Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | BELMIRO ANDRADE | ||
Descritores: | CRIME DE MAUS TRATOS A CÔNJUGE CRIME PÚBLICO ARMA BRANCA ABERTURA AUTOMÁTICA | ||
Data do Acordão: | 11/18/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE PENACOVA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA PARCIALMENTE | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS115º, 152º CP, 5º CP E 2º,86º DA LEI 5/2006 DE 23/2 | ||
Sumário: | 1. Só por força da redacção dada pela Lei n.º 7/2000, de 27.05 o crime de maus-tratos a cônjuge, p.p. pelo artigo 152 nº. 1 e 2 do C.P passou a assumir a natureza genuína de crime público. 2. Assim, até à entrada em vigor da referida Lei 7/2000, não tendo sido apresentada queixa dentro do prazo legal, os factos constitutivos do crime, deixavam de poder ser perseguidos criminalmente, por falta de um pressuposto processual, a menos que (após a vigência da Lei 65/98) o MºPº justificasse a existência de interesse da vítima e a não oposição desta. 3. Mantém-se nítida - agora reforçada - a distinção operada pelo art. 86º da Lei 5/2006 de 23/2 (na anterior como na actual redacção) entre armas brancas em sentido estrito (tal como definidas no art. 2º) e facas de abertura automática/ponta e mola prescindido o legislador, em relação a estas últimas, de qualquer referência ao comprimento da lâmina e bastando-se com o automatismo/mola de abertura. | ||
Decisão Texto Integral: | I. A..., arguido identificado nos autos, recorre do acórdão do Tribunal Colectivo que decidiu: - Condenar o arguido/recorrente, como autor do crime de maus-tratos a cônjuge, p.p. pelo artigo 152 nº. 1 e 2 do C.P., na pena de dezoito meses de prisão; e - Como autor do crime de detenção de arma proibida p. p. pelo artigo 86-1 d) da Lei 5/2006, na pena de 100 (cem) dias de multa à razão de 5€ (cinco euros), o que perfaz a multa de 500€ (quinhentos euros); - Condenar o arguido, em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, na pena única de um ano e seis meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período de tempo, e na multa de quinhentos euros. - Julgar procedente o pedido de indemnização formulado e, em consequência condenar o arguido - demandado a pagar à demandante a quantia de 2.500,00 € (dois mil e quinhentos euros), acrescidas dos juros vincendos, contados desde a notificação do pedido e até ao pagamento, à taxa geral, vigente. * Na respectiva motivação, formula as seguintes CONCLUSÕES 1. Nos factos considerados provados pelo tribunal não consta nada quanto à personalidade ou comportamento do arguido, não obstante as declarações das testemunhas de defesa S... (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009, 12h, 22m e 48s (inicio do gravação) a 12h, 32m e 47s (fim da gravação), B... (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009, 12h, 33m e 19s (inicio da gravação) a 12h, 40m e 08s (fim da gravação) e R... (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009, 12h, 40m e 32s (inicio da gravação) a 12h, 46m e 51s (fim da gravação), sendo o apuramento de tais circunstâncias relevantes para o apuramento da pena e respectiva medida a aplicar, pelo que, a referida omissão na douta sentença, configura uma nulidade da sentença, nos termos do art. 379º nº 1, al. c) do C. P. Penal. 2. A factualidade dada como provada não traduz, a nosso ver, e salvo o devido respeito, com exactidão, tudo aquilo que se passou em audiência de discussão e julgamento e não está conforme com a prova ali produzida, uma vez que o tribunal alicerçou a sua convicção nos depoimentos prestados pelas testemunhas indicadas na acusação - mãe e irmãs da ofendida M..., em detrimento dos depoimentos das testemunhas indicadas pela defesa, no sentido de não ter atribuído igual importância a estes, por ter considerado que estas tinham um “conhecimento da vida do casal de forma superficial, dado o relacionamento casual com os mesmos”. Todavia, o contacto com as testemunhas de acusação não era diário, nem próximo, sendo certo que uns viviam na Suíça e outros em Portugal, e grande parte dos relatos que fizeram foi a reprodução de conversas com a ofendida e de telefonemas feitos por esta. 3. A testemunha J..., mãe da ofendida (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009, 11h, 14m e 32s (inicio da gravação) a 11h, 37m e 48s (fim da gravação) não escondeu a sua antipatia, má vontade e animosidade, em relação ao arguido, e não obstante, o tribunal considerou que o seu depoimento foi “decisivo” e “isento”. Foi categórica em afirmar que quanto ás agressões só assistiu por uma única vez, no dia 14/07/2006 e quanto ao mais que lhe era perguntado, apenas sabia o que lhe ia sendo contado pela filha. 