Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
123/09.0 GCTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: PROVAS
EXAME MÉDICO
DIVERGÊNCIA DO JUIZ COM BASE EM ARGUMENTOS GERAIS E ABSTRATOS
Data do Acordão: 11/21/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TONDELA (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGO 163º CPP
Sumário: 1.- O relatório do exame ao sangue da vítima assume a força probatória conferida pelo art.º 163.º, do Código de Processo Penal e, como assim, presume-se subtraído à livre apreciação do julgador;
2.- Se o juiz discordar de tal juízo tem de fundamentar essa divergência em argumentos técnicos ou científicos equiparados aos do perito que procedeu à sua realização, e não com argumentos gerais ou vagos.
Decisão Texto Integral:
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


42

I. Relatório.
1.1. A..., arguido nos autos, foi submetido a julgamento, sob a aludida forma de processo comum singular, porquanto agente de factualidade que o instituiria enquanto autor material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal, e das contra-ordenações estradais, previstas e punidas pelos art.ºs 24.º, n.ºs 1 e 3; 25.º, n.ºs 1, al. f) e 2) e 27.º, n.º 1, estes todos do Código da Estrada.
Os Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E, formularam contra a Companhia de Seguros WW..., S.A., pedido de reembolso das despesas decorrentes da assistência prestada à vítima mortal, B..., no valor de € 1.685,92.
C...; D...; E..., todos já demais identificados, invocando a sua qualidade de filhos da mesma vítima mortal, formularam pedido de indemnização civil contra a Companhia de Seguros WW..., S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhes a quantia de € 110.000,00, para reparação dos danos não patrimoniais sobrevindos em virtude do sinistro ajuizado.
Realizado o contraditório, mostra-se proferida sentença decretando ao demais por ora irrelevante, a condenação:
- Do arguido, pela prática material e sob a forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo elencado art.º 137.º, n.º 1, em concurso aparente com as contra-ordenações estradais previstas e punidas pelos art.ºs 24.º, n.ºs 1 e 3; 25.º, n.ºs 1, al. f) e 2) e 27.º, n.º 1, estes todos do Código da Estrada, na pena principal de um ano e seis meses de prisão, bem como, ainda, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados na via pública, pelo período de oito meses.
- Da visada Companhia de Seguros WW..., S.A., a solver aos aludidos demandantes, para ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial por si reclamados, a quantia global de € 84.000,00, e, aos Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E, o montante de € 1.685,92.
1.2. Desavindos com o teor do veredicto emitido, recorrem arguido e demandada seguradora, ofertando, após motivação, a seguinte ordem de conclusões:
(o arguido)
1. Não existem nos autos provas de que o condutor/recorrente seguia desatento ao trânsito, conduzindo de forma desconforme com as mais elementares regras estradais, mostrando assim desrespeito e indiferença pela vida, saúde e integridade física dos outros utentes da via, e incapacidade para o exercício da condução.
2. O capacete deveria ter sistemas de retenção, e a condutora não devia usá-lo sem sistema de retenção, pois que ao fazê-lo potencia os danos, nomeadamente os que pode causar a si própria.
3. Não existem nos autos quaisquer provas que desvalorizem o relatório de fls. 122, devendo ser considerado como meio de prova para considerar que a vítima no momento do acidente conduzia com uma TAS de 1,99 gr/l.
4. O Tribunal deverá dar como provado que a vítima se encostou ao eixo da via e PAROU; sem respeitar a regra da prioridade, avançou, mudando de direcção à esquerda.
5. In casu, a velocidade a que o arguido seguia não foi a principal causa do acidente.
6. Inexiste nos autos qualquer prova de que o fígado da vítima seja incompatível com a TAS que apresentava no momento do acidente.
7. Decidindo na forma em que o fez, o Tribunal recorrido preteriu ao disposto pelos art.ºs 14.º; 15.º; 137.º; 292.º; 50.º e 71.º, do Código Penal, bem como 125.º; 128.º, n.º 1 e 150.º, estes do Código de Processo Penal.
8. Nos termos e para os efeitos do art.º 412.º, n.º 3, do último diploma citado, o recorrente considera como incorrectamente julgados os factos atinentes à sua alegada desatenção.
9. Concretas provas que impõem decisão diferente: a ausência de prova depois de analisada toda a prova gravada.
10. Provas que devem ser renovadas: as declarações da testemunha F....
Em aplicação do previsto no aludido art.º 412.º, mas seu n.º 4, não é feita referência específica à passagem das declarações por terem sido na sua globalidade, ou pela ausência de prova testemunhal.
Terminou pedindo a sua absolvição.
(a demandada seguradora)
1. Mostram-se incorrectamente julgados os pontos provados 6 e 7 da decisão recorrida, bem como, ainda, o facto não provado respeitante ao teor de álcool no sangue da infeliz B...à data e hora do acidente dos autos.
2. Com efeito, os mesmos contêm elementos probatórios conducentes a conclusão contrária da assim extraída pelo tribunal a quo.
3. Consta do elencado ponto 6 que o condutor do LT conduzia de forma desatenta ao exercício da condução e que não controlou o respectivo veículo, indo embater com a frente do lado direito do LT na parte lateral direita do ciclomotor.
4. Auditada a totalidade da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, e não há outra acerca deste ponto da matéria de facto, em parte alguma se ouve ou vislumbra que este circulasse de forma desatenta.
5. A fundamentação avançada pelo tribunal à resposta que deu a este concreto facto julgado provado não permite perceber o motivo pelo qual foi decidido neste sentido.
6. Esta resposta é contrariada quer pelas declarações do arguido, que se aduzem ao longo da motivação, quer pelos vestígios do acidente tais como os rastos de travagem marcados no pavimento com cerca de 38 metros de comprimento, efectuados pelo LT antes do embate que indiciam que o condutor do LT avistou a falecida B...a, pelo menos, mais de 40 metros, antes de esta iniciar a manobra de mudança de direcção à esquerda.
7. Consequentemente, deve dar-se como não provado tal item 6.
8. Refere-se no ponto 7 da matéria de facto provada que após o embate no ciclomotor, a vítima foi transportada sobre o capot do LT cerca de 33,20 metros, até à completa imobilização do veículo.
9. O depoimento da testemunha F..., a única que depôs em audiência de julgamento dizendo ter visto o embate dos autos, afirma que com o embate o corpo da vítima foi projectado, melhor, foi “cuspido”, e não circulou sobre o capot do veículo seguro.
10. Resultou da prova produzida em audiência de julgamento, que o embate do LT no ciclomotor resultou na projecção do corpo da infeliz vítima para a frente e não que o mesmo tenha percorrido cerca de 33 metros sobre o capot do veículo seguro, tal como a sentença ora posta em crise faz crer.
11. Assim, mal andou o tribunal recorrido ao considerar como provada a referida factualidade (unicamente sustentado no relatório técnico junto aos autos), quando o contrário era por demais evidente à luz deste depoimento e foi afirmado por quem assistiu ao acidente.
12. Seja, deve dar-se também como não provado que a infeliz vítima tivesse circulado 33,20 metros sobre o capot do LT.
13. Por outro lado, concluiu também o tribunal sindicado considerar como não provado que a condutora do ciclomotor circulava com uma TAS de 1,99 gr/l no momento do acidente, fundamentando a sua resposta (dada ao arrepio de prova pericial médica efectuada por colheita de sangue após o sinistro), entre outros, no facto de não lhe parecer verosímil que a vítima conseguisse tripular o ciclomotor, e, equilibrando-se, efectuar o sinal de mudança de direcção levantando o braço esquerdo.
14. Para tanto arrimou-se ainda nos depoimentos:
• De familiares e amigos da vítima, prestados em audiência de julgamento, que referiram não conhecerem hábitos de consumo de álcool à vítima.
• Do bombeiro que assistiu a vítima no momento do acidente, que referiu não se recordar de a mesma apresentar hálito a álcool.
15. A este propósito, invocou ainda a aparência do fígado da vítima, retratado demasiado superficialmente no relatório da sua autópsia, tecendo diversas considerações de cariz médico para sustentar uma dúvida: a de que não lhe foi possível formar uma convicção segura no sentido de que a vítima circulava com uma TAS de 1,99 gr/l...
16. Ora, a prova resultante do relatório de fls. 122 (relatório do exame ao sangue da vítima) não foi impugnada nos termos legais por quem quer que fosse. Quer a recolha de sangue efectuada à vítima, a sua catalogação, o caminho percorrido até exame laboratorial e o próprio exame estão devidamente documentados e constituem a forma legal de aquisição deste tipo de prova.
17. O resultado do exame consta também dos autos e está documentado nos termos legais.
18. Os próprios assistentes não impugnaram o exame assim efectuado e o seu resultado.
19. Afigura-se à recorrente que, no que concerne, o tribunal recorrido violou as regras de apreciação da prova, formando a sua convicção contra prova laboratorial por via da consideração de factos não alegados e em todo caso sem a virtualidade para tanto.
20. Os depoimentos testemunhais prestados na audiência de julgamento não têm o condão de abalar a prova resultante de exame laboratorial efectuado ao sangue da vítima e por mais que queiramos aceitar como bons os conhecimentos de medicina do Julgador, o certo é que, objectivamente, tais conhecimentos não podem ser valorizados para fundamentar a resposta dada a esta matéria de facto controvertida, tanto mais que tais conhecimentos não estão documentados nos autos, nem se trata de matéria científica ao alcance de qualquer pessoa.
21. A conclusão do tribunal a quo afigura-se inédita à recorrente, pois que não se recorda de quem quer que fosse que, acusado de conduzir com uma TAS superior a 1,2 gr/l, lograsse destruir a prova que resultou de exame laboratorial nesse sentido, sem a impugnar, e fosse absolvido da prática do respectivo crime...
