Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
761/19.3T8ACB-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS EM INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS DOS TRABALHADORES
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO IMOBILIÁRIO
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
CONSTITUIÇÃO DO PRIVILÉGIO
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 746.º E 751.º DO CÓDIGO CIVIL, 11.º, N.º 2, DO DECRETO-LEI N.º 149/95, DE 24-06, E 333.º, N.º 1, B), DO CÓDIGO DO TRABALHO
Sumário: I – Quer o direito de gozo (suscetível de transmissão a terceiros, nos termos do art. 11.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho), quer o direito de aquisição no final do contrato, coevos ao contrato de locação financeira, apresentam valor económico, suscetível, no âmbito executivo ou falimentar, de ser afetado ao pagamento dos créditos dos trabalhadores.

II – Os privilégios imobiliários especiais constituem-se com o surgimento do crédito que visam salvaguardar, atribuindo aos seus titulares o predomínio da sua garantia sobre qualquer outro crédito garantido, conquanto que ela haja sido constituída anteriormente em relação aos demais, sendo oponíveis a terceiros e gozando mesmo de preferência quanto a garantias anteriores (consignação de rendimentos, hipoteca e direito de retenção) – art. 751.º do Cód. Civil.

III – Os créditos dos trabalhadores, constituídos em data anterior ao exercício da opção de compra de imóvel (sob locação financeira) pelo empregador, não gozam do privilégio creditório imobiliário conferido pelo art. 333.º, n.º 1, b), do Código do Trabalho, no produto da venda desse imóvel, ainda que aí prestassem a sua atividade.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 761/19.3T8ACB-C.C1

Juízo de Comércio de Alcobaça – Juiz 1

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Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

No incidente de verificação dos créditos que corre por apenso aos autos de insolvência de S..., S.A.., foi, a 31.03.2023, proferida sentença que reconheceu e graduou os créditos, entre eles, como créditos privilegiados, a serem pagos em primeiro lugar relativamente ao produto da venda do imóvel sob a verba n.º 1 do auto de apreensão, os respeitantes aos trabalhadores AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II.


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Inconformada, a insolvente interpôs recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever

1 – O Sr. Administrador de Insolvência na relação final de créditos reconhecidos e não reconhecidos, qualificou como privilegiados, ao abrigo do artigo 333.º, do Código do Trabalho, todos os créditos reclamados por trabalhadores da insolvente, tendo ainda mencionado na exposição de motivos, a que a anexou, no que não foi acompanhado na sentença em recurso, que todos os trabalhadores se encontravam a exercer a sua actividade em instalações da sociedade à data da declaração da insolvência.

2 – A ora apelante impugnou oportunamente essa relação a que alude o artigo 129.º do CIRE, na qual aceitou que, em abstracto, os créditos de natureza laboral, emergentes a celebração de contratos de trabalho ou da sua cessação, gozam de privilégio mobiliário geral e imobiliário especial.

3 – Todavia, também acrescentou, que para que o privilégio imobiliário especial tenha concretização prática, é indispensável que no momento da cessação do contrato de trabalho, o empregador seja o proprietário do imóvel em que o trabalhador presta a actividade para que foi admitido, dele já não beneficiando se o empregador o vier a adquirir em ocasião posterior, ainda que o crédito laboral não esteja nessa ocasião satisfeito.

4 – À luz desse entendimento, pugnou na impugnação que fez, que os créditos dos trabalhadores, AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II, ainda que abstractamente pudessem ser dotados do privilégio imobiliário especial, não poderiam como tal ser graduados na sentença de graduação de créditos que foi proferida, com prioridade em relação aos demais créditos, pelo produto da venda do bem imóvel apreendido para a massa insolvente.

5 – Com efeito, como está demonstrado no processo, e considerado indiscutivel na sentença em recurso, os identificados trabalhadores resolveram os seus contratos de trabalho nos anos de 2011 e 2012 e, nessa época, o imóvel onde prestavam trabalho não era propriedade da insolvente.