4. A testemunha D..., irmã da ofendida (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009, 11h, 38m e 36s (início da gravação) a 11h, 51m e 00s (fim da gravação) nunca viu o arguido bater na ofendida e que nunca tinha presenciado qualquer agressão. Do que presenciou referiu, laconicamente, episódios entre o casal (ofendida e arguido), esclarecendo que começavam em brincadeiras e que acabavam mal. Afirmou várias vezes que não se lembrava de quaisquer expressões ofensivas proferidas pelo arguido dirigidas à ofendida e só depois da Mma. Juiz lhe ler o que constava na acusação é que a testemunha disse “sim”. 5. A testemunha F..., irmã da ofendida (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009, 11h, 51m e 30s (inicio da gravação) a 11h, 58m e 10ss (fim da gravação) afirmou que nunca presenciou qualquer agressão do ofendido, que só via o casal às vezes, ao fim de semana e que o que sabia era através da irmã, aqui ofendida, que lhe contava. Esclareceu que o casal às vezes lá discutia mas não era bater, nem tão pouco. E justificou as discussões com os problemas deles. 6. O filho do casal E..., (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009, 1h, 51m e 30s (início da gravação) a 11h, 58m e 53ss (fim da gravação) que optou por viver com o pai, aqui arguido, deixou passar algum desagrado em relação à postura da ofendida, sua mãe, e foi o bastante para o tribunal entender que o seu depoimento foi “induzido”, ao invés do que sucede com a testemunha J..., mãe da ofendida, que transmitiu claramente que nunca gostou do arguido, nos termos já expostos. 7. As demais testemunhas de defesa S... (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009, 12h, 22m e 48s (início da gravação) a 12h, 32m e 47s (fim da gravação), B... (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009. 11h, 33m e 19s (inicio da gravação) a 12h 40m e 08s (fim da gravação) e R... (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009, 12h 40m e 32s (inicio da gravação) a 12h, 46m e 51s (fim da gravação) transmitiram ao tribunal a ideia que o casal constituído pela ofendida e pelo arguido seria igual a tantos outros, com um relacionamento normal, sem relatarem qualquer episódio de agressões ou de ofensas e foram categóricos em afirmar as boas qualidades e bom comportamento do arguido. 8. Nenhuma testemunha assistiu a episódios de ofensas perpetradas pelo arguido, tendo as testemunhas da acusação contado apenas o que a própria ofendida lhes ia dizendo e nem sequer o fizeram de forma precisa, clara e objectiva, com excepção dos factos do dia 14/07/2006, relatados pela J... (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009, 11h, 14m e 32s (inicio da gravação) a 11h, 37m e 48s (fim da gravação) 9. Dos depoimentos das testemunhas resulta que o arguido quando se dirigia à ofendida em tom menos cordial ou recorrendo a linguagem menos própria, o fazia, no seio de discussões entre ambos e por problemas que tinham (cfr. testemunha F..., gravação de áudio de 22/04/2009, 11h, 51m e 30s (inicio da gravação) a 11h, 8m 10s (fim da gravação), contrariamente ao que foi considerado pelo tribunal a quo. 10. Os factos considerados provados quanto à doença do arguido também não foram ponderados no sentido de formular a dúvida (que reverteria sempre a seu favor) quanto ás condições em que este se encontraria quando tais factos se passaram ou o estado em que ficou por causa dos mesmos 11. Não constam da motivação da decisão sobre a matéria de facto, as “impressões” do depoimento da ofendida M..., nem em que medida as suas declarações contribuíram para a formação da convicção do tribunal. 