Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3945/08.6TBLRA-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
ADMINISTRADORES DE DIREITO
ADMINISTRADORES DE FACTO
MEDIDA DE INIBIÇÃO
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 186, 189 CIRE
Sumário: I - Demonstrados factos que integrem qualquer uma das diversas situações taxativamente previstas nas várias alíneas do artigo 186.º, n.º 2, do CIRE, a insolvência é culposa, não admitindo a prova do contrário, ainda que se verifique a concorrência ou superveniência de elementos fortuitos que concorreram juntamente com a actuação dolosa ou culposa dos administradores para a insolvência.

II – Com a utilização da expressão «administradores de direito ou de facto», o legislador não visa excluir das pessoas afectadas pela qualificação da insolvência os administradores de direito que não exerçam as funções de facto, mas estender tal qualificação também aos administradores de facto, ou seja, às pessoas que praticam actos de administração sem que se encontrem legalmente nomeados como titulares do cargo que exercem.

III – Não obstante, os factos alegados pelos administradores quanto à medida da sua responsabilidade na administração da Insolvente, relevam para efeitos de determinação da medida da respectiva culpa, graduação que deve reflectir-se na medida da inibição para o exercício do comércio, a fixar entre um mínimo de 2 e um máximo de 10 anos, por força do disposto no artigo 189.º, n.º 2, alínea c) do CIRE.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

1. Por apenso aos autos em que foi declarada insolvente J (…) & NETOS, S.A. pendentes no Tribunal Judicial de Leiria, a Administradora da Insolvência e o Ministério Público, apresentaram parecer no sentido de se mostrar verificado o preenchimento das situações previstas no artigo 186.º, n.º 2, alíneas a), b), d) e h), e n.º 3, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1] aduzindo que:

 - As contas da Insolvente de 2007 não foram certificadas pelo ROC nem depositadas na Conservatória do Registo Comercial;

- A Insolvente não remeteu diversa documentação após solicitação para tal efeito;

- Inexistência de contabilidade organizada;

- A insolvente criou ou agravou o respectivo passivo;

- A Insolvente alienou imobilizado, desconhecendo-se o paradeiro de alguns bens da mesma.

Concluíram que a insolvência dos autos deve ser qualificada como culposa, devendo ser afectados pela qualificação da insolvência os administradores S (…), L (…) e S (…).

2. Notificada a devedora e citados os referidos administradores, vieram os mesmos deduzir oposição à referida qualificação da insolvência, tendo sido apresentada uma oposição por parte de S (…), e outra por parte de L (…) e S (…), nos termos expressos respectivamente a fls. 42 e ss. e fls. 50 e ss..

3. Foi proferido despacho saneador, tendo-se procedido à selecção da matéria de facto assente e da base instrutória, sem que tivessem sido apresentadas reclamações.

4. Realizou-se a audiência de julgamento com observância do formalismo legal, tendo a matéria de facto merecido a resposta constante da respectiva acta, que não mereceu qualquer reclamação, e em seguida foi proferida sentença onde se decidiu:

«Face ao exposto qualifico a insolvência de “J (…) & Neto Lda.”, nos termos dos artigos 186.º/1 e 2 a), b) e h), 186.º/3) alínea b) e art. 189º, nº 1, do C.I.R.E como culposa, afectando a qualificação os administradores S (…), L(…) e S (…).

a) Declaro S (…), L (…) e S (…) inibidos do exercício do comércio durante um período de dois anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão da sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa».

5. Inconformadas com a sentença proferida L (…) e S (…) interpuseram o presente recurso de apelação formulando as seguintes conclusões:     

(…)

6. O Ministério Público apresentou contra-alegações, as quais terminou concluindo (…).

7. A Mm.ª Juíza pronunciou-se pela inexistência da arguida nulidade.

8. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


*****

II. O objecto do recurso[2].

As questões submetidas a apreciação no presente recurso de apelação, são as seguintes, a decidir segundo a sua ordem lógica:

- saber se deve ser alterada a resposta dada à matéria dos artigos 32.º, 33.º, 40.º, 41.º e 43.º da base instrutória;

- apreciar da invocada nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão;

- determinar se a insolvência deve qualificar-se como fortuita ou culposa;

- neste último caso, decidir se tal qualificação deve ou não abranger as administradoras ora recorrentes e, na afirmativa, em que medida.


*****

III – Fundamentos

III.1. – De facto

São os seguintes os factos considerados assentes na primeira instância:

A- Em 07.07.2008, a sociedade comercial por quotas, denominada J (…) & Netos S.A., com sede (…) Leiria, com o n.º único de matrícula e pessoa colectiva 502 078 464, veio apresentar-se à insolvência (alínea A) dos factos assentes).

