Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
202/10.1PBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: BURLA
MODO DE VIDA
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 217.º E 218.º, N.º 2, AL. B), DO CPP
Sumário: I - Para preenchimento da qualificativa “modo de vida”, não se exige que o agente se dedique de forma exclusiva à prática de um daqueles tipos legais de crime, mas sim que a série de ilícitos contra o património que o agente pratique seja factor determinante para que se possa concluir que disso também faz modo de vida.

II - Deve entender-se como fazendo da burla modo de vida não é suficiente que as infracções singulares tenham sido cometidas com o escopo de lucro ou com o fim de outro proveito económico, mas o complexo das infracções deve revelar um sistema de vida, como é o caso do ladrão ou do burlão que vivem sem trabalhar, dos proventos dos delitos (Cfr. Manzini, Tratado, Vol. III, pág. 223).

III - Entende-se como fazendo “da burla modo de vida”, a entrega habitual à burla, que se basta com a pluri-reincidência, devendo ser tomadas em consideração, não só as anteriores condenações do agente constantes do seu registo criminal, mas também as denúncias ou participações policiais existentes, o conteúdo dos ficheiros policiais e todos os outros elementos testemunhais ou documentais.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

No processo supra identificado, foi julgado em processo comum, com intervenção do tribunal singular o arguido A... , portador do BI n.º (...) , nascido em 14/05/1983, filho de (...) e de (...) , natural de Cascais, com residência na Rua (...) , Cascais.

É imputado ao arguido a prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelos art. 217.º e 218.º, n.º 1 e 2, a. b), do Código Penal (CP) e não apenas pelo art. 218.º, n.º 1 e 2, a. b), como incorrectamente se imputa na acusação e no relatório e dispositivo da sentença recorrida, uma vez que é naquele primeiro artigo que se definem os elementos constitutivos do crime base da burla, e o segundo apenas define o elemento da qualificativa, pelo qual foi condenado na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período, “com a condição de reparar a ofendida B..., nos montantes apropriados e respectivos juros, em 30 dias, a contar do trânsito em julgado e disso fizer prova nos autos”.

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Do acórdão interpôs recurso o arguido, formulando as seguintes conclusões:

«43. Vem o presente Recurso, interposto da douta sentença condenatória de fls., no qual se condenou o ora Recorrente na pena de 2 (dois) anos de prisão suspensa, pela prática de crime de burla qualificada.

44. Na determinação da pena concreta a aplicar ao Arguido importa ter em conta, nos termos do artigo 71 o do C.P., as necessidades de prevenção geral e especial que nos autos se imponham, bem como, as exigências da reprovação do crime, não olvidando que a pena tem de ser orientada em função da culpa concreta do agente e que deve ser proporcional a esta, em sentido pedagógico e ressocializador.

45. Na fixação da pena concreta ter-se-á de atender, naturalmente, á medida da actuação e do comportamento delituoso do Arguido, na medida em que é a medida da culpa de cada um, a baliza do juízo de censura que é susceptível de lhe ser formulado.

46. Nessa medida, invoca-se a desqualificação da burla qualificada para o crime de burla simples, que foi o que efectivamente ocorreu, no caso em debate.

47. E em assim o entendendo, venerandos julgadores, deverá ser extinto o procedimento criminal, que corre termos contra o Arguido/Recorrente, em virtude da desistência de todos os lesados/ofendidos.

48. Caso não entendam dessa forma, jamais poderá ser o arguido/recorrente condenado por um crime de burla qualificada. Só podendo ser condenado por um crime de burla simples.

49. Seguindo este raciocínio, caberá contra o Arguido/Recorrente, no máximo, uma pena de multa, a ressaltar que este não tem sequer antecedentes criminais.

Por todo o Exposto, forçosamente se conclui pela EXTINÇÃO do feito por desistência do procedimento criminal por parte dos ora ofendidos/lesados contra o então Recorrente/Arguido A... do crime de burla qualificada em que foi condenado, o que desde já se requer, com a máxima vénia, a doutos julgadores, por ser medida de inteira e salutar justiça. E, caso não seja acolhida a pretenção apresentada, forçosamente deverá ser desqualificado o crime de burla qualificada pelo crime de burla simples, em virtude de toda a fundamentação acima descrita e provada. E, assim entendendo Vossas Excelências, caberá no máximo uma pena de multa para o caso em discussão, diferentemente da pena de prisão suspensa que foi decretada pela douta sentença a quo em face do Recorrente, pelo que, desde já, se requer a este douto tribunal, e assim se fará a costumada e Sã, JUSTIÇA!».

*

Respondeu o Ministério Público na 1.ª instância ao recurso interposto, nos termos do art. 413.º, n.º 1, do CPP, pugnando pela sua improcedência, por a sentença recorrida, não merecer reparo, devendo em consequência ser integralmente confirmado.

Para tal sustenta que a conduta do arguido não se subsume ao crime de burla simples, mas sim qualificada, atenta a verificação da qualificativa da al. b), do n.º 2, do art. 218.º, do CP e como tal não admite desistência de queixa.

O tribunal apreciou devidamente a prova para dar como provados os factos designadamente quanto ao facto do arguido “fazer da burla modo de vida”.

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Nesta instância, os autos tiveram vista do Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, emitindo douto parecer também no sentido de se manter a sentença recorrida, por não haver razão para alterar a matéria de facto, mesmo através da existência dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, que invoca na motivação de recurso, apesar de não lhe fazer depois referência nas conclusões.

