente que levava, previamente encomendado.
7 - Como era hábito, uma vez em poder desse produto, o arguido A... fraccionava-o e vendia-o, então, aos reclusos consumidores, interessados na aquisição.
8 - Nestes termos, tal como vinha sendo feito, após ter recebido a encomenda de cerca de 20g de cocaína por parte do seu familiar, o arguido B... providenciou pela sua compra.
9 - De seguida, em 1 de Fevereiro de 2004, cerca das 11h, com esse produto em seu poder, aproveitando o horário das visitas a reclusos, dirigiu-se ao EPC, onde manifestou a intenção de visitar o pai.
10 - Quando já tinha transposto o portão interior do EPC e já se tinha identificado perante os guardas prisionais de serviço, preparando-se para se direccionar para a sala das visitas, foi interceptado pela PJ.
11 - Ao ser revistado, verificou-se que o mesmo tinha, junto aos testículos, uma embalagem em plástico, envolta em fita-cola, contendo um produto sólido de cor branca - cocaína -, com o peso bruto de 17,209g, ascendendo o peso líquido deste último a 15,263g.
12 - Entretanto, nesse mesmo dia, pelas 12h e 30m, foi efectuada uma busca domiciliária à sua residência, sita na rua do Túnel, nº 8, 2-, Coimbra, tendo-lhe sido aí apreendido um saco de plástico, o qual ostentava vários recortes, que haviam sido utilizados para acondicionar a droga que entregava regularmente a seus familiares no EPC/EPRC, designadamente a porção acima mencionada.
13 - Mais foi apreendido um esquema de um mapa que ele utilizava para comprar a droga que lhe era encomendada pelos referidos familiares.
14 - A cocaína apreendida, como era habitual, destinava-se a ser posteriormente fraccionada pelo arguido A..., a fim de ser vendida a reclusos.
15 - O telemóvel, marca Siemens, modelo ME 45, IMEI 350172546695894, contendo um cartão SIM correspondente ao nº 969922892, em regra usado pelo arguido B..., era um dos equipamentos utilizados pelos arguidos na combinação das operações relacionadas com a introdução de estupefacientes no meio prisional.
16 - O arguido A... já havia sofrido várias condenações criminais, sendo três delas por crimes de tráfico de estupefacientes, a saber:
17 -no processo comum colectivo nº 96/94, da 1ª Vara Criminal do Porto, foi condenado,
por acórdão de 28.6.94, transitado em julgado, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes, cometido em Agosto de 1991, na pena de 8 (oito) anos de prisão;
18 -no processo comum colectivo nº 2870/94, do 1º- Juízo Criminal da comarca de Matosinhos, foi condenado, por acórdão de 22.11.94, transitado em julgado, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes, cometido em 19.12.93, na pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- no processo comum colectivo nº 1085/01.8TACBR, da 1a Secção, da Vara Mista de Coimbra, foi condenado, por acórdão de 26.6.2002, transitado em julgado, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes, cometido em 20.7.2001, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;
19 - Entretanto, no processo comum colectivo n.º 101/91.4TBVNC, ex nº 63/94, do Tribunal Judicial da comarca de Vila Nova de Cerveira, por acórdão de 6.5.2003, transitado em julgado, foi efectuado cúmulo jurídico entra a pena de prisão aí aplicada, por crimes de dano agravado e de homicídio, na forma tentada e as penas de prisão aplicadas nos processos nº 96/94 e 2870/94, tendo sido condenado na pena única de 14 (catorze) anos de prisão.
20 -Em cumprimento de todas essas penas de prisão em que tem sido condenado, o arguido A... esteve preso, ininterruptamente, entre 8.10.1992 e 17.7.2001, altura em que foi solto, em liberdade condicional, que foi revogada mediante despacho de 28.11.2002, do TEP de Coimbra.
21 -Três dias depois de ter sido restituído a liberdade, ou seja em 20.7.2001, foi de novo preso, situação em que se mantém.