B- A referida sociedade tem por objecto social a construção civil e obras públicas (alínea B) dos factos assentes).

C- O seu conselho de administração é composto por L (…), S (…) e S (…), obrigando-se a sociedade pela assinatura de dois membros do Conselho de Administração (alínea C) dos factos assentes e documento de fls. 8 a 10 dos autos).

D- Por sentença datada de 08.07.2008, transitada em julgado, foi declarada a insolvência da referida sociedade (alínea D) dos factos assentes).

E- A insolvente não depositou as respectivas contas relativas ao ano de 2007, na Conservatória do Registo Comercial (alínea E) dos factos assentes).

F- As contas da insolvente do ano de 2007 não foram certificadas pelo revisor oficial de contas (resposta ao artigo 1.º da BI).

G- Porquanto não lhe foi possível examinar as demonstrações financeiras da insolvente do exercício de 2007 (resposta ao artigo 2.º da BI).

H- Em virtude de a insolvente não lhe ter facultado, em tempo, os documentos de suporte a algumas contabilizações, principalmente por não terem sido preparadas as referidas demonstrações financeiras (resposta ao artigo 3.º da BI).

I- A insolvente não facultou à Administradora da Insolvência qualquer balancete de 2008, nomeadamente o relativo a 30.06.2008 (resposta ao artigo 4.º da BI).

J- Em 22.12.2008 recebeu apenas um balancete do razão, composto de uma página e um balancete parcial apenas com uma página, do mês de Julho (resposta ao artigo 5.º da BI).

K- Na contabilidade apreendida não existe o Dossier Fiscal, nem pastas de Imobilizado (resposta ao artigo 6.º da BI).

L- No balancete do mês 13 estava em aberto uma dívida da sociedade M (..) , conta 21111309, de 75.921,06€, que desapareceu no mês 14, por ter sido paga, contudo, no mês 14 as Disponibilidades não sofreram alteração em relação ao mês 13 (resposta aos artigos 8.º e 9.º da BI).

M- No mês 14, no balancete que possui, consta a F (..) a dever 229.792,33€ à insolvente, na conta 2111061, e 524.258,70€ na conta 26810601 (resposta ao artigo 10.º da BI).

N- Tais saldos foram anulados ou a insolvente não os quis incluir na lista de devedores no processo de insolvência (resposta ao artigo 11.º da BI).

O- A conta 21810302 da CLC, encontra-se sem saldo (recuperada a dívida) no balancete de 14 de Dezembro (resposta ao artigo 12.º da BI).

P- Os saldos cruzados entra a insolvente e a Imobiliária CP (..) S.A. não estão certos no balancete do mês 14 (resposta ao artigo 13.º da BI).

Q- A insolvente era credora da R (..) no valor de 1.618.665,89€ que não está traduzido na contabilidade nem na lista de devedores (resposta ao artigo 14.º da BI).

R- O crédito da insolvente sobre a sociedade PA (..) Lda., de 1.635.375,90€ só está considerado na contabilidade por cerca de 1.419.000,00€ (resposta ao artigo 15.º da BI).

S- Estando o restante relacionado com juros que não entram na contabilidade (resposta ao artigo 16.º da BI).

T- A insolvente era proprietária de 21 veículos, galeras e diversas máquinas que não foram encontradas pela Administradora da Insolvência (resposta ao artigo 17.º da BI).

U- A qual também não encontrou a grua que constava da lista de bens da insolvente (resposta ao artigo 18.º da BI).

V- Em 10.10.2008, quando estavam a ser conferidos os bens apreendidos para se proceder à venda marcada para o dia 28.11.2008, não se encontravam um cilindro e duas escavadoras, pois tais máquinas tinham sido deslocadas para uma obra, na (..) , pertencente a um dos administradores da insolvente (resposta aos artigos 19.º e 20.º da BI).

W- Quando a Administradora da Insolvência se deslocou a tal obra, encontrava-se aí o Administrador S (…) que as tinha ido buscar (resposta ao artigo 21.º da BI).

X- Nos últimos anos surgiram alguns problemas de cobrança a alguns clientes (resposta ao artigo 25.º da BI).

Y- A insolvente começou a sentir dificuldades na obtenção de crédito, quer junto da Banca quer junto de fornecedores (resposta ao artigo 26.º da BI).

Z- A insolvente tinha ao seu serviço como contratado ou em regime de prestação de serviço, pessoas habilitadas a nível fiscal e de contabilidade (resposta ao artigo 30.º da BI).