Suscita a questão, como nota prévia, de que não reflectindo as conclusões o resumo da motivação, deveria o arguido ser convidado, nos termos do art. 417.º, n.º 3, do CPP, a completar e esclarecer as mesmas.

Mesmo a admitir a invocação dos vícios alegados nas considerações 38, 30 e 40, da motivação de recurso, as mesmas nada têm a ver com os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP.

Acompanha a resposta do Ministério Público na 1.ª instância quando à subsunção dos factos à qualificativa do art. 218.º, n.º 2 al. b), do CPP.  

Conclui assim estarem prejudicadas as restantes questões, isto é, a convolação para o crime de burla simples e consequentemente a desistência de queixa.

Relativamente à medida da pena, a mesma é adequada, reflectindo as atenuantes provadas a favor do arguido, quer na fixação da medida concreta, quer quanto á suspensão da sua execução.

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Cumprido que foi o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, foram colhidos os vistos legais, pelo que cumpre decidir.

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Atentas as questões suscitadas na motivação de recurso, vejamos antes de mais a decisão da matéria de facto, constante da sentença, importando atentarmos nos factos provados, factos não provados e motivação.

I) Factos provados:

A)

«a. No dia 1 de Julho de 2010, a hora que não foi possível determinar, a ofendida B..., melhor id. nos autos, pretendendo alugar um quarto nesta cidade e comarca da Covilhã, efectuou, via internet, uma pesquisa através do link http://www.covilhacastelobranco.olx.pt, com vista a essa finalidade;

b. Depois de verificar a publicidade de um determinado quarto que estaria para alugar, que se localizaria mesmo em frente à Biblioteca da UBI, com o n.º de contacto telefónico (...) , a ofendida B... decidiu entrar em contacto com essa pessoa;

c. Assim, através do seu aparelho de telemóvel com o n.º (...) a ofendida efectuou um contacto telefónico para o aparelho de telemóvel com o n.º (...) , tendo sido atendida pelo ora arguido, que se identificou como sendo " A...";

d. Pelo arguido foi, então, afirmado que se encontrava na localidade de Rio de Mouro, pelo que teria de se deslocar à Covilhã para poder mostrar o referido quarto;

e. Mas, para tanto, a ofendida teria que adiantar uma determinada quantia, como espécie de um sinal;

f. Depois de outros contactos, sempre por via telefónica, o arguido lá foi solicitando à ofendida o pagamento da quantia de 50.00 € (cinquenta euros), por vale postal, para poder ver o referido quarto;

g. De tal modo ficou a ofendida convencida de que o arguido era o real proprietário do referido quarto, que logo decidiu remeter um vale postal daquela quantia para poder visualizar aquele quarto;

h. Assim, no dia 1 de Julho de 2010, cerca das 14 horas, a ofendida dirigiu-se ao balcão da Estação dos CTT nesta cidade da Covilhã, e ali preencheu, assinou e enviou para o ora arguido o vale postal que se encontra junto aos autos a fls. 32, no montante de 50.00 € (cinquenta euros), tendo ainda despendido a quantia de 6.75 € para suporte dos custos do envio;

i. Combinou de seguida encontrar-se com o arguido nesta cidade da Covilhã, para poder ver o quarto, mas o que é certo é que até hoje o arguido nunca mais apareceu, tendo deixado de receber qualquer contacto telefónico efectuado pela ofendida;

j. Assim a ofendida prejudicada, pelo menos, no montante de 50.00 € (cinquenta euros), já que o arguido nunca mais devolveu tal quantia;

k. Quantia essa que o arguido integrou no seu património, gastando-a em proveito próprio, não obstante saber que a mesma não lhe pertencia;

l. O que só conseguiu em virtude do artifício por si criado;

B)

m. No dia 1 de Novembro de 2010, durante o período da manhã, o ofendido D... , melhor id. nos autos, pretendendo alugar um quarto nesta cidade e comarca da Covilhã, efectuou, via internet, uma pesquisa através do link http://www.covilhacastelobranco.olx.pt. com vista a essa finalidade;

n. Depois de verificar a publicidade de um determinado quarto que estaria para alugar, que se localizaria a cerca de 10 minutos da UBI, com o n.º de contacto telefónico (...) - " G... ou A... ", conforme print que consta de fls. 85, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, o ofendido D... decidiu entrar em contacto com essa pessoa;

o. Assim, através do seu aparelho de telemóvel com o n.º (...) o ofendido efectuou um contacto telefónico para o aparelho de telemóvel com o n.º (...) , tendo sido atendida pelo ora arguido, que se identificou como sendo " G... ";

p. Pelo arguido foi, então, afirmado que se encontrava na cidade do Porto - quando afinal se encontrava na zona da Grande Lisboa - pelo que teria de se deslocar à Covilhã para poder mostrar o referido quarto;

q. Mas, para tanto, o ofendido teria que adiantar uma determinada quantia, como espécie de um sinal;

r. Depois de outros contactos, sempre por via telefónica, o arguido lá foi solicitando ao ofendido que teria de depositar a quantia de 50.00 € (cinquenta euros), na conta bancária com o NIB (...) , para poder ver o referido quarto;

