Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
359/13.0TTFIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: MEIOS DE VIGILÂNCIA À DISTÂNCIA
LICITUDE
Data do Acordão: 02/06/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 20º, NºS 1, 2 E 3 DO CÓDIGO DO TRABALHO.
Sumário: I – O artº 20º, nº 1 do Código do Trabalho proíbe a utilização de meios de vigilância à distância para controlar de forma dedicada e permanente o desempenho profissional do trabalhador.

II – A utilização desses meios de vigilância no local de trabalho é, no entanto, lícita se cumprir os requisitos de fim e publicidade previstos nos nºs 2 e 3 do mesmo artº 20º e for obtida a autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados.

III – Estando em causa uma das finalidades legalmente previstas no nº 2 desse artigo, concretamente a protecção e segurança de pessoas e bens, as actuações ilícitas do trabalhador lesivas de pessoas e bens podem ser licitamente verificadas, tanto quanto o podem ser idênticas condutas de terceiros, como uma consequência fortuita ou incidental da utilização dos meios de vigilância à distância, podendo os dados obtidos servir de meio de prova em procedimento disciplinar e no controlo jurisdicional da licitude da decisão disciplinar.

Decisão Texto Integral:            
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. O autor intentou contra a ré a presente acção de impugnação de despedimento, sob a forma de processo especial, apresentando formulário previsto no art. 98º-D do Código de Processo do Trabalho, onde declara opor-se ao despedimento promovido pela ré em 4/11/2013, pedindo que seja declarada a ilicitude do mesmo, com as legais consequências.

A ré veio apresentar articulado motivador do despedimento, pedindo a improcedência da acção e a declaração de que o despedimento foi lícito.

Na indicação dos meios de prova, veio requerer o seguinte:

«A notificação do Serviço de Inspecção do Jogos junto do Casino de (...) para juntar aos autos as gravações integrais das partidas dos dias 9, 10, 11, 17, 20, 25 e 28 de Julho de 2013, retidas no âmbito disciplinar do trabalhador, e o subsequente visionamento, para prova dos factos imputados ao trabalhador nos artºs 2º e 3º».

O autor apresentou contestação, pugnando pela procedência da acção e em consequência pela declaração da ilicitude do despedimento promovido pela empregadora, deduzindo reconvenção. No decurso da contestação, suscitou a ilicitude da utilização das gravações obtidas por videovigilância, já que o art. 20.º do Código do Trabalho veda essa utilização para controlar o desempenho profissional dos trabalhadores.

Após os articulados, veio a ser proferido despacho sobre o indicado requerimento da ré, no qual se disse:

«Oficie ao Serviço de Inspecção do Jogos junto do Casino de (...) para juntar aos autos, no prazo de dez dias, as gravações integrais das partidas dos dias indicados de Julho de 2013, conforme requerido pela ré, atenta a sua relevância para a boa decisão da causa, devendo esta facultar os meios para a sua visualização – cfr. Artigos 428.ººº e 432.º do CPC (Ac. R.L. de 16.11.2011; RE 9.11.2010 in www.dgsi.pt), cuja utilidade no respectivo visionamento será aferida em sede de audiência de julgamento

É deste despacho que o autor veio recorrer apresentando, nas correspondentes alegações, as seguintes conclusões:
«1º O sistema de CCTV instalado pela recorrida envolve a restrição do direito de reserva da vida privada dos trabalhadores.
2° Sendo ilícita a captação de imagens através de câmaras de vídeo desse sistema direccionadas permanentemente para os trabalhadores.
3° De tal modo que a sua actividade laboral, o posto de trabalho, se encontra em permanente e contínua observação.
4° Sendo, pois, nula, qualquer eventual prova obtida em tal circunstância.
5° Ademais, os dados obtidos pelo aludido sistema de CCTV, nos termos da autorização concedida pela CNPD, não podem ser transmitidos a terceiros e só podem ser utilizados nos termos da lei processual penal.
6° E, de acordo com o artigo 20° do CT os dados recolhidos nestes tratamentos não podem ser utilizados para analisar o desempenho do trabalhador.
7° O que inevitavelmente sempre acontece quando esteja em causa um processo disciplinar decorrente do exercício das suas funções.
8° As imagens em causa não podem, pois, ser visualizadas pelo Tribunal como meio de prova, pelo que deveriam não terem sido admitidas.
9° O douto despacho sob recurso violou os artigos 20º do CT, 80º do CC e 26º, nº 1 e 32º, nº 8 da CRP.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao recurso, substituindo-se o douto despacho recorrido por outro que indefira a junção das aludidas imagens.»