22. É por demais evidente que, em face da prova produzida nos autos sob este concreto ponto da matéria de facto, o tribunal recorrido podia e devia ter decidido de forma diversa, nomeadamente julgando provado que a condutora do ciclomotor conduzia com uma TAS de 1,99 gr/l.
23. Da totalidade da prova produzida em audiência resultou assim provado que:
- Numa recta com o comprimento de cerca de 362 metros de extensão e depois de a tripulante do ciclomotor haver percorrido cerca de 144 metros decidiu efectuar uma mudança de direcção à esquerda.
- E que a vítima iniciou a manobra de mudança de direcção à esquerda, não se tendo logrado demonstrar se olhou ou não olhou para a sua frente a verificar se havia trânsito em sentido inverso.
- Que o arguido, ao aperceber-se da mesma, travou o veículo, deixando marcados no pavimento rastos de travagem com a extensão de 38 metros antes de embater no ciclomotor e de 36,30 metros depois de nele embater, num total de 68,30 metros.
24. Logo, no momento em que a condutora do ciclomotor iniciou a referida manobra, o veículo seguro na recorrente estava a circular na recta em que o acidente se deu e a pelo menos 38 metros de distância do ponto do embate.
25. A demandada não logrou provar que a vítima não olhou para a sua frente a verificar se circulava ou não outro veículo em sentido contrário antes de proceder à mencionada manobra.
26. Mas, se olhou, não calculou correctamente o tempo necessário para proceder à manobra em segurança, posto que o veículo seguro estava a, pelo menos, 38 metros de distância, a circular em sentido contrário ao dela; se não olhou, não podia prever se podia realizar com segurança a manobra em causa, apostando na sorte para concluir a dita manobra desse modo, sendo a responsável pelo sinistro dos autos.
27. Em qualquer destas hipóteses a presença do álcool no sangue da vítima foi determinante para a decisão (errada) que tomou, já que é do conhecimento público o efeito do álcool no sangue em matéria de condução de veículos: um dos mais evidentes, é a dificuldade da percepção e de julgamento das condições de circulação dos outros veículos.
28. A vítima devia ter acautelado a sua segurança, não procedendo à manobra de mudança de direcção à esquerda senão depois da passagem do LT, que estava necessariamente eminente.
29. Para além da velocidade praticada pelo LT, que não se concede tenha sido o facto causal deste acidente, nada se pode apontar à conduta do tripulante do veículo seguro, muito menos que este circulava desatento ao exercício da condução, tanto que iniciou a travagem tendente a evitar a colisão a cerca de 40 metros de distância do ponto do embate.
30. Do mesmo modo, a projecção do corpo da vítima após o embate vem confirmar que o acidente não se deu conforme pretendem as conclusões do relatório técnico que o tribunal seguiu demasiado de perto na convicção que formou.
31. A manobra causal do acidente foi claramente a mudança de direcção à esquerda efectuada pela condutora do ciclomotor, que em virtude do seu estado etilizado, não foi devidamente equacionada.
32. A condutora do ciclomotor jamais podia distinguir da velocidade praticada pelo LT da autorizada por lei para aquele local, mesmo que estivesse sóbria.
33. E não sendo a velocidade a causa do acidente, mas sim a manobra de mudança de direcção à esquerda encetada pela vítima, forçoso é concluir pela total responsabilidade desta na eclosão do sinistro.
34. Se assim não for, apenas se aceita uma divisão de responsabilidades na ordem dos 85% /15% desfavorável para a vítima B..., tendo em atenção o agravamento do resultado decorrente do excesso de velocidade praticado pelo condutor do veículo seguro.
35. Não se aceita a afirmação de que se o condutor do veículo seguro circulasse a 80 km teria evitado o acidente, pois atentos os rastos de travagem efectuados pelo veículo seguro, os mesmos indiciam o contrário, se forem lidos com o auxílio de qualquer tabela de medições de distâncias de travagem e de paragem de viaturas automóveis.
36. Em todo o caso, não se aceita, atentas as circunstâncias concretas em que o acidente se deu, que a vítima, mesmo que sóbria, tivesse a capacidade de ajuizar qual a velocidade praticada pelo veículo seguro, em aproximação, e decidir que podia encetar a pretendida manobra com a justificação de que, vindo esta à velocidade 80 km/h, o veículo seguro pararia sem lhe embater,
37. A justificação de que, se o condutor do veículo seguro circulasse à velocidade de 80 km/h evitaria o acidente por poder travar e conseguir imobilizar-se no local onde se deu, pressupõe que este travaria atempadamente e “a fundo”, o que no caso dos autos se traduz na afirmação de que a regra de prioridade de que gozava o condutor do veículo seguro deve ser postergada.
38. A responsabilidade pelo acidente dos autos ficou a dever-se em exclusivo, à conduta da infeliz vítima, pelo que a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que a absolva do pedido ou a condene na proporção de 15% dos danos, por circular o LT a velocidade superior à legalmente permitida para o local e com isso ter agravado os danos sofridos pela vítima.
39. Decidindo na forma em que o fez, a sentença recorrida violou o disposto nos art.ºs 483.º e ss., do Código Civil, bem como 35.º, do Código da Estrada.
Terminou pedindo se decida em conformidade.
1.3. Observado o estatuído no art.º 411.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, o Ministério Público respondeu ao recurso do arguido, sufragando o seu improvimento.
1.4. Proferido despacho admitindo ambos os recursos apresentados, cumpridas as formalidades devidas, foram os autos remetidos a esta instância.
1.5. Aqui, no momento processual a que alude o art.º 416.º, do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto suscitou da questão prévia da intempestividade do recurso do arguido mas, concedendo a sua consideração como tempestiva, emitiu parecer conducente a idêntico improvimento.
Acatado o art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nenhuma resposta foi junta.
Colhidas informações junto do Tribunal a quo, no despacho a que se reporta o art.º 417.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, consignou-se que nenhuma circunstância impunha a apreciação sumária dos recursos, mormente da suscitada intempestividade do recurso interposto pelo arguido, solução cuja fundamentação se relegou, porém, para o momento presente, atentas razões de economia e de celeridade processuais, ou obstava ao seu conhecimento de meritis, donde que a deverem prosseguir seus termos, com a recolha de vistos, o que se verificou, bem como submissão à presente conferência.
Urge agora ponderar e decidir.
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II. Fundamentação de facto.
2.1. A sentença recorrida teve como provado que:
1. No dia … de 2009, pelas 13:55 horas, o arguido A…, circulava na …., conduzindo o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, com a matrícula ... (Renault Clio 1.9D).
2. No mesmo dia, hora e local B..., conduzia o ciclomotor com a matrícula … , no sentido …., local onde exercia a sua actividade laboral.
3. B..., momentos antes de chegar ao entroncamento que lhe permitia virar à esquerda e aceder ao referido aviário, atento o sentido de marcha, tomou o eixo da via e com o braço esquerdo perpendicular ao solo, assinalou a mudança de direcção para a esquerda, dando passagem a dois veículos que circulavam à sua retaguarda.
4. Ao chegar ao ponto de viragem, a vítima parou por breves segundos e de seguida, deu inicio à manobra de mudança de direcção para a esquerda.
5. O arguido A... que circulava a uma velocidade superior a 110,67 Km/h, ao aperceber-se do ciclomotor na sua faixa de rodagem, travou o veículo, deixando marcados no asfalto de 64,30 metros de travagem até à completa imobilização do LT, a que correspondem 38 metros até embater naquele e 36,30 metros de travagem depois do embate.
6. O arguido A... porque conduzia de forma desatenta ao exercício da condução, não controlou o veículo em causa, indo embater com a frente do lado direito do LT, na parte lateral direita do ciclomotor.
7. A vítima após o embate no ciclomotor, embateu no capot, pára-brisas e tejadilho do veículo LT, tendo sido transportada no mesmo cerca de 33,20 metros, até à completa imobilização do veículo e projectada a 7,8 metros, depois da paragem, para a frente do veículo, tendo ficado caída na berma, no sentido Tondela/Vilar de Besteiros, com os pés para a valeta e cabeça para a via.
8. O veículo LT ficou imobilizado na berma no sentido Tondela/Vilar de Besteiros, com as rodas do lado esquerdo a ocupar parcialmente a via no mesmo sentido, numa posição paralela à via.
9. O ciclomotor foi projectado a 46,4 metros, do local do embate, tendo ficado imobilizado na berma no sentido Tondela/Vilar de Besteiros, numa posição oblíqua em relação à faixa de rodagem, a cerca de 22,00 metros do veículo LT.
10. Em consequência do embate provocado pelo veículo automóvel conduzido pelo arguido A..., B...sofreu lesões traumáticas cervicais e torácicas, que foram causa directa e necessária da sua morte, lesões que se encontram descritas no relatório de autópsia de fls. 294 a 300, que se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos.
11. O local onde se verificou o embate configura uma recta com cerca de 362 metros de extensão, sendo que o veículo LT até ao local do embate percorreu cerca de 218,6 metros.
12. No sentido do veículo LT a faixa de rodagem possui uma ligeira inclinação descendente estimada em 1%, com uma largura de 7,10 metros, entre as linhas guias delimitadoras das bermas.
13. No sentido do ciclomotor, antes do local de embate, a via apresenta uma curva “aberta” para a esquerda.
14. A faixa da faixa de rodagem no local onde ocorreu o embate, encontra-se sinalizada com duas linhas guias (marca M19), que delimitam a faixa de rodagem, de marca com linha contínua (marca M1), que separa os dois sentidos de trânsito, sendo que no local do entroncamento e entrada para o aviário da “Z...”, possui linha descontínua (marca M2), para permitir efectuar a manobra de mudança de direcção.