s. De tal modo ficou o ofendido convencido de que o arguido era o real proprietário do referido quarto, que logo decidiu efectuar o depósito daquela quantia para poder visualizar aquele quarto;

t. Assim, no dia 1 de Outubro de 2010, numa caixa ATM, vulgo multibanco, sita nesta cidade da Covilhã, o ofendido D... procedeu à transferência da quantia de 50.00 € (cinquenta euros), em numerário, para a conta bancária n.º (...) , de que é único titular o ora arguido A...o;

u. Depois de ter efectuado a referida transferência o ofendido entrou novamente em contacto telefónico com o arguido, para poder marcar a visita ao quarto, mas este foi deixando de atender e passou mesmo a desligar o telefone;

v. Nunca mais o ofendido viu o pretenso quarto, nem nunca mais foi reparado da quantia de 50.00 € que despendeu;

w. Quantia essa que o arguido integrou no seu património, gastando-a em proveito próprio, não obstante saber que a mesma não lhe pertencia;

x. O que só conseguiu em virtude do artifício por si criado;

C)

y. No dia 2 de Novembro de 2010, cerca das 23 horas, o ofendido E..., melhor id. nos autos, pretendendo alugar um quarto nesta cidade e comarca da Covilhã, efectuou, via internet, uma pesquisa através do link http://www.covilha-castelobranco.olx.pt. com vista a essa finalidade;

z. Depois de verificar a publicidade de um determinado quarto que estaria para aluga, que se localizaria no Edifício " X... ", com o n.º de contacto telefónico (...) , o ofendido E... decidiu entrar em contacto com essa pessoa;

aa. Assim, através do seu aparelho de telemóvel com o n.º (...) o ofendido efectuou um contacto telefónico para o aparelho de telemóvel com o n.º (...) , tendo sido atendido pelo ora arguido, que se identificou como sendo "F...";

bb. Pelo arguido foi, então, afirmado que era Médico, que trabalhava no Hospital de S. João. no Porto, pelo que se encontrava na cidade do Porto - quando afinal se encontrava na zona da Grande Lisboa - pelo que teria de se deslocar à Covilhã para poder mostrar o referido quarto;

cc. Mas, para tanto, o ofendido teria que adiantar uma determinada quantia, como espécie de um sinal;

dd. Depois de outros contactos, sempre por via telefónica, o arguido lá foi solicitando ao ofendido que teria de depositar a quantia de 70.00 € (setenta euros), na conta bancária com o NIB (...) , para poder ver o referido quarto;

ee. De tal modo ficou o ofendido convencido de que o arguido era o real proprietário do referido quarto, que logo decidiu efectuar o depósito daquela quantia para poder visualizar aquele quarto;

ff. Assim, no dia 3 de Novembro de 2010, pelas 16 horas e 1 minuto, numa ATM, vulgo caixa multibanco, sita nesta cidade da Covilhã, o ofendido E... procedeu ao depósito da quantia de 70.00 € (setenta euros), em numerário, na conta bancária n.º (...) , de que é único titular o ora arguido A...o;

gg. No dia 5 de Novembro de 2010 o ofendido tentou entrar em contacto telefónico com o arguido, mas o que é certo é que não mais conseguiu falar com ele, nem ver o pretenso quarto;

hh. Pelo que ficou prejudicado na quantia de 70.00 € (setenta euros), já que o arguido nunca mais lhe devolveu tal quantia;

ii. Quantia essa que o arguido integrou no seu património, gastando-a em proveito próprio, não obstante saber que a mesma não lhe pertencia;

jj. O que só conseguiu em virtude do artifício por si criado;

D)

kk. No dia 18 de Novembro de 2010, pela manhã, a ofendida C... , melhor id. nos autos, pretendendo alugar um quarto nesta cidade e comarca da Covilhã, efectuou. via internet, uma pesquisa através do link http://www.covilha-castelobranco.olx.pt. com vista a essa finalidade;

11. Depois de verificar a publicidade de um determinado quarto que estaria para alugar, que se localizaria na Avenida da Universidade, com o n.º de contacto telefónico (...) , a ofendida C... decidiu entrar em contacto com essa pessoa;

mm. Assim, através do seu aparelho de telemóvel com o n.º (...) a ofendida efectuou um contacto telefónico para o aparelho de telemóvel com o n.º (...) , tendo sido atendida pelo ora arguido, que se identificou como sendo " A... ";

nn. Pelo arguido foi, então, afirmado que se encontrava na cidade do Porto, mais concretamente num Hospital - quando afinal se encontrava na zona da Grande Lisboa - pelo que teria de se deslocar à Covilhã para poder mostrar o referido quarto;

oo. Mas, para tanto, a ofendida teria que adiantar uma determinada quantia, como espécie de um sinal;

pp. Depois de outros contactos, sempre por via telefónica, o arguido lá foi solicitando à ofendida que teria de depositar a quantia de 50.00 € (cinquenta euros), na conta bancária com o NIB (...) , para poder ver o referido quarto;

qq. De tal modo ficou a ofendida convencida de que o arguido era o real proprietário do referido quarto, que logo decidiu efectuar o depósito daquela quantia para poder visualizar aquele quarto;

rr. Assim, no dia 18 de Novembro de 2010, pelas 10 horas e 50 minutos, no balcão da agência do "Santander Totta", nesta cidade da Covilhã, a ofendida C... procedeu ao depósito da quantia de 50.00 € (cinquenta euros), em numerário, na conta bancária n.º (...) , de que é único titular o ora arguido A...o;

