Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2489/09.3PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: CRIME DE AMEAÇA
MAL FUTURO
Data do Acordão: 09/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO CRIMINAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGO 153º CP
Sumário: Constituindo o crime de ameaça o anúncio de que no futuro se irá cometer um crime que depende da vontade do agente, não o pratica aquele que em tom agressivo e colérico, se dirige ao ofendido dizendo “ havemos de ajustar contas, isto não fica assim”, pois tal factualidade só por si não permite concluir que pretendesse praticar qualquer facto ilícito criminal.
Decisão Texto Integral: RELATÓRIO


1.

Nos presentes autos foi o arguido AA... condenado pela prática dos crimes de injúrias e de ameaças, dos art. 181º, nº 1, e 153º, nº 1, ambos do Código Penal, em 60 dias de multa por cada um deles, à taxa diária de 7 €.

Realizado o cúmulo jurídico, foi-lhe aplicada a pena única de 100 dias de multa, à taxa referida, a que correspondem 66 dias de prisão subsidiária.

 Mais foi o arguido condenado a pagar ao demandante BB... a quantia de 350,00 €, a título de indemnização.

2.

Inconformado, o arguido recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«A.       O presente recurso versa quer sobre a matéria de facto, visando a sua reapreciação, quer ainda sobre matéria de Direito, uma vez que se entende que a conduta imputada ao recorrente se poderá mostrar atípica e não punível, recorrendo-se todavia, ad cautelam, igualmente da pena aplicada e montante da condenação na vertente cível.

B.         Com o presente recurso não pretende o recorrente colocar em causa o exercício das mui nobres funções nas quais se mostram investidos os Ilustres julgadores, mas tão-somente exercer o direito de "manifestação de posição contrária", traduzido no direito de recorrer consagrado na alínea i) do nº 1 do art. 61° CPP e no nº 1 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP brevitatis causa).

C.         No âmbito do presente processo foi oferecida contestação pelo recorrente, sendo que em sede de douta sentença se mostra referenciado unicamente o seu oferecimento e não já as conclusões vertidas na mesma, padecendo de um vício do qual deverá ser expurgada em sede de correcção, nos termos da alínea a) do art. 380º CPP ex vi 374º nº 1 d).

D.         E ao não considerar na devida conta o teor da contestação apresentada, padecerá a douta sentença do vício da nulidade previsto na alínea c) do nº 1 do art. 379º CPP, uma vez que deixou de conhecer das questões aí expressamente alegadas e dar resposta em termos de prova dos factos aí alegados.

E.         No tocante à reapreciação da prova gravada mostra-se incorrectamente dado por provado, em sede de ponto III, fundamentação de facto, que o recorrente teria vociferado "em tom agressivo e colérico, em local público e para quem quis ouvir", atendendo a toda a prova testemunhal produzida (maxime testemunha CC... nas passagens 04:22 a 04:25, 04:47 a 04:59, 05:53 a 06:17, 06:52 a 06:59, 08:02 a 08:06, 08:28 a 08:31 e 09:55 a 10:01) e demais concretas passagens referenciadas em sede de motivação.

F.         E sempre tal estado de exaltação, a ter existido, sempre diminuiria a ilicitude e a intensidade do dolo uma vez que o dolo directo exige uma certa cabeça fria e raciocínio, de produção de ofensas com tal estado colérico, sendo a douta sentença assim contrária, em sede de determinação da medida da pena, aos seus fundamentos e factos provados.

G.        Mostraram-se em confronto três versões dos factos (a do recorrente, a do assistente e sua esposa, com apenas minudências de diferença e a da outra testemunha presencial, o técnico CC...) sendo que das três, com o devido respeito, dir-se-á que a do assistente se mostra demasiado empolada e contrariada pela testemunha CC..., a única verdadeiramente imparcial.

H.         Acaba por dar o tribunal por dar por provado o estado colérico e tom agressivo do recorrente, quando a testemunha CC..., refere, amiúdes vezes que a única voz que ouvia era, pasme-se ... a do assistente (passagens 04:47 a 04:59, 06:52 a 06:59 e 09:55 a 10:01) e se mostrava ela própria perto por estar à varanda, de um r/c que deitava para a rua, local onde se terão desencadeado os factos (passagem 05:53 a 06:17).

I.          Assim, se estando perto a testemunha não ouviu qualquer injúria perpetrada pelo arguido, como dar por provado que o mesmo "vociferou em tom agressivo e colérico … e para quem quis ouvir" como se mostra tal dado por provado se mais nenhuma outra testemunha presencial foi ouvida ou localizada?!

J.         A esposa do assistente (testemunha DD...) expressamente confessou que, numa fase inicial, interpelou o recorrente a que lhe pagasse o que lhe devia (passagem 02:56 a 02:58), o que, na situação terá funcionado como apagar o fogo com gasolina, tendo ainda feito referência a que o recorrente, ao sair, disse que as coisas não iriam ficar assim e que seriam resolvidas de outra maneira (passagem 03:41 a 03:48), que necessariamente não podia ser a ofensa à integridade física por esta não ser outra mas a mesma maneira.

K.         Daí que igualmente, sem prejuízo do que infra se dirá sobre o tema, se tenha por incorrectamente julgada a questão do dolo de prática do crime de ameaça, que, em boa verdade, nada permite associar à integridade física, tendo o recorrente apresentado justificação válida e plausível: era sua intenção intentar um processo judicial contra o assistente e sua esposa, uma vez que entendia que os mesmos teriam enriquecido à sua causa (passagem 03:01 a 03: 13 da primeira parte do seu depoimento).

L.         E o mesmo se diga relativamente à ofensa à honra, em que, o uso das expressões usadas e em parte confessadas pelo arguido, foi unicamente fruto da contenda e inerente ao linguarejar menos cortês e polido próprio da actividade da construção civil (o que se tem por facto notório nos termos e para efeitos do art. 514° nº1 CPC), que foi a do recorrente durante vários anos.

M.        Entende-se assim que se mostra a questão da actuação do recorrente mal decidida, relativamente à cólera, vociferação e dolo de prática dos eventuais crimes, havendo ainda de levar ao elenco dos factos provados a circunstância de não mais, desde tal data, o arguido ter importunado o assistente (passagens 16:25 a 16:32 e 17: 18 a 17:23) ou sua esposa (passagem 11:05 a 11:12) bem como a circunstância do recorrente se mostrar desempregado/aposentado, uma vez que tal facto é de excepcional relevância para efeitos de fixação do quantitativo diário da pena de muita e indemnização.

N.         Se é certo que o princípio in dubeo pro reo apenas deva ter lugar quando ambas as versões se mostrem plausíveis, o certo é que se entende que in casu, nada implica objectivamente a adesão pura e simples à versão trazida pela assistente, contrariada pela versão do arguido e da testemunha CC... em detrimento do alegado pelo arguido.

O.        As expressões vertidas na douta sentença e que se mostram imputadas ao recorrente não são em si mesmo desonrosas consubstanciando unicamente linguagem menos correcta, cortês, polida e delicada dado que, como se tem por pacífico e jurisprudencialmente aceite, nem todo o facto ou juízo que envergonha, perturba ou humilha, cabe na previsão dos artigos 180º ss CP, tudo dependendo da intensidade da ofensa.

P.         Haverá assim que aferir, com ajuda de um honrímetro e tendo por parâmetro os critérios da interpretação plasmados no art. 9º CC, se tais expressões se mostram para lá desse mínimo de respeito, corresponde, grosso modo, à linha demarcativa, a esse equador (ou na visão perpendicular ou vertical "meridiano"!) a que se fez alusão, podendo surgir a ofensa sempre que se supere tal "Código de Conduta", que todavia não é estanque e imutável, tendo vindo a sofrer a erosão dos tempos.

Q.        Daí que se tenha por inconstitucional o entendimento de que crime de ofensa à honra se basta com a proferição de qualquer comentário ou desabafo menos próprio ou feliz, indelicado ou não simpático, como sejam as expressões "és um desgraçado... um miserável de merda ... não tens onde cair morto" sob pena de, a assim se entender, se alargar o âmbito da reacção penal de forma desmesurada.

R.         Todos os preceitos constitucionais integram normas que fornecem os parâmetros de interpretação recta do Direito que lhe está infra ordenado, devendo assim lançar-se mão do princípio da interpretação conforme a Constituição da República Portuguesa, não sendo a progressividade mais do que a densificação do conceito de justiça proveniente da igualdade material, princípio base de todo o Direito, pressupondo um conceito de democraticidade: a lei penal é igual para todos.

S.         Ora, é essa a essência do princípio da igualdade que não consiste em tratar tudo por igual sob pena de, por paradoxal que pareça, gerar manifesta e clara desigualdade, mas sim em tratar de forma igualo igual e de forma diferenciada o desigual.

T.         ln casu temos por violados os princípios da igualdade, proporcionalidade bem como do carácter de ultima ratio e subsidiariedade do Direito Penal que assim se vê convocado quando a Iitigiosidade e danosidade material se mostra secundária e a "justiça restauradora" uma realidade ao alcance de um pedido de desculpas.

U.         O Direito Penal só deve intervir quando a sua tutela é necessária, quando se revela útil, quando tem alguma eficácia, o que in casu se não vislumbra, atenta a subsidiariedade do Direito Penal que sempre imporia a opção pela via civil atenta a ofensa ao bom-nome, o que avisadamente se surpreende no ditame popular enunciativo do princípio da insignificância: "não se devem disparar canhões contra pardais, mesmo que seja a única arma de que disponhamos" adaptado da frase de Georg Jellinek "Não se abatem pardais disparando canhões".