15. Em ambos os sentidos, a via é marginada por bermas pavimentadas, seguidas de valetas.
16. O tempo estava bom, assim como a visibilidade, e o piso encontrava-se seco e limpo.
17. No local onde se verificou o embate a velocidade máxima permitida para o veículo automóvel ligeiro de mercadorias LT, era de 80 Km/h, apesar de a velocidade nos entroncamentos ser especialmente moderada.
18. O arguido foi submetido ao teste de despistagem de álcool no sangue através do aparelho SD 2, tendo acusado uma TAS de 0,00 g/l.
19. A vítima B...não possuía licença de condução ou qualquer outro título que a habilitasse a conduzir o veículo em causa.
20. A vítima conduzia o ciclomotor usando capacete.
21. O veículo automóvel conduzido pelo arguido, após o embate, ficou com os faróis dianteiros e pára-brisas partido, com o capot e tejadilho danificados.
22. O arguido A..., ao actuar da forma descrita, não tomou as precauções a que estava obrigado, conduzindo o veículo em excesso de velocidade e de forma desatenta e sem o cuidado necessário ao exercício da condução, não adequando a sua condução às exigências de segurança que se impunham, e de que era capaz, conduzindo de forma desconforme com as mais elementares regras estradais, mostrando, assim, desrespeito e indiferença pela vida, saúde e integridade física dos outros utentes da via e incapacidade para o exercício da condução.
23. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por Lei Penal.
24. O arguido não possui antecedentes criminais.
25. O arguido aufere um salário de € 520,00, vive em casa dos pais, contribuindo com géneros alimentares e trabalho doméstico.
26. Não possui filhos ou encargos bancários.
27. O capacete que B...envergava não possuía sistema de retenção.
28. B...não era possuidora de licença que a habilitasse a conduzir qualquer tipo de veículo na via pública.
Do pedido de indemnização civil e pedido de reembolso das despesas médicas.
29. Após o sinistro B...foi transportada para o Hospital de São Teotónio em Viseu e seguidamente transferida para os Hospitais da Universidade de Coimbra.
30. Os encargos a assistência prestada, pelos Hospitais da Universidade de Coimbra a B..., importam na quantia de € 1.685,92.
31. Os requerentes C...; D... e E... são filhos da vítima B....
32. B... à data do óbito tinha 47 anos.
33. Após o acidente foi transportada para o Hospital S. Teotónio de Viseu, onde deu entrada pelas 15:33 horas do dia 19.03.2009, tendo sido posteriormente transportada para os Hospitais da Universidade de Coimbra no dia 20 de Março de 2009, onde deu entrada pela 14:50 horas.
34. Durante todo este tempo B...encontrou-se sempre em estado consciente e fortemente medicada para as fortes dores das quais se queixava para os seus filhos e amigos.
35. Entre o dia do acidente 19 de Março e o dia da sua morte [22 de Março de 2009] B...teve conhecimento directo pelos médicos que a assistiram de que não mais voltaria a andar em consequência das fracturas que sofreu e do traumatismo torácico vertebro medular.
36. Durante as visitas que sua filha fez a sua mãe, quer no Hospital de Viseu, quer nos Hospitais de Coimbra, sempre esta se queixou de fortes dores, e de grande angústia, dizendo, com muita frequência e em desespero, “desta não me safo; não vou cá ficar!”
37. Para além das dores físicas, B...sofreu forte abalo psicológico com consciência de que ia morrer.
38. Demonstrou grande sofrimento e angústia por saber que estava a partir e que os seus filhos muito de si precisavam.
39. B...era uma pessoa alegre, bem disposta com energia pela vida, e com gosto de viver.
40. Tinha uma grande capacidade de trabalho, trabalhando na empresa e também no amanho das terras para o sustento da família.
41. Os requerentes e sua mãe eram pessoas bastante ligadas, conversando de forma diária, com quem os demandantes desabafam os seus problemas e confidências, tanto mais que a requerente E... era ainda menor data da morte de sua mãe.
42. B...era uma mãe muito dedicada aos seus filhos.
43. O ex-marido tinha abandonado o lar desde o ano de 2004, e era aquela quem provinha pelo sustento dos filhos, em particular de sua filha E..., que nenhuns alimentos recebia do pai.
44. A filha C… encontrava-se a estudar no Instituto Politécnico de Viseu, e estava com a sua mãe todos os fins-de-semana e que muito a ajudava.
45. O filho D...apesar de emigrado, tinha uma forte ligação afectiva com a sua mãe.
46. Os demandantes/requerentes sofreram um choque e forte desgosto ao ver a sua mãe perder a vida na pujança da idade.
47. Facto que jamais irão esquecer, sofrendo e sentindo até hoje a morte de sua mãe.
48. A...havia transferido, por contrato de seguro, a responsabilidade civil emergente dos danos causados pela circulação do veículo ..., ligeiro de mercadorias, para a Companhia de Seguros WW...,.
49. B...foi assistida nos Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E. tendo-lhe sido realizados os tratamentos descritos a fls. 357 que importaram no valor de € 1.685,92.
2.2. Por seu turno, a mesma sentença teve como factos não provados que:
O entroncamento onde ocorreu o embate é de visibilidade reduzida, uma vez que o condutor não consegue avistar a faixa de rodagem numa extensão e largura de pelo menos 50 metros.
B...à data do acidente fosse detentora de uma TAS de 1,99 gr/lts.
Tenha iniciado a manobra de virar à esquerda, sem olhar para a sua frente e para a sua retaguarda para verificar se podia encetar tal manobra sem causar qualquer perigo ou embaraço para o trânsito que circulava na mesma EM, em qualquer dos apontados sentidos de marcha.
2.3. Por fim a motivação probatória da sentença recorrida tem o teor seguinte:
Para julgar como provados os factos que antecedem o tribunal formou a sua convicção na análise crítica do conjunto dos meios de prova, conjugadas com as regras da experiência comum bem como o conhecimento que o tribunal tem do local onde ocorreu o acidente, a saber:
No depoimento do arguido que admitiu a condução do veículo, o sentido de marcha que levava, o traçado da estrada, que admitiu se encontrar a circular com velocidade, não especificando a mesma, e que admitiu que, no momento anterior ao acidente não havia qualquer veículo à sua frente encontrando-se a recta, em que circulava, desimpedida de veículos no seu sentido de trânsito.
Tal depoimento, nesta parte é coincidente com as conclusões extraídas pelo investigador …, militar da GNR, que recolheu dados não impugnados e observou elementos directamente no local e nos veículos, conforme consta do relatório de fls. 244 a 270, e que em sede de julgamento explicitou de forma clara, cabal e com demonstração dos cálculos que o mesmo efectuou.
Quanto à dinâmica do embate nos documentos de fls. 47 a 277, no relatório fotográfico de fls. 162 a 170, 172 a 181 e 206 a 242, no relatório Técnico de acidente de viação de fls. 244 a 270, e documentos de fls. 6, 280 a 283.
Tais elementos foram corroborados com o depoimento da testemunha … , empregada de aviário, que se encontrava no local de trabalho, que visualizou B...em velocidade baixa antes do embate e depois, apenas ouviu o chiar dos travões e se deslocou, de imediato ao local, tendo visto a posição dos veículos.
No depoimento de F..., condutora do 3.º veículo que circulava no mesmo sentido de B...e que descreveu a forma como esta sinalizou a manobra, se aproximou do eixo da via e iniciou a viragem à esquerda atendendo ao sentido de marcha que ambas imprimiam aos veículos.
Tais depoimentos foram espontâneos e credíveis, relatando factos que presenciaram, logrando, dessa forma convencer o tribunal sobre a autenticidade dos mesmos.
Tais depoimentos são também coincidentes com o relatório e conclusões de … , militar da GNR, com as explicitações que deu em sede de audiência.
Tal depoimento foi espontâneo e incidiu sobre conhecimentos técnicos que o mesmo possui, critérios científicos (cálculos de física) que o tribunal também conhece, sendo que as questões relativas à velocidade, quantidade de movimento, inércias, capacidade de travagem, projecção de corpos e imobilização de veículos, é uma matéria que há alguns anos vem sendo estudada ao detalhe com o objectivo de reduzir a sinistralidade, razão pela qual a velocidade máxima instantânea permitida em localidades desceu de 60 km/h para 50 km/h, uma vez que o espaço médio necessário para imobilizar um veículo automóvel reduz-se em quase metade, apesar de a diminuição ser apenas de 10 km/h.
Tal relatório é ancorado na participação de acidente de fls. 4/5, elaborada por Alcino Coimbra Carvalho, que a confirmou em sede de audiência, de onde resultam as dimensões da via, rasto de travagem, posição dos veículos após o acidente, sinalização existente na estrada, e que foram directamente observados pelo agente que o elaborou, sendo que tais medições nunca foram colocadas em crise pelos sujeitos processuais e o tribunal não tem quaisquer elementos para duvidar da autenticidade das mesmas.
Quanto à velocidade a que seguia o LT, no cálculo realizado pela testemunha … , constantes dos autos, sendo que o relatório em causa (fls. 244 e seguintes) apenas teve em conta os elementos de desaceleração provocado pelo atrito dos pneumáticos no asfalto, mas haveria que ter em conta a desaceleração decorrente do impacto no ciclomotor e no corpo da vítima, que além de deformar o veículo em elementos metálicos com grande residência como a barra frontal (fls. 219 a 223) provocam perda de energia cinética ao mesmo.