A ré contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
 Recebido o recurso, pronunciou-se o Exmº Procurador-Geral Adjunto, defendendo que o recurso não deve merecer procedência.


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II.  As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso, não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Decorre do exposto que a questão que importa dilucidar e resolver, o objecto do recurso, é a de saber se podem ser apresentadas, como meio de prova, as imagens obtidas por equipamento de videovigilância instalado pela ré nas suas instalações onde o autor prestava a sua actividade.

Os factos que se nos afiguram suficientes para decidir a questão resumem-se aos relatados acima, na descrição das partes do processo que deram origem ao recurso. Deve acrescentar-se que, como fundamento para a justa causa do despedimento, a ré imputou ao autor factos que se relacionam com a subtracção de fichas de jogo e sua apropriação ilegítima, durante o exercício da sua actividade laboral, no Casino explorado pela ré e em vários dias de Julho de 2013.

Vejamos, então:

Importa, em primeiro lugar, considerar o art. 20.º do Código do Trabalho de 2009, o qual, sob a epígrafe “Meios de vigilância à distância”, dispõe o seguinte:

1- O empregador não pode utilizar meios de vigilância a distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.

2- A utilização de equipamento referido no número anterior é lícita sempre que tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem.

3- Nos casos previstos no número anterior, o empregador informa o trabalhador sobre a existência e finalidade dos meios de vigilância utilizados, devendo nomeadamente afixar nos locais sujeitos os seguintes dizeres, consoante os casos: «Este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão» ou «Este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagem e som», seguido de símbolo identificativo.

O art. 21.º n.º 1 do mesmo Código sujeita à autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados a utilização pelo empregador de meios de vigilância à distância no local de trabalho.

No caso, verifica-se que a ré foi autorizada pela referida CNPD, pela autorização n.º 207/06 (v. fls. 207 e segs.), na recolha de dados por videovigilância, para protecção de pessoas e bens, na fiscalização de salas de jogos e acessos.

Assim, tendo em conta a norma transcrita e a autorização concedida, a ré podia utilizar meios de vigilância à distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, tendo por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens. Nenhuma dúvida se pode suscitar aqui, sendo certo que não é invocado no recurso ou nos autos que não tivesse sido dada informação do autor nos termos estabelecidos no n.º 3 do art. 20.º do Código do Trabalho.

A questão está apenas em saber se a utilização das imagens obtidas por esse equipamento pode ser feita como meio de prova no processo sancionatório que conduz à aplicação de medida disciplinar laboral, nomeadamente a do despedimento.

O disposto no art. 20.º do Código do Trabalho destina-se a proteger direitos de personalidade do trabalhador (está inclusivamente inserido numa subsecção do Código que tem como título o de “Direitos de personalidade”), em que se inclui o seu direito à reserva da vida privada. Na verdade, o trabalhador sujeito a permanente vigilância no seu desempenho por meios de controlo à distância, estaria sujeito a uma permanente intrusão na sua liberdade de comportamento pessoal, prática tanto mais invasiva e condicionadora quanto nunca ele saberia exactamente quem o estava ou estará a observar.

O art. 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, citado pelo apelante, assegura a todos o direito fundamental “à reserva da intimidade da vida privada e familiar” e igual protecção é garantida pelo artigo 80.º do Código Civil.

Existe, todavia, um ponto de equilíbrio ou de concordância prática de direitos que, na afirmação, garantia ou defesa dos direitos fundamentais, tem de ser sempre encontrada. Na verdade, se em causa estão direitos fundamentais de trabalhador, não menos certo é que o empregador tem direitos de natureza fundamental, também com expressão constitucional, como o direito à propriedade e à constituição de empresa (arts.61.º e 62.º da CRP) que podem colidir com aqueles, no campo da sua afirmação com a necessária consistência efectiva.

Como conciliar um direito à reserva ou não ingerência na esfera privada por meios de vigilância à distância com o direito de perseguição a quem viola ilicitamente o direito de propriedade (com conduta criminalmente punível), mediante a utilização como meio de prova das imagens obtidas fortuitamente por aqueles meios de vigilância?

A ponderação da espessura dos direitos e dos interesses na sua efectivação prática deve ser a medida da restrição de cada um ou da sua concordância, ideia que é juridicamente sustentada desde logo pelo art. 335.º do Código Civil (“Colisão de direitos”).