AA- O administrador S (…) negociava todos os contratos, incluindo os contratos de empreitada e os contratos celebrados com instituições bancárias e financeiras (resposta ao artigo 34.º da BI).

BB- As administradoras S (…) e L (…)tratavam do expediente geral do escritório, deslocavam-se aos correios, aos bancos, preparavam documentos para escrituras e contratos, para a obtenção das licenças de construção, preparavam a documentação a entregar ao ROC (resposta aos artigos 35.º e 36.º da BI).

CC- O administrador S (…) informou a administradora da insolvência do local onde se encontrava a grua referida em U (resposta ao artigo 39.º da BI).

DD- A insolvente foi confrontada com uma forte diminuição da margem bruta de vendas (resposta ao artigo 42.º da BI).

EE- Vários devedores não cumpriram atempadamente com os pagamentos à insolvente (resposta ao artigo 44.º da BI).


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III.2. – O mérito do recurso

III.2.1. – Alteração da matéria de facto

(…)


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III.2.2. – Da nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 668.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil)

Invocam as recorrentes para fundar a arguição da referida nulidade uma contradição entre os fundamentos e a decisão, o que determina a nulidade da sentença, por força do disposto no artigo 668.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, uma vez que foi dado como provado que era o administrador S (..) “que negociava todos os contratos, incluindo os contratos de empreitada e os contratos celebrados com instituições bancárias e financeiras” - vide resposta ao quesito 34; tal como foi dado como provado que “as administradoras SC (..) e L (..) limitavam-se a tratar o expediente geral do escritório, a deslocarem-se aos correios, aos bancos, a preparar os documentos para as escrituras e contratos e para a obtenção das licenças de construção” - vide resposta ao quesito 36; pelo que perante o exposto concluem que a resposta dada aos mencionados quesitos é contraditória com a decisão, não se percebendo como se pode ter respondido aos quesitos nos termos expostos, concluindo que a administração efectiva da Insolvente pertencia, afinal, ao administrador S (..) - são as conclusões inerentes à matéria factual vertida nos mencionados quesitos - e, ao mesmo tempo, decidir afectar também as ora Apelantes com a qualificação culposa da insolvência.

Antes de mais, importa efectuar uma precisão quanto à alegação das Apelantes.

Na verdade, a resposta relativa às respectivas funções foi restritiva. Por isso, o segmento “as administradoras S (…) e L (…) limitavam-se a tratar o expediente geral do escritório…” perguntado no artigo 35.º, mereceu a resposta “provado apenas que as administradoras S (…) e L (…) tratavam do expediente geral do escritório…”. Portanto, não se deu como provado que as funções destas administradoras se limitavam às aqui descritas.

Efectuada a precisão e quanto à invocada nulidade, porque dispensa considerações desnecessárias, diremos apenas que, como é entendimento absolutamente pacífico, a errada subsunção dos factos ao direito - que é aquilo que as Apelantes assacam à sentença recorrida - não tem a virtualidade de representar uma nulidade da sentença, podendo, sendo caso disso, consubstanciar erro de julgamento, realidade jurídica bem diferente daquela, e que apreciaremos no momento seguinte.


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      III.2.3. – Qualificação da insolvência

      Em face das conclusões das Apelantes, impõe-se agora apreciar se, considerando a matéria de facto assente, a insolvência da empresa J (…)& Neto, S.A, deve qualificar-se como fortuita ou culposa.

       A este respeito, afirmou-se na sentença recorrida que:

     «Cumpre agora analisar, se face aos factos provados a insolvência deve ser qualificada com culposa.

      Desde logo, dúvidas não restam que in casu, verifica-se o circunstancialismo previsto na alínea h) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE.

     Constata-se que efectivamente a insolvente não tinha uma contabilidade organizada na medida em que a documentação que disponibilizou ao ROC além de ser insuficiente denotava incongruências, nos termos supra dados como provados, que conduziram a uma incompreensão – por falta de clareza e de elementos - da situação patrimonial e financeira da insolvente e por sua vez, tal incompreensão conduziu à não certificação das contas de 2007 por parte do ROC.

     Acresce que, de igual modo, se verifica o circunstancialismo previsto na alínea a) do art. 186.º/2 do CIRE.

     Ficou provado que o património da insolvente apreendido não corresponde ao património existente da insolvente, desconhecendo-se o paradeiro ou destino dado a tais bens, todavia dos bens apreendidos e deslocados para outra obra do Administrador S (…), forma todos entregues pelo mesmo à Administradora de insolvência, pelo que nada nos autos permite comprovar a verificação da circunstância descrita no art. 186.º/2 d) do CIRE.