Assim no intervalo de 97,53 km/h e 110,67 km/h, o tribunal entende que o veículo seguia a 110,67 km/h. Como é consabido os vulgarmente denominados velocímetros dos veículos automóveis contêm erros de medição da velocidade, apresentando velocidades maiores do que as reais, pelos que não poderia o condutor deixar de ter em conta que circulava a uma velocidade superior à permitida para qualquer tipo de veículo.
Quanto à inexistência de carta de condução de B...na informação do IMTT (fls. 10) e na informação CM de Felgueiras (fls. 12/13).
Quanto às lesões que B...apresentava no relatório pericial de autópsia de fls. 294 a 300 de onde resultam as mesmas, sendo que são compatíveis as lesões com o estado em que se encontrava o veículo automóvel após o embate, os estragos que apresentava o capot, pára-brisas e tejadilho amassados, resultantes do impacto com um corpo humano, por isso as lesões ao nível do tórax, cervical e pernas, sendo que o capacete cumpriu a função, não possuindo B...lesões cranianas, apesar de o mesmo não ter sistema de retenção.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido no CRC do mesmo constante dos autos.
Quanto às condições económicas e sociais, nas declarações do arguido que, à falta de outros meios de prova terão de ser valoradas positivamente.
Quanto às relações de parentesco de B...com os demandantes, as certidões de nascimento constantes dos autos.
Quanto às relações afectivas entre B...e os filhos, no depoimento das testemunhas … , pessoa que residia na mesma casa com B...tendo descrito a vida que a mesma levava, as relações com os filhos, as preocupações de B..., a partilha de vida e afectos com os filhos.
Tal depoimento foi corroborado com o depoimento de … , namorado da demandante C..., filha da vítima, que relatou as relações de B...com os filhos, como foi acolhido em casa da mesma, sendo que …, mãe da companheira do demandante, relatou o convívio existente na família de B..., o espírito de entre ajuda dos seus membros, os contactos telefónicos e a dor que a família no seu conjunto teve com o óbito da mesma.
Tais depoimentos, que foram espontâneos e credíveis, compatíveis com uma situação de ruptura conjugal em que há uma maior proximidade emocional dos filhos com a mãe, decorre da experiência comum.
Destes depoimentos resultou que B..., apesar das dificuldades da vida era uma pessoa alegre e que com o seu esforço exclusivo criou os filhos e tentava aproveitar as coisas positivas da vida.
Quanto ao sofrimento de B..., nos relatórios clínicos em que são relatados os estados de ansiedade da mesma, manifestados nas reacções que tem, ante o seu estado de saúde, e que é descrito, ainda que de forma indirecta pela testemunha …, sendo compatíveis com a consciência do seu estado clínico e o receio de deixar os filhos com a idade que têm e em especial a demandante E....
Quanto à dor da perda sentida pelos demandantes, na experiência comum, sendo que no quadro das relações próximas como eram as existentes entre os filhos e B...a perda é mais sentida, com falta de amparo e de referências positivas, sendo que todas as testemunhas arroladas pelas demandantes cíveis referiram a alegria que B...colocava na sua forma de estar e viver, bem como nas boas relações existentes entre ela e os filhos, bem como com a ex-sogra.
Quanto ao contrato de seguro pela apólice junta aos autos.
Quanto à não prova da TAS, apesar do relatório de fls. 122, o valor que o mesmo apresenta causa uma grande estranheza ao tribunal.
Na verdade, é um valor muito elevado, para quem conduzia um veículo de duas rodas, que realiza a manobra como é descrita pela testemunha, F..., ficando apenas com uma mão no volante, e ainda com a descrição do estado do fígado de B....
Com efeito, do relatório de autópsia resulta que o estado do fígado da vítima é aparentemente normal para uma pessoa que não consome bebidas alcoólicas.
Ora, para ter uma coordenação de movimentos e equilíbrio como são descritos pela testemunha F..., ou a vítima era uma bebedora/abusadora de bebidas alcoólicas ou com tal TAS ocasional não conseguia realizar a manobra.
Acresce que a testemunha … , com quem B...trabalhava diariamente, refere que esta não consumia bebidas alcoólicas no trabalho, nem a tinham encontrado alcoolizada, com sinais ou ingerido bebidas alcoólicas no local de trabalho. Como já referimos para quem apresenta uma taxa de 1,99 gr/l, colhido quase três horas após o acidente, teria que ser um bebedor habitual para coordenar os movimentos como efectivamente os coordenou.
A testemunha … , apesar de sogra de B..., refere que a mesma bebia apenas vinho e às refeições, sendo que em quantidades moderadas e por vezes não ingeria quaisquer quantidades de bebidas alcoólicas.
Pelo que o tribunal, apesar do valor probatório de tal relatório, não pode concluir que a vítima à data do sinistro tinha uma TAS daquele teor, ficando na dúvida o que teria acontecido para ter aquele valor, quando colhida a mostra sanguínea quase três horas após o sinistro.
Tal dúvida além das razões supra expostas, tem também por base o depoimento da testemunha … , enfermeiro que assistiu no local B..., não conseguiu explicar o ocorrido, nem relatou qualquer indício (odor ou hálito a álcool), e a testemunha …, solteiro, técnico de ambulância de emergência de Tondela, que no momento do acidente circulava pela via em causa, e de imediato assistiu a vítima, questionado sobre o hálito desta o mesmo referiu nada se recordar.
Quanto ao depoimento de … o mesmo, apesar de perito averiguador da companhia de seguros, nada de concreto veio transmitir ao tribunal, pois não presenciou factos apenas pode retirar ilações dos elementos supra referidos recolhidos pela GNR, pelo que o seu depoimento não foi valorado pelo tribunal, sendo que as conclusões que retira não têm qualquer suporte científico.
Ora, qualquer pessoa com tal taxa de alcoolemia constante do auto, não poderia deixar de exalar um odor característico do seu estado.
Quanto aos restantes factos por se encontrarem em oposição com os factos provados.
*
III. Fundamentação de Direito.
3.1. Questão prévia.
Como supra expendido, cabe fundamentar da tempestividade do recurso do arguido. Elementos a reter, para o efeito, são os seguintes:
Proferida a sentença que é fls. 481 e segs., foi a mesma notificada a tal sujeito processual e depositada na secretaria do tribunal a quo, no dia 19 de Janeiro de 2011 [fls. 513 e 514].
Sentença entretanto corrigida, por padecer de erro material, através de despacho judicial prolatado no dia 23 de Janeiro de 2012 [fls. 515], notificado ao arguido, na pessoa do seu mandatário, igualmente nessa mesma data [fls. 517].
Mandatário e arguido assim presuntivamente notificados no dia 27 de Janeiro de 2012 [art.º 113.º, n.º 2, do Código de Processo Penal].
Na consideração de que o prazo para interposição de recurso seria o mais longo, ou seja de 30 dias, ex vi do art.º 411.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, temos que tal prazo se esgotaria no dia 25 de Fevereiro.
Sendo este dia Sábado, iniciou-se no subsequente dia 27 o prazo de contagem de três dias para a prática do acto mediante o pagamento da multa [art.ºs 107.º-A, do Código de Processo Penal e 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil], conducente a que o recurso pudesse ter sido interposto até ao dia 1 de Março de 2012.
O que efectivamente veio a acontecer, pois como se colhe das informações entretanto coligidas foi nessa data que precisamente deu entrada na secretaria do tribunal a quo o correspectivo requerimento, sucedendo também ter o arguido procedido ao pagamento da multa em causa [fls. 608 a 613].
Do exposto, consequentemente, a consignada e aludida tempestividade.
3.2. O objecto de um recurso penal define-se através das conclusões que o
recorrente extrai da respectiva motivação, mas isto sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – art.ºs 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.
Na realidade, de harmonia com o disposto neste n.º 1, e conforme jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ – Acs de 13.05.1998; de 25.06.1998 e de 03.02.1999, in, respectivamente, BMJ’s 477/263; 478/242 e 477/271], o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no art.º 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, inclusive quando o recurso se encontre limitado à matéria de direito [Acórdão do Plenário das Secções do STJ, de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995].
Donde que, no mesmo sentido, opine Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Volume III, 2.ª edição, 2000, fls. 335: Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Nesta perspectiva, no caso vertente, porque não intercede fundamento para qualquer intervenção oficiosa, vistas as conclusões dos recorrentes, importa então aquilatar da pretendida alteração ao acervo fáctico e da culpa na eclosão do acidente.
3.3. No que concerne àquele primeiro segmento, aspecto relativamente ao qual se rebelam ambos os recorrentes, é o atinente à desconsideração operada na sentença recorrida quanto ao Relatório de fls. 122, dando como facto não provado que a vítima B...na altura do sinistro fosse detentora de uma TAS de 1,99 gr/l.
Tendo eclodido o acidente cerca das 13:55 horas do dia 19 de Março de 2009, pelas 16.35 horas desse mesmo dia foi realizada colheita à malograda para detecção da eventual presença, ou não, de álcool no sangue. Resultado obtido, de acordo com tal Relatório elaborado pelo INML, exactamente o de que a mesma era detentora dessa TAS. INML que, por seu turno, e agora no Relatório de Autópsia também efectivado, alude ao seu fígado nos moldes constantes de fls. 299.
Na sentença recorrida, relembramos, o M.mo Juiz a quo fundamentou o dissídio nestes termos:
“Quanto à não prova da TAS, apesar do relatório de fls. 122, o valor que o mesmo apresenta causa uma grande estranheza ao tribunal.