6 – Na verdade, esse imóvel só foi adquirido pela insolvente, ingressando na sua esfera patrimonial, em 15/09/2017, em data posterior, portanto, ao da cessação dos referidos contratos de trabalho, tendo a insolvência da apelante sido declarada por sentença de 10/04/2019.

7 – Aquando da cessação dos contratos de trabalho aqui em causa, o que sucedeu nos anos de 2011 e 2012, os trabalhadores que os fizeram extinguir, trabalhavam no imóvel apreendido, que não era então propriedade da empregadora, mas objecto de locação financeira contratada em 11/04/2001 com a Caixa Leasing e Factoring, SA, em relação ao qual, e no seu termo, exerceu o direito de pagar o valor residual contratualmente estabelecido, vindo a adquirir o respectivo direito de propriedade, direito que, como se referiu, lhe foi transmitido por escritura de 15/09/2017.

8 - Como o referido grupo de trabalhadores prestava a sua actividade em imóvel de que a apelante não era proprietária, os créditos de natureza laboral que lhes foram reconhecidos, não estão abrangidos pela previsão do artigo 333.º, n.º 1, al. b) do Código do Trabalho.

9 – O privilégio creditório imobiliário especial aí consagrado, incidindo sobre bem imóvel do empregador e no qual o trabalhador preste a sua actividade, depende, pois, da verificação cumulativa de duas condições:

a) Que o bem imóvel seja do empregador;

b) Que o trabalhador nela preste a sua actividade ou ele esteja afecta à actividade pelo empregador desenvolvida.

10 – No caso, falha a primeira das referidas condições, porque o bem imóvel não era propriedade da empregadora quando os contratos cessaram.

11 – Daí que a apelante considere que os referidos créditos não posam ser graduados com prioridade em relação aos demais créditos, já que em relação a eles, e pelas razões expostas, o privilégio creditório a que alude o art.º 333.º, n.º 1/b) do Código do Trabalho não tem aplicação prática.

12 – Assim não o entendeu a sentença recorrida, que considerou não haver motivos para não conferir aos créditos em causa o referido privilégio creditório, tendo-os graduado, quanto ao produto da venda do prédio urbano constante da verba 1 do auto de apreensão, o adquirido pela insolvente cinco anos depois de os referidos contratos de trabalho terem cessado e dado origem às indeminizações por antiguidade previstas no artigo 396.º, do Código do Trabalho, com prioridade em relação aos demais credores.

13 – Para assim decidir, o Mº Juiz a quo, invocou a circunstância de, não obstante o imóvel não estar na titularidade da apelante, não ter impedido que nele fossem registadas penhoras por dívidas tributárias da insolvente, efectuadas ao abrigo do disposto no artigo 778.º, do Código de Processo Civil.

14 – Essa norma permite, efectivamente, que se penhorem direitos ou expectativas de aquisição, como será o caso, mas não exclusivamente de um bem objecto de locação financeira.

15 – Essa penhora incide sobre a mera expectativa, mas não sobre o bem em si mesmo, o que significa que a sua afirmação prática, como estabelece o sei n.º 3, se efective no próprio bem se e quando o devedor o adquirir.

16 – Mas se assim é, é porque a Lei adjectiva considera que o bem ou direito em questão, em relação ao qual há a expectativa de vir a ingressar na titularidade do devedor, ainda não é dele, e pode nem vir a sê-lo.

17 – A penhora de direitos ou expectativas de aquisição pressupõe, assim, que o devedor não é titular do bem, como sucederá, por exemplo, no caso de vir a ser penhorada a expectativa de aquisição do imóvel onde o devedor exerce a sua actividade e de que é arrendatário.

18 – O argumento utilizado para classificar em primeiro lugar, na grelha da graduação, os créditos dos trabalhadores antes identificados, quanto ao produto da venda do imóvel em causa, é, assim, fraco e não transponível para a situação dos autos.