22 -O arguido B..., entre outras condenações, foi condenado, por 2 vezes, pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes.
23 - No processo comum singular nº 208/00.9PECBR, do 4º Juízo Criminal de Coimbra, por sentença de 7.4.2003, transitada em julgado, por crime praticado em 23.12.2000, na pena de 10 (dez) meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por 2 anos;
- No processo comum colectivo nº1874/01.3TACBR, de 1a Secção, da Vara Mista de Coimbra, por acórdão de 5.11.2003, transitado em julgado, foi condenado pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, praticado em 31.3.2001, na pena de 3 (três) anos de prisão, que ficou suspensa na sua execução pelo período de 3 anos.
24 - Os arguidos agiram voluntária, livre e conscientemente, com o propósito de para eles obterem proveitos económicos indevidos, resultantes da comercialização de droga, em especial de cocaína, no interior de estabelecimento prisional.
25 - Bem sabiam que a substância em apreço era cocaína, sendo conhecedores das suas características e qualidades estupefacientes.
26 - Tinham conhecimento que a compra, venda, cedência, detenção e seu consumo eram proibidos por lei.
Factos não provados – que o arguido A... seja considerado na sua zona de residência e ter bom comportamento anterior e posterior aos factos e trabalho garantido.
A convicção do tribunal assentou numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto, principalmente, de forma conjugada, no que aos factos provados diz respeito:
- No auto de relato de diligência externa de fls. 39, confirmada em audiência pelos Srs. Inspectores que a realizaram e que confirma a deslocação ao Porto do arguido B... no dia 31 de Janeiro de 2004 para proceder à aquisição do produto estupefaciente que tinha em seu poder;
- Nos autos de revista e de apreensão de fls. 41 a 53;
-nas declarações do arguido B... prestadas aquando do primeiro interrogatório ( fls. 73 a 76 ), nas quais, de forma espontânea e notoriamente na ausência da “ pressão “ paterna narrou os factos de forma a integrarem-se com a restante prova produzida;
- Nas declarações do arguido B... prestadas na audiência de julgamento apenas na parte em que confirma ter-se deslocado ao E.P. levando consigo o produto estupefaciente que lhe foi apreendido. No demais, apresentam-se sem qualquer credibilidade, tendo, de forma perfeitamente incoerente, ter tentado convencer o tribunal de que destinava o produto ao seu consumo pessoal;
- no exame laboratorial de fls. 182;
- na certidão do registo criminal de fls. 395 a 408;
- nas “ escutas telefónicas “ ordenadas nos autos onde resulta inequívoco da conversa travada entre os arguidos a combinação entre ambos acerca da entrega do produto estupefaciente
- nos depoimentos que se nos afiguraram sérios e isentos das testemunhas José Martins e Catarina Iria, Inspectores da P.J. que, para além de terem efectuado a diligência externa supra referida e bem assim à busca, procederam ainda à intercepção do arguido B... após ter entrado no EP, tendo ainda o primeiro procedido à revista posterior, encontrando-lhe o produto estupefaciente.
Já quanto aos factos não provados – por total ausência de prova a propósito dos mesmos.
II.B. De Direito.
II.B.1 – Elemento subjectivo do tipo de ilícito pelo qual o arguido foi condenado. Insuficiência da matéria de facto para preenchimento do elemento subjectivo do tipo de ilícito por que o arguido foi condenado.
O recorrente põe em crise a decisão do tribunal a quo por, em síntese apertada, não ter ficado demonstrado que o arguido sabia ou tivesse conhecimento de que substâncias, “ou, sequer, que tal averiguação tenha sido efectuada, enfim, de algum elemento capaz de prefigurar o elemento subjectivo da eventual infracção cometida (…), porque era tarefa indeclinável do tribunal recorrido a indagação daquele conhecimento, ou a falta dele, com vista a tomar firme decisão de direito, tal decisão, porque viciada por “insuficiência da matéria de facto”, não pode vingar, importando reenviar ao processo (sic) para aquele efeito e subsequente prolação de nova sentença em conformidade com os factos apurados”.