Na verdade, é um valor muito elevado, para quem conduzia um veículo de duas rodas, que realiza a manobra como é descrita pela testemunha, F..., ficando apenas com uma mão no volante, e ainda com a descrição do estado do fígado de B....
Com efeito, do relatório de autópsia resulta que o estado do fígado da vítima é aparentemente normal para uma pessoa que não consome bebidas alcoólicas.
Ora, para ter uma coordenação de movimentos e equilíbrio como são descritos pela testemunha F..., ou a vítima era uma bebedora/abusadora de bebidas alcoólicas ou com tal TAS ocasional não conseguia realizar a manobra.
Acresce que a testemunha … , com quem B...trabalhava diariamente, refere que esta não consumia bebidas alcoólicas no trabalho, nem a tinham encontrado alcoolizada, com sinais ou ingerido bebidas alcoólicas no local de trabalho. Como já referimos para quem apresenta uma taxa de 1,99 gr/l, colhido quase três horas após o acidente, teria que ser um bebedor habitual para coordenar os movimentos como efectivamente os coordenou.
A testemunha … , apesar de sogra de B..., refere que a mesma bebia apenas vinho e às refeições, sendo que em quantidades moderadas e por vezes não ingeria quaisquer quantidades de bebidas alcoólicas.
Pelo que o tribunal, apesar do valor probatório de tal relatório, não pode concluir que a vítima à data do sinistro tinha uma TAS daquele teor, ficando na dúvida o que teria acontecido para ter aquele valor, quando colhida a mostra sanguínea quase três horas após o sinistro.
Tal dúvida além das razões supra expostas, tem também por base o depoimento da testemunha … , enfermeiro que assistiu no local B..., não conseguiu explicar o ocorrido, nem relatou qualquer indício (odor ou hálito a álcool), e a testemunha … , solteiro, técnico de ambulância de emergência de Tondela, que no momento do acidente circulava pela via em causa, e de imediato assistiu a vítima, questionado sobre o hálito desta o mesmo referiu nada se recordar.
(…)
Ora, qualquer pessoa com tal taxa de alcoolemia constante do auto, não poderia deixar de exalar um odor característico do seu estado.”
O exame de fls. 122 assume a força probatória conferida pelo art.º 163.º, do Código de Processo Penal e, como assim, presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
Vale por dizer que a divergência denotada pelo M.mo Juiz recorrido haveria de ser fundamentada em argumentos técnicos ou científicos equiparados aos do perito que procedeu à sua realização, e não com argumentos gerais ou vagos.
Da fundamentação aduzida pelo M.mo Juiz a quo o que decorre é uma perplexidade extraída a partir do comportamento da vítima que logrou conduzir o ciclomotor nos termos sobreditos e do estado que apresentava o seu fígado (normal e logo, deduziu, sem que de pessoa possuindo na altura tal TAS) quando submetido a autópsia, tudo conjugado com depoimentos testemunhais que em nada apontariam para o consumo de bebidas alcoólicas ou presença de odor característico na vítima.
Nenhuma argumentação técnica pois susceptível de infirmar válidamente a conclusão do Relatório de fls. 122. Ora, nesse circunspecto, urge manter a força probatória fixada pelo aludido art.º 163.º, havendo-se antes como facto provado que B...à data do acidente era detentora de uma TAS de 1,99 gr/lts.
Ponto de discórdia da recorrente também o que advém dos termos pelos quais foi fixada a matéria constante do ponto provado n.º 7, isto é, que A vítima após o embate no ciclomotor, embateu no capot, pára-brisas e tejadilho do veículo LT, tendo sido transportada no mesmo cerca de 33,20 metros, até à completa imobilização do veículo e projectada a 7,8 metros, depois da paragem, para a frente do veículo, tendo ficado caída na berma, no sentido Tondela/Vilar de Besteiros, com os pés para a valeta e cabeça para a via.
Em contraponto à convicção do Tribunal a quo alicerçada no Relatório técnico de fls. 244 e segs. e no depoimento da testemunha Susana, convoca, para tanto, à míngua de qualquer outra prova que houvesse sido produzida, concretamente o depoimento de tal testemunha, única presencial do sinistro e em cujos termos, aduz, após o embate do LT no ciclomotor, a vítima foi “cuspida”, “projectada” para a frente e, assim, ao invés do considerado por provado, não tivesse sido transportada no mesmo cerca de 33,20 metros, até à completa imobilização do veículo.
Auditando-se o depoimento da testemunha F… , menciona ela efectivamente que após o embate do LT com o ciclomotor, a B...foi projectada, cuspida no capot daquele primeiro, acabando por ficar inerte no solo, 7,8 metros após a sua paragem, para a frente do veículo, tudo como melhor se descreve no croquis que é fls. 5 dos autos.
Ademais tal testemunho, encontram-se juntas aos autos as fotografias de fls. 222 (n.ºs 12 e 13) e 223 (n.º 15), das quais sobressai uma amolgadela no capot do LT. Mostra-se razoável supor que tal dano sobreveio em consequência do embate com o corpo da B.... Porém, nada mais é legítimo concluir à revelia do depoimento da testemunha Susana. Ou seja, o facto 7 há-de dar-se como provado, mas com a restrição mencionada.
3.4. Punctum saliens de discórdia, aquele que abordaremos acto contínuo e que se conexiona com a culpa na eclosão do acidente, vale por dizer dos factos relatados como provados nos itens 4. (paragem da B...no eixo da via, antes de iniciar a travessia para a sua esquerda); 5. (momento no qual o arguido tem a percepção da presença do ciclomotor na sua hemi-faixa de rodagem e faz a travagem); 6. (condução desatenta do arguido); 22. e 23. (incúria e elemento subjectivo da infracção pelo arguido) e que os recorrentes (ambos ou um deles apenas) impugnam.
O quadro geral de factos provados e não impugnados redunda, essencialmente, no seguinte:
O arguido circulava na EM. n.º 627, em Tojal Mau, Nandufe, sentido Tondela/Vilar de Besteiros, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, com a matrícula ... (Renault Clio 1.9D).
No mesmo dia, hora e local, em sentido contrário ao seu, isto é Vilar de Besteiros/Tondela, com destino ao …“Z...”, local onde exercia a sua actividade laboral, B..., conduzia o ciclomotor com a matrícula … .
No local, a estrada configura-se em linha recta, com cerca de 362 metros de extensão, sendo marginada, em ambos os sentidos, por bermas pavimentadas, seguidas de valetas.
A respectiva faixa de rodagem, com 7,10 metros de largura, encontra-se sinalizada com duas linhas guias (marca M19), delimitando-a, de marca com linha contínua (marca M1), que separa os dois sentidos de trânsito, sendo que no local do entroncamento e entrada para o aviário da “Z...”, possui linha descontínua (marca M2), para permitir efectuar a manobra de mudança de direcção.
A velocidade máxima permitida no local para o veículo automóvel ligeiro de mercadorias LT, era de 80 Km/hora.
O tempo estava bom, assim como a visibilidade, e o piso encontrava-se seco e limpo.
No sentido prosseguido pelo veículo LT a faixa de rodagem possui uma ligeira inclinação descendente estimada em 1%, com uma largura de 7,10 metros, entre as linhas guias delimitadoras das bermas.
Ao passo que no sentido do ciclomotor e no início da recta, apresenta uma curva “aberta” para a esquerda.
B..., momentos antes de chegar ao aludido entroncamento – sito no lado direito da via, atento o seu sentido de marcha, e devidamente assinalado [sinal B9b, ut fotografia n.º 52 de fls. 242], ao invés do que sucede no sentido contrário que não denota a presença do sinal correspondente de entroncamento de via sem prioridade, à esquerda, conforme depoimento da testemunha Ricardo –, que lhe permitia virar à esquerda e aceder ao referido aviário, atento o sentido de marcha, aproximou-se do eixo da via, abrandou a sua marcha e sinalizou com o braço a sua intenção de mudar de direcção para a esquerda, assim possibilitando que dois veículos que circulavam à sua retaguarda prosseguissem a sua marcha, contornando-a pelo lado direito.
Ao chegar ao ponto de viragem, deu início à manobra de mudança de direcção para a esquerda.
O arguido A... que circulava a uma velocidade superior a 110,67 Km/h, travou o veículo, mas sem o lograr controlar, foi embater com a sua frente do lado direito, na parte lateral direita do ciclomotor, que se encontrava sensivelmente a meio da hemi-faixa de rodagem direita (sentido de marcha do LT), deixando marcados no asfalto 64,30 metros de travagem até à completa imobilização do LT, a que correspondem 38 metros até embater naquele e 36,30 metros de travagem depois do embate.
Na sequência da colisão, B... foi projectada, cuspida no capot do LT, acabando por ficar inerte no solo, no sentido Tondela/Vilar de Besteiros, com os pés para a valeta e cabeça para a via, 7,8 metros após a paragem do LT, e para a sua frente, paragem esta verificada 33,20 metros após o local do embate, e tudo como melhor consta do croquis que é fls. 5 dos autos.
Por seu turno, o ciclomotor foi projectado a 46,4 metros do local do embate, ficando imobilizado na berma no sentido Tondela/Vilar de Besteiros, numa posição oblíqua em relação à faixa de rodagem, a cerca de 22,00 metros do veículo LT.
Em consequência do embate provocado pelo veículo automóvel conduzido pelo arguido, B...sofreu lesões traumáticas cervicais e torácicas, que foram causa directa e necessária da sua morte.
Na recta em causa e até ao local do embate o LT percorreu cerca de 218,6 metros, ao passo que B...percorreu 143,40 metros.
O arguido, submetido ao teste de despistagem de álcool no sangue através do aparelho SD 2, acusou uma TAS de 0,00 g/l.