ss. Entrou a ofendida novamente em contacto com o arguido, mas este acabou por lhe pedir um novo depósito, agora da quantia de 70.00 €, pois caso contrário não se deslocaria à Covilhã;

tt. Ainda nesse mesmo dia, ou na manhã do dia seguinte, a ofendida C... ainda se deslocou novamente à referida agência bancária, disposta a efectuar novo depósito no montante de 70.00 €;

uu. E só não o efectuou pelo facto de ter sido alertada por um dos funcionários daquela Instituição de Crédito para o facto de poder estar a ser enganada, facto esse totalmente alheio à vontade do arguido;

vv. O ofendido nunca mais conseguiu contactar com o arguido, nem ver o pretenso quarto;

ww. Pelo que ficou, por essa via, prejudicada pelo menos no montante de 50.00 € (cinquenta euros), já que o arguido nunca mais lhe devolveu tal montante;

xx. Quantia essa que o arguido integrou no seu património, gastando-a em proveito próprio. não obstante saber que a mesma não lhe pertencia;

yy. O que só conseguiu em virtude do artifício por si criado;

F)

zz. O arguido manteve na Internet, através do link http://www.covilha-castelobranco.olx.pt. vários anúncios quer para alugar quartos, quer para vender carros e outros produtos, pelo menos durante quase todo o ano de 2010;

aaa. Pelo que, para além dos quatro ofendidos identificados nos presentes autos, existem outros que igualmente foram lesados pelo ora arguido;

bbb. Dedicava-se, pois, o arguido com regularidade, e de forma reiterada, à prática de actos de idêntica natureza aos supra descritos, obtendo por essa via um rendimento regular com o qual provia à sua subsistência;

ccc. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente;

ddd. Bem sabendo que as suas condutas não lhe eram permitidas e que as mesmas eram punidas por lei.

G)

eee) o arguido não tem antecedentes criminais; (fls. 4011)

fff) A fls. 641 veio a ofendida C... declarar ter sido indemnizada dos prejuízos sofridos nada mais desejando do arguido, mais declarando desistir da queixa;

sss) A fls. 642 veio o ofendido D... declarar ter sido indemnizado dos prejuízos sofridos nada mais desejando do arguido, mais declarando desistir da queixa;

ph) A fls. 646 veio o ofendido E... declarar ter sido indemnizado dos prejuízos sofridos nada mais desejando do arguido, mais declarando desistir da queixa;

iii) Colhe-se do relatório social de fls. 700 que:

“...iniciou consumos de álcool ainda na fase da adolescência, consumos estes intensificados quando passou a viver sozinho. Refere que consumia bebidas alcoólicas, diariamente, à noite, regra geral sozinho ou acompanhado com indivíduos mais velhos que conhecia através de chats informáticos. Em termos económicos, a sua situação sempre foi salvaguardada pelo apoio do pai. Refere ter efectuado trabalhos pontuais na empresa telepiza e algumas experiências laborais, nas empresas do pai, hotelaria, revelando-se muito instável;

I) - Condições sociais e pessoais

Aquando da alegada prática dos factos, o arguido vivia sozinho numa casa arrendada. Inativo, encontrava-se num período de grande dependência alcoólica sendo a sua situação económica salvaguardada pelo apoio do pai. Este, refere ter feito várias tentativas no sentido de sensibilizar o filho para a necessidade de tratamento sem contudo este ter aderido.

A... passava alguns períodos na companhia do pai, com quem mantém forte vinculação afetiva e proximidade relacional, em Braga, a residir num hotel, propriedade do pai. Este, tentou por várias vezes atribuir-lhe algumas responsabilidades laborais, no intuito de o motivar para uma vida diferente mas a sua dependência alcoólica impedia essa responsabilização.

Os contactos com a mãe, eram esporádicos, principalmente a partir da altura em que a mãe teve um acidente vascular cerebral e que passou a estar mais dependente do companheiro com quem o arguido sempre revelou problemas de relacionamento. Desde 1 de Abril de 2014 que A... se encontra no Estabelecimento Prisional de Lisboa a cumprir uma medida de coação de prisão preventiva pela alegada prática de crime de burla informática.

Atualmente está em trânsito, no estabelecimento prisional da Covilhã, afim de ser presente em audiência de julgamento na Comarca de Castelo Branco. Refere que tem tido um comportamento adaptado às regras institucionais, mantendo um comportamento regular.

III - Impacto da situação jurídico-penal

Em termos jurídico-penais o arguido reconhece a ilicitude do ato manifestando uma atitude crítica e revelando arrependimento. Não reconhece a acusação nos moldes em que se encontra efetuada mas mostra-se muito apreensivo, com sinais de nervosismo e ansiedade, face ao resultado do presente processo não negando o envolvimento nalguns dos factos que lhe são imputados.

Mantém o apoio incondicional do pai que o visita e manifesta uma grande afetividade pelo arguido, estando disposto a colaborar na sua reinserção social.

Conclusão

Parece-nos estar perante um indivíduo que vivenciou a sua infância integrado numa família sócio cultural e económico elevado cujo divórcio dos pais e posterior ligação afetiva da mãe originou no arguido, uma atitude de revolta, com recurso a consumos exagerados de bebidas alcoólicas, que o desenraizou do trajecto normal de vida.

