Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
364/04.7TBFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE
FALTA
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
CULPA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 10/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DO FUNDÃO – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 280º, Nº1; 401º, Nº 1; 442º, Nº 2; E 802º, Nº 2, DO C. CIV.
Sumário: I – Um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel não é originariamente impossível pela circunstância do imóvel objecto não dispor de licença de utilização;

II – Com efeito, expressando a opção pela espécie contratual da promessa, frequentemente, o não preenchimento, ainda, de todos os requisitos legais do contrato prometido, é a celebração da promessa perfeitamente compatível (no sentido de juridicamente possível) com a ausência dessa licença.

III – Se, posteriormente, em sede de preparação da celebração do contrato prometido, se verifica a impossibilidade de obtenção da licença de utilização, com base na configuração inicial do imóvel prometido vender, estaremos perante uma impossibilidade legal superveniente reportada ao exacto conteúdo do contrato prometido.

IV – Este tipo de impossibilidade opera, em qualquer caso, a extinção da obrigação (e não a sua não constituição como sucederia na impossibilidade inicial) e será culposa (artigo 801º e seguintes do CC) ou não culposa (artigos 790º e seguintes do CC).

V – Estando em causa responsabilidade contratual, o ónus da prova da ausência de culpa da impossibilidade impende sobre o devedor (no caso, o promitente vendedor que contratualmente se comprometeu a obter a licença), nos termos do artigo 799º, nº 1, do CC, presumindo-se a culpa deste face à incerteza quanto à alocação dessa culpa.

VI – A circunstância da concessão da licença de utilização só ser possível com base em alterações muito significativas da estrutura do imóvel, nos termos em que essa estrutura foi configurada pelas partes ao tempo da celebração da promessa, traduz uma impossibilidade de cumprimento perfeito da obrigação.

VII – Corresponde esta situação a uma impossibilidade qualitativa da prestação, aplicando-se a esta o regime do cumprimento imperfeito, tendo o credor o direito de recusar a prestação defeituosa, salvo se o defeito for mínimo, por aplicação, assente na identidade de razão, do regime da impossibilidade parcial (quantitativa) previsto no artigo 802º, nº 2, do CC.

VIII – O carácter culposo da impossibilidade de cumprimento perfeito gera o dever de indemnizar (autónomo do dever de prestar tornado impossível), sendo que o conteúdo deste, no caso de um contrato-promessa incumprido por quem recebeu o sinal, corresponde à restituição deste em dobro, nos termos do artigo 442º, nº 2 (trecho intermédio) do CC.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


1. A... (A., Reconvindo e neste recurso Apelado) demandou B... e C... (RR., sendo a primeira Reconvinte e Apelante), invocando o incumprimento por estes de um contrato-promessa de compra e venda de imóvel[1], no qual ele (A.) ocupou a posição de promitente comprador (entrando, desde logo, na posse do imóvel) e os RR. a de promitentes vendedores, tendo ele entregue, a título de sinal, a quantia de €19.951,92, posteriormente reforçado em €7.481,97, tudo por conta do preço global acordado (que foi de €69.831,71). Tal incumprimento traduzir-se-ia na não marcação da escritura definitiva (não obstante a interpelação judicial para esse efeito) e na não obtenção – sempre pelos RR. – da necessária licença de utilização do imóvel.

Em função desta situação, formulou o A. os seguintes pedidos:


“[…]
a) [Serem] [c]ondenados os RR. a restituir ao A. as importâncias que receberam destes a título de sinal, em dobro,  no montante de […] €54.867,77, face ao incumprimento intencional, culposo e reiterado por estes do contrato-promessa […];
b) Ser reconhecido ao A. o direito de retenção sobre o prédio prometido comprar por este […], até que lhe seja paga integralmente a importância referida em a).
[…]”
            [transcrição de fls. 8/9]

            1.1. Contestou a 1ª R. (fls. 54/61) por impugnação, invocando a impossibilidade de obtenção de licença de utilização, deduzindo daí a nulidade da promessa em causa, por ser, à partida, legalmente impossível cumpri-la[2], formulando os seguintes pedidos reconvencionais:


“[…]
a) […] [R]econhecer que as promessas e demais declarações de vontade contidas no contrato-promessa, são nulas, porquanto são legal, originária e objectivamente impossíveis, nos termos dos artigos 280º e 401º, nºs 1 e 3 do Código Civil;
b) Consequentemente, deve ser declarada a nulidade do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre os RR. e o A./Reconvindo, nos termos do artigo 286º do Código Civil;
c) A reconhecer que [o A.] está no gozo do prédio objecto do contrato-promessa desde a data da sua celebração (31/01/2000) até hoje;
d) A reconhecer que enriqueceu à custa dos RR. por virtude de uma causa que deixou de existir – o contrato-promessa, por ser nulo – e que os RR. se viram empobrecidos na mesma medida do seu enriquecimento;
e) A pagar, a título de enriquecimento sem causa, a quantia de €500,00 mensais pelos 56 meses que ali viveu, o que perfaz o total na presente data de €28.000,00 a pagar aos RR., nos termos do artigo 473º e seguintes do Código Civil, e, ainda, no pagamento dos meses que ainda vier a usufruir do prédio objecto do contrato-promessa;
f) E, finalmente, a restituir o prédio objecto do contrato-promessa aos RR., nos termos do preceituado no artigo 289º do Código Civil.
[…]”
            [transcrição de fls. 59/61]

            O A. respondeu a fls. 95/99, pugnando pela improcedência da reconvenção.