Já a vítima B...submetida a igual exame acusou uma TAS de 1,99 gr/l.
Conforme se escreveu no Ac. do TRL, relatado pelo Ex.mo Desembargador Simões de Carvalho, a 3 de Agosto de 2009, no âmbito do recurso n.º 151/99.2 PBCLD.L1-5.ª, acedido em www.dgsi.pt, de acordo com o elencado art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal, “Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou pena de multa.”
O preceito incriminador em causa não é mais do que expressão da garantia, no plano criminal, do direito à vida, constitucionalmente consagrado no art.º 24.º, da Lei Fundamental.
Esta norma postula a inviolabilidade do direito à vida e proíbe, nomeadamente, a pena de morte, sendo certo que tal tutela constitucional é inerente ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Tal direito está organicamente ligado à defesa da pessoa enquanto tal, o que justifica a forma enfática utilizada pela Constituição da República (“… é inviolável”) e a protecção absoluta que lhe confere – cfr. neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, 1993, pág. 174.
A previsão legal da punição por negligência do crime de homicídio, sendo necessária, atendendo à excepcionalidade de tal incriminação, nos termos do art.º 13.º do Código Penal, equivale à formulação de deveres de cuidado no sentido da preservação do bem jurídico aqui protegido.
É, aliás, a importância desse bem jurídico, logo revelada pela inserção sistemática do tipo legal de crime em causa, que justifica a incriminação da negligência – cfr. Maria Fernanda Palma, in Direito Penal, Parte Especial, Crimes contra as Pessoas, edição de 1983, pág. 98.
Daqui resulta que não basta, muito embora estejamos perante um crime de resultado, que ao facto praticado pelo arguido sobrevenha a morte de uma pessoa. É necessário, para que o tipo legal de crime de homicídio negligente esteja preenchido, que à lesão do bem jurídico tutelado corresponda a violação de um dever de cuidado – cfr. Teresa Beleza, in Direito Penal, Vol. II, Edição de 1983, pág. 575 e Hans-Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4.ª edição, 1993, págs. 512 e 530.
Por sua vez, determina o art.º 15.º do Código Penal, que “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; b) não chegar sequer a representar a possibilidade da realização do facto.”
Negligência é, por conseguinte, a violação de um dever objectivo de cuidado, ou seja, consiste na omissão de uma precaução reclamada pela prudência, cuja observância teria evitado o facto correspondente ao tipo de crime – cfr. Luís Osório, in Notas ao Código Penal Português, Volume III, pág. 150.
Para existir negligência é necessário, desde logo, que se esteja perante uma situação em que é objectivamente previsível o perigo de uma determinada acção ou omissão.
Na verdade, apenas a previsibilidade objectiva do perigo da acção ou da omissão pode criar no agente um determinado dever de agir ou de se abster.
Torna-se, pois, necessário que uma pessoa de capacidade medianamente diligente, perante a mesma situação, pudesse prever o perigo de determinada acção ou omissão, ou seja, a chamada previsibilidade objectiva.
No entanto, tal não basta para existir negligência.
Como é manifesto, ela pressupõe a inobservância do cuidado adequado a impedir a ocorrência do resultado típico.
Destarte, é necessário, para que se esteja perante uma conduta negligente, a ausência do cuidado que efectivamente poderia impedir o evento que a própria norma pretende evitar.
Também este cuidado deve ser entendido como o cuidado objectivamente adequado e idóneo a impedir a ocorrência do evento.
O critério delimitador do tipo de ilícito negligente é constituído pelo princípio da confiança que assume especial relevância em matéria de homicídio por força do seu relevo no direito rodoviário.
Ora, segundo este princípio, “(...) quem se comporta no tráfico de acordo com as normas deve poder confiar que o mesmo sucederá com os outros, salvo se tiver razão concretamente fundada para pensar de outro modo.” - cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, artigos 131.º a 201.º, Coimbra Editora, 1999, pág. 109.
Nestes termos, contrária ao cuidado é só a superação do risco permitido, pois, se o agente ultrapassa o limite do risco permitido e faz subir as probabilidades de certo evento, pode-se tomar juridicamente responsável pela produção desse evento — cfr. Claus Roxin, Violação do Dever e Resultado nos Crimes Negligentes, in Problemas Fundamentais do Direito Penal, Colecção Vega Universidade, 3.ª edição, 2004, págs. 256 e segs.
Ora, segundo este autor, para se saber se determinada conduta pode ou não ser imputada ao agente como violadora do dever de cuidado a que está obrigado e em virtude da qual se produziu o resultado, há que averiguar se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta concreta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação com o risco permitido.
Se assim for, existe uma violação do dever que se integra na tipicidade e dever-se-á punir a título de crime negligente.
Contrariamente, se não houver aumento de risco, o agente não poderá ser responsabilizado.
As condutas realizadas ao abrigo do risco permitido não são negligentes (não chegam a preencher o tipo de ilícito negligente), se o agente não criou ou incrementou qualquer perigo juridicamente relevante, não existindo sequer a violação de um dever de cuidado.
A negligência exclui-se se o agente se contém nos limites do risco permitido, maxime se, por exemplo, num atropelamento não criou nem potenciou um risco para a vida ou para a integridade física da vítima.
No entanto, actua negligentemente quem causa um resultado típico através de uma acção que aumenta o risco acima da medida permitida, potenciando o risco da produção do resultado, como seja, conduzir desatento às condições do trânsito e às condições do local.
Em muitos domínios a negligência começa, assim, segundo este critério, quando se ultrapassam os limites do risco permitido. Considere-se a condução automóvel que, como muitas outras actividades, comporta riscos que, em certas ocasiões, nem mesmo com o maior cuidado se podem evitar.
No que se reporta a tais actividades, põe-se a questão da sua necessidade social ou da sua utilidade social, sendo que, por isso mesmo, o Direito as aceita, não as proibindo, pese embora os perigos que lhe estão associados.
Parece que ambos os critérios referidos conduzem a um mesmo resultado, porquanto, sempre que o agente, com o seu comportamento, tenha criado um perigo não permitido, tal parece bastar para que se possa comprovar a violação do dever de cuidado a que estava obrigado.
Desta forma, apesar de o legislador nada dizer acerca da medida de cuidado exigível do agente, esta deverá coincidir com o necessário para evitar a ocorrência do resultado típico.
A doutrina tem entendido que a violação do dever de cuidado deve ser analisada, não tanto em termos de cuidado exigível a uma pessoa média, mas em termos de cuidado exigido àquela pessoa em concreto.
E dizemos isto porque o Prof. Eduardo Correia, in Direito Criminal, Volume I, págs. 421 e segs., define a negligência como a omissão de um dever objectivo de cuidado ou diligência.
O dever cuja violação a negligência supõe, consiste antes de mais em o agente não ter usado aquela diligência exigida segundo as circunstâncias concretas, para evitar o evento.
Escreve ainda que é necessário que a produção do evento seja previsível, não sendo essa previsibilidade absoluta, mas determinada de acordo com as regras gerais da experiência dos homens, ou de certo tipo profissional de homem – cfr. autor e obra supra citados, pág. 426.
Aliás, conforme decidiu o STJ, a negligência consiste na falta de cuidado, em não se prever o que se deveria ter previsto, não se tomando as precauções devidas para evitar o resultado – cfr. B.M.J. 67.º/480.
O dever objectivo de cuidado decorre das circunstâncias particulares do caso em análise, das normas jurídicas que regulam comportamentos existentes, designadamente das que visam limitar ou diminuir os riscos próprios de certas actividades, como são, a título de exemplo, as disposições relativas à circulação rodoviária.
A violação de uma norma deste teor constituirá sempre um indício forte de responsabilidade penal do agente.
Nesta perspectiva, a circulação rodoviária vem sendo considerada, desde há muito, doutrinal e jurisprudencialmente, como actividade perigosa, do que se terão de extrair consequências, por um lado, jurídico-normativas, por outro lado, subjectivo-psicológicas, e que resultam num maior grau de atenção e na exigibilidade de um específico dever de prudência, no sentido de serem adoptados os deveres de cuidado que resultem de obrigações legais ou regulamentares ou que sejam adequados a evitar certos resultados, associado à previsão da produção de mais do que um evento lesivo como consequência da sua não observância ou da sua observância defeituosa – cfr. Ac. do TRL, de 9 de Março de 2004, disponível em www.dgsi.pt.
Isto é, embora a circulação rodoviária não consubstancie uma actividade proibida, a mesma oferece uma razoável probabilidade de lesão dos bens jurídicos, designadamente, a vida humana, e é por isso que constitui uma actividade tida como perigosa, afigurando-se o veículo automóvel – especialmente no contexto histórico-social hodierno – como uma “arma” potencialmente letal.
Em conclusão, a culpabilidade negligente, elemento essencial para o preenchimento do tipo de crime, é um juízo de imputação, ao agente, de uma atitude ético-pessoal de descuido, displicência ou simplesmente de excesso de confiança levianamente optimista, no sentido de que aquele evento não se iria produzir, perante um dever ser jurídico-penal.
Deve-se, assim, indagar quais são os comportamentos que a ordem jurídica exige numa determinada situação – só assim se poderá medir a conduta do agente, saber se ela corresponde à do homem avisado e prudente na situação concreta do agente.
Inexistem, pois, dúvidas de que a medida do cuidado exigível coincidirá com a que for necessária para evitar a produção do resultado típico.
Nesta conformidade, para concretizar a medida de cuidado objectivamente devido, no caso em apreço, há que partir, como ponto de referência, do condutor medianamente cauteloso.