Revela possuir competências pessoais e sociais, o que aliado ao apoio familiar que dispõe irá, em caso de condenação, possibilitar que o arguido possa ter um percurso de vida normativo com manutenção das regras e valores sociais.

Face ao exposto e, caso o arguido venha a ser condenado, parece-nos que numa perspetiva de reinserção social e prevenção da reincidência, seria essencial uma intervenção especial na área da saúde, com incidência de tratamento de alcoologia, emprego e amigos/conhecidos.

II) Motivação:

Os factos dados como provados fundam-se na prova documental: a- Vale postal de fls. 32; Print obtido da Internet, constante de fIs. 12 a 21; 4) Cópia do talão de fls. 25; 5) Extracto bancário, a juntar; 6) talão multibanco de fIs. 84; 7) Print da Internet de fls. 85; 8) Cópia do talão de depósito de fls. 44; 9) Cópia do talão de depósito de fls. 62; conjugado com as declarações do arguido que de forma clara confessou os factos, não se valorando, todavia, as sua declarações no sentido de o não fazer de forma habitual, antes provada, pois tal afirmação é infirmada pelos conjuntos dos factos, não tendo o arguido feito qualquer prova de ter modo outro de vida conjugado com o teor da acusação de fls. 645 onde são imputados ao arguido factos idênticos aos destes autos e, ainda, pelo facto ter mantido, na Internet, através do link http://www.covilha-castelobranco.olx.pt, vários anúncios quer para alugar quartos, quer para vender carros e outros produtos, pelo menos durante quase todo o ano de 2010, colhendo-se, ainda, do relatório social que nunca teve hábitos e trabalho;

Mais se valoram os depoimentos dos ofendidos D... e C... que de forma clara, coerente e objectiva relataram os factos como dados como provados».

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II- O Direito

As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questão prévia:

O arguido nas conclusões do recurso apenas invoca que o crime de burla qualificada deve ser convolado para o crime de burla simples e consequentemente ser homologada a desistência formulada nos autos ou quando assim se não entender ser condena em pena de multa.

Porém, na motivação de recurso sem concretizar em que termos, alega que a sentença recorrida sofre dos vícios constantes do art. 410.º, n.º 2, do CPP, sem que lhe faça qualquer alusão na conclusões, como devia.

Informa o art. 412.º, n.º 1, do CPP que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. 

O Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, suscita a questão, como nota prévia, de que não reflectindo as conclusões o resumo da motivação, deveria o arguido ser convidado, nos termos do art. 417.º, n.º 3, do CPP, a completar e esclarecer as mesmas.

Parece-nos bem que não deverá haver lugar ao convite do arguido para completar ou aperfeiçoar as conclusões do recurso, pois tal convite apenas seria de ponderar se o recorrente impugnasse a matéria de facto com base em erro de julgamento, ao abrigo do art. 412, n.º 3, do CPP.

Ora, não foi manifestamente o caso.

O arguido limita-se a alegar no ponto 38 da motivação que houve erro notório na apreciação da prova pois que o nunca fez da burla o seu modo de vida.

Por outro lado, no ponto 39 da motivação alega que existe contradição entre a fundamentação e a prova produzida.

No ponto 40 da motivação alega que há insuficiência e até incongruência para a decisão da matéria de facto, uma vez que não ficou provado que o arguido fazia da burla o seu modo de vida.

Importa dizer em primeiro lugar que o recorrente faz confusão entre o enquadramento legal a dar aos factos com o vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP.

A contradição entre a fundamentação e a prova produzida (que se reportaria hipoteticamente ao erro de julgamento, mas que o recorrente não impugnou a matéria de facto por essa via), nada tem a ver com a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício da sentença previsto na al. b).

A insuficiência e até incongruência para a decisão da matéria de facto, nada tem a ver com insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício constante da al. a).

Mas mesmo que o recorrente não tenha vertido nas conclusões os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP invocados na motivação sempre estará na disponibilidade do tribunal de recurso conhecer dos mesmos, por serem de conhecimento oficioso, conforme os art. 410.º, n.º 1 e 431.º, n.º 1.

Nesta conformidade, o que está em causa, embora de forma pouco clara, na motivação e conclusões do recurso, é pois o enquadramento legal dos factos e a eficácia da desistência de queixa de três ofendidos, para o caso de convolação para o crime de burla simples, p. e p. pelo art. 217.º, n.º 1, do CP, sendo certo que são quatro no total.

Questões a decidir:

Apreciar se os factos provados consubstanciam a qualificativa do arguido “fazer da burla modo de vida” e relevância da desistência de queixa formulada nos autos por três dos quatro ofendidos.

Natureza e medida da pena.

Apreciando:

O arguido foi acusado pela prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelos art. 217.º e 218.º, n.º 1 e 2, a. b), do CP, pelo qual foi condenado na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período, com a condição de reparar a ofendida B..., nos montantes apropriados e respectivos juros, em 30 dias, a contar do trânsito em julgado e disso fizer prova nos autos.

O crime de burla simples passa a burla qualificada, nos termos do art. 218.º, n.º 2, al. b), do CP, passando a ser punível com pena de 2 a 8 anos se o agente fizer da burla modo de vida”.

Face à factualidade dada como assente vejamos se estão reunidos os elementos objectivos para este enquadramento legal.