V.         Tinha o recorrente razões para acreditar que o processo contra si movido se deveu a dificuldades financeiras do assistente e visava a obtenção de uma soma em dinheiro e foi tudo resultado de um desabafo no quadro da tensão existente e notória, pelo que invoca o vertido na alínea b) do nº 2 do art. 180º CP (ad cautelam aplicável ex vi nº 2 do art. 181º CP), pelo que a não se terem por atípicas as expressões usadas, sempre o agente tinha razões para reputar tais factos como verdadeiros, uma vez que se sentia vítima da actuação concertada do assistente e sua esposa.

W.        No tocante ao crime de ameaça, tem-se tal afirmação como uma declaração não séria (uma vez que tão somente se traduzirá num apontar de um dedo e proferição de uma expressão que em si mesmo nada contende com a integridade física), dado que não há como nunca houve intenção de concretizar o suposto mal visando-se apenas a obtenção de um fim legítimo: o esclarecimento de uma situação que se arrastava já há uns tempos, inerente à actividade profissional do recorrente e negociação anterior.

X.         Com o devido respeito, não se mostra autorizada a extrapolação efectuada no sentido de que se procurava incutir receio e ameaça da prática de um crime contra a integridade física do assistente, dado que ameaçar é anunciar a alguém um grave e injusto dano, necessariamente futuro, sendo elementos essenciais do tipo de crime são o anúncio de mal futuro (daí que a querela prévia não possa ser tida para este efeito por ser uma mal imediato, instantâneo!) e dolo do agente.

Y.         Nunca teve o recorrente dolo de cometimento do ilícito nem agiu convencido que era crime, visando apenas, na gíria, a quilo que é referido como "não dar parte fraca" e representando um posterior recurso a tribunal (que não pode ser considerado crime!), podendo a sua pretensão jurídica não ser do agrado do assistente, que seria aí réu.

Z.         Face ao teor da expressão proferida, o simples aviso de que "a coisa não fica[ria] assim e referência a contas", não implica necessariamente a produção de crime contra a integridade física nem tão-pouco a ameaça de um mal, não visando provocar no assistente receio e medo, fazendo-o temer pela sua integridade física, sendo tais extrapolações insuficientemente fundadas nos factos objectivos, não tendo a mesma ª virtualidade de "suprir" a vaguidade daqueles factos objectivos e com isso pretender referir-se (afinal) a um qualquer crime contra a integridade física, que não se vislumbra.

AA.   Mal se estará quando de tanto se esticarem as margens da punibilidade consubstanciar a prática de um crime a obtenção de um fim legítimo ainda que hipoteticamente lançando mão de um expediente menos correcto do ponto de vista penal, um a vez que se estará perante um comportamento socialmente admitido, a justificar a exclusão da ilicitude nos termos conjugados do nº1 e alínea b) do nº 2 do art. 31º CP, convocando-se o pensamento de Merkel e Welzel.

BB.   Tem-se por normal uma certa atitude de superioridade e de intimidação (a funcionar como cláusula de salvaguarda e instinto de defesa!) permanente nas pessoas que não entram no lote de amigos e com quem se tem querelas judiciais.

CC.  Por não se mostrar a conduta, ainda que nos exactos termos da imputação, semelhante à de quem profira expressis verbis a ameaça à integridade física (do género "vou-te dar um enxerto de porrada", "parto-te a cara", etc.) não pode justificar tratamento igual em violação ao princípio da igualdade supra referido!

DD.   Razão pela qual se tenha por inconstitucional, por violação dos apontados princípios da igualdade, proporcionalidade e presunção de inocência, o entendimento segundo o qual, para efeitos de preenchimento do tipo objectivo de ilícito previsto no art. 153º CP, concretamente a provocação de forma adequada de medo ou receio, baste a actuação do arguido, por meio de gesto (traduzido num simples apontar) e palavra (unicamente referindo "havemos de ajustar contas, isto não fica assim") mas sem qualquer referência expressa ao mal e crime a perpetrar, sua espécie e destinatário concreto.

EE.  Entende o recorrente que se mostrará a determinação da medida da pena relativamente a ambos os crimes eivada do vício de não ter sido considerada a circunstância de não mais o recorrente ter contactado ou tentado aproximar-se do assistente e sua esposa, sendo assim diminutas as exigências de prevenção especial e possível a formulação de um juízo de prognose favorável, podendo mesmo justificar atenuação especial nos termos da alínea d) do nº 2 do art. 72º CP.

FF.     Assim, tem-se por justa e adequada, pena não superior a 50 dias de multa para cada um dos crimes e em cúmulo jurídico, não se nos afigurarão violados os fins das penas com a fixação da coima única em 90 dias de multa: ponto óptimo de punição, prevenção e culpa.

GG.    Relativamente ao quantitativo diário, também se defende uma brandura punitiva, com diminuição para € 6,00, em nome das reais e presentes condições económicas do recorrente, que s e mostra desempregado e presentemente sem qualquer rendimento, sendo que foram tais factos a estar na génese da concessão de apoio judiciário, conforme fls. 66 a 70 dos autos.

HH.    A sorte dos pedidos cíveis deduzidos mostra-se prejudicada pelas considerações supra tecidas relativamente à punibilidade das condutas, entendendo-se que por faltar o elemento da ilicitude, não poderão os mesmos lograr provimento, sendo certo que nem se mostram expressamente comprovados os requisitos do instituto da responsabilidade civil e se tem a douta sentença, nesta parte, nula por ausência de fundamentação explicitante sobre a medida da condenação.

II.         Basta fazer referência que a testemunha CC... declarou expressamente que o demandante lhe confiava que tinha vários problemas na vida e que o analisado no presente processo era um deles (passagem 08:28 a 08:31), não se mostrando sequer alegado ou verificado, com a certeza exigível, o nexo de causalidade entre facto e os danos não patrimoniais (e unicamente em relação a estes se mostra peticionada indemnização, com a vinculação judicial ao pedido') invocados!

JJ.     E uma vez afastada a prática mediante tom vociferante e colérico, conforme alegado em sede de reapreciação da prova gravada, necessariamente que terá de ser revisto em baixa, não sendo a diminuta relevância dos factos de molde a justificar no homem médio as consequências descritas, havendo uma tentativa de aproveitamento da situação a expensas do demandado, importando ainda referir que, para além da sua esposa, ninguém mais ouviu tais injúrias, uma vez que a própria testemunha presencial nada ouviu.

KK.     Atendendo ao grau de lesão das ofensas provocadas a título de injúria, e sem recurso a qualquer honrímetro, não se tem assim nenhuma palavra ou expressão que inequivocamente consubstancie um grau máximo de ofensa, não ressaltando a especial censurabilidade a ponto de causar grande dano não patrimonial, sendo que as considerações supra vertidas valerão, mutatis mutandis, também para a indemnização pelo alegado crime de ameaça, devendo os factos ser aferidos à luz do ameacímetro.

LL.  Razão pela qual, atendendo aos critérios e equidade, plasmados em douta jurisprudência, tendo ainda por parâmetro o grau de ilicitude e gravidade, princípios da igualdade e proporcionalidade bem como condições económicas do demandado, se defenda que a condenação por conta de cada pedido cível relativo a danos não patrimoniais não deveria ir além de € 250,00, montante que se tem por ajustado à prática corrente e bitola jurisprudencial, por forma a obstar à tentativa de enriquecimento por parte do demandante a expensas do demandado».

3.

O recurso foi admitido.

4.

O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu. No que à nulidade imputada à sentença recorrida respeita diz que esta, no elenco da matéria provada e não provada, afastou expressamente a referência a conceitos de direito, juízos conclusivos, considerações opinativas ou tidas por irrelevantes para a boa decisão da causa sendo aqui que, afinal, se inscreve o conteúdo da contestação apresentada.

Relativamente à decisão sobre a matéria de facto defende a sua manutenção, isto porque a decisão recorrida corresponde à prova produzida, analisada pelo tribunal recorrido de acordo com o princípio da livre convicção e devidamente explicada em sede de fundamentação.

O parecer do Exmº P.G.A. junto desta relação foi no mesmo sentido. Sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, entende que das conclusões do recurso resulta que o recorrente se limita a afirmar um distinto julgamento da prova produzida em audiência. Quando à alegada violação do princípio in dubio pro reo, dado que esta só ocorre quando o tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir contra o arguido, é evidente que, no caso, isso não sucedeu, pois que a condenação do arguido assentou no juízo de certeza feito pelo tribunal recorrido quanto aos factos tidos como provados. Relativamente às penas aplicadas e taxa diária fixada, atentos os factos e dado que se situam próximas dos limites mínimos não devem ser alteradas.

 

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

O arguido respondeu, reafirmando a tese já exposta no recurso.

5.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.

 


*

*


FACTOS PROVADOS

6.

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

«No dia  .... de 2009, por volta das … , na Avenida …, em São Martinho do Bispo, no concelho de Coimbra, no exterior da residência do assistente BB..., o arguido, ao mesmo tempo que fazia menção de atingir o assistente BB... na sua integridade física, dirigiu-se ao próprio nos seguintes termos, visando-o: "és um desgraçado ... és um miserável de merda ... não tens onde cair morto".

Mais lhe disse "Havemos de ajustar contas, isto não fica assim".

O arguido vociferou em tom agressivo e colérico, em local público e para quem quis ouvir.

O arguido agiu livre, consciente e de forma deliberada, com o intuito de ofender e humilhar o assistente na sua honra e consideração, tendo logrado alcançar tal desiderato.

Agiu ainda com a lograda intenção de infundir no próprio um fundado receio de que um mal futuro lhe sucederia, nomeadamente à sua integridade física.

O arguido sabia vedada a sua conduta e, bem assim, que incorria em responsabilidade criminal.

