Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FONTE RAMOS | ||
Descritores: | COMPRA E VENDA COISA DEFEITUOSA EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO | ||
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Data do Acordão: | 07/14/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | BAIXO VOUGA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS.428, 874, 914, 921 CC | ||
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Sumário: | 1. A "exceptio non adimpleti contractus" constitui uma excepção dilatória de direito material cujo objectivo e funcionamento se ligam ao equilíbrio das prestações contratuais, valendo, tipicamente, no contexto de contratos bilaterais, quer haja incumprimento ou cumprimento parcial ou defeituoso. 2. A excepção de inadimplência/inexecução (ou suspensão por inexecução) não é senão a recusa temporária do devedor – credor de uma prestação não cumprida no âmbito de um contrato sinalagmático – que assim retarda, legitimamente, o cumprimento da sua prestação, enquanto o credor não cumprir a prestação que lhe incumbe.
3. O instituto da "excepção do não cumprimento do contrato" opera não só perante o incumprimento total do contrato, mas também perante o incumprimento parcial ou o seu cumprimento defeituoso.
4. Na venda de coisa defeituosa, a exceptio só pode ser exercida após o comprador haver não só denunciado os defeitos, como também exigido que os mesmos fossem eliminados a prestação substituída ou realizada de novo, o preço reduzido, ou ainda o pagamento de uma indemnização por danos circa rem. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. (…), Lda., propôs, no tribunal da Comarca do Baixo Vouga/Oliveira do Bairro, providência de injunção contra H (…), solicitando “que lhes seja paga a quantia de € 7 424,83” [Capital: € 5 573,50; Juros de mora: € 1 650,33 à taxa de: 0,00 % (?); Outras quantias: € 150,00; Taxa de Justiça paga: € 51,00; Contrato de: Fornecimento de bens ou serviços - Data do contrato: 12-12-2005 - Período a que se refere: 2005-12-12 a 2006-07-21], alegando, em resumo, que: - No exercício da sua actividade no ramo da transformação e comercialização de vidro, lapidação, montagem e decoração de vidros e espelhos, vendeu ao Requerido, a pedido deste, vários artigos do seu comércio, nomeadamente os produtos constantes das facturas n.ºs 9024 emitida em 12.12.2005 e vencida em 11.01.2005, no valor de € 52,01; 9150 emitida em 15.12.2005 e vencida em 14.01.2006, no valor de € 1 008,90; 9163 emitida em 15.12.2005 e vencida em 14.01.2006, no valor de € 16,77; 9478 emitida em 27.12.2005 e vencida em 26.01.2006, no valor de € 1243,30; 9488 emitida em 27.12.2005 e vencida em 26.01.2006, no valor de € 994,74; 416 emitida em 17.01.2006 e vencida em 16.02.2006, no valor de € 218,91; 535 emitida em 20.01.2006 e vencida em 19.02.2006, no valor de € 311,10; 751 emitida em 26.01.2006 e vencida em 25.02.2006, no valor de € 14,70; 1226 emitida em 13.02.2006 e vencida em 15.3.2006, no valor de € 47,76; 1708 emitida em 01.3.2006 e vencida em 31.3.2006, no valor de € 691,27; 2125 emitida em 15.3.2006 e vencida em 14.4.2006, no valor de € 377,51; 2247 emitida em 20.3.2006 e vencida em 19.4.2006, no valor de € 8,64; 2458 emitida em 27.3.2006 e vencida em 26.4.2006, no valor de € 137,04; 2769 emitida em 05.4.2006 e vencida em 05.5.2006, no valor de € 58,14; 4843 emitida em 21.6.2006 e vencida em 21.7.2006, no valor de € 392,71; - Emitiu ainda a nota de crédito n.° 259 em favor do Requerido em 29.7.2008 vencida em 28.8.2008, no valor de € 242,00; - Os materiais referidos nas facturas foram devidamente entregues, sem qualquer reclamação, por parte do Requerido, que tendo recebido uns e outras, nada disse; - A Requerente tentou obter o pagamento da dívida junto do Requerido[1], quer telefonicamente, quer através de deslocações dos seus funcionários, o que acarretou custos com telefonemas, combustível, desgaste de viatura e tempo do funcionário, não inferiores a € 150; - Encontram-se em dívida, para além daquelas quantias, os juros vencidos que se computam em € 1 650,33 [tendo-se aplicado as taxas legais de 9,83 %, 10,58 % e 11,07 %, 11,02 % e 9,50 % desde a data de vencimento das facturas] e as custas judiciais, sendo ainda devidos os juros vincendos à taxa legal. O Requerido opôs-se, alegando, em síntese, que no exercício da sua actividade no ramo da caixilharia, nomeadamente na compra e venda e montagem de janelas e vidros, contratou os serviços da Requerente, nomeadamente através da encomenda e posterior compra e venda de vidros para janelas e montras; os vidros aludidos nas facturas n.