Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
33/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: BUSCA DOMICILIÁRIA
Data do Acordão: 02/22/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 174º, N.º 2. DO C. P. PENAL
Sumário: I- O conceito “indícios” tem, no C. P. Penal, uma natureza mais ou menos fluida consoante as fases processuais, indo da mera probabilidade, embora séria, até ao juízo de certeza;
II- Os “indícios” exigidos para decretar uma busca não se traduzem em factos certos mas apenas em pressupostos desses factos.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. No dia 3 de Novembro de 2005, A..., melhor identificada a fls. 22 v.º destes autos, denunciou junto da Guarda Nacional Republicana da Covilhã ter sido vítima, por desconhecidos, no antecedente dia 2 desse mesmo mês e ano, de um furto, por escalamento, de vários objectos em ouro que se encontravam no interior da sua casa de habitação, sita na Rua das Tílias, Lote 24, São Pedro, Covilhã.
No imediato dia 4, o expediente que integrava tal participação foi remetido pela entidade policial aos competentes e aludidos Serviços do Ministério Público com a menção, nomeadamente, de que não existiam testemunhas presenciais dos factos (vd. fls. 23 v.º), bem como do pedido de ser ordenada a emissão de mandados de busca à residência de um tal B..., presumível autor do delito segundo averiguações encetadas por essa mesma entidade.
Pretendendo justificar o fundamento da suspeita escreveu-se no devido expediente, ora junto a fls. 26, que “ (…) este indivíduo no dia em que ocorreu o furto foi visto no local onde este ocorreu a fazer um peditório em nome dos Bombeiros Voluntários da Covilhã e por já ter antecedentes criminais neste tipo de ilícitos.
Informo ainda V. Ex.ª que este indivíduo também já se encontra constituído arguido como suspeito do furto no Inquérito …, datado de 12/10/2005.
Face aos factos descritos e por existirem fortes suspeitas que este indivíduo possa guardar na sua residência o ouro e outros objectos relacionados com os furtos descritos e ainda pelo facto do mesmo ser toxicodependente e se presumir que utilize o ouro furtado para compra de produtos estupefacientes e que se possa desfazer do mesmo rapidamente, …fosse conveniente a passagem de mandados de busca para a residência em referência…
Informo ainda que na residência em causa, residem outros indivíduos que pelas informações recolhidas também estarão ligados ao consumo e tráfico de estupefacientes, (…)”.
1.2. Autuado o expediente como inquérito, o respectivo titular determinou (cfr. despacho certificado a fls. 27):
“Atentas as razões invocadas a fls. 7 (dita sugestão, sublinhamos, nós) entendemos justificar-se a emissão dos competentes mandados de busca.
Com efeito, face aos elementos recolhidos existem fortes indícios de o suspeito ocultar na sua residência os objectos furtados e descritos a fls. 6.
Assim e a fim de ordenar a passagem dos competentes mandados de busca concluam-se os autos ao M.mo Juiz.”
1.3. Distribuídos os autos em juízo, o Magistrado instrutor exarou despacho do teor seguinte:
“Nos presentes autos são investigados factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de furto ou de furto qualificado, p. e p., respectivamente, pelos artigos 203.º e 204.º, ambos do Código Penal.
Vem o Ministério Público promover que sejam emitidos mandados de busca domiciliária à residência de B....
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A busca, designadamente a busca domiciliária, é um meio de obtenção de prova cuja realização implica a existência de indícios de que o arguido ou outras pessoas possuam em sua casa (portanto, em lugar não acessível ao público) objectos relacionados com um crime (artigos 174.º, n.º 2 e 177.º, ambos do Código de Processo Penal).
O seu regime específico encontra-se plasmado no Código de Processo Penal tendo em conta as limitações decorrentes da consagração constitucional que da inviolabilidade do domicílio é feita no art.º 34.º da Constituição da República Portuguesa.
No que respeita a B..., pode desde já adiantar-se que existe uma clara insuficiência indiciária no que respeita à sua participação na factualidade em investigação.
Senão vejamos: que elemento consta do presente inquérito que aponte para tal conclusão ou justifique a autorização para recorrer ao meio de obtenção de prova em apreço?
Nenhum. Efectivamente, dos autos consta apenas o auto de denúncia, onde é feita menção de que os suspeitos pela prática do crime de furto são "desconhecidos", assim como uma mera "informação" do Núcleo de Investigação Criminal da Guarda Nacional Republicana onde é dado conhecimento de que "o presumível autor do furto mencionado, possa ser: B...", ali sendo aduzidos como motivos para tal suspeita a circunstância de este, no dia da ocorrência dos factos, ter sido "visto no local (…) a fazer um peditório em nome dos Bombeiros Voluntários da Covilhã e por já ter antecedentes criminais neste tipo de ilícitos", para além de ser toxicodependente.