O tribunal a quo deu como assentes, com relevância relativamente ao facto da burla ser um modo de vida do arguido, os seguintes factos:

1. No dia 1 de Julho de 2010, B... , pretendendo alugar um quarto na cidade da Covilhã, efectuou, via internet, uma pesquisa através do link http://www.covilhacastelobranco.olx.pt, com vista a essa finalidade, tendo remetido ao arguido a quantia de 50.00 € (cinquenta euros), por vale postal, para poder ver o referido quarto, tendo ainda despendido a quantia de 6.75 € para suporte dos custos do envio.

2. No dia 1 de Novembro de 2010, D... , pretendendo alugar um quarto na cidade da Covilhã, efectuou, via internet, uma pesquisa através do link http://www.covilhacastelobranco.olx.pt. com vista a essa finalidade, tendo depositado a quantia de 50.00 € (cinquenta euros), a favor do arguido, para poder ver o referido quarto;

3. No dia 2 de Novembro de 2010, E... , pretendendo alugar um quarto na cidade da Covilhã, efectuou, via internet, uma pesquisa através do link http://www.covilha-castelobranco.olx.pt. com vista a essa finalidade, tendo depositado no dia seguinte a quantia de 70.00 € (setenta euros), a favor do arguido, para poder ver o referido quarto;

4. No dia 18 de Novembro de 2010, C... , pretendendo alugar um quarto na cidade da Covilhã, efectuou, via internet, uma pesquisa através do link http://www.covilha-castelobranco.olx.pt. com vista a essa finalidade, tendo depositado a quantia de 50.00 € (cinquenta euros), a favor do arguido.

Após contacto com o arguido este exigiu-lhe um novo depósito, da quantia de 70.00 €, para o mês mo se deslocar à Covilhã a fim de mostrar o quarto, só não tendo feito este depósito, por ter sido alertada por um dos funcionários da agência bancária.

5. O arguido integrou no seu património, gastando-as em proveito próprio, as quantias depositadas, acima mencionadas, no total de 220€, não obstante saber que a mesma não lhe pertencia, o que só conseguiu em virtude do artifício por si criado.

6. O arguido manteve na Internet, através do link http://www.covilha-castelobranco.olx.pt. vários anúncios quer para alugar quartos, quer para vender carros e outros produtos, pelo menos durante quase todo o ano de 2010.

7. O arguido manteve activo o link http://www.covilha-castelobranco.olx.pt de 1/7/2010, praticamente até ao fim do ano, fazendo publicidade a arrendamento de quartos a estudantes ou trabalhadores, ludibriando assim desta forma os eventuais interessados a procederem ao depósito de quantias como espécie de sinal, conforme se documenta nos autos de fls. 18 a 24 e 85.

8. Por acusação de 2/10/2014, proferida nos autos de processo comum colectivo n.º 470/12.4PKLRS, da Comarca de Lisboa Norte, DIAP de Loures – 3. ª Secção, por factos ocorridos nos anos de 2012, 2013 e meados de 2014, são imputados ao arguido um crime de burla informática, um crime de burla qualificada, quarenta e cinco crimes de acesso ilegítimos agravado e dois crimes de acesso ilegítimos agravado, na forma tentada, conforme se refere na motivação da sentença recorrida e consta junta a estes autos de fls. 664 a 685, do qual constam 13 ofendidos.

9. Quanto ao modo de vida do arguido consta ainda da matéria de facto no ponto F) – bbb. o seguinte:

«Dedicava-se, pois, o arguido com regularidade, e de forma reiterada, à prática de actos de idêntica natureza aos supra descritos, obtendo por essa via um rendimento regular com o qual provia à sua subsistência».

*

Para justificar a desqualificação do crime de burla, alega o recorrente no ponto 8 da sua motivação de recurso que “não fazia da burla um modo de vida, ou seja, como única forma que o arguido obtinha os rendimentos necessários para a manutenção de sua vida”.

Por outro lado argumenta em abono da sua tese que no relatório de fls. 700 se afirma que em termos económicos a sua situação sempre foi salvaguardada pelo apoio do pai, que é empresário do ramo de hotelaria.

Por fim invoca que o total dos montantes com que o arguido se locupletou são apenas de 200,00€ e que os mesmos formularam desistência de queixa nos autos.

Carece totalmente de razão a argumentação do arguido, para a pretendida desqualificação do crime de burla.

Se não vejamos.

O legislador preocupou-se em censurar de forma especial a conduta daqueles que têm a propensão para a prática de crimes contra o património, isto é, aqueles que vivem à custa do alheio, conhecidos vulgarmente por “ladrões” ou “burlões” (Título I - artigos 202.º a 235.º), elevando a qualificativa agravante os que fazem de determinada o crime “modo de vida”.

Assim acontece ao considerar como qualificativa quem fizer do crime “modo de vida” relativamente aos crimes de furto (art. 204.º, n.º 1, al. h)), roubo (art. 210.º, n.º 2, al. b)) e burla (art. 218.º, n.º 2, al. b)).

Como primeira observação diremos que não se exige que o agente se dedique de forma exclusiva à prática de um daqueles tipos legais de crime, mas sim que a série de ilícitos contra o património que o agente pratique seja factor determinante para que se possa concluir que disso também faz modo de vida.