O arguido, foi construtor civil; habita com a mulher e um filho, que é desenhador.

Tem uma moradia na Rua …, Orelhudo.

De acordo com o CRC junto aos autos o arguido não tem antecedentes criminais.

Os factos mencionados provocaram na pessoa do assistente, indignação e revolta.

Causaram-lhe ainda inquietação e receio de que o arguido viesse a concretizar a ameaça na sua pessoa ou na sua família.

Não só mas também em virtude dos factos ocorridos, o assistente decidiu mudar de residência - com o que evitaria contactos com o arguido, que frequentava bastantes vezes o prédio do demandante - o que fez para um imóvel a cerca de 1 km de distância da sua anterior habitação».

7.

Quanto aos factos não provados, foi consignado o seguinte:

«Não resultaram provados outros factos de entre os alegados na acusação, contestação e nos pedidos de indemnização formulados e acima não descritos ou que estejam com eles em contradição.

Designadamente não resultou provado que o assistente, em virtude dos factos, se apresente: profundamente traumatizado; constantemente cabisbaixo e sobressaltado; que tenha perdido a alegria de viver, viva verdadeiramente transtornado e envergonhado e que tenha deixado de sair à noite.

Igualmente não se provou que os factos tenham sido assistidos por conhecidos e vizinhos.

No mais, i. é sobre conceitos de direito, juízos conclusivos, considerações opinativas ou tidas por irrelevantes para a boa decisão da causa, o tribunal não se pronuncia».

8.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:
«A convicção do tribunal gizou-se quanto aos factos provados no conjunto da prova produzida e examinada em audiência, apreciada segundo as regras da experiência, da lógica e a livre convicção do tribunal (art.127º CPP).
Dito isto, foram ponderadas as declarações do arguido na medida em que admitiu estar nas circunstâncias de tempo e de lugar descritas na acusação e ter-se dirigido ao assistente dizendo-lhe “apenas” que este era “miserável e desgraçado”.
Negou porém, no mais, os factos dizendo que também tinha ouvido muito do assistente.
Mais referiu o circunstancialismo que esteve na origem dos factos (ligados a um acordo judicial que previa a entrega de dinheiro, por parte do arguido ao assistente).
No entanto, as declarações do assistente, que confirmou os factos constantes da acusação e esclareceu a origem dos desentendimentos entre ambos foram, neste aspecto, bastante credíveis.
Com efeito, não nos suscitou dúvida a interpelação do arguido nos termos em que se deram por assentes, sendo que os factos foram corroborados pelos depoimentos de DD... (esposa do assistente) e CC... (amigo), os quais presenciaram, pelo menos parcialmente, e confirmaram, nessa medida, os factos constantes da acusação.
Acresce que a credibilidade dos depoimentos não foi abalada pelas declarações das testemunhas apresentadas pela defesa, que nada viram ou presenciaram.
Ademais, perante o contexto da actuação dúvidas não há que as expressões supra referidas tinham subjacente a intenção de injuriar o assistente e de lhe incutir receio de um mal futuro.
É o que consideramos ser a interpretação lógica das expressões e do contexto – de exaltação - em que foram proferidas.
Tivemos ainda em moderada linha de conta as declarações do assistente e das testemunhas no que concerne ao abalo sentido.
Efectivamente, se por um lado, perante os factos, é verosímil e plausível a indignação, revolta, inquietação e receio sentidas pelo assistente, já não se nos afigura compreensível e verosímil o grau de intensidade, o alegado “trauma” sentido pelo assistente,  pessoa  educada, de discernimento e sensibilidade que se reportam ao homem médio que dificilmente recorreria a auxílio psiquiátrico (como chegou a ser referido) apenas em virtude dos factos.
Assim, os factos não provados, resultaram, essencialmente, da insuficiência de prova necessária para convencer o tribunal da sua ocorrência».

            9.
            Consigna-se, ainda, o seguinte:
- o arguido contestou as acusações pública e particular e o pedido de indemnização civil contra si deduzidos, nos seguintes termos:
«I) Das acusações

No âmbito do inquérito supra referido foi deduzida douta acusação pública pelo Ministério Público imputando ao arguido a prática de um crime de ameaça, previsto e punido no art. 153° nº 1, bem como acusação particular a imputar ao arguido a prática de um crime de difamação, previsto e punido no art. 180º nº 1, ambos do Código Penal (doravante CP brevitatis causa).

Entende todavia o arguido, que a acusação pública deduzida, salvo o devido respeito, não traduz a exacta explanação da subsunção jurídica à realidade dos factos.

E o mesmo se diga no tocante à acusação particular deduzida pelo assistente.

Na verdade, vários são os pontos de discordância face às doutas acusações deduzidas, começando desde logo pelas circunstâncias factuais.

Todavia, a questão primacial que se mostra subjacente in casu mais do que factual é jurídica.
II) Do Direito
a) Consideração geral

Refere Henri Motulski, referindo-se aos juízes, que o "Direito é o seu domínio próprio".

Todavia, sejam-nos permitidas certas considerações quer relativamente ao tipo legal de crime em si quer em relação à eventual punição.
b) Do tipo legal de crime "ameaça"

Não se desconhece que, à imagem do crime de falsificação de documento, se está perante um tipo legal de crime abrangentes, englobando toda uma multiplicidade de acções e actos, a que não será alheio o vertido no nº 1 do art. 1° CP: obediência ao princípio da legalidade.

Todavia, entende-se que a presidir a todas elas sempre terá de estar uma conduta dolosa, não sendo a negligência punível.
10°
Por outro lado, trata-se de um crime intencional, tendo de presidir um certo dolo específico de causar a terceiro medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
11°
Atendendo à personalidade do arguido sempre tal mensagem, na óptica e sentido que lhe são dados na douta acusação pública, teria de ser encarada como declaração não séria.
12°
Tanto mais que o mesmo expressamente confessa que já teriam havido outras anteriores em que tenha existido qualquer concretização do mal ameaçado.
13°
Na verdade, se à primeira vez ainda teria razões para estar apreensivo, à medida que iam aumentando em número, iriam diminuindo os receios.
14°
De facto não há como nunca houve intenção de concretizar a suposta ameaça visando-se apenas a obtenção de um fim legítimo: o esclarecimento de uma situação que se arrastava já há uns tempos, inerente à actividade profissional do arguido e negociação anterior.
15°
Perante a injustiça e falsidade do alegado numa acção cível anterior e o real uso dado a uma indemnização peticionada para determinado efeito, mais não pretendia o arguido que demonstrar o descontentamento por tal atitude do assistente e procurar esclarecer a situação.
16°
Na verdade, com o devido respeito, não se mostra autorizada a extrapolação efectuada no sentido de que se procurava incutir receio e ameaça da prática de um crime contra a integridade física do assistente.
17°
De facto, basta atentar na escassa relevância de tal facto atento o novo recorte e tipificação do tipo legal de crime em causa.