Ora, esta informação não pode ter a virtualidade de, por si só, ser suficiente para a autorização da promovida busca domiciliária. Sublinhe-se, ademais, que nem um só depoimento testemunhal existe que corrobore tal informação constante dos autos.
Resulta assim, de forma manifesta, uma carência de matéria indiciária que permita inferir que o visado possua na respectiva casa objectos relacionados com o crime de furto ou que com ele estejam relacionados.
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Pelo exposto, não autorizo a busca na residência de B..., indeferindo--se a passagem dos respectivos mandados.”
1.4. Discordando deste entendimento, o Ministério Público interpôs o presente recurso que, depois de devidamente motivado, contém o quadro de conclusões seguintes tendentes a justificar a emissão dos reclamados mandados de busca:
1.4.1. O artigo 174.º, n.º 2 do CPP faz depender a realização de buscas da existência de indícios suficientes de que os objectos relacionados com o crime se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público.
1.4.2. Os indícios de que o suspeito terá participado no identificado furto qualificado estão suficientemente clarificados nos autos desde que sejam interpretados de forma conjugada e articulada.
1.4.3. Em consequência, mostra-se igualmente indiciado que os objectos furtados se poderão encontrar no domicílio do suspeito.
1.4.4. Este conjunto de indícios deverá, porém, ser interpretado de forma articulada e conjugada com a realidade e com os dados da experiência e não de forma isolada e abstracta como efectivamente foi feito pelo M.mo JIC.
1.4.5. O despacho recorrido violou, consequentemente, o disposto pelos artigos 174.º, n.º 2 e 269.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPP.
1.5. Admitido o recurso, depois de instruído, e com implícito despacho tabelar de sustentação, foram os autos remetidos a este Tribunal.
Aqui, o Exmo. Procurador-geral Adjunto limitou-se a apor um “Visto”.
Cabe, então, apreciar e decidir.
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II – Fundamentação.
2.1. Como é consabido, a norma definidora do objecto dos recursos é a constante do artigo 412.º, n.º 1 do CPP, e segundo a qual o seu âmbito é determinado em face das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
Ora, assim sendo, temos que, in casu, a única questão decidenda consiste em aquilatarmos se deve ordenar-se a busca requerida pelo Ministério Público.
2.2. Como resulta do disposto pelo artigo 174.º, n.º 2 do CPP (diploma de que serão os preceitos doravante a citar, sem menção da origem) a busca é ordenada «Quando houver indícios de que os objectos referidos no número anterior (relacionados com um crime ou que possam servir de prova), ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, …».
Prevenindo, porém, a necessária confluência prática que esta diligência deve procurar com normativos constitucionais, mormente o artigo 34.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa [CRP], em cujos termos:
«1. O domicílio e o sigilo e outros meios de comunicação privada são invioláveis.
2. A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei.»,
o legislador ordinário definiu um específico e particular regime de realização das buscas domiciliárias no subsequente artigo 177.º impondo, por exemplo, que a diligência só pode, então, realizar-se mediante prévia autorização por mandado judicial.
O caso dos autos, pois que se propunha o Ministério Público realizar busca domiciliária ao domicílio do suspeito B....
O dissídio surgiu, contudo, quando pretendendo dilucidar da verificação do pressuposto da existência dos mencionados “indícios” o M.mo JIC entendeu que eles ainda não concorriam no caso concreto.
A utilização desta expressão ocorre em diversos pontos da estrutura processual penal (v.g., artigos 283.º, n.º 1; 308.º, n.º 1; 277.º, n.º 2), sem que constitua novidade pois que já aparecia, com significado semelhante, no CPP de 1929, e referida quer à acusação, quer ao despacho de pronúncia.
Como é consabido, ademais, na marcha do processo penal comum, é possível operar uma distinção entre duas fases essenciais: a fase preparatória ou preliminar e a fase de julgamento. Tal destrinça só se torna compreensível recorrendo-se ao mencionado conceito.
Na verdade, entende o legislador que só é legítimo ao Estado submeter uma pessoa a julgamento pela prática de um crime havendo comprovados motivos que o justifiquem. Assim, a primeira tarefa processual consistirá na investigação cabal da existência do crime de que houve notícia, determinação dos seus agentes e recolha de provas que os incriminem. Concluída, urge aquilatar-se se deve, de seguida, submeter-se o agente a julgamento. Esta avaliação não esgota, porém, a única indispensável antes da decisão final, em julgamento, do submetido ao veredicto judicial. De facto, em diversas outras ocasiões se mostra necessário avaliar do mérito das provas já recolhidas (por exemplo, quando deve legitimar-se, desde logo por via delas, a constituição de alguém como arguido; como apurar da sua consistência para aplicação de uma medida de coacção menos gravosa – artigos 58.º, n.º 1, alínea a); 272.º, n.º 1; 197.º a 199.º -).
A motivação apresentada pelo recorrente mostra-se assaz fundamentada na explicitação do conceito concreto que deve orientar-nos para a operação de verificação da existência (ou não) dos reclamados “indícios”, donde que a sigamos de perto.