Informa o art. 218.º, n.º 2, al. b), do CP que a pena do crime de burla, cujos elementos inquestionavelmente estão verificados, prevista na forma simples no art. 217.º, n.º 1 (punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa), passa a ser de 2 a 8 anos se o agente fizer da burla modo de vida”.

Ora, importa recortar e entender no caso dos autos qual o verdadeiro alcance da expressão “modo de vida”.

Como referimos fazer da burla modo de vida não quer significar que faça da burla a única forma do arguido obter rendimentos para o seu sustento.

A lei não exige tanto e nem poderia exigir.

E não vai tão longe porque o que acentua a censurabilidade para qualificar o crime face à al. b), do n.º 2, do art. 218.º, é a prática reiterada e habitual de actos que consubstanciem o crime de burla.

Não faz qualquer sentido a referência do arguido ao valor para a desqualificação do crime para a burla simples do art. 217.º, do CP.

Tanto assim é, que o legislador quis punir de forma autónoma a habitualidade, isto é, a propensão do agente para a prática daquele tipo legal de crime, bastando que se verifique o pressuposto, independentemente do valor, para o qual se prevê, como qualificativa autónoma, se o valor for consideravelmente elevado, como aliás consta da al. a), do n.º 2, do art. 218.º.

Ao punir como burla qualificada o agente que “fizer da burla modo de vida” a lei quis punir de forma mais severa o “burlão profissional”, conforme terminologia utilizada no Anteprojecto do anterior art. 213.º, relativamente ao agente que praticou o crime de forma ocasional.

Para qualificar o crime não é necessário que se verifique a “profissionalidade” ou indo mais longe como o fez na argumentação o recorrente a “exclusividade” de ocupação para o agente se sustentar, bastando para tal a habitualidade da prática do crime para funcionar a qualificativa aqui em análise (BMJ n.º 287, pág. 43). 

Deve entender-se como fazendo da burla modo de vida não é suficiente que as infracções singulares tenham sido cometidas com o escopo de lucro ou com o fim de outro proveito económico, mas o complexo das infracções deve revelar um sistema de vida, como é o caso do ladrão ou do burlão que vivem sem trabalhar, dos proventos dos delitos (Cfr. Manzini, Tratado, Vol. III, pág. 223).

E neste sentido não exigem condenações transitadas em julgado para daí se concluir pela habitualidade, bastando que se prove a propensão do agente para a prática de actos que integrem o crime de burla.

Neste sentido, entende-se como fazendo “da burla modo de vida”, a entrega habitual à burla, que se basta com a pluri-reincidência, devendo ser tomadas em consideração, não só as anteriores condenações do agente constantes do seu registo criminal, mas também as denúncias ou participações policiais existentes, o conteúdo dos ficheiros policiais e todos os outros elementos testemunhais ou documentais. 

Segundo Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 2.ª Ed., UCE, em anotação ao art. 204.º, do CP, sobre o conceito de “modo de vida”, como qualificativa do crime de furto, aplicável ao crime de burla, conforme anotação 23, pág. 639:

«O modo de vida é a actividade com que o agente se sustenta. Não é necessário que se trate de uma ocupação exclusiva, nem contínua, podendo até ser intermitente ou esporádica, desde que ela contribua significativamente para o sustento do agente».

O facto de o agente ter meios próprios de subsistência ou meios de rendimentos lícitos, não exclui que possa fazer da burla modo de vida, considerando-se verificada a circunstância qualificativa do crime de burla, constante do art. 218.º, n.º 2, al. b), do CP.

Neste sentido se pronunciou o Ac. do STJ de 26/10/2011 – Proc. 1441/07.8JDLSB.L1, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça. 

Face ao que deixamos exposto a factualidade dada como provada integra o crime de burla, intervindo como qualificativa a circunstância do arguido fazer da burla modo de vida”, subsumindo-se assim a sua conduta ao crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º e 218.º, n.º 2, al. b), do CP.

Nesta conformidade, estamos perante crime de natureza pública.

Como tal, não admite por isso desistência de queixa, o que só aconteceria eventualmente se houvesse convolação para o crime de burla simples, de natureza semipúblico, o qual está dependente de queixa e consequentemente por isso o titular da mesma pode desistir, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1.ª instância, o que decorre da conjugação dos art. 113.º, n.º 1; 116.º, n.º 2; 217.º, n.º 3 e 218.º, do CPP e 51.º, n.º 1, do CPP.

São pois irrelevantes as desistências de queixa formuladas nos autos por três dos quatro ofendidos antes da publicação da sentença recorrida.

Ora, não admitindo desistência de queixa o crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º e 218.º, n.º 2, al. b), do CP, fica prejudicada a questão de apreciar a eficácia da desistência de queixa formulada nos autos apenas por três dos quatro ofendidos.

Por essa razão não há aplicação em alternativa de pena de prisão ou multa, o que só acontece no caso do crime de burla simples do art. 217.º, do CP.

Assim, a pena de multa, segundo a pretensão do recorrente, só pode resultar da pena de substituição, já que na moldura penal abstracta para as previsões ínsitas no n.º 2, do art. 218 a pena é de prisão de 2 a 8 anos de prisão

A substituição da pena de prisão, face ao disposto no art. 43.º, n.º 1, do CP, não pode ter lugar, uma vez que é superior a um ano e só será eventualmente admissível se houver justificação legal para a atenuação especial.