O arguido não sabia de que substância se tratava e isso inviabiliza a imputação do ilícito típico, por ausência do elemento subjectivo do tipo, importando, nos termos do no art. 426º, nº1 do CPP, que o julgamento seja parcialmente anulado e a consequente realização de um novo julgamento para apuramento de facticidade que possibilite a imputação, ou não, do tipo de ilícito pelo qual o arguido foi condenado.
Enfatizado esta primeira abordagem do recurso, o distinto magistrado do MºPº, junto do tribunal a quo, não curou de esculcar o recurso sob este prisma, preferindo abordá-lo na vertente da rejeição parcial quanto a esta parte em que o recorrente impugna a matéria de facto, não sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, como é jurisprudência pacifica.
Para pear o processo de aquisição intencional de preenchimento do tipo de injusto, o recorrente configura uma obturação no iter investigatório, consubstanciado na impossibilidade de saber que o co-arguido B... detinha droga e que esta lhe era destinada, quais as quantidades e qual a qualidade – cfr. ponto 4 da motivação. Toda a investigação se terá centrado, no entender do recorrente, na intercepção do “correio/portador” da droga e nas diligências posteriormente lavadas a efeito na casa deste. Nem a actividade anterior, do arguido no interior da cadeia, eventualmente traduzida na distribuição e venda de produtos estupefacientes, nem o que se poderia ter passado após a intercepção do arguido B... foi investigado de modo a poder conexionar a actividade do recorrente ao tráfico de estupefacientes no interior da cadeia.
Justificou, o tribunal a quo o elemento subjectivo inerente à concreção deste tipo de ilícito, pela forma seguinte: - ”O tipo subjectivo e, dado que o dolo se consubstancia no conhecimento dos elementos objectivos essenciais constitutivos do tipo e na vontade de actuar ao abrigo desse conhecimento, neste ilícito haverá dolo quando o agente tenha consciência da natureza estupefaciente da substância em causa e da ilicitude da actividade que visa ou que estava a desenvolver.
A intenção de traficar não faz parte do tipo subjectivo. Todavia, ela tem relevância para efeitos de delimitação do âmbito de aplicação do crime de tráfico, quando contraposto ao crime de consumo. Na realidade, verificadas todas as condições supra referidas para a verificação do crime p. p. no art. 21º, a punição aqui prevista só será afastada se o agente tiver actuado com a finalidade exclusiva do seu consumo pessoal (actualmente sancionada pelo Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro).
No caso, dúvidas não restam de que os arguidos se encontram incursos no crime de tráfico que lhes é imputado.
Com efeito, tal como resultou provado, desde data não apurada que, no seguimento de um plano previamente gizado entre os dois, o arguido B... introduzia droga, em especial cocaína, no Estabelecimento Prisional onde o arguido A.... se encontrava em cumprimento de pena de prisão e que este se encarregava de vender a outros reclusos consumidores de tais substâncias. Foi assim que, na execução da metodologia seguida, em 1 de Fevereiro de 2004, com esse produto em seu poder, aproveitando o horário das visitas a reclusos, o arguido B... dirigiu-se ao EPC, onde manifestou a intenção de visitar o pai, só não tendo conseguido entregar a cocaína que tinha em seu poder (com o peso líquido de 15,263g) ao arguido A..., graças à intervenção da P.J. (de resto, sabedora da operação através das escutas realizadas).
Assim, posto que agiram livre e conscientemente, sabendo da natureza estupefaciente das substâncias em causa e tendo actuado com pleno conhecimento de ser proibida e punida por lei tal conduta, sobrepõe-se à tipicidade da conduta, a ilicitude e culpa dos agentes”.