Se bem analisarmos, o art. 20.º n.º 1 do Código do Trabalho apenas proíbe o controlo dedicado e permanente das acções do trabalhador, mediante os meios de vigilância à distância. Mas o seu n.º 2 já permite (“é lícita”) a utilização desse equipamento quando o tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens.

Ou seja, a nosso ver, é a própria norma que sugere a concordância prática e proporcionada dos direitos em questão. Quando esteja em causa a protecção e segurança de pessoas e bens, já é possível, ainda que de forma fortuita ou incidental, verificar uma conduta lesiva e ilícita dos próprios trabalhadores. E verificada esta, não pode sustentadamente defender-se que as imagens ou os dados obtidos não podem servir como meio de prova num despedimento ou sancionamento disciplinar. Na verdade, se assim sucedesse estaria a maior parte das vezes enfraquecida ou anulada a finalidade da vigilância lícita e que é a de garantir a protecção e segurança de pessoas e bens – numa via a protecção e segurança seriam aparentemente concedidas, noutra via seriam real e contraditoriamente retiradas.

Citando David de Oliveira Festas (in “O direito à reserva da intimidade da vida privada do trabalhador no Código do Trabalho”, nota 121, ROA, Ano 64 - Vol. I / II - Nov. 2004, consultável em www.oa.pt), a “utilização da videovigilância como meio de prova é admissível nestes casos, antes de mais, porque encontrando-se preenchidos os pressupostos legais de utilização da videovigilância, esta configura um comportamento lícito, ainda que compressor do direito à reserva da intimidade da vida privada de quem seja objecto da vigilância”. E, “admitida a videovigilância no local de trabalho para a prossecução de finalidades legalmente previstas, tal utilização dispensa o consentimento dos trabalhadores desde que feita para a prossecução das finalidades legalmente previstas. Depois, estranho seria que a videovigilância, instalada e utilizada, por exemplo, para a protecção e segurança de pessoas e bens, não pudesse fundamentar uma actuação contra aqueles que, pelas funções que desempenham, mais poderão atentar contra as finalidades que a instalação visa defender. Assim, cumpre proteger pessoas e bens não apenas contra actos ilícitos de terceiros mas também de trabalhadores

A jurisprudência mais recente - e consistente, a nosso ver – vai-se desenvolvendo em torno da argumentação que sustentamos – caso dos Acórdãos da Relação de Évora de 09/11/2010, proc. n.º 292/09.0TTSTB.E1, da Relação de Lisboa de 16/11/2011, proc. n.º 17/10.7TTBRR.L1-4, de 06/06/2012, proc. n.º 18/09.8TTALM.L1-4, de 8/10/2014, proc. n.º 149/14.2TTCSC.L1-4, e da Relação do Porto de 04-02-2013, proc. n.º 229/11.6TTLMG.P1 (todos in www.dgsi.pt).

Assim, verificadas que sejam os requisitos de licitude da utilização de meios de vigilância à distância, no quadro identificado pelos n.ºs 2 e 3 do art. 20.º e n.º 1 do art. 21.º do Código do Trabalho, os dados obtidos por esses meios podem servir como meio de prova a considerar pelo tribunal a quo, pelo que o despacho recorrido que os admitiu implicitamente quando ordenou a sua junção aos autos por entidade terceira não merece censura.


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Sumário (a que alude o artigo 663.º n.º 7 do C.P.C.):

- O art. 20.º n.º 1 do Código do Trabalho proíbe a utilização de meios de vigilância à distância para controlar de forma dedicada e permanente o desempenho profissional do trabalhador;

- A utilização desses meios de vigilância no local de trabalho é, no entanto, lícita se cumprir os requisitos de fim e publicidade previstos nos n.ºs 2 e 3 do mesmo art. 20.º e for obtida a autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados,

- Estando em causa uma das finalidades legalmente previstas no n.º 2 desse artigo, concretamente a protecção e segurança de pessoas e bens, as actuações ilícitas do trabalhador lesivas de pessoas e bens podem ser licitamente verificadas, tanto quanto o podem ser idênticas condutas de terceiros, como uma consequência fortuita ou incidental da utilização dos meios de vigilância à distância, podendo os dados obtidos servir de meio de prova em procedimento disciplinar e no controlo jurisdicional da licitude da decisão disciplinar.


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III- DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, delibera-se julgar improcedente a apelação.

Custas no recurso pelo apelante.


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(Luís Azevedo Mendes – Relator)

 (Felizardo Paiva)

 (Jorge Loureiro)