18°
De acordo com a doutrina e jurisprudência maioritária, basta que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação, não sendo necessário que tal resultado efectivamente se verifique.
19°
Em tais termos, com a reforma operada em 1995, o crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado ou de dano passando a ser um crime de mera acção ou perigo.
20°
Todavia contra o entendimento da doutrina e jurisprudência maioritária pode ver-se o Ac. STJ de 4 de Fevereiro de 1999, portanto posterior à reforma, processo 1269/98-3ª; SASTJ, nº 28,78.
21°
Basta que de acordo com a experiência comum a conduta do agente seja adequada a provocar perturbação na liberdade do ameaçado, medo ou inquietação ou prejudicar a sua liberdade de determinação.
22°
Ameaçar é anunciar a alguém um grave e injusto dano, necessariamente futuro.
23°
Elementos essenciais do tipo de crime são o anúncio de mal futuro e dolo do agente.
24°
Nunca houve intenção de concretizar a suposta ameaça, visando-se apenas a obtenção de um fim que considera legítimo.
25°
Nunca teve o contestante dolo de cometimento do ilícito nem agiu convencido que era crime.
26°
De facto, representou que tal querela ainda poderia ser dirimida em tribunal, podendo a sua pretensão jurídica não ser do agrado do assistente, que seria aí réu.
27°
Na verdade, via-se vítima de enriquecimento sem causa por parte dos autores na acção cível anterior que por conta de uns defeitos receberam uma indemnização, que não gastaram na reparação dos mesmos.
28°
E, caso viessem a encontrar-se mais tarde, não seria a conversa agradável, dizendo-se coisas menos correctas mas que na sua óptica não deixariam de se mostrar ajustadas por serem a decorrência do sucedido e da verdade dos factos.
29°
O art. 153° CP não pune a ameaça com a prática de ofensa à honra, sendo tal conduta atípica!
30°
Na verdade, dispõe o artigo 153°, nº 1 CP que "quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e auto determinação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias".
31°
Relativamente ao bem jurídico protegido por tal incriminação, escreve Taipa de Carvalho ("Comentário Conimbricense do Código Penal", tomo 1, pág. 342) que se trata da liberdade de decisão e de acção, uma vez que o ofendido, ao sofrer a conduta típica, ficará afectado na sua paz individual, que é condição da verdadeira liberdade.
32°
A conduta típica traduzir-se-á na expressão de palavras, na realização de gestos ou na utiliza¬ção de outro meio, desde que signifique o anúncio da prática de um dos crimes enumerados.
33°
Julga-se todavia que, face ao teor da expressão proferida, o simples aviso de que "a coisa não fica[ria] assim", não implica necessariamente a produção de crime contra a integridade física, não visando o arguido provocar no assistente receio e medo, fazendo-o temer pela sua integridade física, sendo tais extrapolações insuficientemente fundadas nos factos objectivos.
34°
Por outro lado também tal expressão, por si só, não pode ter a virtualidade de "suprir" a vaguidade daqueles factos objectivos e com isso pretender referir-se (afinal) a um qualquer crime contra a integridade física, que não se vislumbra.
35°
Nunca o arguido pretendia mais que alertar para o esclarecimento dos factos e risco de uma possível conversa desagradável ou demanda em tribunal por enriquecimento sem causa.
36°
Mas supondo, o que apenas se pondera para mero efeito de raciocínio, que tais ameaças haviam sido feitas, qual a diferença entre estas e a sã honorabilidade do cumprimento das obrigações éticas?
37°
Por outras palavras: será que o dito "peso na consciência" do assistente, por ter contribuído para um empobrecimento do arguido, demandando-o numa acção cível, obtendo uma indemnização por conta de alegados defeitos na obra e não dar o uso ao dinheiro para correcção de tais defeitos, não seria já de si tendente a fundar na sua mente um certo receio?
38°
De facto diz o povo e com razão que "quem não sente não é filho de boa gente" e "quem não deve não teme", pelo que, a contrario quem tenha prejudicado alguém por certo que terá no seu espírito uma consciência mais temerária ...
39°
Consubstanciará a prática de um crime a obtenção de um fim legítimo ainda que hipoteticamente lançando mão de um expediente menos correcto do ponto de vista penal?
40°
Até onde se devem esticar as margens de punibilidade?
41°
Não se estará perante um comportamento socialmente admitido, a justificar a exclusão da ilicitude nos termos conjugados do nº 1 e alínea b) do nº 2 do art. 31° CP?
42°
Segundo Merkel, "sempre que uma conduta é, através de disposição do direito, imposta ou considerada como autorizada ou permitida, está excluída sem mais a possibilidade de, ao mesmo tempo e com base num preceito penal, ser tida como anti-jurídica e punível".
43°
Para mais, a conduta do arguido poderia perfeitamente ser enquadrável na concepção de Welzel relativamente à "teoria da inadequação social", (ou da potenciação do risco de ocorrência de um ilícito uma vez que a assistente, com o seu comportamento contribuiu para essa potenciação) a qual conduziria a excluir do tipo de ilícito todas as acções que não "caem notoriamente fora da ordenação ético-social da comunidade" ou
44°
No limite configurar o privilegiamento do crime de ameaça, segundo o argumento da maioria de razão, atento o disposto no art. 133° CP, devido à "compreensível emoção violenta", absolvendo-se assim o arguido, pela resposta afirmativa à questão colocada no art. 39°.
c) Do crime de difamação
45°
O arguido está ainda igualmente acusado da prática de um crime de difamação, por ter proferido expressões alegadamente atentatórias da honra do assistente.
46°
Todavia, mostra-se contradição entre os factos imputados e a subsunção jurídica dos mesmos, uma vez que a ser verdade que o arguido terá imputado certas expressões directamente ao assistente tal não consubstancia crime de difamação.


47°
Tal qual bem se nota no despacho do Ministério Público, a fls. 56, que diz que acompanha a acusação particular por injúria, não tendo todavia legitimidade para convolar a acusação particular deduzida nem suprir o erro jurídico na qual a mesma se mostra.
48°
Porém, esquecendo tal pormaior, que sempre obstará à procedência da acusação particular, coloca-se a questão de saber se tais expressões são em si mesmo desonrosas ou consubstanciam unicamente linguagem menos correcta, cortês e delicada.
49°
Na verdade, se é certo que a honra é um direito que assiste ao assistente, como às demais pessoas, é inegável que igualmente a liberdade de expressão é característica dessa mesma multiplicidade de pessoas.
50°
Certo é que nem todo o facto ou juízo que envergonha e perturba ou humilha, cabe na previsão dos artigos 180º ss CP, tudo dependendo da intensidade da ofensa.
51°
Como é sabido, há um consenso na generalidade das pessoas, pelo menos de um certo país, sobre o que razoavelmente se não deve considerar ofensivo, conforme referido (Beleza dos Santos, R.L.J., 92,167 e o acórdão da Relação do Porto de 1996/01/31, publicado na CJ, XXI, 1,242).
52°
Na realidade, existe em todas as comunidades um sentido comum, aceite por todos ou, pelo menos, maioritariamente comungado, sobre o comportamento que deve nortear cada pessoa enquanto ser individual na convivência ética com os outros, em ordem a que a vida em sociedade se processo com um mínimo de normalidade e socialidade.
53°
Há um sentir comum em que se reconhece que a convivência social só é possível se cada um não ultrapassar certos limites no relacionamento e na convivência com os outros.
54°
Tais limites como que se encontram inseridos num "Código de Conduta" de que todos são sabedores, ao jeito de naturalidade, o qual reflecte o pensamento da própria comunidade e, por isso, é por todos reconhecido ou, pelo menos, pela maioria.
55°
Do elenco desses limites ou normas de conduta fazem parte "regras" que estabelecem a "obrigação e o dever" de cada cidadão se comportar relativamente aos demais com um mínimo de respeito ético, cívico e social, mínimo esse de respeito que não se confunde, porém, com cortesia ou com educação, pelo que os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito, consabido que o Direito Penal, neste particular, não deve nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências (neste sentido veja-se Cardenal Murillo, Proteccion Penal DeI Honor [1993], 66) (negrito e sublinhado nossos).
56°
Ora, tal limiar mínimo de respeito, corresponde, grosso modo, à linha demarcativa, a esse Equador (ou na visão perpendicular ou vertical "Meridiano"!) a que se fez alusão, podendo surgir a ofensa sempre que se supere tal "Código de Conduta", que todavia não é estanque e imutável, tendo vindo a sofrer a erosão dos tempos.
57°
Qualquer condenação judicial, seja de natureza cível, seja de natureza criminal, constitui ingerência no direito à liberdade de expressão, quando assente em actuação ocorrida no exercício dessa liberdade (a qual tem assento constitucional, à imagem das honra diga-se!), sendo a questão saber se tal ingerência é necessária, numa sociedade democrática.
58°
Na sintética formulação de um acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal alemão, citado em diversa jurisprudência nacional, desde logo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/4/2006, proferido no processo nº 1186/2006-3, in www.dgsi.pt o que se protege "é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade", a qual encontra o seu "fundamento essencial" na "irrenunciável dignidade pessoal".
59°
E continuando a acompanhar tal jurisprudência, o sentimento médio de honra de uma dada comunidade deve constituir o critério (objectivo) à luz do qual deve ser aquilatada a tipicidade/gravidade das ofensas a este bem jurídico: "ofensivo da honra e consideração (...) [é] aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores. (...). Aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena".
60°
Nesta linha, decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 2/7/96, CJ 96, IV, 295, que um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio/moral da pessoa, da sua honra e consideração.
61°
Deste modo, reitera-se que "nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180° e 181°, tudo dependendo da "intensidade" da ofensa ou perigo de ofensa" e do circunstancialismo inerente e subjacente à produção da mesma.
62°
Por outro lado, numa sociedade democrática é do mais elevado interesse público "a livre explanação de opiniões", não podendo deixar de exigir-se a maior prudência na efectivação da tutela penal perante eventuais excessos no exercício de tal liberdade.
63°
Constituindo a mais intensa das restrições que - neste âmbito - o Estado tem ao seu dispor, a reacção penal deverá pautar-se por critérios de estrita necessidade e proporcionalidade, sob pena de se desincentivar o cabal exercício de tais liberdades fundamentais.
64°
Assim, haverá que aquilatar, com a ajuda de um "honrímetro", se possível, quando é que tal liberdade de expressão começa a causar mossa na honra a ponto de se mostrar exigida a "entrada em cena" do Direito Penal, devendo interpretar-se cum grano salis a norma incriminadora.
65°
Dispõe o art. 9° do Código Civil (doravante CC brevitatis causa) no seu nº 1 que "[A] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições especificas do tempo em que é aplicada".
66°
O nº 2 refere que "não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso", ou seja, noutras palavras, dir-se-á que a liberdade interpretativa tem na letra da lei o seu limite inultrapassável, tendo sempre que ter um mínimo de correspondência com ela.
67°
O nº 3 do art. 9° CC consagra uma presunção que também ao referido diploma se aplica, devendo nós presumir que quem o elaborou consagrou nele as soluções mais acertadas, tendo sabido exprimir o seu pensamento em termos adequados.
68°
Na interpretação da lei não se poderá assim o intérprete cingir à letra da lei, devendo considerar igualmente os elementos histórico, sistemático e sobretudo teleológico.