O recorrente não distingue na sua motivação se a falha que aponta à decisão – ausência do elemento subjectivo do tipo - se inere em algum dos específicos elementos subjectivos do tipo, e já agora quais, ou como elemento geral do tipo subjectivo (dolo típico)( Cfr. para mais desenvolvimentos sobre a distinção que deve ser operada entre dolo típico e elementos subjectivos especiais do tipo , vide Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Fundamentos. La Estructuta de la Teoria del Delito, Editorial Civitas, 1997, pags. 307 e segs e 414 e segs. )/( Na doutrina portuguesa veja-se Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, pag. 329 a 339. ). “Por dolo típico entende-se, segundo uma usual fórmula abreviada, o conhecimento (saber) e vontade (querer) dos elementos do tipo objectivo”.( Cfr. Op. loc. cit. P.308.)/( “A doutrina hoje conceitualiza-o, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito” – Cfr. op. loc. cit. Na nota 2, p.332. ) Procurando a delimitação entre os elementos subjectivos especiais do tipo e os elementos da culpabilidade escreve este autor que ela há-de ser encontrada por referência ao “tipo delictivo”. “un elemento subjectivo puede caracterizar el tipo delictivo al referirse al bien jurídico protegido; pero también puede cooperar a determinar el tipo delictivo caracterizando el objecto de la acción tipica, la forma de su menoscabo o tendencias relevantes para el injusto”.( Cfr. op.loc.cit. p.312.)
Cremos, no entanto, que o recorrente não coloca a questão especificamente em qualquer destes elementos – gerais ou especiais – mas sim na impossibilidade material e lógica de poder sequer a chegar a tomar conhecimento ou a aceder ao desvalor da acção que lhe é imputada. Ou, pelo menos, parece ser essa a interpretação que melhor se adequa ao segmento evocativo em que tenta excluir a inerência do elemento subjectivo à acção desvalorativa que lhe foi imputada e por que foi condenado, Ao recorrente não podia ter sido imputada a conduta delitiva por que veio a ser condenado, dado que ele não podia saber (estando no interior da cadeia) que tipo de produto o seu filho trazia, como o trazia e para que fins o trazia. Vale por dizer, se bem interpretamos o iter lógico-dedutivo do recorrente, que do acto de intercepção de que foi protagonista o seu filho não foram efectuados os consequentes envolvimentos e conexões objectivas que permitissem adstringir esse acto ilícito, o saber que a droga lhe era destinada e ele se dispunha a proceder à sua distribuição e venda, daquele concreto produto, no interior da cadeia. A acção delitiva esgotar-se-ia no acto que foi constatado e verificado pelos agentes de autoridade na pessoa do filho do recorrente não sendo legitimo inferir ou extrapolar outras consequências criminais para além das dire4cta e pessoalmente verificadas, designadamente, não será, em seu entender, possível ligá-lo à acção injusta de seu filho. Para isso teria que ser averiguada, como acima se disse, a conexão, com conhecimento e intenção, da sua parte em toda a acção ilícita.
A tese do recorrente não nos parece merecer acolhimento, se atentarmos no acervo probatório que foi dado como adquirido pelo tribunal a quo, designadamente, nos factos extractados nos itens um (1) a oito (8), “14 - A cocaína apreendida, como era habitual, destinava-se a ser posteriormente fraccionada pelo arguido A..., a fim de ser vendida a reclusos; e 24 - Os arguidos agiram voluntária, livre e conscientemente, com o propósito de para eles obterem proveitos económicos indevidos, resultantes da comercialização de droga, em especial de cocaína, no interior de estabelecimento prisional”.