19 – Com efeito, o que a decisão em recurso faz, é dar conteúdo a um direito que os referidos trabalhadores não tinham, nem sequer a sua mera expectativa, porque quando tomaram a iniciativa de fazerem cessar o seu vinculo laboral à empresa, o imóvel onde prestaram actividade não era propriedade desta, pelo que não poderiam receber os seus créditos à custa da sua venda.

20 – Daí que, mesmo que em tese ou em abstracto, todos os créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da sua cessação, gozem de privilégio creditório imobiliário especial, a sua concretização efectiva, depende de o bem imóvel onde prestem trabalho no momento da cessação do contrato seja propriedade do empregador.

21 – Ao decidir de forma diversa, a decisão proferida violou o disposto nos artigos 333.º, n.º 1, al. b) do Código do Trabalho e 47.º, n.º 4, al. a) do CIRE.

22 – Os créditos laborais dos trabalhadores em causa gozam, assim, apenas de privilégio mobiliário geral, devendo ser qualificados como créditos comuns, na parte que não for satisfeita pelo produto da venda dos bens móveis apreendidos”.

Terminou pugnando no sentido da revogação da sentença “na parte em que graduou em primeiro lugar, pelo produto da venda do prédio urbano da verba 1 do auto de apreensão, os créditos dos trabalhadores identificados na conclusão 4, antes devendo esses créditos, quanto ao valor apurado com a sua venda, ser qualificados como créditos comuns e serem pagos rateadamente e na proporção dos seus montantes”.


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Não foi oferecida qualquer resposta.

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Dispensados os vistos, foi realizada a conferência, com obtenção prévia dos votos, sugestões e contributos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.

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II-Objeto do recurso

Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (art. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).

No caso, perante as conclusões apresentadas, a única questão a apreciar decidir é a de saber se os créditos dos trabalhadores (identificados na conclusão 4 do recurso) usufruem ou não de privilégio no produto da venda do prédio urbano n.º ...77 (melhor identificado na verba 1 do auto de apreensão constante do apenso A - ref. 6230241), onde esses trabalhadores exerceram atividade profissional, uma vez que tal imóvel, à data em que foram constituídos os aludidos créditos, não era (ainda) propriedade da insolvente.


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III-Fundamentação

Para a decisão da questão sob apreciação releva a seguinte matéria (a qual foi considerada pelo tribunal recorrido e não foi objeto de impugnação):
1. A sociedade “S..., S.A.”, foi constituída em 07/11/1985, tendo por objeto social a produção e comercialização de máquinas e alfaias agrícolas, máquinas industriais e comerciais e seus acessórios.
2. Em 11/04/2001, a S..., S.A. celebrou com a “Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” um contrato de locação financeira imobiliária tendo por objeto o prédio urbano, composto por pavilhão industrial, garagem, e logradouro, sito em ..., ... ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...25 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...77, nos termos do qual a locadora se obrigou a ceder o gozo temporário do imóvel, mediante o pagamento de uma retribuição, podendo a locatária comprar o imóvel no fim do prazo do contrato mediante o pagamento de um preço.
3. Era neste prédio que funcionava a sede social da sociedade insolvente e as suas instalações de trabalho.
4. Os trabalhadores da S..., S.A. - AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II - desempenhavam a sua atividade profissional nesse imóvel.
5. O trabalhador da S..., S.A. II cessou o seu contrato de trabalho em 30.11.2011.
6. No ano de 2012 os trabalhadores da S..., S.A. - AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH - resolveram os respetivos contratos de trabalho por justa causa, com fundamento na falta de pagamento de salários.
7. Por escritura pública de 15.09.2017, no exercício da opção conferida pelo contrato de locação financeira, a S..., S.A. adquiriu a propriedade sobre o imóvel referido em 2.
8. A S..., S.A. foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado, proferida em 10.04.2019.
9. O prédio referido em 2 foi apreendido a favor da massa insolvente da S..., S.A. (verba 1 do auto respetivo).
10. Os créditos dos trabalhadores referidos em 4 emergem dos respetivos contratos de trabalho, da sua violação e cessação.