12. Relativamente à matéria de facto considerada provada e constante dos parágrafos 4º 5º 7º e 10º não se pode alicerçar no depoimento de qualquer das testemunhas que foram todas unânimes em afirmar que nunca tinham assistido a quaisquer destas agressões e nem sequer existem quaisquer registos clínicos que possam documentar tais ocorrências, independentemente, das razões que motivaram a sua ocultação, o que viola o disposto no art. 127º do Cód. Proc. Penal. 13. Se os referidos factos não fossem considerados provados, não restam dúvidas que da restante matéria de facto considerada provada, o arguido, poderia, quando muito, ser condenado pela prática de um crime de ofensas corporais, pelos factos ocorridos no dia 14/07/2006 14. Uma vez que apenas a ofendida se referiu a tais factos (parágrafos 4º, 5º, 7º e 10º), o tribunal deveria fazer aplicação do princípio constitucional do “in dúbio pro reo” (art. 32º, nº 2 da C.R.P.)., decidindo a favor do arguido. 15. Não tendo o tribunal a quo reconhecido essa dúvida, que, a nosso ver, resulta evidente do texto da decisão ora recorrida, por si só e conjugada com as regras da experiência comum, houve violação do art. 127º do Cód. Proc. Penal e erro notório na apreciação da prova, por incorrectamente julgada e apreciada a matéria de facto constante dos parágrafos supra referidos (4º, 5º 7º e 10º), vício que aqui expressamente se invoca e a que se refere a al. c) do nº 2, do art. 410º do mesmo diploma legal e, além do mais, reportando-nos apenas à matéria de facto dada como provada, estamos em crer, que a mesma é de todo insuficiente para fundamentar a decisão condenatória, fundamentando, a nosso ver, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que respeita a aí. a) do referido art. 410º, já que da douta sentença nada se extrai quanto ao contexto da prática dos factos. 16. A douta sentença recorrida violou, para além do mais, o disposto no art. 142º do C.P. 17. Relativamente à condenação do arguido pelo crime de detenção de arma proibida, p.p. art. 86º, nº 1, al. d) da Lei n.º 5/5006, de 23 de Fevereiro, por ter na sua posse a arma - faca de ponta e mola - com uma lâmina de 9,9 cm, toda a jurisprudência tem entendido que não é arma proibida uma navalha cuja lamina tenha um comprimento inferior a 10 cm por não preencher o conceito de faca de ponta e mola para efeitos de preenchimento do referido tipo legal de crime (cfr. Ac. RP, de 03/12/2008, processo 084570:. e Ac. RC, de 01/04/2009, in www.dgsi.pt, atenta a conjugação do disposto nas als. l) e ar) daquele preceito. 18. Pelo que, deverá o arguido ser absolvido da prática deste crime. 19. Não foram dados como provados factos suficientes para condenar o arguido no pagamento da quantia de € 2.500 como indemnização dos danos não patrimoniais sofridos pela M... quis nem sequer logrou fazer prova dos mesmos. 20. Assim, mesmo que o arguido venha a ser condenado pela prática do crime de violência doméstica, deverá aquele montante ser reduzido. Termos em que deve a sentença em apreço ser revogada e substituído por outra que absolva o arguido dos crimes pelos quais vinha acusado, ou assim não se entendendo, condenado pela prática do crime de ofensas corporais, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA. Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido concluindo que o recurso não merece provimento, porquanto a convicção do tribunal assentou essencialmente no depoimento da queixosa, da mãe e da irmã, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova. No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex. Mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se pronuncia no sentido da improcedência do recurso, porquanto o acórdão não padece de qualquer dos vícios do art. 410º do CPP e a apreciação da prova subjacente obedece ao critério do art. 127º do CPP. Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP. Corridos os vistos e realizado o julgamento, mantendo-se a validade e regularidade afirmadas no processo, cumpre conhecer e decidir. II. 1. Sintetizando as conclusões, definidoras do objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir, sem prejuízo de outras de conhecimento oficioso situadas no âmbito da matéria do recurso: - nulidade da sentença por não nada ter dado como provado quanto á personalidade ou comportamento do arguido; - impugnação da decisão da matéria de facto dada como provada pelo tribunal recorrido sob os §§ 4, 5, 7 e 10, invocando os vícios do art. 410º, n.