ºs 9024, 9150, 9478, 9488 e 416 continham defeito de fabrico no separador e alguns estavam tão tortos que nem cabiam nas janelas, tendo o Requerido reclamado tempestivamente por via telefónica e por fax, sendo que em relação à factura n.º 9488 foi debitado o valor de € 200 referente à utilização de um carro grua, que nunca foi utilizado, nem nunca esteve presente na obra (a que respeita a “Nota de Crédito”, com o n.° 259, de 29.7.2008); o cliente do Requerido (ao qual se destinaram tais vidros) encontra-se até hoje com vidros defeituosos nas janelas, que entretanto tiveram de ser colocados, dado que a Requerente nunca mais resolveu a situação, e o Requerido também não pôde facturar tais vidros ao seu cliente, deixando de auferir lucros e ficando com a sua imagem comercial manchada perante o mesmo; no que respeita às mencionadas facturas, não se considera devedor das mesmas, porquanto os vidros nelas facturados foram entregues com defeitos, todos reclamados em tempo e nunca substituídos; na expectativa de que a Requerente cumprisse com a sua obrigação de substituição dos vidros e resolvesse o problema que havia causado, facto que sempre foi prometido pelos “comerciais da empresa”, o Requerido resolveu manter as relações comerciais, continuando a encomendar-lhe vidros; porém, os vidros da factura n.º 535 vieram todos riscados, foram reclamados em tempo e nunca substituídos; os vidros constantes da factura n.º 1226 referem-se a vidros de reposição que já haviam sido facturados na factura n.º 9150 e que foram novamente entregues com defeitos e mais uma vez facturados; relativamente à factura n.º 1708, dois dos vidros facturados foram entregues com defeito, tendo estes sido reclamados, conforme fax datado de 10.3.2006, mas nunca foram repostos, pelo que importa deduzir o valor correspondente (€ 64,89); no que concerne à factura n.º 2125, a maioria dos vidros chegaram partidos, tendo o Requerido reclamado por telefone e fax, reenviando um novo pedido de vidros e a reposição dos vidros partidos, permanecendo a maior parte por repor; quanto aos vidros constantes da factura n.º 2769, já haviam sido facturados na factura n.º 2125, correspondendo as medidas “796x438” e “797x593” aos vidros partidos e reclamados, únicos que foram repostos; relativamente à factura n.º 2125 há que deduzir o montante de € 35,40 (IVA incluído); relativamente à factura n.º 4843, dois dos vidros vinham riscados, facto do qual reclamou logo via telefone e mais tarde por fax, sendo que os mesmos nunca foram substituídos, importando deduzir o montante de € 27,26. Depois de invocar o disposto no art.º 428º do CC, disse que apenas não cumpriu com o pagamento das facturas, porque a Requerente também não cumpriu, ou cumpriu defeituosamente com a sua obrigação contratual, porque os vidros vendidos sofriam de vícios que os desvalorizavam e não apresentavam as qualidades asseguradas pela Requerente e necessárias à realização do fim a que se destinavam; agiu sempre de boa-fé, tendo denunciado os defeitos dentro dos prazos estabelecidos por lei e tendo continuado a solicitar a resolução do problema. Referiu ainda que a Requerente agiu e litigou de má fé, pois deduziu pretensão para a qual sabe não ter fundamento, omitindo e alterando a verdade dos factos relevantes para a boa decisão da causa, querendo exigir do Requerido o cumprimento de uma obrigação, quando não cumpriu com a sua e, mais, quando a falta de cumprimento da sua parte lhe causou avultados danos, nomeadamente, na imagem comercial do Requerido e danos