De acordo com Costa Pimenta, em anotação ao artigo 1.º ele consiste na circunstância certa através da qual se pode chegar, por indução lógica a uma conclusão acerca da existência ou inexistência de um facto que se há-de provar.
Assim, não se traduzirá em um facto certo, como o deverá ser um facto provado. Pelo contrário, indício é, ou pode ser, o pressuposto desse facto provado; indício não passa de uma conjectura através da qual – por um processo de indução lógica e com o recurso às regras de experiência comum –se poderá, ou não, construir e alicerçar uma prova.
Acresce que no iter processual a sua suficiência não é uniforme, dependendo do contexto processual em que se insere. Com efeito, pode atribuir-se um carácter de suficiência aos indícios, num determinado contexto e noutro já o não ser. Exemplificando com este mesmo autor (Código de Processo Penal, Anotado, 2.ª edição, pág. 283) “uma coisa é ter indícios suficientes para condenar outra é eles serem suficientes para levar o arguido a julgamento perante o juiz competente, para que este, eventualmente, condene”. Isto é, sendo os factos rigorosamente os mesmos distinta é, todavia, a sua inserção dentro do processo.
Vale por dizer, reafirma-se em outras palavras, que o conceito de suficiência de “indícios” em sede de obtenção de prova tem uma natureza mais fluida do que noutra fase processual, como por exemplo, o julgamento. Ou até noutro contexto processual como, por exemplo, em sede de prisão preventiva.
2.3. Na posse destes considerandos genéricos já se torna possível entrar na dilucidação do caso concreto.
E, punctum saliens, afirmar, que o M.mo JIC não decidiu adequadamente.
A apreciação que se lhe impunha não devia olvidar, como dito, o contexto processual concreto bem como a viabilidade da autorização da diligência solicitada não considerando um plano de certezas probatórias, mas apenas da sua probabilidade.
Como correctamente anota o recorrente na sua apreciação o M.mo Juiz a quo “ (…) colocou como pressuposto da realização de buscas a existência de indícios de tal forma estruturados e com uma tal densidade que, bem se pode dizer, assentariam já em juízos de certeza e não em juízos de mera probabilidade, embora séria, que é o campo em que se movimenta o processo penal na sua fase de inquérito (…)”.
Nos termos precisos em que foi solicitada (dois dias após a ocorrência do alegado crime; sem que existissem provas testemunhais; na consideração da natureza do ilícito denunciado e do invocado comportamento do suspeito), pretendia-se trazer para o inquérito, além da simples probabilidade manifestada pela entidade policial, um subsequente e mais fundamentado juízo de certeza, o que a recusa proferida inviabilizou manifestamente (e, quiçá, irremediavelmente).
Na ponderação de que as diligências processuais reclamadas devem ser as necessárias à prossecução dos fins que o processo traduz, bem como de que na compressão dos direitos individuais absolutos deve prevalecer o princípio da proporcionalidade, no caso sub judice, atenta a fase de investigação em que ocorreu, era, na verdade, a busca solicitada a única diligência idónea à obtenção de provas para o crime denunciado.
Ora, a decisão recorrida, como mais assertivamente se refere na motivação oferecida, fez assentar, tautologicamente, a realização daquele meio de obtenção de provas na existência das mesmas provas.
Sendo certo que as “averiguações” e subsequentes “suspeitas” da entidade policial não comportam valor probatório por não poderem, desde logo, ser submetidas ao contraditório, não menos certo será que, nas circunstâncias e fase em que se apresentaram, traduzem um valor indiciário a que se não pode processualmente ser alheio sob pena de, com apelo a um individual direito garantístico se sacrificar, irremediavelmente, um direito colectivo securitário.
Considerando-se como mero ponto de partida e com recurso às regras da experiência comum (relembra-se o facto de o suspeito ter sido visto no local a efectuar um peditório em nome dos BVC (?!); ter antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza; não ter ocupação; ser toxicodependente e residir com outros indivíduos também toxicodependentes, todos razoavelmente a necessitarem de dinheiro ou objectos facilmente transaccionáveis para aquisição de droga) a diligência indicada mostrava-se como capaz de tornar mais possível a responsabilização do agente mencionado e, assim, era de ordenar-se.
Também que na consideração entre o conflito do direito fundamental de reserva da intimidade e da vida privada do suspeito e a tutela do interesse punitivo do Estado, se não verificava danosidade social que fizesse extravasar desproporcionadamente a tutela deste em detrimento do primeiro. Isto inclusive até pelo modo como deve processar-se a efectivação da busca, ex vi dos artigos 176.º e 177.º.
Tudo para se concluir, como já dito, do infundado do despacho recorrido.
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III – Decisão.
São termos em que perante todo o exposto, se concede provimento ao recurso e, consequentemente, se determina que na 1.ª instância seja ordenada a realização da busca solicitada.
Sem custas.
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Coimbra, 22 de Fevereiro de 2006