Nos itens de um a oito, o tribunal descreve o modus operandi do recorrente, qual fosse o de mancomunado com o seu filho B..., receber o produto estupefaciente, que depois fraccionava, para proceder á venda, no interior da cadeia. O mesmo aconteceu com a “encomenda” que o arguido B... pretendia introduzir na cadeia, na sequência aviamento que fizera, junto de fornecedores, na cidade do Porto, da requesta do arguido A.... Não deixou o tribunal de conectar a cocaína apreendida ao recorrente quando descreve, no item catorze, que o produto apreendido se destinava a ser vendido pelo arguido, no interior do estabelecimento prisional, tal se convenceu o tribunal que sucedia com regularidade. E mais adiante, o tribunal não deixa de enfatizar a realização de proventos económicos que revertiam a favor de ambos os arguidos.
O pretenso hiato ou ruptura lógico-dedutiva que o recorrente pretende alçapremar da análise e donde se retiraria a hipotética insuficiência da matéria de facto para a decisão, não ocorre, como pensamos ter demonstrado na argumentação que desenvolvemos.
Ainda que seja de distinguir, no plano dogmático os elementos objectivos dos elementos subjectivos que se inoculam num determinado tipo de ilícito, o facto é que “hay que tener claro que la acción típica constituye una unidad de factores internos e externos, que no se puede romper, pero sí que puede tener presentes sus momentos particulares (tanto objetivos como subjetivos) en sus pecularidades”.( Cfr. Op. loc. cit.p.303)
A acção típica, ainda que possuindo as suas valências conceptuais e segmentos de incidência valorativa, não pode deixar de ser vista na sua globalidade, isto é, nas suas assunções objectivas e subjectivas, sendo que elas se interpenetram e realizam num “cauce” fluente.
Em face da solução a que chegamos, pensamos não ser necessário proceder a uma análise detalhada do vício com que o recorrente contravem à decisão. A insuficiência da matéria de facto não se verifica no caso em apreço, pois que o tribunal deu como adquirido que p arguido sabia que a droga que o seu filho pretendia introduzir na cadeia lhe era destinada e que ele se dispunha, se a ele tivesse acedido, a fraccioná-la e, posteriormente, a vendê-la aos reclusos, na esteira de práticas reiteradas e consideradas liquidas para o tribunal.
II.B.2.– Indagar se a circunstância qualificativa contida no al.h) do art. 24º do DL nº 15/93, de 22.1 é de funcionamento automático.
Clama o recorrente pelo não accionamento automático da agravante ínsita na alínea h) do art. 24º do DL nº15/93, de 22.1. Não poderia, segundo a sua estreme tese, o arguido ser punido mais gravemente, se não se apurar que, da conduta ilícita, resultou uma situação de concreto desvalor para a situação que a norma pretende salvaguardar. Nem tal poderá ser permitido pela natureza do ilícito que está em causa, ou seja tratar-se de um crime de perigo abstracto.
Aos arguidos B... e A..., foi imputada, no libelo acusatório, respectivamente, a prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artºs. 21º, nº 1 e 24º, alín. h) do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B a ele anexa, no que respeita ao arguido A..., ainda com a agravação dos artºs. 75º e 76º do Cód. Penal, por ser reincidente, com base nos factos constantes do despacho de fls. 623 a 629, os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos.
Em face doa facticidade que deu como adquirida para a decisão, razoou o tribunal que: “o crime cometido pelo arguido A... é punido com pena de prisão de 6 anos e oito meses a 15 anos de prisão (cfr. Artº 76º do Cód. Penal”, pelo que decidiu condenar” o arguido A... como autor de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, em reincidência, p. e p. pelos artºs. 21º, nº 1 e 24º, alín. h) do Dec. -Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B a ele anexa, e 75º e 76º do Cód. Penal na pena de oito (8) anos de prisão.”
Como se alcança do troço transcrito, o arguido A... foi acusado, tendo vindo a ser condenado como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos artigos 21º e 24º, al. h), ambos do DL nº 15/93, de 22.1, e com a agravação decorrente da sua atitude reincidente – artigos 75º e 76º do Cód.Penal.