patrimoniais que se estimam em € 10 000, quantia esta que não pôde facturar e deixou de receber do seu cliente (…). E terminou pedindo que seja julgada procedente a invocada excepção dilatória de não cumprimento, absolvendo-se o Requerido da instância ou, assim não se entendendo, que o requerimento de injunção seja julgado improcedente por não provado, absolvendo-se o Requerido do pedido e, ainda, que a Requerente seja condenada como litigante de má-fé, para satisfação dos prejuízos sofridos pelo Requerido em consequência directa dessa má-fé, bem como no reembolso das despesas a que má-fé da litigante obrigou o Requerido a suportar, incluindo o reembolso das custas processuais e honorários ao mandatário. A injunção foi remetida à distribuição como acção declarativa de condenação sob a forma de processo especial destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de valor não superior a € 15 000, tendo-se realizado a audiência de julgamento. Proferida a sentença, o tribunal a quo julgou verificada a excepção dilatória de não cumprimento do contrato e, em consequência, absolveu o Réu da presente instância; julgou ainda improcedente o pedido de condenação da A. como litigante de má fé. Inconformada com esta decisão e visando a sua revogação, a A. interpôs a presente apelação, formulando as conclusões que assim vão sintetizadas: 1ª - Da matéria de facto provada resulta a existência de um cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte da recorrente. 2ª - Caberia à recorrente, consoante o preceito dos art.ºs 914° e 921° do Código Civil, reparar a coisa defeituosa ou substituí-la. 3ª - O recorrido tendo por base esse cumprimento defeituoso, alega a excepção do incumprimento do contrato, prevista no art.º 428° do Código Civil. 4ª - O que legitima a excepção de incumprimento do contrato é um reflexo do sinalagma funcional, um corolário da interdependência de obrigações sinalagmáticas, correspondendo a uma concretização do princípio da boa fé. 5ª - Tal meio de defesa deve ser proporcional à gravidade da inexecução do contrato. 6ª - A suspensão da prestação, mediante a invocação da excepção do não cumprimento do contrato, só deve considerar-se legítima na quantidade necessária para restabelecer o equilíbrio das prestações ainda por cumprir. 7ª - O recorrido apenas prova que existiu um cumprimento defeituoso pela recorrente relativamente a alguns dos bens fornecidos, nada provando quanto aos demais. 8ª - Não se pode considerar legitima a invocação da excepção do não cumprimento relativamente a todo o material que foi fornecido pela recorrente, sob pena de estarmos perante uma situação de enriquecimento sem causa. 9ª – Estando-se perante diversos contratos de compra e venda, deveria o Tribunal a quo considerar separadamente cada um deles e condenar o recorrido ao pagamento dos bens fornecidos sem quaisquer defeitos. 10ª - O recorrido só pode recusar a parte proporcional à parte não executada e não pode servir-se da excepção para todo o material que foi fornecido pela recorrente, sob pena de ser criado um desequilíbrio contratual. 11ª - A sentença recorrida fez uma incorrecta interpretação e aplicação do direito e viola os art.ºs 879°, alínea c), 428°, n.° 1 e 473º do Código Civil. O Réu contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso. Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil, com a redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8, aplicável ao caso vertente) está apenas em causa a problemática da efectivação prática da excepção de inadimplência/inexecução (ou suspensão por inexecução). * II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos: a) A A. exerce a sua actividade no ramo da transformação e comercialização de vidro, lapidação, montagem e decoração de vidros e espelhos. b) O Réu exerce a sua actividade no ramo da caixilharia, nomeadamente na compra e venda e montagem de janelas e vidros. c) No exercício da sua actividade, a A. forneceu ao Réu, a pedido deste e mediante contrapartida monetária, os produtos constantes das facturas n.