            1.2. Findos os articulados, alcançou o processo a fase de condensação, com a prolação do despacho de fls. 108/125. Neste, no trecho qualificado de “Despacho Saneador Stricto Sensu”, além da parte tabeliónica referente à competência, nulidades que afectassem todo o processo, personalidade e capacidade judiciárias, legitimidade e patrocínio, foram apreciados (no trecho de fls. 114/117), tendo presente a matéria de facto já então provada[3], os pedidos – da reconvenção – respeitantes à invocada nulidade do contrato-promessa (referida à impossibilidade legal, originária e objectiva que a Reconvinte atribuiu ao mesmo[4]), concluindo-se desde logo pela sua improcedência[5], o que se fez através da seguinte formulação decisória:


“[…]
[A]bsolver o Reconvindo dos pedidos de condenação no reconhecimento de que as promessas e demais declarações de vontade contidas no contrato-promessa são nulas, por serem legal, originária e objectivamente impossíveis, nos termos dos artigos 280º e 401º, nºs 1 e 3 do Código Civil, e de declaração da nulidade do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre os RR. e o A./Reconvindo, nos termos do artigo 286º do Código Civil.
[…]”
            [transcrição de fls. 117, com sublinhado acrescentado][6]

            Ainda no âmbito do mesmo despacho saneador – e assim esgotamos os elementos do pedido reconvencional nele especificamente tratados –, consignou-se (trecho de fls. 118) que as questões respeitantes ao afirmado enriquecimento sem causa apresentavam sobreposição à questão – cuja apreciação foi relegada para momento posterior – de uma possível resolução do contrato, “[…] com as consequências previstas nos artigos 432º a 436º do Código Civil (CC) […]” (transcrição de fls. 118).

            Foram, enfim, fixados – e continuamos a referir-nos ao despacho de fls. 108/125 – os factos assentes[7] (fls. 119/123) e elaborada a base instrutória (fls. 123/125).

            1.2.1. Notificada deste despacho, apresentou-se a R./Reconvinte, inconformada com a absolvição parcial dos pedidos reconvencionais, a apelar do mesmo (requerimento de fls. 135), sendo tal recurso admitido a fls. 170, com subida a final.

            Referem-se a este recurso interlocutório as alegações de fls. 174/182, que a Apelante rematou com as seguintes conclusões:


(…………………………………………………………………)

            1.3. Prosseguindo o processo para a fase de instrução, ocorreu a perícia documentada a fls. 197, tendo o A. apresentado quanto a ela a reclamação de fls. 201/202, desatendida pelo despacho de fls. 206. Deste agravou o A. a fls. 209/210, sendo tal recurso admitido a fls. 213, com subida diferida, constando as alegações do A. (nesse contexto Agravante) de fls. 217/222 e as contra-alegações da R. (nesse contexto Agravada) de fls. 234[8].

            1.4. Alcançou-se, enfim, o julgamento (as actas respectivas constam de fls. 276/280 e 282/283), findo o qual, fixados que foram os factos por referência à base instrutória (despacho de fls. 284/285), foi proferida a Sentença de fls. 288/295 (constitui esta a decisão objecto do recurso final de apelação, cuja subida propiciou a chegada a esta Relação dos dois recursos anteriormente interpostos), cujo pronunciamento decisório final foi o seguinte:


“[…]
[D]ecidimos, na procedência desta acção, condenar os RR. […] a:
1. Restituir ao A. […] as importâncias que receberam destes a título de sinal, em dobro, no montante total de 11.000.000$00, ou seja €54.867,77, face ao incumprimento intencional, culposo e reiterado por estes do contrato-promessa em causa nestes autos, a que acrescem os juros de mora à taxa legal desde a citação e até efectivo e integral pagamento;
2. Reconhecer ao A. o direito de retenção sobre o prédio prometido comprar por este […], até que lhe seja paga integralmente a importância referida em 1).
3. Na improcedência do pedido reconvencional, absolver o A. dos pedidos a que aludem as alíneas d) a f).
[…]”
[transcrição de fls. 295, com omissão do ênfase no original]

            1.5. Inconformada, interpôs a R. o presente recurso de apelação (fls. 301), recebido a fls. 307, constando as correspondentes alegações de fls. 314/322, tendo estas sido rematadas com as seguintes conclusões:


(……………………………………………………………..)

            O A./Apelado respondeu a fls. 325/335, pugnando pela confirmação da Sentença apelada (e do Saneador/Sentença em causa na primeira apelação).


II – Fundamentação


            2. Como sucede com qualquer recurso, o âmbito objectivo deste, o que aqui significa das duas apelações da R. e do agravo interposto pelo A. (este e a primeira daquelas de natureza interlocutória), é fixado pelas conclusões com as quais a parte recorrente remata as respectivas alegações [artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)], importando, assim, decidir as questões colocadas – e só elas – através dessas conclusões – e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso –, exceptuadas aquelas questões cuja decisão se mostre prejudicada pela solução dada a outras (artigo 660º, nº 2 do CPC).

            Ora, e este traduz o primeiro passo na delimitação do âmbito impugnatório, constata-se que em nenhum dos casos (nem nas apelações nem no agravo) promovem os recorrentes a (re)discussão dos factos fixados e pressupostos em qualquer uma das decisões recorridas.

            Serve isto para dizer que a matéria de facto se mostra definitivamente fixada, nos termos em que a Sentença final a assumiu e elencou a fls. 289/292[9], sendo tal matéria a seguinte:

(………………………………………………………………………………….)

            2.1. Estão em causa dois recursos de apelação (do de agravo cuidaremos mais tarde, pela razão enunciada no início da nota 9) com um âmbito de sobreposição temática total. Com efeito, ambos – e as duas apelações foram interpostas pela R./Reconvinte – se fundam na repetida invocação de uma impossibilidade originária, legal e absoluta do contrato-promessa, assentando ambas em argumentos totalmente coincidentes[10], referidos à questão da licença de habitabilidade, designadamente às condições estabelecidas para emissão desta, assumindo a Apelante a não obtenção dessa licença como impossibilidade originária da promessa.