69°
Daí que se tenha por inconstitucional o entendimento de que crime de ofensa à honra se basta com a proferição de qualquer comentário ou desabafo menos próprio ou feliz, indelicado ou não simpático, sob pena de, a assim se entender, se alargar o âmbito da reacção penal de forma desmesurada.
70°
E todos os preceitos constitucionais integram normas que fornecem os parâmetros de interpretação recta do Direito que lhe está intra ordenado, devendo assim lançar-se mão do princípio da interpretação conforme a Constituição da República Portuguesa.
71°
A progressividade não é mais do que a densificação do conceito de justiça proveniente da igualdade material, princípio base de todo o Direito, pressupondo um conceito de democraticidade: a lei penal é igual para todos.
72°
Ora, é essa a essência do princípio da igualdade que não consiste em tratar tudo por igual sob pena de, por paradoxal que pareça, gerar manifesta e clara desigualdade, mas sim em tratar de forma igualo igual e de forma diferenciada o desigual.
73°
E temos assim por violados os princípios da igualdade, proporcionalidade bem como do carácter de ultima ratio do Direito Penal que assim se vê convocado quando a Iitigiosidade e danosidade material se mostra secundária e a "justiça restauradora" uma realidade ao alcance de um pedido de desculpas.
74°
Importa não esquecer o princípio basilar que confere consistência à criminalização de comportamentos, o princípio da subsidiariedade do Direito Penal.
75°
O Direito Penal só deve intervir quando a tutela conferida pelos outros ramos do ordenamento jurídico não for suficientemente eficaz para acautelar a manutenção desses bens considerados vitais ou fundamentais à existência do próprio Estado e da sociedade.
76°
De facto, o Direito Penal utiliza, com o manancial das suas sanções específicas, os meios mais onerosos para os direitos, liberdades e garantias individuais, ele só deverá ser convocado nos casos em que todos os outros meios da política social, em particular da política jurídica, se venham a revelar insuficientes e inadequados.
77°
Quando assim não aconteça aquela intervenção revela-se contrária ao princípio da proporcionalidade, sob a forma de violação do princípio da proibição do excesso.
78°
O carácter subsidiário do Direito Penal, dimensiona-o numa intervenção como ultima ratio no quadro do ordenamento jurídico instrumental, por imposição do bom senso que recomenda a racionalização, minimizando tanto quanto possível, o âmbito de intervenção do sistema penal, de tal forma que o limite a situações problemáticas de absoluta irrenunciabilidade.
79°
E deve harmonizar-se com o princípio da fragmentariedade do Direito Penal, já que não deve intervir para acautelar lesões a todos e quaisquer bens, mas tão só àqueles bens fundamentais, essenciais e necessários para prevenir a unidade do tecido social.
80°
Com o carácter subsidiário e fragmentário do Direito Penal importa conjugar um outro princípio fundamental - o princípio da proporcionalidade - a significar a exigência de razoabilidade na proporção da necessidade de tutelar um bem fundamental, sendo certo que a intervenção do Direito Penal, por força das sanções jurídicas que lhe são características, colide com o direito de liberdade que é um direito fundamental do cidadão.



81°
O Direito Penal só deve intervir quando a sua tutela é necessária, quando se revela útil, quando tem alguma eficácia, o que in casu se não vislumbra, atenta a subsidiariedade do Direito Penal que sempre imporia a opção pela via civil atenta a ofensa ao bom-nome.
82°
O que avisadamente se surpreende no ditame popular enunciativo do principio da insignificância: "não se devem disparar canhões contra pardais, mesmo que seja a única arma de que disponhamos" adaptado da frase de Georg Jellinek "Não se abatem pardais, disparando canhões".
83°
Só que, como lapidarmente ensinava também o Prof. Beleza dos Santos, in "Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e Injúria", RLJ, Ano 92, pág. 167, «não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais».
84°
E, sinceramente, das expressões proferidas ressalta mais a indelicadeza e falta de educação, as quais hoje em dia, em razão da evolução dos tempos e perda notória de elegância no trato, são tidas por normais, maxime no mundo da construção civil, do que uma ofensa deliberada à honra com dignidade penal.
85°
E bem sabe o ofendido e esposa que a conversa foi desagradável para ambos, com palavras menos bonitas e adequadas trocadas de parte a parte, as quais, com um mínimo de pensamento prévio, desprovido do calor da contenda, e sem que o arguido estivesse formatado para o modo diário da convivência no mundo da construção civil, não teriam sido proferidas.
86°
Para mais quando tinha o arguido razões para acreditar que o processo contra si movido se deveu a dificuldades financeiras do assistente e visava a obtenção de uma soma em dinheiro e foi tudo resultado de um desabafo no quadro da tensão existente e notória.
87°
O arguido invoca assim o vertido na alínea b) do n° 2 do art. 180° CP (ad cautelam aplicável ex vi nº 2 do art. 181° CP) bem como tudo o que se apurar a seu favor em sede de audiência de julgamento, oferecendo, ainda, o merecimento dos autos.
III) Ad cautelam, da eventual pena
88°
Os factos imputados são puníveis com pena de prisão ou com pena de multa, razão pela qual em relação a ambos os crimes, a haver condenação, deverá ser dado cumprimento ao previsto no art. 70° CP, aplicando-se pena não privativa da liberdade, maxime pena de multa.
89°
Na verdade, entende o mesmo que as circunstâncias não deixam de abonar a sua posição, tendo no seu registo criminal um sério "amigo" e principal cartão de visita a aconselhar a brandura punitiva, a qual, humildemente, se peticiona.
90°
Todavia, também tem a consciência de que tal facto em nada de especial o favorecerá por ser o que é de esperar em relação à generalidade das pessoas: o não cometimento de ilícitos tipificados pela lei penal como crimes.
91°
O arguido sempre tendo procurado pautar a sua vida pelo respeito pelas normas legais, assim como procurará cumprir a pena que eventualmente resultar do presente processo de forma a viver a sua vida em paz.
92°
Na verdade, tem o mesmo procurado pautar a sua vida sem complicações com a justiça, vivendo pacatamente em observância das normas legais no sempre complicado e controverso mundo da construção civil, onde se denotam sempre interesses conflituantes entre construtores e compradores, sendo tal a génese única do presente processo conjugada com a tensão e descontrolo verificado, de parte a parte.
93°
Poder-se-á efectuar um juízo de prognose favorável, por ser uma pessoa séria, honesta, humilde, trabalhadora, socialmente integrada, cumpridora e zelosa dos deveres cívicos e já com idade considerável para prosseguir a sua vida sem cometimento futuro de crimes.
94°
Verdadeiramente, não tem o arguido "o crime no sangue", pelo que sempre o juízo de prognose póstuma não poderá deixar de ser favorável, no sentido de uma reintegração e preparação para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável sem cometimento futuro de crimes.
95°
O próprio princípio da igualdade (não sendo o arguido um delinquente nato, não deve ser tratado como tal!) e da proporcionalidade, conjugado com o da culpa, aconselham a concessão de uma oportunidade de reabilitação.
96°
Entende assim o arguido que a condenação e execução de uma pena de prisão sempre se mostrariam inadequadas ao presente processo, no qual está unicamente em causa a punibilidade de expressões proferidas, ora para efeitos de ameaça ora de ofensa à honra.
97°
Filipe II, dirigindo-se aos julgadores, tinha por máxima: "ministrai a justiça com imparcialidade e rectidão, e se necessário, com rigor e exemplaridade. Mas quando a natureza das gentes e das coisas o permitam, sede também misericordiosos e benignos".
98°
Citando Charles de Secondat Montesquieu e Diego de Saavedra Fajardo, haverá criminosos que o magistrado pune e outros que corrige, andando a justiça e a clemência sempre de mão dada, devendo V/Exa. usar da primeira por forma a que a segunda se não mostre ofendida.
99°
E o arguido já se mostra corrigido, uma vez que não voltou a praticar qualquer crime nem a importunar o ofendido, estando na disposição de não só pedir desculpas ao mesmo como dar em juízo esclarecimentos ou explicações das ofensas pelas quais está acusado.
100°
Na verdade, não deixará de funcionar a própria audiência de discussão e julgamento como catarse, tendo o arguido oportunidade de explicar as razões que o levaram a adoptar tais condutas, que nada se coadunam com o dolo de cometimento de qualquer crime, mas tão só com o exercício de um direito de saber as razões subjacentes ao comportamento do assistente.
101°
Last but never, never the /east, dir-se-á, acompanhando Santa Catarina de Siena, que "a pérola da Justiça, brilha melhor na concha da misericórdia"!
102°
Ad cautelam, ainda que tal factualidade venha a ser dada por provada, sempre se deverão atender a estas considerações para se ter por diminuído o grau da ilicitude do facto e a culpa do arguido nos termos do art. 71° CP.
103°
De facto, a própria postura do arguido, na parte em que confessa os "factos factuais", os contornos do cometimento da eventual infracção e a sua culpa, o decurso do tempo e a manutenção de boa conduta e o motivo honroso de actuação, seriam de molde a justificar uma atenuação especial da eventual pena nos termos das alíneas b) e d) do nº 2 do art. 72° CP.
IV) Dos pedidos cíveis
104°
A contestação aos pedidos cíveis deduzidos mostra-se prejudicada pelas considerações supra tecidas relativamente à procedência das acusações, entendendo-se que por faltar o elemento da ilicitude, não poderão os mesmos lograr provimento.

105°
Todavia, ad cautelam, sempre se alega o facto de se mostrar tremendamente empolados os factos aí descritos, sendo certo que, na esteira de uma expressão feliz de um mui ilustre Procurador do Ministério Público, muita vela na Igreja pode provocar um incêndio ...
106°
Na verdade, em condições normais, a diminuta relevância dos factos não são de molde a justificar no homem médio as consequências descritas, havendo uma tentativa de aproveitamento da situação a expensas do demandado.
107°
De facto, a ser verdade todo o sucedido em virtude da dita difamação o certo é que tal se deverá a uma ausência de preparação do demandante para o convívio em sociedade feroz, na qual, por vezes, a deselegância linguística é o prato do dia.
108°
Relativamente ao pedido cível decorrente da ameaça, dir-se-á o mesmo, uma vez que não é crível toda a mudança comportamental do demandante, sendo certo que a razão que o terá levado a mudar de habitação (a confirmar-se tal facto, uma vez que continua a fornecer a mesma morada!) se poderá ter ficado a dever a questões e razões estranhas ao demandado e aos factos a este imputados.
109°
De facto, poderá estar em causa a opção por uma habitação maior ou que ofereça melhores condições ao seu agregado familiar, tendo o demandado razões para crer em tal hipótese.
110°
Na verdade, não se coíbe o mesmo de alegar prática anterior de ameaças levadas a cabo pelo demandado, sendo certo que não explica o porquê de só desta vez ter ficado assim tão alarmado quando não houve concretizar das supostas ameaças anteriores
111°
Da mesma forma que carece de verdade que tenha tal episódio sido assistido por vizinhos e conhecidos, não havendo assim o alegado propagar das eventuais ofensas!
112°
Em conclusão, dir-se-á que os pedidos cíveis se revelam ambos extremamente majorados, devendo, na hipótese de haver condenação, ser ajustados à prática corrente e bitola jurisprudencial, por forma a obstar à tentativa de enriquecimento por parte do demandante a expensas do demandado»;

- no relatório a sentença recorrida faz referência à contestação do arguido, nos seguintes termos: «o arguido apresentou contestação e arrolou prova testemunhal».