°s: - 9024 emitida em 12.12.2005 e vencida em 11.01.2005, no valor de € 52,01; - 9150 emitida em 15.12.2005 e vencida em 14.01.2006, no valor de € 1 008,90; - 9163 emitida em 15.12.2005 e vencida em 14.01.2006, no valor de € 16,77; - 9478 emitida em 27.12.2005 e vencida em 26.01.2006, no valor de € 1243,30; - 9488 emitida em 27.12.2005 e vencida em 26.01.2006, no valor de € 994,74 (verbas n.°s 1 a 5)[2]; - 416 emitida em 17.01.2006 e vencida em 16.02.2006, no valor de € 218,91; - 535 emitida em 20.01.2006 e vencida em 19.02.2006, no valor de € 311,10; - 751 emitida em 26.01.2006 e vencida em 25.02.2006, no valor de € 14,70; - 1226 emitida em 13.02.2006 e vencida em 15.3.2006, no valor de € 47,76; - 1708 emitida em 01.3.2006 e vencida em 31.3.2006, no valor de € 691,27; - 2125 emitida em 15.3.2006 e vencida em 14.4.2006, no valor de € 377,51; - 2247 emitida em 20.3.2006 e vencida em 19.4.2006, no valor de € 8,64; - 2458 emitida em 27.3.2006 e vencida em 26.4.2006, no valor de € 137,04; - 2769 emitida em 05.4.2006 e vencida em 05.5.2006, no valor de € 58,14; - 4843 emitida em 21.6.2006 e vencida em 21.7.2006, no valor de € 392,71. d) A A. emitiu a nota de crédito n.° 259 em favor do Réu, em 29.7.2008, vencida em 28.8.2008, no valor de € 242. e) O vidro correspondente à factura n.º 9024 foi entregue em 12.12.2005. f) Este vidro encontrava-se torto no separador. g) Tal tendo sido reclamado pelo Réu junto da A., via telecópia, em 13.12.2005. h) Os vidros correspondentes à factura n.° 9150 foram entregues ao Réu em 15.12.2005. i) Estes vidros apresentavam-se tortos no separador. j) Tal tendo sido reclamado pelo Réu junto da A., via telecópia, em 27.12.2005. k) No dia 27.12.2005 foram entregues os vidros correspondentes às facturas n.°s 9478 e 9488; l) Estes vidros apresentavam-se tortos no separador. m) Tal tendo sido reclamado pelo Réu junto da A., via telecópia, em 27.12.2005. n) Em 10.01.2006, o Réu reclamou junto da A. o envio dos vidros em falta e a reposição de novos vidros em substituição dos que haviam sido entregues com defeitos, via telecópia. o) Em 17.01.2006 foram entregues ao Réu os vidros correspondentes à factura n.° 416. p) Estes vidros apresentavam-se tortos no separador. q) O vidro indicado em segundo lugar na factura n.° 535 apresentava-se riscado. r) Tal tendo sido reclamado junto do comercial da A., P (...). s) Os vidros com as medidas “1906x1090” e “1904x916”, constantes da factura n.° 1708, foram entregues riscados. t) Tendo estes sido reclamados por fax datado de 10.3.2006. u) Os vidros constantes da factura n.º 2125 sob as verbas 1, 2, 5 (1), 10 (1), 14 (1) e 15 (1) chegaram partidos. v) Os vidros constantes da factura n.º 2769, com as medidas “796x438” e “797x593”, haviam sido facturados na factura n.º 2125, correspondendo as medidas aos vidros partidos. w) A encomenda relativa à factura n.º 4843 foi efectuada em 12.6.2006 com o pedido expresso de que os vidros fossem entregues no dia 14.6.2006 e com um pedido de informação se tal não fosse possível. x) A entrega foi efectuada em 21.6.2006. y) Dois dos vidros com as medidas “720x590” vinham riscados. z) O que o Réu reclamou por fax. aa) O Réu remeteu à A., via telecópia, a carta a que se refere o documento n.° 26 junto com a contestação, com o seguinte teor: “ASSUNTO: VIDROS BRONZE COM DEFEITO NO SEPARADOR Bom dia caros Srs., Como é do V/ conhecimento, os vidros da obra que designo como “....” estão com muitos defeitos, nomeadamente no seu separador (caixa) que está completamente torta (faz flecha) conforme o desenho já anteriormente enviado por fax. Feita visita à obra pelo V/ comercial Sr. (…), que constatou o mesmo defeito, foi-me dito por este que iria falar com Vexas no sentido de ser reparada esta situação. Passado todo este tempo desde a última visita à obra e não aceitando o cliente os vidros, não me resta senão reclamar junto de Vexas, dando-vos um prazo de 15 dias para que seja resolvida ou encontrada solução para este problema, findo este prazo, que também me foi dado pelo meu cliente, não me resta senão entender que Vexas não estão interessadas em resolver o mesmo e como tal as facturas relativas a esta obra Nrs: 9024-9150-9478-9488-416 deixam para nós de ser devidas uma vez que nem nós nem o nosso cliente aceitam tais defeitos de produção já mencionados, nem aceitamos mais prejuízos a somar aos já causados. Aguardando uma resposta, me subscrevo DE VEXAS ATENCIOSAMENTE; (…)”.