            A questão a decidir, nos termos em que a Apelante a delimitou no seu recurso, cinge-se, assim, à determinação de se o contrato-promessa celebrado entre os RR., enquanto promitentes-vendedores, e o A., enquanto promitente-comprador, era, como o afirma reiteradamente a Apelante, legal, originária e objectivamente impossível. Outras questões colocadas pela Sentença apelada que não apresentem uma ligação sequencial a esta, importa sublinhá-lo aqui, designadamente as questões respeitantes ao enriquecimento sem causa e ao direito de retenção do Apelado, mostram-se ausentes do recurso (concretamente da síntese conclusiva delimitadora deste), encontrando-se, por isso, fora do thema decidendum apresentado a esta instância pela Apelante. Não pode esta Relação, com se disse, tratar de questões que, não sendo de conhecimento oficioso, não tenham sido erigidas pela parte recorrente, nas conclusões, à categoria de fundamentos do recurso interposto[11]. Aliás, mesmo fora das conclusões (no restante texto das respectivas alegações), a Apelante não se refere ao enriquecimento sem causa nem ao direito de retenção, sendo evidente que as não pretendeu erigir – e não as erigiu efectivamente – à categoria de fundamentos do recurso final (do interlocutório, aliás, já não faziam parte).[12]

            2.1.1. Adiantando a conclusão que explicitaremos de seguida, diremos que a questão da invocada impossibilidade originária do contrato-promessa – a única questão colocada nos dois recursos da Apelante –, foi correctamente equacionada no Saneador/Sentença (o contrato-promessa não era, como veremos, originariamente impossível) e acabou por conduzir, desta feita na Sentença final, a uma solução cujo sentido acaba por ser coincidente com a que alcançaremos aqui (restituição do sinal em dobro), pese embora a perspectiva argumentativa seguida na Sentença (incumprimento definitivo após desrespeito de uma interpelação admonitória) não coincidir com o percurso argumentativo que irá ser seguido neste Acórdão. Permanece, porém, o resultado – a procedência da acção e a improcedência da reconvenção –, que acabará por ser o mesmo, e esse resultado prático foi, mais uma vez se repete, o adequado.

Com efeito, estando em causa, no requisito do objecto negocial positivamente expresso como possibilidade desse objecto (artigo 280º, nº 1 e 401º, nº 1 do CC), que um conteúdo negocial concreto – e parafraseamos a caracterização de António Menezes Cordeiro – articule soluções possíveis, no sentido de factíveis, quer num prisma físico quer num prisma jurídico[13], não se compreende, em sede de possibilidade ou impossibilidade de algo referido a uma prestação de coisa específica (uma casa com determinadas características), que se diga não ser possível (rectius, corresponder a uma impossibilidade) aquilo que só depende de operações materiais realizáveis ou factíveis, tanto de um ponto de vista prático como jurídico. É o que sucede, como facilmente se intui, com o acto de fechar determinadas janelas existentes numa casa. Aliás, tanto assim é que foram essas operações (essas obras) objecto de um projecto apresentado pela testemunha D... (como alegou a Apelante e é indicado na fundamentação a fls. 284).

Referindo-se à ideia geral de possibilidade física e legal do objecto dos negócios jurídicos, dizia Manuel de Andrade que “[a] impossibilidade física, que também pode[ria] qualificar-se de material, natural, real ou de facto (factual), ser[ia] a que decorre da própria natureza das coisas (ex rerum natura)” e a “[i]mpossibilidade legal ou jurídica ser[ia] a resultante da lei (ope legis ou ope iuris)”[14], sendo óbvio que aqui, tratando-se de fechar determinadas janelas existentes na casa (quase todas é certo), a natureza das coisas não impedia essas operações, o mesmo acontecendo com a lei (que também não proibia essas operações). Coisa diversa – mas isso já não tem que ver com a possibilidade ou impossibilidade da prestação ab initio – é saber se a prestação, com a configuração que lhe é dada (que lhe seria dada) por essas operações materiais necessárias para a obtenção da licença camarária de utilização, seria (ainda) uma prestação perfeita, mantendo interesse para o credor, ou, encarando as coisas sob o prisma da impossibilidade, ainda era uma prestação possível nos parâmetros configurados pelas partes no contrato-promessa. Trata-se, porém, em qualquer dos casos, de planos distintos da impossibilidade originária indicada pela Apelante, sendo que é esta – a impossibilidade originária e não a impossibilidade superveniente – que gera uma situação de nulidade (artigos 280º e 401º do CC)[15].  

Aliás, para esgotarmos a questão da suposta impossibilidade legal originária, o argumento central da Apelante, importa não esquecer, a propósito da falta de licença de utilização ao tempo da conclusão do contrato (v. a cláusula 6ª deste[16]), que estamos perante um contrato-promessa (a obrigação que a Apelante reputa de nula por impossibilidade inicial é um contrato-promessa[17]), espécie contratual cujo sentido expressa, na esmagadora maioria das situações, o não preenchimento (ainda) de alguma ou algumas das condições requeridas para a conclusão do contrato prometido[18]. O Apelante confunde aqui uma eventual impossibilidade de natureza jurídica (falta de licença de utilização) do contrato de compra e venda (do contrato prometido) com uma impossibilidade, inexistente pela própria natureza das coisas, do contrato preliminar.