Apesar da reparação de três dos ofendidos a atenuação especial da pena não pode ocorrer por não estarem reunidos os requisitos do art. 72.º, n.º 1, do CP, atenta a circunstância do arguido se dedicar de forma reiterada à prática de crimes de burla, como decorre dos autos e ainda da acusação contra si pendente, cujos factos assumem ainda maior gravidade, na qual são imputados dezenas de crimes ao arguido.

Por outro lado, não se mostram reunidos os pressupostos do art. 206.º, n.º 2, aplicável ex vi art. 218.º, n.º 3, ambos do CP para de forma automática operar a atenuação especial, sendo que a situação do n.º 3, do primeiro preceito está afastada, pelo regime geral da atenuação especial do art. 72.º.

Vejamos então, se, face ao enquadramento penal dos factos a pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período, “com a condição de reparar a ofendida B..., nos montantes apropriados e respectivos juros, em 30 dias, a contar do trânsito em julgado e disso fizer prova nos autos” se é adequada ao caso dos autos.

A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º, n.º 1 e 2 do CP).

A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração) é a finalidade primeira que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.

Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal. - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, pág. 55 e seguintes e Ac. STJ 29.4.98 CJ, T. II, pág. 194.

Na determinação da medida da pena, nos termos do art. 71.º, n.º 1 e 2, do Cód. Penal, deve atender-se a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra o arguido, tendo em conta a culpa do agente e as exigências de prevenção.

Ao arguido foi aplicada a pena mínima, o que se justificou, devido ao valor total 220,00€ com que se locupletou à custa dos quatro ofendidos (50.00€, 50.00€, 50.00€ e 70,00€) e ao facto de ter reparado três dos ofendidos e se ter prontificado a reparar também B... , a única ofendida que falta reparar, só o não tendo feito por desconhecer o seu paradeiro, dado que se ausentou para França.

Apesar de tudo formulou requerimento nos autos disponibilizando-se a proceder ao depósito devido, não merecendo qualquer despacho por parte do senhor juiz.

São razões que justificam a aplicação da pena pelo mínimo legal, não se justificando, como atrás se referiu, a atenuação especial, por verificados os pressupostos legais.

Justifica-se a suspensão, que no caso da não aplicação da pena de multa, conforme pretendia o recorrente, não é posta em causa pelo arguido.

Porém, não nos parece, face às circunstâncias concretas dos autos, que o senhor juiz tenha feito uso da melhor fórmula suspendendo a execução da pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período:

«com a condição de reparar a ofendida B..., nos montantes apropriados e respectivos juros, em 30 dias, a contar do trânsito em julgado e disso fizer prova nos autos».

Informa o art. 51.º, do CP:

“1. A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:

a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou em parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea.

(…)».

Ao condicionar a suspensão da execução da pena o tribunal deve evitar fórmulas genéricas e imprecisas, pois deve especificar em concreto as condicionantes da suspensão, para não dar aso a diversas interpretações.

No caso concreto dos autos ficamos por saber o que o senhor juiz entende com a expressão por montantes apropriados.

A indemnização ao lesado, pelo crime de burla, pode comtemplar só a quantia com que foi “burlado” e respectivos juros, como podem ainda acrescer outros danos causados em consequência do crime.

Contudo, a condição imposta, como decorre daquele preceito, não tem que comtemplar necessariamente a indemnização integral, tendo o tribunal o poder jurisdicional de adequar a condição imposta conforme o caso concreto. 

Relativamente à condição imposta pelo senhor juiz imposta estipular em concreto os montantes apropriados, não podendo ficar ao critério da ofendida, sob pena de se gerar um conflito, por diferente entendimento do que é o montante apropriado.

Além disso, importa referir que, conforme consta dos autos, a ofendida B... ausentou-se para França, sem o arguido saber do seu paradeiro, não podendo o mesmo, ficar ao critério daquela quanto ao montante apropriado, para satisfazer a condição da indemnização e ficar impossibilitado de demonstrar a entrega no prazo fixado pelo tribunal.

Assim, entendemos ser justo e adequado condicionar a suspensão da execução da pena, ao pagamento à ofendida B... , no prazo de 30 dias, da quantia de 50.00 € (cinquenta euros) remetida por vale postal e ainda a quantia de 6.75 € despendida com suporte dos custos do envio, ou seja, o total de 56,75€ (cinquenta e seis euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida de juros legais a partir de 1 de Julho de 2010.

Na impossibilidade de contactar a ofendida naquele prazo, importa acautelar o cumprimento da condição imposta, pelo que deverá proceder o arguido ao depósito legal a favor daquela para aqueles efeitos.

*

III- Decisão:

Pelos fundamentos expostos, decidem os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e consequentemente se confirma a sentença recorrida, de condenação pelo crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º e 218.º, n.º 2, al. b), do CP, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período, na condição de pagar à ofendida B... , no prazo de 30 dias, quantia de 56,75€ (cinquenta e seis euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida de juros legais a partir de 1 de Julho de 2010, devendo proceder ao depósito legal a favor daquela ofendida para aqueles efeitos, na impossibilidade de o fazer pessoalmente.

Custas pelo arguido, cuja taxa de justiça se fixa em 5UCs. 

*

NB: Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP. 

Coimbra, 16 de junho de 2015

 (Inácio Monteiro - relator)

(Alice Santos - adjunta)