[3] bb) Os vidros identificados destinavam-se à colocação em casa destinada a cliente do Réu, de nome (…). cc) A A.[4] não procedeu à substituição dos vidros, mantendo-se os mesmos como supra descrito. 2. Diz-se na sentença recorrida que entre A. e Réu foram celebrados diversos contratos de compra e venda - modalidade contratual definida como “o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço” (art.º 874º do Código Civil[5]) - e que destes contratos nasceram para ambas as partes prestações recíprocas, entre as quais o pagamento dos respectivos preços devidos pela transmissão da propriedade das coisas, conforme o disposto no art.° 879°, alínea c), pelo que caberia ao Réu pagar o preço à A., pelos produtos efectivamente fornecidos; porém, o Réu alegou e demonstrou factualidade enquadrável na excepção de inadimplência/inexecução (ou suspensão por inexecução)[6] e foi decretada a sua absolvição da instância. No presente recurso não se questiona a existência de um cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte da recorrente e que lhe cabe reparar a coisa defeituosa ou substituí-la (art.ºs 914º e 921º). Afirma-se, na alegação, que o que legitima a excepção de incumprimento do contrato é um reflexo do sinalagma funcional, um corolário da interdependência de obrigações sinalagmáticas, correspondendo a uma concretização do princípio da boa fé e que este meio de defesa deve ser proporcional à gravidade da inexecução do contrato (a suspensão da prestação só deve considerar-se legítima na quantidade necessária para restabelecer o equilíbrio das prestações ainda por cumprir) – daí que, tendo o recorrido provado que existiu um cumprimento defeituoso pela recorrente relativamente a alguns dos bens fornecidos, não se possa considerar legitima a invocação da excepção do não cumprimento relativamente a todo o material que foi fornecido pela recorrente, sob pena de ser criado um desequilíbrio contratual ou uma situação de enriquecimento sem causa; tratando-se de diversos contratos de compra e venda, deveria o Tribunal a quo considerar separadamente cada um deles, condenando o recorrido ao pagamento dos bens fornecidos sem quaisquer defeitos. No caso vertente, a A. quis ver conferida força executiva ao requerimento de fls. 2 (destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias) (art.º 7º do DL n.º 269/98, de 01.9); o Réu opôs-se e pediu, a título principal, a sua absolvição da instância; o tribunal a quo deu como provada a quase totalidade dos factos que consubstanciavam (qualitativa e quantitativamente) a invocada exceptio e indicou os factos tidos por não provados, rematando com a expressão “quaisquer outros dos alegados pelas partes, com relevo para a decisão da causa”. Tendo em atenção a posição feita valer na “oposição” e a fundamentação da decisão de facto, afigura-se-nos que, no presente enquadramento, o tribunal recorrido não considerou relevante a eventual existência de prejuízos decorrentes da actuação da A./recorrente[7], realidade que, numa ponderação global dos interesses em presença, poderá e/ou deverá ser considerada. Embora muito do que se afirma nas conclusões da alegação de recurso traduza o entendimento (teórico) habitualmente expresso pela doutrina e pela jurisprudência a respeito do instituto da excepção de não cumprimento do contrato, afigura-se-nos, no entanto, sem quebra do respeito sempre devido por opinião em contrário - e admitindo-se que a questão sub judice não é isenta de dificuldades -, que será de acolher a solução encontrada pelo tribunal a quo. 3. A excepção de inadimplência consiste na recusa de executar a prestação por parte de um dos contraentes quando o outro a reclama, sem que, por seu turno, tenha ele próprio executado a sua contraprestação; traduz-se no direito que tem qualquer das partes de uma relação sinalagmática de recusar o cumprimento enquanto a outra, por seu lado, não efectue a prestação correspondente a que se encontra vinculada.