Não tem, pois, sentido falar em impossibilidade inicial enquanto desvalor referido ao contrato-promessa[19]. Diversamente, a questão coloca-se, na perspectiva da alternativa possibilidade/impossibilidade, aferida em função da promessa (que é o que aqui nos interessa), no quadro da impossibilidade superveniente da prestação própria de um contrato-promessa: a prestação que se traduz na celebração do contrato prometido. Esta prestação sim, enquanto realidade referida ao objecto concreto prometido vender (com determinadas características: aquela casa com aquelas janelas), tornou-se impossível supervenientemente, por razões de natureza legal: o não licenciamento – se quisermos, a impossibilidade de licenciamento – daquela casa, colocada no mercado pelos promitentes vendedores, com aquelas características. Todavia, ao tempo em que o contrato-promessa foi celebrado, e é o que conta para a impossibilidade originária, era perfeitamente possível entregar a casa com as características que ela tinha no momento da celebração, acrescidas das características que, de acordo com esse contrato-promessa, ela deveria ter ao tempo do cumprimento (isto é, a outorga do contrato definitivo). A impossibilidade definitiva só surge posteriormente com a recusa pela Câmara de emissão da licença. Logo, a impossibilidade é por definição superveniente.

Ora, neste prisma, no da impossibilidade superveniente, o resultado nunca seria, como dissemos, o da nulidade do contrato (veja-se, a título de exemplo o regime emergente do nº 2 do artigo 790º do CC), mas o da sua extinção[20], dependendo esta consequência, no sentido desresponsabilizante que a Apelante em qualquer caso reivindica, de revestir determinados requisitos, a saber (e seguimos aqui a exposição de Menezes Cordeiro): ser efectiva, absoluta e definitiva[21], acrescendo-lhe, suplementarmente, numa visão particular da questão da impossibilidade, sobre a qual haverá que tecer adiante algumas considerações, “[…] a necessidade de não imputação da impossibilidade ao próprio devedor”[22].

Sucede, porém, que a impossibilidade que aqui supervenientemente se detecta nos aparece, em termos que caracterizaremos de seguida, como imputável ao devedor – à R./Apelante.

Carece esta asserção, com efeito, de ser devidamente explicitada.

2.1.1.1. Os factos provados são pouco expressivos quanto à questão da culpa pela não obtenção da licença, no sentido de não apontarem decisivamente para uma situação claramente referenciável ao comportamento da Apelante: foi a Câmara (rectius, um terceiro) ao recusar o licenciamento que originou directamente a situação correspondente à impossibilidade.

 A questão da culpa não deixa de exprimir, em sede de responsabilidade obrigacional, um juízo de censura do comportamento do agente. Todavia, adquire aqui uma particular relevância – aqui de novo – a circunstância de estar em causa o cumprimento de um contrato-promessa, sendo a esse elemento (à promessa da celebração de um outro contrato) que a questão da culpa (do juízo de censura que esta exprime) deve ser referenciada. Serve isto para sublinhar que a questão da obtenção da licença deve ser aferida ao momento e às circunstâncias em que foi efectuada a promessa. Aí, e face a essas circunstâncias, há que determinar o conteúdo do investimento de confiança de cada uma das partes no comportamento devido pela (esperado da) outra. Ora, a tal respeito, posicionando-nos, algo retrospectivamente, no quadro da celebração da promessa, temos a mencionada cláusula 6ª do contrato (transcrita na nota 17), que referindo-se expressamente à obtenção da licença de utilização – “[a] escritura […] será realizada […], logo que o primeiro e/ou o segundo outorgante comunique ao terceiro outorgante a conclusão do cumprimento dos actos preparatórios dela […] designadamente a obtenção da licença de utilização na Câmara […]” –, referindo-se à obtenção da licença, dizíamos, não “captura” esta cláusula, claramente, enquanto elemento do próprio contrato, a eventualidade da não concessão da mesma, enquanto elemento condicionante do contrato prometido.

Para além deste elemento, tendo em conta que tudo passa nesta acção, como em qualquer outra, pelo material fáctico que as partes aportam ao tribunal, invocando-o a respeito das respectivas pretensões, temos, enquanto alegação relevante por banda da ora Apelante, tão-só, o artigo 20º da respectiva contestação, transcrito na nota 3: “[os] RR. jamais ocultaram ao A. o facto de terem que obter, ainda, a licença de utilização na Câmara […] para poderem marcar a escritura de compra e venda […]”. É pouco, para não dizer quase nada, em termos que possibilitassem quesitar, com um mínimo de expressividade, algo passível de referenciação às circunstâncias vistas pelas partes como condicionantes da celebração do contrato de compra e venda prometido. É que o que se discute não é se os promitentes vendedores ocultaram a necessidade da licença de utilização (tanto não o ocultaram que está no texto do contrato), o que interessaria é saber se a eventualidade da não obtenção dessa licença com base nas condições que presidiram ao contrato foi igualmente antevista e assumida pelos contraentes. E é a este respeito que o texto do contrato e o material fáctico alegado pela Apelante padecem de um insuprível défice de conteúdo útil.  

Ora, o que se pode concluir de tudo isto – e concretamente o que se pode concluir dos factos provados –, não é mais do que uma situação de incerteza, não é mais, enfim, do que uma situação em que os factos não são suficientemente claros e expressivos quanto à questão da responsabilidade pela não conclusão do contrato definitivo, no quadro em que essa obrigação foi assumida pela Apelante no momento da promessa.

Expressando isto, fundamentalmente, uma situação de non liquet, nos termos em que os factos se oferecem, neste momento, à percepção por este Tribunal da Relação, há que ter presente que era à Apelante, enquanto devedora, que incumbia a prova de que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procediam de culpa sua (artigo 799º, nº 1 do CC), conduzindo essa não demonstração ao funcionamento da correspondente presunção de culpa[23], rectius da presunção de culpa dos promitentes vendedores no não cumprimento da obrigação de obterem a licença que possibilitaria o contrato prometido.