º2 do CPP, bem como a violação do princípio in dubio pro reo e as regaras da experiência comum, dizendo que valorou os depoimentos das testemunhas de acusação que não presenciaram os factos em detrimento dos depoimentos das testemunhas arroladas ela defesa; - se a detenção da navalha apreendida, com uma lâmina de comprimento inferior a 10 cm. (9,9 cm., no caso) preenche os elementos do tipo objectivo do crime de detenção de arma proibida pelo qual vem condenado; - valor da indemnização relativa a danos não patrimoniais. Para a sua apreciação, vejamos a decisão da matéria de facto do tribunal recorrido, com a motivação que a suporta. * 2. A decisão do tribunal recorrido, com a motivação que a suporta, é a seguinte: A) Matéria de facto provada: 1. O arguido casou com a ofendida, M…, em 26 de Dezembro de 1987, conforme certidão do assento de casamento junta a fls. 100. 2. Desde há cerca de 18 (dezoito) anos a esta parte - reportados à data da queixa - o arguido vem atingindo a ofendida na sua honra e consideração, apelidando-a de “puta”, “vaca” e “bruxa” e atingiu-a na sua integridade física, algumas vezes, quase sempre influenciado pelo álcool que ingere. 3. Há cerca de 18 anos na residência dos pais do arguido, em S…, o arguido agrediu a ofendida M... com uma bofetada, que a atingiu na face, que tratou sem recurso a assistência médica. 4. Cerca de um ano depois, quando já se encontravam emigrados na Suíça, o arguido apertou o pescoço da ofendida, o que fez com que tivesse desmaiado. 5. Ainda na Suíça, alguns anos mais tarde, no interior da residência de ambos, o arguido agrediu a ofendida a murro e a pontapé e foi ameaçada e injuriada com as seguintes expressões: “um dia destes dou-te um tiro, que te mato”, “sua puta”, “sua vaca”. 6. Em virtude destes factos, uma vizinha chamou a Polícia local, e a ofendida teve que se ausentar da residência, onde só regressou, depois da intervenção da Segurança Social. 7. Porém, o comportamento do arguido mantinha-se e em 2000 regressaram, definitivamente a Portugal. 8. Já em Agosto de 2002, a ofendida foi, de novo agredida violentamente, pelo arguido com murros e pontapés, após o que a atirou pelas escadas da residência. 9. Também no dia 14 de Julho de 2006, cerca das 19.30 horas, quando a ofendida regressava do trabalho, o arguido disse para a ofendida que “havia de a matar”, “que lhe cortava o pescoço, por que tinha virado o filho contra ele” e, de seguida agarrou-a pelo cabelo e pelo braço esquerdo e agrediu-a com empurrões e à bofetada. 10. Por vergonha, e receio das represálias do marido e da família deste, a ofendida tratou das lesões, sem que se tivesse deslocado a estabelecimento de saúde. 11. As situações em que o arguido atingiu a ofendida, na sua integridade física bem como a atingiu na sua honra, dignidade e consideração aconteceram, algumas vezes, na presença do filho do casal. 12. Em virtude das ameaças sofridas pela ofendida, foi determinada a busca e apreensão de armas e instrumentos susceptíveis de serem usados pelo arguido, para atingir a vida e integridade física da ofendida. 13 Efectuada a diligência da busca no dia 23 de Novembro de 2006, verificou-se a existência de uma arma designada por “pressão de ar” e bem assim uma navalha de ponta e mola, com o comprimento total de 22,2 cm, tendo a lâmina 9,9 cm, com a marca “Fosthrei”, a que foi atribuído o valor de 15 €, conforme auto de exame de fls. 54, que aqui se dá por reproduzido, sendo que esta se encontrava no veículo com a matrícula …, pertença do arguido. 14 A navalha de ponta e mola é arma definida no art.2° no 1 al.) ar) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro. 15 Durante os anos que durou o casamento, o arguido agiu para com a mulher de forma violenta, e agressiva, quer verbal, quer física, situação que não denunciou, por medo e vergonha, tratando — a maior parte das vezes — em casa, as lesões que o arguido causava. 