[8] A exceptio non adimpleti contractus a que refere o art.º 428º, n.º 1, pode ter lugar nos contratos com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra, como acontece no caso em questão. Trata-se de uma excepção material dilatória/excepção dilatória de direito material ou substantivo, porque corolário do sinalagma funcional que a legitima: é excepção material porque fundada em razões de direito substantivo, e dilatória, porque não exclui definitivamente o direito do autor, apenas o paralisa temporariamente.[9] Como regra, ao autor que exige o cumprimento, opõe o réu o princípio substantivo do cumprimento simultâneo próprio dos contratos sinalagmáticos, em que a prestação de uma das partes tem a sua causa na prestação da outra. O excipiens não nega o direito do autor ao cumprimento, apenas recusa a sua prestação até à realização da contraprestação pela outra parte, que se encontra assim numa situação de não ter ainda realizado uma prestação quando já o devia ter feito, ou seja, numa situação de incumprimento da sua obrigação. A exceptio aplica-se quando não estejam fixados prazos diferentes para as prestações; mas é evidente que, mesmo estando o cumprimento das obrigações sujeito a prazos diferentes, poderá sempre ser invocada pelo contraente cuja prestação deva ser efectuada depois da do outro, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro.[10] 4. O instituto da "excepção do não cumprimento do contrato" opera não só perante o incumprimento total do contrato, mas também perante o incumprimento parcial ou o seu cumprimento defeituoso. Para que obstem ao válido exercício da excepção de incumprimento é necessário que o cumprimento ou oferta de cumprimento simultâneo seja feita em termos completos e rigorosos, podendo tal meio de defesa ser validamente exercido por qualquer um dos sujeitos, quando a contraparte apenas cumprir ou lhe oferecer o cumprimento em termos parciais ou defeituosos - é a chamada exceptio non rite adimpleti contractus, que confere ao demandado a possibilidade de recusar a sua prestação enquanto a outra não for completada ou rectificada.[11] Existe cumprimento defeituoso em todos os casos em que o defeito ou irregularidade da prestação causa danos ao credor ou pode desvalorizar a prestação, impedir ou dificultar o fim a que objectivamente se encontra afectada, estando o credor disposto a usar outros meios de tutela do seu interesse que não sejam a recusa pura e simples da aceitação; por incumprimento inexacto deve entender-se todo aquele em que a prestação efectuada não tem requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo do programa obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correcção e da boa fé, considerando que a inexactidão do cumprimento pode ser quantitativa (prestação parcial a que se seguem os efeitos de não cumprimento no que respeita apenas à parte da prestação não executada: a mora ou incumprimento definitivo) e qualitativa (traduzida numa diversidade da prestação, como numa deformidade, num vício ou falta de qualidade da mesma ou na existência de direitos de terceiros sobre o seu objecto).[12] Assim, se o contraente que tiver de cumprir primeiro oferecer uma prestação parcial ou defeituosa, a contraparte pode opor-se e recusar a sua prestação até que aquela seja oferecida por inteiro ou até que sejam eliminados os defeitos ou substituída a prestação. Todavia, impõe-se tomar em consideração o princípio da boa fé (art.º 762º, n.