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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação são as seguintes as questões a decidir:

I – Nulidade da sentença recorrida

II – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

III – Impugnação do enquadramento legal dos factos provados

IV – Impugnação das penas aplicadas e da taxa diária fixada a cada dia de multa

V – Impugnação do montante indemnizatório fixado


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I – Nulidade da sentença recorrida

O arguido aponta à sentença recorrida dois vícios, derivados da falta de menção à sua contestação:

- um, resultante da violação da al. a) do art. 380º C.P.P., ex vi 374º, nº 1, al. d), por não ter reproduzido as conclusões da contestação;

- outro, gerador da nulidade referida no art. 379º, nº 1, al. c), por não ter considerado o seu conteúdo.

 

            Sobre os requisitos da sentença, diz o art. 374º do C.P.P. que esta é constituída por um relatório, seguido pela fundamentação e termina pelo dispositivo:

- o relatório contém «a) as indicações tendentes à identificação do arguido; b) as indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis; c) a indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido; d) a indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada» - nº 1;

- a fundamentação, «consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convição do tribunal» - nº 2;

- finalmente, o dispositivo contém «a) as disposições legais aplicáveis; b) a decisão condenatória ou absolutória; c) a indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime; d) a ordem de remessa de boletins ao registo criminal; e) a data e as assinaturas dos membros do tribunal» - nº 3.

            Dependendo dos elementos em falta, assim a sentença padecerá de nulidade ou de mero vício, rectificável.

            Quanto às nulidades, estabelece o nº 1 do art. 379º que gera nulidade da sentença:

- a falta das menções referidas no nº 2 e na al. do nº 3 do art. 374º ou, em processo sumário ou abreviado, a omissão da decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389º-A e 391º-F;

- a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º;

- quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

            Fora destes casos, ou seja, quando a falta não determine nulidade, a omissão constitui “mera” irregularidade, suprível ao abrigo do mecanismo de correção do nº 1 do art. 380º do C.P.P., oficiosamente ou a requerimento.

Sendo certo, como vimos, que a sentença tem que referir o conteúdo da contestação e que, no caso, isso não foi feito, estamos perante uma irregularidade, sujeita ao mecanismo do art. 123º do C.P.P., arguível no prazo de 10 dias estabelecido no nº 1 do art. 105º [1].

O arguido só em sede de recurso arguiu a irregularidade cometida, portanto muito para além do prazo legal.

Relativamente ao seu conhecimento, neste momento, uma vez que a irregularidade cometida não afecta o valor do acto em questão, não é caso para ordenar oficiosamente a sua reparação – nº 2 do art. 123º.

            Agora, sobre a nulidade derivada da não consideração do conteúdo da contestação, o que isto significa, verdadeiramente, é que os factos invocados na contestação não foram objecto de indagação em sede de audiência, ou seja, não foram objecto de julgamento.

No que à matéria de facto respeita o juiz, na fundamentação da sentença, tem que especificar todos e cada um dos factos essenciais ao juízo de condenação ou absolvição «alegados pela acusação e pela defesa, bem como os que tiverem resultado da decisão da causa e sejam relevantes …», sob pena de nulidade [2].

Como diz a lei tem que os enumerar e enumerar significa contar um a um [3].

Confrontando o conteúdo da sentença recorrida com o conteúdo das acusações e da contestação, não há dúvida que a sentença recorrida não integrou, no elenco dos factos provados e não provados, o conteúdo da contestação.

Tendo presente as palavras antecedentes esta omissão integraria, em princípio, a nulidade por falta de pronúncia.

Só que, na verdade, a contestação do arguido não contem factos, em sentido estrito, rigoroso, atendíveis nesta sede. Embora contenha um aturado trabalho de tratamento jurídico dos assuntos em discussão no processo, a verdade é que a contestação não contém elementos a atender em sede de fundamentação, porque não contém factos sobre os quais o juiz tivesse que emitir um juízo decisório, de provados ou não provados.

Improcede, pois, este segmento do recurso.


*

II – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

            Na impugnação da decisão sobre a matéria de facto os factos dados como provados que, na tese do arguido, não resultam da prova produzida respeitam ao modo como ele se terá dirigido ao assistente - nas palavras da sentença fê-lo «… em tom agressivo, colérico, em local público e para quem o quis ouvir» -, e à inexistência de dolo na sua actuação.

            Nos termos dos nº 3 do art. 412º do C.P.P. – norma que descreve o iter procedimental a cumprir em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto -, «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas».

Acrescenta o nº 4: «quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação».

            Percebendo-se aquilo que o arguido pretende e de que provas é que ele se socorre, vejamos, então, se lhe assiste razão.

            Mas antes de iniciarmos essa tarefa há que esclarecer que o que releva é apurar se a decisão de facto constante da sentença é, ou não, correcta, sendo certo que poderá haver elementos circunstanciais relevantes que, caso resultem impositivamente da prova, terão que ser considerados, o que não significa que toda a imensa invocação do arguido releve.

            Começando pelas declarações do arguido, disse ele:

- «na altura falamos, trocamos algumas palavras, ele chamou-me nomes e eu chamei alguns a eles»;

- sobre as palavras referidas na acusação, disse que só lhe chamou miserável e que virou as costas e foi embora, sendo que o assistente lhe continuou a chamar nomes.

            Quanto ao mais, perguntado se lhe disse que ele ia ver, que as coisas não iam ficar assim, respondeu:

- «em termos de tribunal, que lhe ia meter uma ação em tribunal. Não era ficar assim para lhe bater».

            Perguntado se não dirigiu aquelas palavras ao assistente ao mesmo tempo que fazia menção de o agredir, o arguido respondeu que não, que não era verdade.

            O arguido disse que encontrou o assistente por acaso e que começaram a falar sobre o apartamento que lhe vendera.

Aquela venda sempre provocou problemas porque o assistente invocou defeitos na construção e pôs um processo em tribunal pedindo-lhe uma indemnização. Entretanto chegaram a acordo no processo e ficou obrigado a pagar-lhe uma indemnização. Depois ficou “chateado” com o assistente porque ele ficou com o dinheiro e mudou de casa sem fazer as obras que reclamava.

            Esclareceu que se encontraram no passeio junto ao prédio onde o assistente reside. Ele vinha do interior do prédio e, depois, chegou a esposa dele, também vinda do prédio. Quando ela chegou não estavam a discutir, estavam a começar a discutir.

            Disse que o assistente lhe chamou vigarista porque não lhe tinha pago os 2.800 € em falta. Respondeu-lhe que não pagou porque ele não tinha feito as obras. A esposa do assistente também lhe chamou nomes.

Depois disto não houve mais nada: virou-lhes as costas e foi embora.

            Sobre a expressão és um miserável de merda, és um desgraçado, não tens onde cair morto, respondeu que possivelmente disse “és um desgraçado”, mas não disse mais nada.

            Sobre as palavras “havemos de conversar, isto não fica assim” o arguido reafirmou que quando lhe dirigiu essas palavras queria dizer lhe ia por um processo no tribunal por causa dos nomes que ele lhe tinha chamado.

Logo de seguida foi embora.

Esclareceu que não lhe pôs o processo porque o seu advogado da altura disse para não o fazer.

           

            Vejamos, agora, o que disse a testemunha CC... sobre o caso.

            Perguntado o que sabia disse que na altura estava na sala do assistente a reparar uma televisão. O assistente estava muito nervoso, entrava na sala e saía da sala. A certa altura foi à varanda e sai de seguida para a rua, a correr.

Começou a ouvir vozes altas vindas da rua e foi à varanda ver o que se passava. Viu o assistente, a esposa e o arguido. O arguido falava para o assistente e gesticulava muito e este só dizia «oh homem deixe-me, vá-se embora, largue-me».

            O arguido continuou a falar e a gesticular e a certa altura estendeu a mão na direcção do assistente, numa tentativa de agressão, mas este desviou-se e o arguido não o atingiu. Não ouviu o que o arguido respondeu. De seguida ele entrou no carro, apontou o dedo ao assistente e disse-lhe «isto não vai ficar assim». E foi embora.

            DD... , esposa do assistente, também depôs em julgamento.

Sobre os factos declarou que depois do almoço, quando ela e o marido estavam a por umas coisas no carro, viu o arguido aproximar-se de carro. Devido aos problemas que ele sempre causava disse ao marido para ir para casa.

O arguido parou o carro, saiu e foi atrás do marido, que já ia na direcção da casa.

Nesta altura o arguido dirigiu-se ao marido e arguido e disse-lhe que eram uns desgraçados de merda, que não tinham onde cair mortos e que com o dinheiro da indemnização que tinham recebido dele tinham aproveitado para comprar um carro.

O marido respondeu-lhe «pague-nos é o que nos deve».