Sendo estes os pressupostos, cumpre então decidir a questão colocada em sede de recurso.

Estatui-se no art. 333.º, n.º 1, do Código do Trabalho, no que no caso releva,
“Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:
(…)
b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua atividade
Privilégio que, embora de caráter oculto[2], de acordo com os arts. 733.º e 734.º do Código Civil, abrange o crédito e juros relativos aos últimos 2 anos, conferindo ao credor a faculdade de ser pago com preferência a outros (art. 733.º do Código Civil), sendo graduado antes dos créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil e do crédito relativo a contribuição para a Segurança Social (cfr. art. 333.º, n.º 2, b) do Código do Trabalho).
Prevalece, como tal, sobre os direitos reais de gozo e de garantia de terceiros (art.º 751º do C.C.), e do relativo a contribuição para a Segurança Social[3], cedendo unicamente perante os privilégios por despesas de justiça (art.º 746.º do C.C.).
É sabido que os privilégios creditórios conferidos pelo art. 333.º do Código do Trabalho surgiram como forma de combater a generalização do flagelo dos “salários em atraso” que se fez sentir sobretudo a partir da primeira metade dos anos oitenta do século XX, tendo o legislador robustecido a proteção concedida, ante a relevância e a função social do “salário”[4].
Especificamente no que respeita ao privilégio sobre o imóvel onde o trabalhador presta a sua atividade, como se sumaria no acórdão do STJ de 13.01.2015[5], o “que justifica a concessão do privilégio imobiliário especial (…) é, sem dúvida, a especial ligação funcional - e não meramente naturalística - do trabalhador ao imóvel, através do exercício da sua actividade”, ou, dito ainda de forma mais impressiva, “A lei exige uma especial ligação funcional do trabalhador ao imóvel. Este deverá fazer parte integrante da empresa, de forma estável, encarada como complexo organizacional do empregador" (acórdão do TRC de 08.07.2015), sendo que, como lucidamente se avançou no Acórdão do STJ de 23.02.2016 (AUJ), a ligação naturalística para que a letra da lei aponta (o imóvelno qual o trabalhador presta a sua atividade) deva ser temperada no sentido de não excluir essa perspetiva mais ampla (funcional), “tendo em conta, no âmbito de uma empresa, o conjunto de imóveis desta onde os trabalhadores que a integram executam as suas funções, que se complementam em ordem à prossecução da actividade que constitui o objecto da empresa. Ou seja, como se o preceito mencionasse (o conjunto de) imóveis do empregador nos quais os trabalhadores prestem a sua actividade”.
Se na situação dos autos não existem dúvidas em como os trabalhadores referenciados exerciam atividade profissional no imóvel, justapõe-se o “obstáculo” de, à data em que exerceram tal atividade e foram constituídos os créditos, o prédio não ser pertença da empregadora, agora insolvente, a qual era apenas, ao tempo, beneficiária do seu gozo temporário ao abrigo de contrato de locação financeira.
Assim, numa interpretação literal da norma, os respetivos créditos não beneficiam do privilégio por não se tratar de “bem imóvel do empregador”.
Maria do Rosário Palma Ramalho[6] e Paulo Cunha [7] acompanham esta visão restritiva, tendo por seguro que o normativo em causa apenas abrange o imóvel que seja propriedade do empregador e não qualquer outro.
Miguel Lucas Pires[8] alerta para a circunstância de o obstáculo (associado à falta de objeto do privilégio quando se trate de imóvel pertença de terceiros) poder não ser “tão nefasto quanto possa parecer, pois sempre será possível, em processo executivo ou de insolvência, penhorar e alienar o direito com base no qual o devedor ocupa o prédio, fazendo valer a preferência sobre o produto da respectiva venda”.
O contrato de locação financeira (leasing)[9] constitui um instrumento financeiro destinado à aquisição de bens pelo locador que não dispõe, ou não quer utilizar, capitais próprios para tal efeito.