15 O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, e de forma reiterada, com o propósito de molestar a ofendida, sua mulher M..., física e psicologicamente. 17 Igualmente, tinha na sua posse a arma — faca de ponta e mola — o que sabia não lhe ser permitido. 18 Assim, o arguido tinha conhecimento que as condutas supra referidas eram proibidas e punidas por Lei. Mais se provou. O arguido não tinha à data registo de antecedentes criminais. Esteve internado no Hospital Sobral Cid, de 7/11/2003 a 21/11/2003 com o diagnóstico de “depressão psicótica”. Posteriormente teve outros internamentos, por apresentação de “quadro depressivo”. É desde então, seguido em consultas regulares externas. O filho do casal habita com o arguido. Do articulado da petição cível: A ofendida deixou a casa de morada de família, por temer pela sua integridade física e pela vida. Viveu durante anos sobressaltada e em desassossego. * B) Matéria de facto não provada: Não se provaram outros factos com relevo para a decisão. * C) Motivação. Quanto aos factos não provados o Tribunal baseou-se na ausência de provas trazidas ao julgamento. A convicção do Tribunal Colectivo, para a enumeração dos factos provados, resultou da avaliação crítica das provas examinadas e das produzidas em audiência, ou seja, numa apreciação crítica global de toda a prova produzida no seu conjunto de documentos e depoimentos das testemunhas, em conformidade com o que se acha plasmado no artigo 127 do C.P.P. Muito embora a Defesa do arguido tenha argumentado que todos os depoimentos “bateram muito certinhos” e que não são isentos por serem todos os depoentes familiares da ofendida, o Tribunal não pode deixar de a eles atender porque, diz-nos a experiência comum que tratando-se de actos da vida do casal, socialmente reprovados e, naturalmente, não são praticados à vista de terceiros, nem tem a vítima oportunidade de chamar testemunhas para os presenciar. E, assim só os familiares e pessoas da intimidade da vítima são chamados a conhecer a realidade e, quase sempre porque questionada sobre os sinais físicos da agressão, que, também na maioria dos casos é ocultada. Afigurou-se assim ao Tribunal que o depoimento da mãe da ofendida J... foi decisivo e isento, relatando ao Tribunal, com simplicidade e mágoa, os factos que presenciou e também a forma como se havia oposto ao casamento da filha com o arguido e, que, motivou que a mesma lhe escondesse durante anos os comportamentos do arguido, mesmo quando questionada sobre o aparecimento de hematomas pelo corpo, afirmava que eram resultado de queda. A irmã da ofendida D..., relatou episódios ocorridos quando o casal vivia na Suíça, nomeadamente, quando uma noite a ofendida lhe telefonou a pedir ajuda por se encontrar na rua por o arguido a ter expulsado de casa. Referiu também ver a ofendida por diversas vezes com hematomas e questionada a sua irmã acabou por lhe contar que era vítima de agressões físicas e verbais por parte do marido. De idêntico teor, o depoimento de F..., também irmã da ofendida e com ela convivente na Suíça durante algum tempo e a quem a ofendida confidenciou as agressões de que era vítima. Claramente “induzido” foi o depoimento do filho do casal, E..., que manifestou agressividade verbal relativamente à mãe e aos familiares da parte desta. O que também não causa estranheza atento o episódio por todos os familiares relatado, quanto ao facto de o arguido incitar o filho a dar pontapés à mãe (em frente dos familiares) e que este cumpria. Os depoimentos das testemunhas S..., B... e R... prestaram os seus depoimentos incidindo sobre o conhecimento da doença do arguido, sendo o conhecimento da vida do casal de forma superficial, dado o relacionamento casual entre os mesmos. Relativamente à detenção da arma, foi relevante o auto de busca. Sobre a ausência de passado criminal do arguido releva a certidão do R.C. e sobre a sua situação clínica o relato do C.H.P. junto a fls. 200. A segurança e simplicidade dos depoimentos mereceram a credibilidade do Tribunal, nada tendo surgido em seu desabono. ** ** 3. Apreciação 3.1. Nulidade da sentença – conclusão 1ª: Alega o recorrente que “Nos factos considerados provados pelo tribunal não consta nada quanto à personalidade ou comportamento do arguido, não