Assim, em situações de violação de regras estradais, especialmente no domínio da responsabilidade civil, a jurisprudência tem vindo a afirmar a culpa do condutor, salvo se ele conseguir demonstrar que o facto se deu por causa estranha à sua vontade ou não foi determinante para o facto danoso – cfr. Acs do STJ, de 11 de Fevereiro de 1992, in B.M.J. 414.º/475; do TRE, de 2 de Fevereiro de 1982, in C. J., Tomo I, pág. 267; deste TRC, de 15 de Março de 1983, in B.M.J. 326.º/530 e do TRL, de 26 de Março de 1992, in C. J., Tomo II, pág. 152.
Indiscutivelmente, as normas legais que regulam o trânsito podem constituir um importante ponto de partida para aferir da existência, no caso concreto, de um dever objectivo de cuidado.
De qualquer forma, é sempre necessária a comprovação, face às circunstâncias do caso concreto, de que o cumprimento das regras de circulação rodoviária em causa, era adequado a evitar o resultado produzido, o qual deve corresponder à concretização do risco típico nelas contido – cfr. Eduardo Correia, obra citada, pág. 425.
Terá, por isso, que existir um nexo de causalidade adequada entre a violação do dever de cuidado, de origem legal, e a produção do resultado típico.
Norteados pelo campo de indagação que se nos impõe, vejamos se procedem ou não as críticas à matéria de facto acolhida, e, sendo o caso, consequência a dever ser extraída.
Duas circunstâncias começam por “impressionar” a indagação da dinâmica que esteve na génese do sinistro em ponderação: por um lado, o circular o arguido a uma velocidade não inferior a 110,67 km/hora, ou seja, preterindo regra estradal que, no mínimo, lhe impunha que o não fizesse a mais de 80 km/hora, e, por isso, potenciando, em muito, a possibilidade de emergência do acidente; por outro lado, o facto de a malograda B...o fazer com uma TAS de 1,99 gr/l, permitindo conjecturar sobre se, em consequência, não se apercebeu da aproximação do LT em sentido contrário, ou então, tendo-se apercebido, pensou, indevidamente, que ainda tinha tempo para passar (isto, aliás, conforme depoimento prestado pela testemunha F...no decurso do inquérito, a fls. 104).
Tarefa assim arduamente acrescida para o julgador que, nesta simbiose de “riscos” haveria de descortinar e procurar apurar a realidade do sucedido. O que logrou fazer o M.mo Juiz recorrido, chegando à conclusão de que sequer se colocava uma questão de prioridade de passagem, a qual apenas é chamada a intervir nas hipóteses de simultaneidade de percursos, uma vez que o que sucedeu foi ter o arguido, por desatenção e incúria, ido colher a B...no momento em que esta se aprestava para concluir a manobra que encetara de mudança de direcção para a esquerda, atento o respectivo sentido de marcha.
Além dos elementos objectivos colhidos no local do acidente (o Relatório de fls. 244 e segs. é agora menosprezado, já que se mostra adquirida a velocidade de circulação do LT), reportados no auto de participação e croquis que o integra de fls. 4/5, bem como nas fotografias de fls. 206 e segs., dispôs o Tribunal a quo apenas das declarações do arguido e do depoimento da testemunha F...para reconstituir a forma pela qual ocorreu o acidente.
Porque já acima consignado, dispensamo-nos de reproduzir de novo as características da via em que o mesmo se verificou.
O arguido, prestando declarações, afirmou que quando iniciou o percurso da recta e sem que outrem circulasse na altura pelo local à sua frente, viu a B...a circular em sentido contrário ao seu, a direito, e depois a aproximar-se do eixo da via, abrandando, sem que fizesse qualquer sinal de como pretendia mudar de direcção à esquerda; tal como ele vislumbrou a B..., nada obstava a que esta também o visse; simultaneamente à aproximação que a B...fazia ao eixo da via, foi a mesma ultrapassada, pela direita, por dois veículos que a antecediam e prosseguiam no Vilar de Besteiros/Tondela; após ter abrandado (pese embora no recurso interposto se refira a uma paragem então da B..., verdade é que aquando do julgamento não mencionou tal circunstância), e convicto de que a B...ia esperar que ele passasse, o arguido foi surpreendido, na altura em que teria percorrido sensivelmente 2/3 da recta, pois que a B...prosseguiu a mudança de direcção para a esquerda; não podendo guinar à esquerda, dada a presença dos dois carros aludidos, nem à direita porque iria contra o muro de vedação dos aviários, contíguo à estrada, sua direita, travou bruscamente, mas sem que lograsse evitar a colisão com o ciclomotor, na hemi-faixa direita em que seguia.
A testemunha F...relatou que circulava no sentido de marcha Vilar de Besteiros/Tondela, seguindo dois veículos à sua frente e depois em primeiro lugar, a B...tripulando o ciclomotor. Apercebeu-se que a B..., antecedentemente ao local do sinistro, fez sinal com o braço esquerdo, se encostou ao eixo da via, parou e cortou para a esquerda; apenas se apercebeu da presença do LT no momento em que ouviu o “chiar” da sua travagem, sem que possa precisar em que concreto local da faixa de rodagem se encontrava então a B....
Do exposto resulta pois que o percurso que a malograda B...se propunha fazer transversalmente ao e no eixo da via, a fim de se dirigir às instalações dos aviários, era de 3,55 metros (metade da faixa de rodagem, conforme croquis de fls. 5), isto é, assaz escasso. Mais decorre deste croquis, que a mesma acabou colhida após ter percorrido sensivelmente metade dessa distância, e que o seu campo (livre) de visão era, em linha recta e no sentido de que provinha o arguido, de 248 metros, aproximadamente.
Por outro lado, a versão aduzida pelo arguido (mesmo ressalvada a discrepância com o depoimento da testemunha F...relativamente ao facto de a B...ter ou não sinalizado a manobra que ia encetar, circunstância que pode resultar de ela o ter feito num primeiro momento mais anterior àquele no qual o arguido já a vê a circular em sentido contrário ao seu, por exemplo) mostra-se verosímil, dado que as características da via lhe possibilitavam, com efeito, ver a B..., como descreveu.
Mas, assim sendo, porquê o acidente?
Causadora a B...que não se apercebeu da presença do arguido a circular em sentido contrário e invadiu, inopinadamente, a hemi-faixa pela qual o mesmo seguia? Possível, pois que ou acautelou a realização da manobra e fica à míngua de explicação porque não percorreu 3,55 metros sem que emergisse a colisão; ou, pelo contrário, não o fez, podendo (vistas as características da via), e, sobretudo, devendo (na definição legal, a manobra haveria de fazer-se em local e por forma a que dela não resultasse perigo ou embaraço para o demais trânsito). Ou,
Causador o arguido que, seguindo desatento, não se apercebeu da sinalética alegadamente feita pela B...ou, ao menos, não intuiu que perante a sua aproximação ao eixo da via iria mudar de direcção, cortando-lhe a faixa de rodagem e, perante isso, prosseguiu em marcha desenfreada, a não menos de cerca de 110 km/hora, acabando por a colher nos termos sobreditos? Possível, com efeito. Mas, então, qual o local exacto em que o arguido se apercebeu que mais do que as manobras antecedendo a mudança de direcção, a B...já prosseguia efectivamente na sua realização? Relevante, sem dúvida, pois que se, por exemplo, no momento em que trava bruscamente, como afirmou, já muito próximo dela e daí que até se possa antes inferir uma conduta temerária da malograda; ou antes, num momento em que avistando-se recíprocamente, a B...confiara que podia proceder à mudança de direcção sem ocasionar embaraço ou perigo e então a sobressair tal excesso de velocidade?
Perguntas que, tal como outras que se poderiam suscitar, não encontram cabal explicação ante os meios de prova produzidos e, ao menos, fazem pairar um manto de dúvida sobre a real causa do acidente. Ora, em processo penal, este non liquet deve redundar, sabe-se, em favor reo.
Isto é, haverá de se considerar como não provada a materialidade acima referida como impugnada pelos recorrentes.
Corolário não poder afirmar-se agora que o arguido agiu com negligência, porquanto não teve o cuidado que é exigível a todos os condutores que conduzem um veículo e que, em concreto, também lhe era exigível, ou seja, que ao circular, acatasse as normas estradais que regem a circulação rodoviária de modo a não pôr em perigo os restantes utentes da via pública, tendo agido com negligência inconsciente, pois nem sequer representou como possível a realização do facto típico, uma vez que não previu o facto de o embate poder ocorrer e vir a provocar a lesão de determinados bens jurídicos. Ou seja, que sequer pensou que a sua acção continha riscos para determinado bem jurídico, podendo traduzir-se num resultado de lesão do bem jurídico vida – cfr. A. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Teoria Geral do Crime, Vol. II, Edições Universidade Católica, 2004, pág. 389.
Noutras e definitivas palavras, a impôr-se a sua absolvição penal.
3.5. Afirmação que comporta também sequelas no âmbito do pedido de indemnização.
Na verdade, arredada a possibilidade de imputação de um juízo de culpa a qualquer um dos intervenientes no sinistro, caímos no âmbito da previsão do art.º 506.º, n.º 1, do Código Civil, em cujos termos, Se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum condutor tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos.
Em caso de colisão entre um motociclo ou um ciclomotor e um veículo automóvel, tem sido solução jurisprudencial corrente proceder-se a uma repartição diversa dos riscos de circulação, atribuindo, respectivamente, as percentagens de 25% e 75%.
Sabe-se qual é o fundamento genérico da responsabilidade pelo risco, independente de culpa do agente; e conhece-se o motivo pelo qual, no domínio dos acidentes causados por veículos, vale a regra da “responsabilidade pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo” – cfr. art.º 503.º, n.º 1, do Código Civil.