Ora, nestas situações – de impossibilidade superveniente imputável ao devedor –, a obrigação não deixa de se extinguir (estruturalmente), como adiante veremos, nascendo, todavia, um dever (autónomo) de indemnizar, cujo conteúdo concreto se expressa aqui, no caso de um contrato-promessa incumprido por quem recebeu o sinal, através da restituição deste em dobro, como é próprio da patologia da promessa, nos termos do disposto no artigo 442º, nº 2, 2º trecho do CC.

2.1.1.2. Esta caracterização do problema (impossibilidade superveniente da promessa imputável ao devedor/promitente vendedor) obriga-nos a tecer algumas considerações adicionais.

Em primeiro lugar – e abordamos a questão da autonomia do dever de indemnizar –, estamos a pressupor aqui a separação entre a questão da impossibilidade e a da indemnização decorrente da imputação desta ao devedor, ou seja da impossibilidade que (por ser assacável ao devedor) não preenche a previsão do artigo 790º, nº 1 do CC. Este constitui, com efeito, um entendimento, tributário da autonomia estrutural da obrigação de indemnizar[24], seguido por Menezes Cordeiro, numa posição assumidamente crítica da construção que afirma que a impossibilidade superveniente imputável ao devedor, não determinaria a extinção da obrigação, subsistindo ela, a cargo desse devedor, estruturalmente modificada, com o conteúdo de um dever de indemnizar[25]. Esta orientação, que corresponde ao entendimento de Vaz Serra no âmbito dos trabalhos preparatórios do Código Civil[26], e aparenta ter reflexo no artigo 790º, nº 1 do CC, é criticada por Menezes Cordeiro – “[…] não deve ser acolhida […][27] –, com base nas seguintes considerações, arrancando estas da apreciação de uma hipótese prática :


“[…]
António deve entregar a Bento uma obra de arte única; com a intenção de prejudicar Bento, destrói-a; pergunta-se: a obrigação de entrega mantém-se?
Ninguém poderia defender, em semelhante caso, a manutenção do dever de entregar o objecto destruído: isto é totalmente impossível, A obrigação, no entanto, manter-se-ia, só que com um conteúdo diferente; por exemplo: entregar 200c., a título de indemnização.
Só que […], a obrigação de indemnização nada tem a ver com a inicial:
- constitui-se, apenas, com o dano, tendo uma fonte própria;
- tem um conteúdo totalmente diferente;
- obedece a normas diversas;
- apresenta um fim específico.
No exemplo acima referido, António vai, efectivamente, ficar obrigado a indemnizar Bento pelo prejuízo que lhe causou. Mas a primeira obrigação está definitivamente perdida para o direito.
[…] A não imputabilidade ao devedor, como requisito da impossibilidade superveniente, extintiva da obrigação está, no fundo, estritamente dependente das concepções que, na obrigação, pretendem descobrir um vínculo sobre o património do devedor, que subsistiria para além das vicissitudes que, à prestação, pudessem ocorrer. A rejeição de tais concepções implica, naturalmente, a não aceitação desse pretenso requisito. O que, aliás, se impõe por razões de ordem prática, para além das necessidades de simetria científica. Para quê insistir na manutenção duma obrigação quando todos os elementos integrantes daquela se alteraram? Todo o sistema fica mais claro se se vincar claramente a extinção da obrigação cuja prestação se tenha impossibilitado por culpa do devedor; a obrigação de indemnização subsequente surge, depois, com muito maior clareza no seu significado.
[…]”[28]

            Numa outra perspectiva, que a situação concreta não deixa de convocar, ocorre sublinhar que o presente caso encerra, por referência à ideia de impossibilidade, uma particularidade importante. É que a impossibilidade normalmente tratada pela doutrina, aquela à qual se referem a generalidade dos manuais de Direito das Obrigações, corresponde essencialmente ao que poderíamos qualificar de quantum prestacional ou impossibilidade quantitativa, dividindo-se entre situações de impossibilidade referidas à totalidade da prestação (impossibilidade total) ou a uma parte dela (impossibilidade parcial; v., neste caso, os artigos 793º e 802º do CC)[29], quando a situação que aqui se configura se refere à qualidade da prestação, correspondendo ao que poderíamos qualificar como impossibilidade de cumprimento perfeito. Com efeito, do que se trata, na perspectiva do cumprimento oferecido pela Apelante/promitente vendedora à sua contraparte contratual, é de um cumprimento defeituoso: a casa com os “defeitos” – digamo-lo assim, por referência à perspectiva (inicial) do contrato-promessa – “exigidos” pela Câmara para efeito de licenciamento.

            Ora, no quadro do cumprimento defeituoso (aquele em que o devedor oferece uma prestação não integralmente correspondente à obrigação assumida), quadro este aqui transposto para o domínio da impossibilidade, ao credor assiste o direito de recusar a prestação defeituosa, salvo tratando-se de diferença (defeito) de carácter mínimo ou irrelevante (v. o artigo 802º, nº 2 do CC), aplicando-se depois, consoante exista culpa ou não, o regime dos artigos 790º e seguintes e 801º e seguintes do CC (in casu, por não ilisão da presunção de culpa do devedor, o regime destes últimos).