“Circunstância do crime é, em geral, aquilo que está em torno (em redor) do crime (circum stat)”. ( Francesco Antolisei, Manuale di Diritto Penale, Parte general, Giuffrè Editore, Milano, 1997.)” O que caracteriza a circunstância em sentido técnico é o facto de que ela determina em regra (di regola) uma maior ou menor gravidade do crime e em todo (in ogni) caso uma modificação (agravamento ou atenuação) da pena” (tradução nossa).
O autor que vimos citando considera não deverem ser as circunstâncias agravantes imediata ou automaticamente valoradas, ao contrário do que parecia acontecer no pretérito ordenamento jurídico-penal italiano – antes de Fevereiro de 1990 -. Do mesmo passo considera que a reincidência não se pode incluir no rol das circunstâncias em sentido técnico. O artigo 70º do Cód. Penal italiano trata-as como “circunstâncias inerentes à pessoa do culpado, pelo que estas pretensas circunstâncias mais não são do que qualificações jurídicas subjectivas “as quais, por isso, ainda que influam na medida da pena, não podem considerar-se como “acessórias” do crime”.( Cfr. op. loc. cit., p.433. Traz em socorro da sua tese, que refere não ser a maioritária, autores como Bettiol e Mantovani- vide nota à página citada.)
Qualquer circunstância (elemento acessório do crime principal) que tenha por função interferir na valoração da conduta de um sujeito responsável por uma acção delitiva, tem, para ser considerada no agravamento da responsabilidade penal, que ser traduzida em factualidade de referência típica, ou seja aquela factualidade que o legislador pretendeu incutir na descrição agravativa como relevante para a densificação do sentido axiológico-normativo com que pretende a salvaguarda de específicos bens jurídicos e a protecção dos valores ético-socialmente prevalentes.
Assim é que, não bastaria que o arguido detivesse um produto estupefaciente no interior do estabelecimento prisional, antes se tornará necessário demonstrar que o detentor de um determinado produto o destinava, não ao consumo pessoal, mas sim á distribuição onerosa, ou não, por usuários do mesmo espaço. As especiais condições em que se encontram os usuários de um espaço confinado e restritivo, como é o espaço prisional, exige que aqueles que neles se inerem adquiram e assumam comportamentos de contenção e arrimados às regras e regulamentos que, de ordinário, vigoram neste tipo de espaços, pelo fim, a que se destinam, por um lado, e pelo disciplina e controle a que devem estar submetidos. A simples ameaça de introdução de produtos estupefacientes em ambientes fechados e propensos à disseminação de estereótipos constitui-se como factor de perturbação das regras e da necessidade de observância de condutas isentas de tonalidades transgressoras e colidentes com os ditames de reeducação que devem presidir numa instituição que deve procurar reabilitar e ressocializar aqueles que se apartaram das normas socialmente estabelecidas.
Os arguidos, tal como resulta inequivocamente provado, vinham introduzindo, de acordo com planos gizados, porções de estupefacientes no interior do estabelecimento prisional, que o arguido/recorrente se predispunha a vender à população prisional. Os elementos fácticos que incorporam e emolduram a circunstância agravativa contida na alínea h) do art. 24º do DL nº 15/93, de 22.1 parecem estar verificados no acervo probatório que nos é dado sindicar.
Não resultou a aplicação da circunstância de um impulso espontâneo ou imediatista do tribunal, mas de uma ponderada e sopesada avaliação da acção ilícita que os arguidos vinham desenvolvendo há já algum tempo, de forma mancomunada e congraçada.
Não agiu, o tribunal a quo de forma arbitrária e desgarrada, antes se conteve nos estritos limites de validação de uma conduta que se revelou ser integradora de um “plus” ( Cfr. autor e obra citados, p.435.) além do ilícito típico por que nuclearmente deveriam ser punidos.
III. – Decisão.
Na defluência do exposto, decidem os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido A..., mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
- Condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 10 (dez) UCs.


Coimbra, 31 de Maio de 2006