obstante as declarações das testemunhas de defesa S... (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009, 12h, 22m e 48s (inicio do gravação) a 12h, 32m e 47s (fim da gravação), B... (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009, 12h, 33m e 19s (inicio da gravação) a 12h, 40m e 08s (fim da gravação) e R... (cfr. gravação de áudio de 22/04/2009, 12h, 40m e 32s (inicio da gravação) a 12h, 46m e 51s (fim da gravação), sendo o apuramento de tais circunstâncias relevantes para o apuramento da pena e respectiva medida a aplicar” Ora, por um lado a decisão recorrida apurou factos relativos à personalidade ou comportamento do arguido – para além do que emerge dos factos da acusação e personalidade que revelam - , a saber (reproduz-se): O arguido não tinha à data registo de antecedentes criminais. Esteve internado no Hospital Sobral Cid, de 7/11/2003 a 21/11/2003 com o diagnóstico de “depressão psicótica”. Posteriormente teve outros internamentos, por apresentação de “quadro depressivo”. É desde então, seguido em consultas regulares externas. Apurou, pois, o tribunal, os descritos factos, relativos ao comportamento e personalidade do arguido. Por outro lado o recorrente não alegou outros factos, designadamente na contestação, que obrigassem o tribunal a pronunciar-se sobre os mesmos. Em termos de valoração da prova, na ausência de critérios de apreciação vinculada, esta é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos ternos do disposto no art. 127º do C. Processo Penal. Por outro lado, a decisão recorrida, quanto à matéria remanescente, além de o próprio recorrente não questionar, sequer, os dois episódios de agressão física situados em Agosto de 2002 e 14.07.2006 (que pela sua natureza são adequados a deixar marcas no corpo da queixosa visíveis fora do âmbito do lar), apoia-se nos depoimentos não só da queixosa, como ainda da mãe e das irmãs que mantinham convivência com a queixosa e que, além de confirmarem as marcas das lesões confirmaram também o teor das expressões com que o arguido costumava mimosear a mulher quando recolhia a casa toldado pelo consumo de bebidas alcoólicas. Além de as discussões frequentes serem corroboradas pelas próprias testemunhas de defesa. Assim, para além de manifestamente se não verificar qualquer dos vícios do art. 410º por não resultantes do texto da decisão por si ou confrontado com as regras da experiência comum, em relação á matéria que permanece como objecto de apreciação (as críticas tinham em vista a matéria agora afastada), verifica-se que a decisão recorrida tem fundamento em meios de prova produzidos em audiência, cujo conteúdo o recorrente não rebateu, explicitada na fundamentação, numa apreciação objectiva e racional que obedece ao critério do art. 127º do CPP. Pelo que não merece censura. ***
3.4. Assim, depois de extirpada a acusação da matéria anterior à entrada em vigor da Lei 7/2000 de 27.05 e regresso do casal da Suíça em 2000, tem-se como MATÉRIA de facto PROVADA susceptível de valoração, a seguinte: Pelo menos desde Junho de 2000, já depois de regressaram, definitivamente da Suíça, o arguido, sob o efeito do álcool que ingeria, o arguido costumava discutir com a ofendida, apelidando-a de “puta”, “vaca” e “bruxa”, além de a atingir na sua integridade física. Em Agosto de 2002, a ofendida foi de novo agredida pelo arguido, com murros e pontapés, após o que a atirou pelas escadas da residência. Também no dia 14 de Julho de 2006, cerca das 19.30 horas, quando a ofendida regressava do trabalho, o arguido disse para a ofendida que “havia de a matar”, “que lhe cortava o pescoço, por que tinha virado o filho contra ele” e, de seguida agarrou-a pelo cabelo e pelo braço esquerdo e agrediu-a com empurrões e à bofetada. Por vergonha, e receio das represálias do marido e da família deste, a ofendida tratou das lesões, sem que se tivesse deslocado a estabelecimento de saúde. As situações em que o arguido atingiu a ofendida na sua integridade física bem como na sua honra, dignidade e consideração aconteceram, algumas vezes, na presença do filho do casal. Em virtude das ameaças sofridas pela ofendida, foi determinada a busca e apreensão de armas e instrumentos susceptíveis