            Com efeito, como refere João Baptista Machado, caracterizando a resolução no cumprimento inexacto (que aqui transpomos para a impossibilidade de cumprimento[30]):


“[…]
A inexactidão qualitativa do cumprimento em sentido amplo pode traduzir-se tanto numa diversidade da prestação, como numa deformidade, num vício ou falta de qualidade da mesma ou na existência de direitos de terceiro sobre o seu objecto. Em qualquer dos casos, podemos de uma maneira geral dizer que o credor pode recusar a prestação e exigir uma prestação nova, exacta, sempre que isto seja possível, assim como pode exigir uma eliminação da deformidade ou dos vícios; e pode ainda, em dados termos, reduzir proporcionalmente a contraprestação ou, se a prestação inexacta lhe não interessa, resolver o negócio.
[…]”

            E acrescenta o mesmo Autor:

“[Q]uanto à liberdade de opção entre a redução da contraprestação e a resolução do contrato, há que ter em conta o disposto no artigo 802º, 2: o credor não pode resolver o contrato se a inexactidão da prestação tiver, em relação ao seu interesse, escassa importância.
[…]”[31]

            É este o regime do incumprimento por inexactidão qualitativa, sendo este, por identidade de razão, o regime da impossibilidade superveniente referida à qualidade da prestação.

            2.1.1.3. Operada, nos termos caracterizados, a extinção da obrigação por impossibilidade superveniente (referida ao cumprimento perfeito ou à exactidão qualitativa), com o correspondente nascimento da obrigação de indemnizar, dada a atribuição da culpa (de uma presunção de culpa não ilidida) dessa impossibilidade ao devedor (promitente vendedor), resta-nos a fixação do conteúdo indemnizatório. Trata-se de uma operação simples, já que corresponde tal conteúdo aqui, como mencionámos anteriormente – e como decorre da específica natureza do contrato-promessa – à obrigação de restituição do sinal em dobro, nos termos do trecho intermédio do artigo 442º, nº 2 do CC.

            Vale aqui, com efeito, o entendimento da natureza do sinal como “[…] verdadeira indemnização pré-fixada convencionalmente pelo não cumprimento da obrigação de celebrar o contrato prometido”[32], e o mesmo vale para o “não cumprimento” referido, nos termos antes assinalados, à impossibilidade imputável ao devedor que recebeu o sinal.

            2.2. Não tendo sido este, como referimos no início do item 2.1.1. deste Acórdão, o exacto caminho trilhado pela Sentença final, vemos que o resultado prático alcançado por esta, traduzido na restituição do sinal em dobro, acaba por ser comum ao ora propugnado, em função das considerações tecidas na presente decisão. Trata-se aqui, pois, de confirmar a Sentença apelada – o que corresponde a confirmar o resultado alcançado no Saneador/Sentença e na Sentença final –, acrescentando-se, tão-só, em vista do agravo interposto pelo aqui Apelado (v. item 1.3., nota 9, supra), a desnecessidade da apreciação deste, por preenchimento, através da confirmação da Sentença, da facti species final do artigo 710º, nº 1 do CPC.

É, pois, o que nos resta determinar, com a consequente improcedência de ambos os recursos de apelação, não sem que antes sumariemos os elementos fundamentais do antecedente percurso argumentativo:


I – Um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel não é originariamente impossível pela circunstância do imóvel objecto não dispor de licença de utilização;
II – Com efeito, expressando a opção pela espécie contratual da promessa, frequentemente, o não preenchimento, ainda, de todos os requisitos legais do contrato prometido, é a celebração da promessa perfeitamente compatível (no sentido de juridicamente possível) com a ausência dessa licença:
III – Se, posteriormente, em sede de preparação da celebração do contrato prometido, se verifica a impossibilidade de obtenção da licença de utilização, com base na configuração inicial do imóvel prometido vender, estaremos perante uma impossibilidade legal superveniente reportada ao exacto conteúdo do contrato prometido;
IV – Este tipo de impossibilidade opera, em qualquer caso, a extinção da obrigação (e não a sua não constituição como sucederia na impossibilidade inicial) e será culposa (artigo 801º e seguintes do CC) ou não culposa (artigos 790º e seguintes do CC);
V – Estando em causa responsabilidade contratual, o ónus da prova da ausência de culpa da impossibilidade impende sobre o devedor (no caso, o promitente vendedor que contratualmente se comprometeu a obter a licença), nos termos do artigo 799º, nº 1 do CC, presumindo-se a culpa deste face à incerteza quanto à alocação dessa culpa;
VI – A circunstância da concessão da licença de utilização só ser possível com base em alterações muito significativas da estrutura do imóvel, nos termos em que essa estrutura foi configurada pelas partes ao tempo da celebração da promessa, traduz uma impossibilidade de cumprimento perfeito da obrigação;
VII – Corresponde esta situação a uma impossibilidade qualitativa da prestação, aplicando-se a esta o regime do cumprimento imperfeito, tendo o credor o direito de recusar a prestação defeituosa, salvo se o defeito for mínimo, por aplicação, assente na identidade de razão, do regime da impossibilidade parcial (quantitativa) previsto no artigo 802º, nº 2 do CC;
VIII – O carácter culposo da impossibilidade de cumprimento perfeito gera o dever de indemnizar (autónomo do dever de prestar tornado impossível), sendo que o conteúdo deste, no caso de um contrato-promessa incumprido por quem recebeu o sinal, corresponde à restituição deste em dobro, nos termos do artigo 442º, nº 2 (trecho intermédio) do CC.


III – Decisão


            3. Assim, nos termos expostos, na improcedência das duas apelações, confirma esta Relação ambas as decisões recorridas, não tomando, em função desta confirmação, conhecimento do agravo interposto a fls. 209/210 pelo aqui Apelado.

            Custas da apelação a cargo da Apelante, contando-se a cargo da mesma, enquanto Agravada que contra-alegou (fls. 234), as custas do agravo (v. artigo 2º, nº 2 a contrario do Código das Custas Judiciais)[33].