º 2). A recusa pode mostrar-se contrária à boa fé, como acontece nas hipóteses em que o que falta prestar é uma pequena parte, que na ocasião não possa ser prestada - do referido princípio resulta o imperativo de uma apreciação, em face das circunstâncias concretas, da gravidade do cumprimento incompleto ou defeituoso, que não deve mostrar-se insignificante; seria contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestação só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem relevo suficiente. Surge assim, na mesma linha de entendimento, a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício de uma excepção, entre essa falta e a recusa do excipiente. Uma prestação significativamente incompleta ou viciada justifica que o outro obrigado reduza a contraprestação a que se acha adstrito. Mas, em tal caso, só é razoável que recuse quando se torne necessário para garantir o seu direito.[13] 5. A excepção do contrato não cumprido não pressupõe a culpa do devedor da contraprestação no seu atraso. A inexecução por parte deste pode ser-lhe imputável ou não, isto é, tanto pode ele constituir-se em mora (art.º 804º, n.º 2) como não. Ainda que o cumprimento lhe não seja imputável, antes obedeça a circunstâncias fortuitas, independentes da vontade, a exceptio é invocável pelo outro contraente. O contraente apenas não pode alegar a excepção se se encontrar ele próprio em mora accipiendi, o que acontece, nos termos do art.º 813º, quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação. Se - como vimos - a excepção do não cumprimento do contrato tanto vale para o caso de falta de cumprimento integral, como para o incumprimento parcial ou defeituoso, os efeitos da sua invocação são temporários, prolongando-se até que o devedor faltoso que reclama a prestação de que é credor em relação ao excipiente cumpra aquilo a que se obrigou; trata-se, assim, de um meio puramente defensivo e estritamente temporário, não definitivo.[14] Estando em causa o direito ao cumprimento exacto e pontual, o contraente que cumpre defeituosamente não tem o direito de exigir a respectiva contraprestação enquanto não sanar os defeitos da sua prestação, só adquirindo o direito àquela quando, prévia ou simultaneamente, se oferecer para reparar o mau cumprimento, ou seja, quando se proponha satisfazer a prestação devida e acordada ab initio.[15] Encontrando-se em mora relativamente à eliminação dos defeitos e enquanto o estiver, o vendedor da coisa defeituosa pode ver ser-lhe oposta pelo comprador a exceptio non rite adimpleti contractus, o qual não é obrigado a pagar o preço sem que aquela eliminação tenha lugar, no que se revela ainda a função coerciva da exceptio.[16] A exceptio non rite adimpleti contractus poderá unicamente ser exercida após o credor ter, não só denunciado os defeitos, como também exigido que os mesmos fossem eliminados, a prestação substituída ou realizada de novo, o preço reduzido, ou ainda o pagamento de uma indemnização por danos circa rem.[17] 6. No caso em análise houve um cumprimento defeituoso da A., cuja extensão ou dimensão se acha bem patente na materialidade apurada. Neste circunstancialismo, considerado o concreto quadro contratual, era lícito ao Réu recusar o pagamento do preço, enquanto a A. não reparasse os defeitos, com fundamento na exceptio non rite adimpleti contractus (art.º 428º, n.º 1). É que a falta da vendedora não se mostra insignificante, face à natureza e volume dos defeitos apurados, nem a recusa do Réu, quanto ao imediato pagamento de preço, é inadequada ou desproporcionada ao cumprimento defeituoso da A.. A boa fé exigiria que A. reparasse ou substituísse os bens entregues com defeito (art.ºs 914º e 921º), e a A. fez muito pouco (quase nada…) nesse sentido, e, volvidos mais de três anos, veio a instaurar procedimento de injunção contra o Réu, aparentando ignorar e pretender afastar toda aquela realidade. Ora, cientes das dificuldades que revelam a inevitável distância que tantas vezes separa a solução teórica adequada da sua efectivação prática - verdadeiro desafio do direito e da justiça[18] -, temos como ajustada e razoável a solução encontrada pelo tribunal a quo, sendo certo que inexistem nos autos os elementos factuais indispensáveis a uma completa ou adequada ponderação dos interesses das partes e que ultrapassa em muito os objectivos por elas traçados no âmbito dos presentes autos. Nessa conformidade, o eventual reconhecimento na presente lide de que a A. teria desde já