Diversamente do mútuo, o financiador não se limita a “entregar o dinheiro” para ser restituído em parcelas ou em prazo determinado; adquire ele próprio a propriedade do bem e cede o seu gozo temporário, mediante retribuição, sendo que, no final do prazo, assiste ao locador o direito de adquirir o bem pelo preço estipulado.
Nesse sentido pode concluir-se que na locação financeira, a cedência do uso e a disponibilidade para, no final do contrato, transmitir a propriedade para o locatário, constituem as prestações e obrigações principais do locador.
Sem se ignorarem as diferenças e as característica jurídicas estruturais de cada um desses contratos, numa visão pragmática da economia das empresas e dos cidadãos, o leasing apresenta, sobretudo, a finalidade financeira referida, quando não meramente contabilística e de gestão[10].
Ainda assim, importa não olvidar que os privilégios imobiliários especiais se constituem com o surgimento do crédito que visam salvaguardar, atribuindo aos seus titulares o predomínio da sua garantia sobre qualquer outro crédito garantido, conquanto que ela haja sido constituída anteriormente em relação aos demais, sendo oponíveis a terceiros e gozando mesmo de preferência quanto a garantias anteriores (consignação de rendimentos, hipoteca e direito de retenção) nos termos previstos no art. 751.º do Cód. Civil[11].
Só que, e este é o ponto nuclear, à data da constituição dos créditos respetivos, os trabalhadores não beneficiavam de qualquer privilégio imobiliário sobre o imóvel, precisamente porque o imóvel não era pertença da empregadora.
Não se ignora, até para deixar acautelado o alerta suprarreferido de Miguel Lucas Pires, que à data da constituição dos seus créditos os trabalhadores beneficiavam do direito de exigir a cobrança coerciva do seu crédito sobre os direitos emergentes da locação financeira - quer o direito de gozo (suscetível de transmissão a terceiros, nos termos do art. 11.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho), quer o direito de aquisição no final do contrato, os quais, obviamente, apresentam valor económico, suscetível, no âmbito executivo ou falimentar, de ser afetado ao pagamento dos créditos dos trabalhadores.
E, caso se tratasse de bem que à data da insolvência, estivesse submetido a locação financeira, o administrador da insolvência podia optar pelo cumprimento do contrato e proceder à aquisição, sendo que, mesmo recusando o cumprimento, podia ser constituído crédito a favor da massa correspondente à diferença entre as rendas em falta e o valor da coisa (cfr. art. 102.º e 104.º do CIRE).
Todavia, no caso, à data da insolvência e da reclamação de créditos, esse contrato de locação financeira já se extinguira pelo exercício da opção de compra, transitando para a dominialidade da agora insolvente.
Assim, sob pena de, a este propósito, transmutarmos, contra o estatuído na lei, o privilégio imobiliário conferido pelo art. 333.º, n.º 1, b) num privilégio imobiliário geral (isto é, sobre o património adquirido pela empregadora em momento ulterior ao do nascimento do crédito, ainda que com a particularidade de o trabalhador aí exercer a sua atividade profissional), importa rejeitar a solução dada pelo tribunal recorrido, que assenta numa lógica, sem apoio legal, que a garantia acompanhou o contrato de locação financeira na sua vigência e passou, em termos ambulatórios, a incidir sobre o próprio imóvel a partir do momento em que a empregadora exerceu a opção de compra de que dispunha.
É que, como refere João Leal Amado (Contrato de trabalho à luz do novo código do Trabalho, Coimbra Editora, 2009, págs. 331 e 332) “recaindo os privilégios apenas sobre o bem imóvel << no qual o trabalhador presta a sua atividade>>, sempre terá de tratar-se de situações em que tal imóvel seja <<do empregador>>, pelo que esta norma não encontrará aplicação nos casos em que o imóvel onde o trabalhador presta a sua actividade, embora explorado pelo empregador, não lhe pertence (suponha-se, p. ex., que o prédio é arrendado)”.
Entende-se, por isso, que os créditos em causa, atenta a data da sua constituição, não beneficiam do privilégio creditório constante do art. 333.º, n.º 1, b) do Código do Trabalho, por o imóvel não pertencer nessa data ao empregador, o que implica a procedência do apelo.