O marido entrou no prédio mas, depois, voltou a sair e quando isso aconteceu o arguido agarrou-o pela camisa e tentou dar-lhe um murro. Não deu porque o marido se afastou.

No final, antes de entrar no carro, o arguido apontou o dedo indicador na direção de ambos e disse que aquilo não ia ficar assim, que ia resolver as coisas de outra maneira.

            Já agora ouçamos o assistente, que também depôs sobre os factos, sendo que as suas declarações foram tidas por relevantes para o tribunal.

            Sobre a origem dos problemas existentes entre ambos, explicou que estes radicam nos problemas que um apartamento que adquirido ao arguido tinha.

            Quanto ao caso, disse que no dia em questão ele e a esposa estavam a colocar umas coisas no carro. Quando ela reparou que o arguido se estava a aproximar disse-lho e disse, também, para ir para casa.

            Deslocou-se para casa mas o arguido foi atrás de si chamando-lhe «desgraçado, miserável de merda, que eu tinha enriquecido à custa dele, que com o dinheiro que me estava a dar para as obras que eu tinha comprado o carro que estava estacionado lá fora ….».

Entrou em casa mas entretanto foi à janela porque estava preocupado por a mulher ainda estar no exterior. Verificou que o arguido estava a ralhar com ela e, por isso, voltou a sair de casa. Cá fora dirigiu-se ao arguido e disse-lhe muitas vezes «vá-se embora por favor».

O arguido agarrou-o e tentou dar-lhe um soco, o que não sucedeu porque ele se desviou.

Depois o arguido foi para o seu carro mas antes de entrar apontou-lhe o dedo indicador e disse-lhe «isto não vai ficar assim. Havemos de ajustar contas». E explicou: «esta situação deixa-me preocupado porque o sr. AA... … colocou de uma forma ilegítima, ou pelo menos ilegal, uma caixa de correio no prédio onde não tem nenhuma habitação, a caixa de correio pelos vistos foi esventrada una dias depois … e ele a um vizinho meu disse que se soubesse quem foi lhe cortava a cabeça com uma catana …».


*


            Como sabemos a prova – salvo a chamada prova tarifada -, é, conforme dispõe o art. 127º do C.P.P., «… apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

            Dos termos da lei resulta, primeiro, que a convicção relevante é a convicção da entidade competente para apreciar a prova, que é a entidade perante a qual ela é produzida e sobre a qual vai ter que se pronunciar, ou seja, o tribunal, melhor, o juiz. Para além disso, resulta que neste trabalho de apreciação o juiz está liberto das amarras que a prova tarifada impõe podendo, ao invés, socorrer-se de toda a sua experiência, aqui incluída a experiência do homem comum suposto pela ordem jurídica, ao serviço da averiguação da verdade.

A livre convicção não se forma contabilizando os depoimentos e decidindo de acordo com o número de afirmações feitas para cada lado, não se forma apenas e só a partir de depoimentos claros, inequívocos, que relatem todos os pormenores, que recordem todos os episódios e entre os quais haja coincidência absoluta.

No entanto se estas circunstâncias existirem e se o tribunal, no seu juízo de apreciação, conferir credibilidade a estes depoimentos claros e convergentes, então diremos que a tarefa do juiz fica especialmente facilitada.

E foi isto, claramente, que aconteceu no processo.

Ouvida a prova é óbvio, é evidente, que os factos provados radicam, em absoluto, na prova produzida em audiência. A versão acolhida na sentença não é apenas uma das versões que resultam da prova produzida: é a única versão plausível que se retira da prova, analisada esta à luz das tais regras da experiência.

Não tem, pois, nenhuma razão o arguido.

Da clareza da prova retirou a sentença recorrida a certeza de que o arguido praticou os factos referidos. E perante uma tal certeza é despiciendo invocar o princípio in dubio pro reo, que só opera, como sabemos, perante a dúvida persistente sobre a prática, pelo agente, de factos que lhe sejam desfavoráveis.


*

III – Impugnação do enquadramento legal dos factos provados

            Aceitando ter dirigido ao assistente as palavras consignadas na sentença, o arguido impugna o tratamento jurídico que as mesmas mereceram dizendo, no que ao crime de injúrias respeita, que elas, consubstanciando, embora, linguagem menos correcta, cortês, polida e delicada, não cabem na previsão dos artigos 180º e segs. do Código Penal.

            Quanto ao mais, refere que a extrapolação feita na sentença, de que, com as palavras que proferiu, procurou incutir no assistente receio da prática de um crime contra a integridade física, não tem qualquer apoio.

            Quanto ao crime de injúrias

            Decidiu a sentença recorrida condenar o arguido pela prática de um crime de injúria na base das seguintes considerações: «Resultou provado que o arguido visando o denunciante, em voz alta proferiu a seguinte expressão: “és um desgraçado ... és um miserável de merda ... não tens onde cair morto". "

Mais se provou que o fez “em tom agressivo e colérico, em local público e para quem quis ouvir” com o intuito de ofender e humilhar o assistente na sua honra e consideração, tendo logrado alcançar tal desiderato.

Perante tais factos, e analisadas tais expressões não podemos deixar de considerar que as mesmas excedem manifestamente o direito à crítica e à liberdade de expressão e atingem a “área nuclear inviolável” do direito à honra e ao bom nome, cuja protecção constitui condição do livre desenvolvimento ético da pessoa e, como tal está subtraída à intervenção privada (ou pública) que não demonstre ser justificada e/ou verdadeira».

A par de outros direitos de personalidade, o nº 1 do art. 26º da Constituição tutela o direito ao bom nome e à reputação, direitos estes que consistem «essencialmente no direito de não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito de defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação …» [4].

            Na lei ordinária a tutela da honra e consideração pessoais é garantida pelos art. 180º e 181º do Código Penal, que prevêem e punem os crimes de difamação e injúria.

            Citando Beleza dos Santos [5] «a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale. A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração e ao desprezo público».

Então, o que se visa defender com a incriminação das ofensas à honra e consideração é o complexo que abrange quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior, a imagem que têm dele.

Mas é claro que nem todos os juízos e imputações que revelem desconsideração são jurídico-penalmente punidos.

Sendo o direito penal a última ratio, há que ver se o juízo emitido deve despoletar a intervenção do direito penal.

O arguido disse para o assistente «és um desgraçado ... és um miserável de merda ... não tens onde cair morto».

Parece-nos, claramente, que estas palavras têm objectivamente a capacidade de produzir a ofensa reclamada na acusação e reconhecida na sentença.

Mas para além desta potencialidade teórica, abstrata, há que ver o contexto em elas foram proferidas. Como também disse Beleza dos Santos [6] «o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional». Sem cair na defesa da impunidade, este autor alerta para o facto de a situação concreta poder retirar a determinada expressão a carga ofensiva que, à partida, poderia ter. Por isso, conclui, o facto não pode ser descontextualizado sob pena de, muitas vezes, se acolher e premiar um venire contra factum proprium.

Ou seja, uma concreta palavra, frase, expressão, pode ser injuriosa num determinado contexto e não o ser num outro, por exemplo se forem proferidas num meio e/ou entre pessoas em que quotidianamente se utilize aquele concreto tipo de linguagem: se a linguagem é usada, no dia-a-dia, no trato normal, sem que isso provoque qualquer tipo de engulho, então não pode ser tida como ofensiva, depois, apenas porque um dos interlocutores não gostou do seu uso nesse dia.

O contexto tem, pois, tem um peso fundamental.

A liberdade de expressão assenta numa intrínseca estrutura relacional: é essencialmente na relação com o outro que ela se concretiza e realiza. As expressões de liberdade concretamente protegidas caracterizam-se por uma estrutura marcadamente relacional: é por via dialógica e não pelo monólogo que elas se realizam. De forma mais ou menos ostensiva, todas elas se analisam em mecanismos essenciais de comunicação e intersubjectividade [7].

E a liberdade de expressão – é, afinal, disso que se trata -, não vale apenas para as opiniões favoráveis, simpáticas. Como também vale nas outras situações, o exercício desse direito cria, amiúde, situações de tensão e de conflitualidade que há que apaziguar.

O conflito que, muitas vezes, surge entre o direito à honra e o direito à liberdade de expressão resolve-se ponderando toda a situação, os interesses em presença e fazendo intervir, ainda, os princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação, pedra de toque da intervenção do direito penal.

No caso o que o arguido quis dizer é que o assistente era desprezível, infame. Mas, para além disso, também pretendeu também dizer que este andava a explorá-lo.

Ser apelidado de «desgraçado … miserável de merda …» ultrapassa aquele mínimo socialmente tolerável que resulta da grosseria ou má educação. É atentatório da honra, ainda por cima quando estas palavras foram proferidas em local público, em voz alta, de forma a serem ouvidas por quem estava nas imediações.

O parco convívio que arguido e assistente mantiveram ao longo do tempo não permite, de forma alguma, enquadrar aquele tipo de linguajar como um padrão de comportamento habitual entre ambos.

Tendo o comportamento ultrapassado esse limite é o direito penal convocado a sancionar a actuação não sendo, por isso, violados os princípios penais da proporcionalidade, subsidiariedade.

Quanto à alegada violação do princípio da igualdade, não percebemos – insuficiência nossa -, em que radica a alegação. Mas impondo o princípio um tratamento igual o que for igual e a distinção do que for diferente, não vislumbramos em que medida é que ele pode ter sido beliscado.

Como apontamento final realça-se a persistência do arguido em reafirmar, nas suas alegações, que o assistente lhe moveu um processo judicial não por o apartamento que lhe vendeu ter defeitos – que não negou que existiam -, mas apenas devido às dificuldades financeiras que este atravessaria (conclusão V.), como se estas, mesmo existindo, tivessem a virtualidade de desonerar o arguido das suas obrigações.