É tal fundamento que determina a aludida regra segundo a qual a responsabilidade se reparte “na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos.”
Critério comummente utilizado para a aferição reclamada, o de se atentar à “estrutura dos veículos envolvidos” e “às consequências verificadas”.
É manifesta a imperiosidade desta última consideração – as “consequências verificadas” trata-se dos “danos” a que alude o mencionado n.º 1 –, pois que é em função da contribuição para esses danos que o risco deve ser aferido.
Mostra-se igualmente adequado ter em conta a “estrutura dos veículos” envolvidos no acidente. Escreveu-se, a propósito, no Ac. do STJ, de 7 de Outubro de 2010, acessível em www.dgsi.pt, processo n.º 839/07.6 TBPFR.P1.S1: “Será, porém, lícito, nos casos em que a dinâmica do acidente permaneça indeterminada, inferir essa percentagem dos riscos típicos de circulação das características estruturais de cada um dos veículos intervenientes – e, desde logo, da sua dimensão relativa e peso? Considera-se que a resposta não poderá deixar de ser afirmativa, se se tiver em conta que a medida do risco causado com a circulação rodoviária de certa viatura se deve fixar em função da sua vocação ou apetência para, em caso de colisão, provocar danos acrescidos no outro ou outros intervenientes no sinistro: note-se que a maior fragilidade e menor grau de segurança de um dos veículos intervenientes numa colisão, enquanto determina efectivamente uma maior apetência para provocar danos relevantes ao seu próprio utilizador, implica uma típica redução do risco de lesão grave nos outros utilizadores da via pública que conduzam viaturas mais sólidas, pesadas ou estáveis. Ora, sendo este segundo o factor decisivo, é evidente que – como decidiu o acórdão recorrido e constitui, aliás, solução jurisprudencial corrente – é substancialmente maior a capacidade de um veículo automóvel infligir danos relevantes ao utilizador de um motociclo ou ciclomotor com o qual colida em circunstâncias indeterminadas do que a apetência para o segundo lesar gravemente o condutor do automóvel envolvido na colisão (…).
In casu, sufragamos ser de manter aquela repartição. Intervenientes no acidente um veículo ligeiro e um ciclomotor cujas estruturas se surpreendem dos elementos juntos aos autos, sem nenhum acréscimo particular de risco que caiba ressalvar. Por outro lado, malgré os termos em que objectivamente ocorreu a colisão, insusceptíveis de fundamentar, vimos, um juízo de culpa, igualmente nada ressuma capaz de justificar a regra da proporção que, ela própria, já tem inerente o acréscimo de contribuição (de risco) a conceder ao veículo ligeiro.
3.6. Fixada a responsabilização civil da demandada seguradora, importa fixar o quantum indemnizatório devido ao filho e filhas da malograda B....
Danos cujo ressarcimento vem peticionado, os de natureza estritamente não patrimonial, seja por violação do bem vida [€ 60.000,00]; do sofrimento da própria B..., antes de falecer [€ 20.000,00] e dos próprios demandantes como corolário desse decesso [€ 10.000,00 para cada um deles].
A ressarcibilidade de todos estes danos mostra-se incontroversa. Operando então:
A propósito do dano sofrido pela vítima antes de morrer, o chamado “Dano intercalar”, acentuava o Ex.mo Conselheiro Sousa Dinis que a dor sofrida pela vítima antes de morrer, pode estabelecer-se entre o limite zero (caso de morte instantânea, sem qualquer sofrimento, ou caso de coma profundo desde o acidente até à morte) e o limite que se situa em plano aquém do que for entendido como adequado pela perda do direito à vida. “O dano traduzido no sofrimento da vítima que antecedeu a sua morte não pode deixar de ser positivamente valorado para efeitos de atribuição de indemnização compensatória e, consequentemente, autonomamente indemnizável, pois tal dano traduz um quadro de alteração não consentido e indesejado, acompanhado de uma temporária afectação do bem estar físico e/ou psíquico da vítima” – cfr. Ac. TRP, de 6 de Dezembro de 2006.
Tudo depende do sofrimento e da respectiva duração, do maior ou menor consciência, da vítima sobre o seu estado e aproximação da morte. Assim, também, o Ac. do STJ, de 25 de Fevereiro de 2009: “o dano sofrido pela vítima antes de morrer, varia este em função de factores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre o acidente e a morte, se a vítima estava consciente ou em coma, se teve dores ou não e qual a sua intensidade, se teve ou não consciência de que ia morrer.”
Tais danos não patrimoniais, de agressão “in persona”, mostram-se pois a coberto de ressarcimento, portadores como são de gravidade pressuposta no art.º 496.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código Civil e, por isso, justificativos de uma satisfação de índole pecuniária ao lesado, calculada de acordo com o seu n.º 4 [recurso à equidade], embora sem olvidarmos que dos elementos aqui referidos se há-de excluir a culpa, uma vez que não provada.
Atentando-se ao factualismo fáctico provado [33. Após o acidente, B...foi transportada para o Hospital S. Teotónio de Viseu, onde deu entrada pelas 15:33 horas do dia 19 de Março de 2009, tendo sido posteriormente transportada para os Hospitais da Universidade de Coimbra no dia 20 de Março de 2009, onde deu entrada pela 14:50 horas; 34. Durante todo este tempo encontrou-se sempre em estado consciente e fortemente medicada para as fortes dores das quais se queixava para os seus filhos e amigos; 35. Entre o dia do acidente 19 de Março e o dia da sua morte [22 de Março de 2009] B...teve conhecimento directo pelos médicos que a assistiram de que não mais voltaria a andar em consequência das fracturas que sofreu e do traumatismo torácico vertebro medular; 36. Durante as visitas que sua filha C… lhe fez, quer no Hospital de Viseu, quer nos Hospitais de Coimbra, sempre se queixou de fortes dores, e de grande angústia, dizendo, com muita frequência e em desespero, “desta não me safo; não vou cá ficar!”; 37. Para além das dores físicas, B...sofreu forte abalo psicológico com consciência de que ia morrer; 38. Demonstrou grande sofrimento e angústia por saber que estava a partir e que os seus filhos muito de si precisavam.], temos como adequado arbitrar um montante ligeiramente inferior ao quantificado na decisão recorrida: agora de € 7.500,00, então de € 10.000,00.
Indemnizáveis, igualmente, os danos sobrevindos aos próprios demandantes como consequência do falecimento de sua mãe. Aqui, sobreleva a factualidade provada seguinte: 32. B... à data do óbito tinha 47 anos; 39. B...era uma pessoa alegre, bem disposta com energia pela vida, e com gosto de viver; 40. Tinha uma grande capacidade de trabalho, trabalhando na empresa e também no amanho das terras para o sustento da família; 41. Os requerentes e sua mãe eram pessoas bastante ligadas, conversando de forma diária, com quem os demandantes desabafam os seus problemas e confidências, tanto mais que a requerente E... era ainda menor data da morte de sua mãe; 42. B...era uma mãe muito dedicada aos seus filhos; 43. O ex-marido tinha abandonado o lar desde o ano de 2004, e era aquela quem provinha pelo sustento dos filhos, em particular de sua filha E..., que nenhuns alimentos recebia do pai; 44. A filha C… encontrava-se a estudar no Instituto Politécnico de Viseu, e estava com a sua mãe todos os fins-de-semana e que muito a ajudava; 45. O filho D...apesar de emigrado, tinha uma forte ligação afectiva com a sua mãe; 46. Os demandantes/requerentes sofreram um choque e forte desgosto ao ver a sua mãe perder a vida na pujança da idade; 47. Facto que jamais irão esquecer, sofrendo e sentindo até hoje a morte de sua mãe. Perante uma jovem vítima, que mantinha profundos laços de união familiar e entreajuda com seus filhos, concedendo-se um certo grau de subjectividade que sempre vai ínsita nesta ponderação, reputamos como equilibrado, face às circunstâncias descritas, arbitrar esta quantia em € 6.000,00 para cada filho (a sentença recorrida fixou-o em € 8.000,00).
Por fim, resta ponderar da quantia devida a título da perda do direito à vida. Mostra-se abundante a jurisprudência fixada em torno desta questão. Como exemplo, avocaremos o Ac. do STJ, de 17 de Maio de 2012, relatado pela Ex.ma Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, no processo n.º 48/2002.L2.S2 – 7.ª Secção, quantificando-o no montante de € 45.000,00.
Tempo, pois, de concluir.
*
IV. Decisão.
Perante todo o exposto:
1. Na procedência parcial do recurso interposto pelo arguido, no mais se absolvendo da condenação decretada na 1.ª instância, vai o mesmo condenado pela prática de uma contra-ordenação, prevista e punida pelo art.º 27.º, n.ºs 1 e 2, al. a), 2., na coima de € 200,00.
2. Na procedência parcial do recurso interposto pela demandada seguradora, no mais se absolvendo do sentenciado igualmente na 1.ª instância, vai a mesma condenada a solver:
- Aos aludidos demandantes C...; D...; E..., a quantia global de € 52.875,00 [€ 7.500,00 + € 6.000,00 (x 3) + € 45.000,00 = € 70.500,00 x 0,75];
- Aos Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E, o montante de € 1.264,44 [€ 1.685,92 x 0,75].
Custas: do recurso interposto pelo arguido, pelo próprio, fixando-se a taxa de justiça devida em 1 UC; do recurso interposto pela demandada, por recorrente e recorridos, de acordo com o grau de sucumbência verificado.
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Coimbra, 21 de Novembro de 2012