[1] O contrato foi junto como documento nº 1 com a petição inicial, constando de fls. 13/15.
[2] Diz na contestação:
“[…]

20º
Os RR. jamais ocultaram ao A. o facto de terem que obter, ainda, a licença de utilização na Câmara Municipal do Fundão para poderem marcar a escritura de compra e venda do prédio objecto do contrato […] – a este propósito veja-se a cláusula 6ª do contrato-promessa […].
21º
Perante o exposto, não foi possível concluir a legalização do projecto […].
22º
Os RR. nunca suspeitaram que não conseguiriam obter a licença de utilização junto [da] Câmara Municipal do Fundão.
23º
Mas a verdade é que o projecto de alteração não tem viabilidade, enquanto não forem cumpridos todos os actos exigidos pela Câmara Municipal do Fundão.
24º
Deste modo, as promessas de vender dos RR. e a promessa de comprar do A. contidas no contrato-promessa […] são nulas.
25º
Porquanto são legal, originária e objectivamente impossíveis de cumprir, cfr. artigos 280º e 401º, nº 1 e 3 do Código Civil.
[…]”
                [transcrição de fls. 57/58]
[3] Foi esta aí devidamente especificada (v. fls. 109/114).
[4] Utiliza-se aqui esta formulação por ser sempre a empregue pela R./Reconvinte para qualificar o desvalor que atribui ao contrato-promessa e por ter sido repetidamente utilizada pelo Tribunal a quo na identificação desse argumento.
[5] Adiante, em sede de apreciação do recurso, serão apreciados os argumentos da primeira instância respeitantes a esta improcedência.
[6] Contém o mesmo despacho, também enquanto formulação decisória, a condenação do A./Reconvindo “[…] a reconhecer que está no gozo do prédio objecto do contrato-promessa desde a data da sua celebração (31/02/2000)” (transcrição de fls. 117).
[7] Os mesmos que possibilitaram o conhecimento parcial do pedido reconvencional.
[8] A apreciação deste agravo arrastado pela Apelação final da R. (que nesse agravo ocuparia a posição de Agravada), dependerá da não confirmação da Sentença apelada, nos termos do artigo 710º, nº 1 do Código de Processo Civil – note-se que esta disposição é aqui citada na sua “existência”/redacção anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, por estarmos perante processo iniciado anteriormente a 01/01/2008 (v. artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1 do mencionado Diploma); por idêntica razão, qualquer outra disposição do Código de Processo Civil citada neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterada pelo DL 303/2007, é o na versão anterior a este Diploma.