direito a perceber determinada quantia do Réu em razão do fornecimentos de produtos em causa, constituiria, muito provavelmente, uma decisão falha do necessário suporte fáctico e avessa aos concretos (e ignorados) direitos e interesses das partes, sendo certo que a obrigação de reparar o dano causado ao Réu pela A. em consequência do fornecimento dos vidros com defeito[19] passou a integrar a relação sinalagmática do quadro contratual em apreço, que importa considerar em toda a sua extensão e não apenas pela forma atomística reclamada pela A., ao pretender ver em cada uma das referidas 15 facturas de todo esse fornecimento de bens um autónomo contrato de compra e venda - afirmando isoladamente as consequências de um contrato bilateral e com prestações recíprocas -, pela simples razão de que o sinalagma funcional próprio dos contratos bilaterais abrange as obrigações decorrentes para as partes das vicissitudes da relação contratual[20], entre as quais, o (eventual) dever de indemnizar correspondente ao cumprimento defeituoso da obrigação e que, na ausência de acordo das partes, poderá vir a determinar o seu apuramento em momento oportuno e na sede adequada. Estando a A. (vendedora/fornecedora) obrigada a reparar os danos que causou ao Réu (comprador) com o fornecimento de vidros sem as características exigíveis para uma adequada e funcional aplicação e utilização, não seria razoável impor a este o cumprimento da sua prestação, sem que pudesse invocar a excepção de não cumprimento da prestação da A. (“exceptio non rite adimpleti contractus”), dada, também, a falta de apuramento e pagamento dos danos por ele sofridos com o fornecimento em apreço, que não satisfez os requisitos de qualidade assegurados pela vendedora, a qual, reafirma-se, ainda não se dignou proceder à substituição de quase todo o material que apresentava defeitos.[21] A falta da A. não se mostra insignificante; a excepção do não cumprimento do contrato, invocada pelo Réu, não é inadequada ou desproporcionada relativamente à falta (qualitativa e quantitativa) de cumprimento da obrigação a que estava adstrita a vendedora.[22] Assiste, por conseguinte, o direito de o Réu se recusar ao pagamento do preço, enquanto não satisfeita integralmente a reparação do dano, não se podendo dizer que daí resulte necessariamente qualquer desequilíbrio na relação contratual estabelecida entre as partes, antes se justificando, pelas razões expostas, a plena actuação do efeito paralisante da exceptio até que se efectue a reparação/substituição há muito reclamada e, sendo caso disso, seja devidamente avaliado o dano que adveio para o demandado em virtude do procedimento adoptado pela A.. Soçobra, assim, a pretensão corporizada na alegação de recurso. III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida, embora com a fundamentação aludida em II. 6, supra. Custas pela A./apelante. * Adjuntos: Carlos Querido Emídio Costa [1] Rectificou-se lapso manifesto do requerimento de injunção, reproduzido na sentença. [2] Considerada a matéria provada (relacionada com o 1º facto dado como não provado), o valor a facturar ascendia a € 752,74 (IVA incluído) – daí a “nota de crédito” dita em II. 1. d) relativa à verba “carro grua” indevidamente incluída na factura n.º 9488. [3] Reproduz-se assim o documento em causa. [4] Rectifica-se o lapso manifesto existente – cf., v. g., item 18º da oposição. [5] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem. [6] Vide, entre outros, Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, 1986, pág. 431. [7] Lembra-se que o Réu, na parte final da “oposição”, alegou que a falta de cumprimento da A. causou-lhe avultados danos, designadamente, na sua imagem comercial e danos patrimoniais estimados em € 10 000. [8] A excepção de incumprimento do contrato encontra-se assim definida no art.° 428°, n.° 1: Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo. [9] Cf., entre outros, o acórdão da RC de 21.10.2003-processo 432/03, publicado no “site” da dgsi. [17] Vide Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, 1994, pág. 328. |