*

            Quanto ao crime de ameaça

O arguido foi condenado por um crime de ameaça por se ter dirigido ao assistente e lhe ter dito «havemos de ajustar contas, isto não fica assim. O arguido vociferou em tom agressivo e colérico».

Quanto ao sentido destas palavras, consta dos factos provados que o arguido agiu com «intenção de infundir no próprio um fundado receio de que um mal futuro lhe sucederia, nomeadamente à sua integridade física …».

Em sede de fundamentação de facto diz-se, ainda, que «perante o contexto da actuação dúvidas não há que as expressões supra referidas tinham subjacente a intenção de injuriar o assistente e de lhe incutir receio de um mal futuro.

É o que consideramos ser a interpretação lógica das expressões e do contexto – de exaltação - em que foram proferidas».

            Nos termos do nº 1 do art. 153º do Código Penal configura o crime de ameaça a circunstância de alguém «ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação …».

Actualmente a verificação deste crime depende dos seguintes pressupostos:

- anúncio de um mal, pessoal ou patrimonial, que configure, em si mesmo, um facto ilícito típico; o mal ameaçado tem que constituir crime, contra a vida, integridade física, liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor;

- o mal ameaçado tem que ser futuro, não iminente (um dos critérios distintivos da tentativa, por um lado, e do crime de coação, por outro);

- a ocorrência desse mal tem que depender, nas palavras do agente, apenas de si próprio;

- a ameaça tem que ser adequada a provocar medo no destinatário ou a afectar a sua liberdade de determinação.

Comecemos pelo primeiro elemento, o anúncio de um mal.

Como dissemos, este mal não pode ser um qualquer mal: tem que ser, específica e concretamente, o anúncio da prática de um crime contra a vida, e/ou contra a integridade física, e/ou contra a liberdade pessoal, e/ou a liberdade e autodeterminação sexual e/ou bens patrimoniais de considerável valor.

            No caso a sentença entendeu que com o que disse o arguido estava a anunciar a prática de um crime contra a integridade física.

            Estamos, portanto, em sede de interpretação.

            Há casos em que a mensagem do agente é imediatamente perceptível: quando ele diz «hei-de-te matar» logo se percebe que o mal anunciado é atentatório da vida.

            Mas nem sempre a declaração é assim tão óbvia.

E quando não o é tem, necessariamente, que ser interpretada, obedecendo esta interpretação às regras normas da interpretação de qualquer declaração proferida no âmbito de uma conversa ou exposição: tem que se atender às palavras proferidas, tem que se considerar a vontade presumível do declarante, manifestada nessas palavras, e tem que se atender ao sentido que qualquer destinatário retiraria daquelas palavras, colocado que estivesse na posição do real destinatário. No caso atrás referido, quando o agente diz «hei-de-te matar», é claro o sentido das palavras, mesmo que o agente afirme que não quis proferir qualquer ameaça de morte.

Finalmente, a declaração pode ser expressa ou tácita: pode resultar de palavras ou de um gesto, atitude, comportamento, donde se extraia a intenção que lhe presidiu.

 

Descendo ao caso, quando o arguido disse para o assistente «havemos de ajustar contas, isto não fica assim. O arguido vociferou em tom agressivo e colérico» quis dizer que ia agredir o assistente?

Provavelmente terá sido esta a intenção do arguido, mas entendemos que esta intenção não está devidamente exposta na matéria de facto assente. Os factos provados – e só a estes podemos atender -, não permitem este entendimento.

Se é certo que a expressão do arguido não indica coisa boa, passe o plebeísmo, não é liquido que o seu sentido seja, apenas, o anúncio de um crime contra a integridade física.

Sendo seguro que podem consistir nas tais ameaças de ofensas, as palavras podem, porque não, integrar a “ameaça” de recurso a tribunal (pode o arguido, tão cuidadamente, disse em audiência). Mas podem, também, ser expressão de gabarolice pura, sem nenhum conteúdo.

O que queremos dizer é que o facto dado como provado é de tal modo vago, difuso, impreciso, que não é possível entendê-lo, necessariamente, nos termos em que a sentença recorrida o entendeu. Para que isto fosse assim era preciso mais alguma coisa que faltou dizer.
E embora esteja provado que o arguido quis provocar no assistente receio de um mal futuro, o que conseguiu, nem por isso se ultrapassa o obstáculo inicial, de o facto e o seu enquadramento, da forma relatada na sentença, não atingirem o patamar de idoneidade adequado ao seu enquadramento típico, uma vez que não é possível considerar-se como seguramente indiciado que a única interpretação possível, de acordo com as regras da experiência, é a de que o arguido pretendeu ameaçar a integridade física do assistente [8].
Ou seja, também aqui julgamos que face ao contexto a “ameaça” feita não será idónea a um tal resultado.

E em caso de dúvida sempre restaria, aqui sim, o recurso ao princípio do in dúbio que, como sabemos, é convocado quando se suscitem dúvidas inultrapassáveis no que à prova de factos desfavoráveis ao arguido respeita.

Concluindo, a extrapolação feita na sentença recorrida foi, e aqui concordamos com o arguido, precipitada.


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IV – Impugnação das penas aplicadas e da taxa diária fixada a cada dia de multa

            O arguido foi condenado nas penas de 60 dias de multa, à txa de 7 €. Sobre o assunto diz ele que as penas deveriam ser de 50 dias, à taxa de 6 €, isto por ser diminuta a culpa e ilicitude, por serem diminutas as necessidades de prevenção especial, devido à conduta posterior ao crime. Para além disso as condições económicas impõem que se baixe a taxa diária.

            Restringindo a apreciação à sanção que se mantém, decorrente do crime de injúria, a pena abstrata aplicável é de prisão até 3 meses ou multa até 120 dias, situando-se a taxa de cada dia de multa entre os 5 € e os 500 € - art. 181º, nº 1, e 47º, nº 2, ambos do Código Penal.

            À fixação da pena presidem os objectivos de proteção dos bens jurídicos violados e integração do agente na sociedade, sendo, depois, a sua fixação concreta feita à luz dos critérios 70º e 71º do Código Penal.

Uma vez fixada a pena é sempre susceptível de pronúncia «a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação. Relativamente à determinação do quantum exacto de pena será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada» [9].

            Da leitura da sentença todas as operações de escolha e fixação da pena nos parecem correctas.

            E esta conclusão não se altera por via do que consta do recurso, pois que aquilo que o arguido alegou pesou, precisamente, na opção por pena de multa, ao invés de pena detentiva, e para a sua fixação nuns parcos 60 dias de multa, sendo que poderia ir até aos 120 dias.

            Quanto à taxa aplicável à multa, o intervalo situa-se entre os 5 € e os 500 €. Ora, o que o arguido invocou pesou, precisamente para encontrar a taxa de 7 €, escolhida porque «próxima do mínimo legal … porém adequada à situação económica do arguido».


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V – Impugnação do montante indemnizatório fixado

           

            Finalmente, o arguido insurge-se quanto à indemnização fixada, dizendo que ela deve cifrar-se em 250 € por cada um dos crimes.

           

            Nos termos do nº 2 do art. 400º do C.P.P. «o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada», ou seja, depende da verificação cumulativa de dois requisitos:

- que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido;

- que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade dessa alçada.

A alçada dos tribunais de 1ª instância é, actualmente, de 5.000,00 € (D.L. nº 303/07, de 24/8).

No caso dos autos o valor do pedido foi de 2.000 € e o da condenação cifrou-se em 700 € (350 € por cada um dos crimes em que foi condenado).

            Não se verificam, pois, os requisitos legais, dos quais depende a recorribilidade da decisão.

Não obstante, fica sem efeito a condenação em indemnização decorrente da prática deste crime, por via do disposto no nº 3 do art. 403º do C.P.P..


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DISPOSITIVO

Por todo o exposto, concedendo parcial provimento ao recurso absolve-se o arguido AA... do crime de ameaça de que fora condenado.

Em consequência fica sem efeito a condenação na indemnização decorrente da prática daquele crime.

Quanto ao mais, confirma-se a sentença recorrida.

           

Sem custas.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 2011-09-28

            Constituindo o crime de ameaça o anúncio de que no futuro se irá cometer um crime que depende da vontade do agente, não o pratica aquele que vociferando em tom agressivo e colérico, se dirige ao ofendido dizendo “ havemos de ajustar contas, isto não fica assim”, pois tal factualidade só por si não permite concluir que aquele pretendesse  praticar um crime contra a integridade física deste.


[1] Neste sentido vide o acórdão da Relação do Porto, de 27-1-2010, proferido no processo 42/05.0GAVFL, relatado pelo sr. desembargador António Gama.
[2] Acórdão do S.T.J. de 26-5-1999, processo 98P1488, relatado pelo sr. conselheiro Leonardo Dias.
[3] Código de Processo Penal, Notas e Comentários, de Vinício Ribeiro, 2ª ed., pág. 1057, anotação ao art. 374º
[4] Gomes Canotilho-Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1º vol., anotação ao art. 26º.
[5] Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92º, pág. 161 a 168.
[6] Na mesma obra.
[7] Acórdão da Relação do Porto de 22-11-2006, relatado pela senhora desembargadora Maria do Carmo Silva Dias, onde se faz uma profunda explanação do direito à honra, do direito à liberdade de expressão e da compressão que cada um destes direitos sofre por via da consagração do outro.
[8] Acórdão da Relação do Porto de 27-10-2010, proferido no processo 351/09.9PHVNG.
[9] Acórdão do S.T.J. de 29-3-2007, processo 07P1234.