[9] No que tange à primeira apelação, os factos a considerar (os indicados a fls. 109/114 do Saneador/Sentença) são os mesmos da sentença final na parte desta (fls. 289/291) referida a “factos assentes”.
[10] A este respeito basta, aliás, comparar os dois blocos de conclusões transcritos nos itens 1.2.1. e 1.5. deste Acórdão, para verificar que se trata nas duas apelações da mesma questão.
[11] Claro que se esta Relação viesse a considerar o contrato nulo, por impossibilidade originária, determinando a restituição do sinal à Apelante, ficaria sem sentido o direito de retenção reconhecido ao Apelado. O que aqui se pretende frisar, ao indicar a ausência da questão do enriquecimento sem causa e do direito de retenção das conclusões, é a autonomia desses elementos, no quadro da improcedência de qualquer das apelações e, consequentemente (já que não se trata de matéria de conhecimento oficioso), a circunstância de estar vedada a sua apreciação a esta Relação.
[12] Na apelação interlocutória não podiam essas questões ser tratadas, sendo certo que não haviam sido, ainda, objecto de decisão.
[13] Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, 3ª ed., Coimbra, 2005, p. 677.
[14] Teoria Geral da Relação Jurídica, vol II, reimpressão, Coimbra, 2003, p. 328.
Utilizando exemplos que ilustram rigorosamente o sentido prático do conceito de impossibilidade nas suas variantes, afirma Pedro Múrias num texto intitulado “Casos de Impossibilidade da Prestação”, disponível em http://muriasjuridico,no.sapo.pt/eCasosImpossibilidade.htm:
“[…]
É costume distinguir impossibilidade física e impossibilidade legal (cfr. artigo 280º). A impossibilidade física decorre das «leis da natureza» […]. A «impossibilidade legal» decorre do direito: Por exemplo, a obrigação de vender um bem do domínio público é juridicamente impossível, embora, na maioria dos casos, esta impossibilidade seja temporária. Também é legalmente impossível a obrigação assumida por um advogado de obter para o seu cliente licenças de importação de cocaína para revenda.
Como é claro, também há impossibilidades matemáticas (ou, em geral analíticas) e impossibilidades institucionais não jurídicas, P. ex., há impossibilidade analítica num contrato em que um matemático se «obrigue» a determinar o maior dos números primos ou, ligeiramente menos inverosímil, num ajuste para que um cartógrafo desenhe um planisfério sem distorção de áreas ou contornos. Há impossibilidade institucional na promessa de traduzir o Digesto para português sem utilizar substantivos, tal como na convenção de que um professor de xadrez ensine a fazer xeque-mate num jogo de rei e cavalo contra rei. Em qualquer dos exemplos, a impossibilidade não decorre nem das leis da natureza, nem das regras jurídicas, mas sim de outras «leis» ou «convenções».
[…]
Em síntese de todos estes casos, vemos que há impossibilidade quando não pode acontecer aquilo que as partes definiram como prestação no negócio jurídico.
[…]”
[15] A impossibilidade superveniente, como adiante veremos com mais detalhe, desencadeia consequências distintas da nulidade, que variam em função do carácter não culposo (artigos 790º e seguintes do CC) ou culposo dessa impossibilidade (artigo 801º e seguintes do CC).
[16] Que diz:
“[…]
A escritura de compra e venda será realizada no Cartório Notarial do Fundão ou noutro a designar por acordo, logo que o primeiro e/ou segundo outorgante [os promitentes-vendedores] comunique ao terceiro outorgante a conclusão do cumprimento dos actos preparatórios dela – designadamente a obtenção da licença de utilização na Câmara Municipal do Fundão – e a respectiva marcação naquele Cartório, o que deverá fazer com antecedência de trinta dias pelo menos.
[…]”
                [transcrição de fls. 14]
[17] “De acordo com a definição prevista no artigo 410º, nº 1 [CC], o contrato-promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar novo contrato. Estamos assim perante um contrato preliminar de outro contrato que, por sua vez, se designa de contrato definitivo. O contrato-promessa caracteriza-se assim pelo seu objecto, uma obrigação de contratar […]” (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2005, p. 203).
[18] Como sublinha Mário Júlio de Almeida e Costa, “[v]árias razões estão na base da utilização do contrato-promessa. Com ele se procura assegurar a realização do contrato prometido, num momento em que existe algum obstáculo material ou jurídico à sua imediata conclusão, ou o diferimento desta acarreta vantagens. Assim, por exemplo: […] não podem, entretanto, observar-se as formalidades legalmente exigidas” (Contrato-Promessa. Uma Síntese do Regime Vigente, 8ª ed., revista e aumentada, Coimbra, 2004, p. 13).
[19] “Quando se verifique uma impossibilidade inicial da prestação, a obrigação não se constitui” (António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º vol., Lisboa, 1980, p. 169).
[20] “[A] impossibilidade originária da prestação provoca a nulidade do contrato, enquanto a impossibilidade superveniente conduz à extinção das obrigações atingidas. Nesse sentido dispõem os artigos 280º, nº 1 e 790º, nº 1 do [CC]” (António Menezes Cordeiro, “A «Impossibilidade Moral»: Do tratamento Igualitário No Cumprimento Das Obrigações”, in Estudos de Direito Civil, vol I, Coimbra, 1994. pp. 102/103).
[21] O que neste caso se verifica dado que a celebração do contrato definitivo se refere a um objecto com condições legalmente impossíveis de manter, aferidas nesse seu carácter definitivo, como o impõe o artigo 790º, nº 2 do CC, em função do interesse do credor (aqui do A./Apelado).
[22] “A «Impossibilidade Moral»…”, cit., p. 103.
[23] “[O] artigo 799º vem referir que incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, o que implica o estabelecimento de  uma presunção de culpa em relação ao devedor de que o incumprimento lhe é imputável, dispensando-se assim o credor de efectuar a prova correspondente (artigo 351º, nº 1 [do CC]” (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II,  3ª ed., Coimbra, 2005, p. 249).
[24] Este constitui o sentido profundo da obra de Manuel Gomes da Silva, O Dever de Prestar o Dever de Indemnizar, Lisboa, 1944, enunciado conclusivamente, na síntese final desta, nos seguintes termos:
“[…]
1ª O dever de prestar corresponde a uma das formas de colaborar na realização do fim do direito de crédito;
2ª O dever de prestar é racionalmente compatível tanto com o regime em exigir ao devedor todos os esforços que sejam necessários para, efectuando a prestação estipulada, atingir o resultado, quanto com o regime em que o devedor esteja adstrito apenas a prestar esforços de intensidade limitada;
3ª O dever de indemnizar é distinto do dever de prestar: tem objecto, fim e fundamento diversos dos dele;
4ª Sendo independente do dever de prestar, o dever de indemnizar não se pode deduzir da existência dele: para que seja imposto ao devedor é necessário que legal ou convencionalmente lhe sejam imputáveis os prejuízos de que esse dever emerge;
5ª Em compensação, o dever de indemnizar enquadra-se plenamente na responsabilidade civil em geral;
6ª No nosso direito não se distingue a responsabilidade contratual da aquiliana: os regimes das duas são, pelo menos em princípio, idênticos;
[…]” (p. 249).
[25] Direito das Obrigações, cit., p.172.
[26] “Impossibilidade superveniente por causa não imputável ao devedor e desaparecimento do interesse do credor”, BMJ nº 46 (1955), p. 5.
[27] Direito das Obrigações, cit., p.172.
[28] Direito das Obrigações, cit., p.172/173.
[29] Esta perspectiva, como que quantitativa da impossibilidade, resulta evidente da apreciação – e trata-se de fornecer exemplos – do tratamento da questão “da impossibilidade culposa da prestação” no Manual de Obrigações de Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (Direito das Obrigações, vol. II, cit., pp. 262/264), sendo a impossibilidade total equiparada ao incumprimento (total) e a impossibilidade parcial tratada no quadro do artigo 802º, nº 1, que encerra uma evidente visão quantitativa da prestação.
É neste sentido, aliás, que Mário Júlio de Almeida e Costa, caracterizando o cumprimento defeituoso, reconduz a inexactidão do cumprimento que ele expressa, ao “[…] defeito ou vício da prestação que não envolve uma sua falta de identidade ou quantidade” (Direito das Obrigações, 11ª ed., Coimbra,  2008; no mesmo sentido, cfr. João Baptista Machado, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento” in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, vol II, Coimbra, 1979, pp. 386 e ss.).
[30] É que o cumprimento oferecido (e possível) era um cumprimento inexacto ou imperfeito.
[31] “Pressupostos da Resolução…”, cit. pp. 387 e 390.
[32] João Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 12ª ed., revista e aumentada, Coimbra, 2007, p. 267.
[33] A inutilidade do agravo resulta da improcedência da apelação, sendo imputável a quem “sofre” as consequências tributárias dessa improcedência.