de serem usados pelo arguido, para atingir a vida e integridade física da ofendida. Efectuada a diligência da busca no dia 23 de Novembro de 2006, verificou-se a existência de uma arma designada por “pressão de ar” e bem assim uma navalha de ponta e mola, com o comprimento total de 22,2 cm, tendo a lâmina 9,9 cm, com a marca “Fosthrei”, a que foi atribuído o valor de 15 €, conforme auto de exame de fls. 54, que aqui se dá por reproduzido, sendo que esta se encontrava no veículo com a matrícula …, pertença do arguido. A navalha de ponta e mola é arma definida no art.2° no 1 al.) ar) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro. O arguido agiu para com a mulher de forma violenta e agressiva, quer verbal, quer física, situação que esta não denunciou antes de 14 de Julho de 2006, por medo e vergonha, tratando em casa as lesões que o arguido lhe causava. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, e de forma reiterada, com o propósito de molestar a ofendida, sua mulher M..., física e psicologicamente. Igualmente, tinha na sua posse a arma — faca de ponta e mola — o que sabia não lhe ser permitido. O arguido tinha conhecimento que as condutas supra referidas eram proibidas e punidas por Lei. *** 3.5. Extirpada da acusação, e da decisão recorrida, da matéria de facto anterior ao regresso do casal da Suíça e Junho de 2000, nos termos acabados de descrever, vejamos se ainda se mostra suficiente para imputar ao arguido o crime de maus-tratos a cônjuge. Pratica o crime de maus tratos “quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos” – cfr. artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal, redacção em vigor ao tempo dos afctos. Pelo que se entende que apesar da limitação operada, a matéria de facto provada ainda preenche os elementos quer do tipo objectivo, nos termos a que se fez referência, quer do tipo subjectivo, na modalidade de dolo directo, uma vez que o arguido representou os elementos do tipo objectivo e actuou com intenção de os realizar. De qualquer forma a limitação da acusação/apreciação à matéria posterior a Maio de 2000 após o regresso do casal da Suíça, retira à conduta do arguido parte da ilicitude valorada pela decisão recorrida, o que, por decorrência lógica, importa a redução proporcionada da pena concreta aplicada a este crime. Pelo que, tendo por base os pressupostos da decisão não censurados e a proporcionalidade da redução da matéria de facto relevante, com base nos critérios enunciados pelos artigos 71º e 40º do C.P., reduz-se a pena aplicada a este crime para 9 (nove) meses de prisão, mantendo-se a suspensão da execução, não questionada.
3.6. No que toca ao valor da indemnização por danos não patrimoniais relativos ao crime de maus-tratos, apenas tendo sido objecto de censura os pressupostos do acórdão recorrido quanto à gravidade do facto (eliminados os factos anteriores a Junho de 2000) o valor da indemnização será reduzido, proporcionalmente, em juízo de equidade, com base no critério dos artigos 496º-494º do C. Civil, para € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
** ** III Nestes termos, decide-se: - Julgar parcialmente procedente o recurso, ainda que com fundamentos diferentes, expurgando-se a decisão recorrida de toda a matéria de facto situada em período anterior à entrada em vigor da Lei n.º 7/2000, de 27.05 nos termos que ficaram supra definidos em sede própria; --- -Reduzir a pena aplicada ao crime de maus-tratos a cônjuge p e p pelo art. 152º, n.º1 e 2 do CP, pelo qual o arguido vem condenado, na decorrência da alteração à matéria de facto operada, para 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período. A que acresce, em cúmulo, a pena de 100 (cem) dias de multa à razão de € 5,00 (cinco euros), aplicada pelo tribunal recorrido ao crime de detenção de arma proibida; --- - Reduzir a indemnização arbitrada a favor da ofendida, na decorrência da mesma alteração à matéria de facto, para a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros); --- - Julgar improcedente o recurso em tudo o mais não previsto nos pontos anteriores. --- - Dada a proporção do decaimento condena-se o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC. |