    *

Sumário[12]:

(…).

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se, na procedência da apelação, em revogar a decisão recorrida, decidindo-se, na parte sob recurso (alínea A do dispositivo):

Quanto ao produto da venda do prédio urbano n.º ...77, melhor identificado na Verba 1 do auto de apreensão (ref. 6230241) do ApensoA, serão pagos os créditos reconhecidos pela ordem seguinte:

Em primeiro lugar, os créditos laborais dos trabalhadores da insolvente JJ, KK, LL, MM e NN, melhor identificados na lista de créditos apresentada pelo Administrador da Insolvência em 04/02/2022, em paridade com os respetivos créditos do Fundo de Garantia Salarial, rateadamente, e na proporção dos respetivos créditos.

Em segundo lugar, os créditos comuns (a incluir os dos trabalhadores AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II, em paridade com os respetivos créditos do Fundo de Garantia Salarial), rateadamente, e na proporção dos respetivos montantes.

Em terceiro lugar, os créditos subordinados pela ordem prescrita no art. 48.º do CIRE, na proporção dos respetivos montantes.

                                                                               *

Custas do recurso pela massa insolvente (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC e 304.º do CIRE).

                                                                               *

Coimbra, 12 de julho de 2023


(Paulo Correia)

(Maria Catarina Gonçalves)



(José Avelino Gonçalves)




[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Maria Catarina Gonçalves e José Avelino Gonçalves.
[2] - Por não estar sujeito a registo e a maior parte dos demais credores desconhecerem com rigor a sua existência e extensão.

[3] - Ou seja, é graduado antes do crédito relativo a contribuição para a Segurança Social, bem como sobre os créditos do Estado, pelos impostos inerentes ao património imobiliário (imposto municipal sobre imóveis - IMI; imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis - IMT; Imposto do Selo) e dos créditos das autarquias locais pelo IM.
[4] - Cfr. a este propósito, Bernardo da Gama Lobo Xavier, Manual de Direito do Trabalho, Verbo, 2011, págs. 582 a 584.
[5] - Todos os acórdãos citados no presente acórdão encontram-se disponíveis em www.dgsi.pt
[6] - Direito do Trabalho – Situações Laborais Individuais, II, Coimbra, 2010, pág. 665.
[7] - Da garantia das Obrigações, Vol. II, pág. 72.
[8] - A amplitude e a inconstitucionalidade dos privilégios creditórios dos trabalhadores, Questões Laborais, n.º 31, ano XV, Janeiro/Junho 2008, Coimbra, págs. 83 e segs.
[9] - Disciplinado pelo Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho, com as alterações entretanto introduzidas.
[10] - Nos contratos de locação financeira sem incidentes de incumprimento, a maior parte das vezes a instituição financeira nunca vê o bem adquirido durante o prazo da vigência do contrato, nem interfere na escolha e compra do bem, limitando-se a disponibilizar o capital e a receber as rendas e o preço final da aquisição.
[11] - O que viabiliza, desde logo, o direito de sequela face à consideração da obrigação como propter rem (ou seja, aquela cujo sujeito passivo - o devedor - é determinado não “intuitu personae”, mas realmente, isto é, determinado por ser titular de um determinado direito real sobre a coisa, consubstanciando uma verdadeira relação creditória incrustada no estatuto do direito real, figurando como elemento do seu conteúdo e com caráter ambulatório – a este propósito cfr. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, pág. 512, Henrique Mesquita, in R.D.E.S., XXIII, pág. 153 e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª ed., pág. 75.
[12] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).