     Verifica-se igualmente que a insolvente criou e agravou artificialmente passivos e assumiu passivos e não declarou ou fez desaparecer créditos que detinha sobre empresas com as quais detinha algum relacionamento de privilégio, como a M (…) S.A.

     Nessa medida verifica-se ainda o preenchimento dos pressupostos previstos no art. 186.º/2 b) do CIRE.

     Acresce ainda que a insolvente não depositou as contas de 2007 na Conservatória do Registo Comercial, o que sempre faria presumir a existência de culpa grave, nos termos do disposto no art. 186.º/3 b) do CIRE, o que, de igual modo, a insolvente não logrou elidir.

     Nesta medida, à luz dos preceitos legais mencionados e sem necessidade de mais considerandos tem a insolvência ser declarada como culposa.

   Tal declaração abrangerá todos os administradores da insolvente, face à prova produzida e de não ter resultado dos autos qualquer prova que determine decisão diversa.»

   Insurgem-se as apelantes relativamente às causas da insolvência da sociedade, pretendendo que do depoimento das testemunhas resulta que as causas que determinaram a insolvência da sociedade são, no essencial, causa externas à sociedade. Como é bom de ver, julgada improcedente a impugnação da matéria de facto, e mantendo-se inalterada a mesma, será com os factos provados e supra descritos que teremos que decidir a suscitada questão e não com aqueles que as Apelantes entendem que se encontram demonstrados.

Pretendem as Apelantes que a prova produzida nestes autos revelou-se profícua, permitindo concluir pela não verificação de nenhum dos factos subsumíveis ao artigo 186.º, n.º 2, do CIRE, e do mesmo modo, não foram provados quaisquer factos que permitissem concluir pela verificação das hipóteses legais previstas no artigo 186.º, n.º 3, do CIRE; e ainda que a existência de culpa grave existisse, a mesma teria de ser aferida por actos concretos que permitissem estabelecer um nexo de causalidade entre os actos praticados e a situação de insolvência da sociedade - que não existem nos autos.

Vejamos, pois, se lhes assiste razão.

           Dispõe o artigo 186.° do CIRE, sob a epígrafe “Insolvência culposa” e quanto às pessoas colectivas, que:

«1. A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

2.  Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;

f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;

g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantendo uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do art. 188.

3.  Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular, tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.»

Trata-se de preceito inovador que efectua a regulamentação legal da insolvência culposa que ali se desenrola em 3 momentos.

Assim, no n.º 1, o legislador faculta uma noção geral do que é a insolvência culposa, que se aplica tanto às pessoas colectivas como às singulares, descrevendo a situação de facto que corresponde à qualificação. Do mesmo ressalta que a culpa simples foi excluída, pelo que, são requisitos para a qualificação da insolvência a actuação com dolo ou culpa grave. Note-se que estas modalidades de actuação culposa podem verificar-se tanto por via da criação da situação de insolvência, como pelo seu agravamento em consequência da actuação do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, no período temporal correspondente aos três anos anteriores ao processo de insolvência.

Depois, o n.º 2 vem complementar a descrição abstracta operada pelo n.º 1, descrevendo taxativamente relativamente às pessoas colectivas um conjunto de situações que, pela sua simples verificação, determinam que a insolvência seja sempre considerada como culposa. Trata-se, portanto, dum elenco de casos que individualmente considerados, ou seja, cuja ocorrência de qualquer um deles, por si só, configura uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, na insolvência, sem possibilidade de prova do contrário.

Por fim, o n.º 3 indica, também taxativamente, um conjunto de situações que declara constituírem presunção de culpa grave. Neste número, ao invés do que acontece no n.º 2, estamos, porém, perante presunções ilidíveis. Desta sorte, verificada uma das situações elencadas, pode existir demonstração e prova de que as mesmas não se verificaram por culpa grave dos administradores de facto ou de direito[3].

Considerando que o extenso elenco de situações cobertas pela presunção inilidível de culpa a que aludem as várias alíneas do referido n.º 2, cobre uma variedade muito diversa de casos que frequentemente estão na origem da insolvência das pessoas colectivas, vejamos, antes de mais, se os factos provados relativamente à conduta dos administradores integram alguma destas situações.

Na verdade, se tal acontecer, a ilicitude da respectiva conduta encontra-se determinada pelo legislador, e a culpa grave presume-se, sem que exista qualquer possibilidade de justificação da mesma pelos seus autores, uma vez que qualquer uma das elencadas condutas é considerada pela sua simples verificação como sendo causalmente criadora ou agravadora da insolvência.

Porém, “a relação entre a violação dos deveres dos administradores especificados pelo n.º 2 do art. 186 e a verificação da situação de insolvência não é igualmente próxima em todos os casos. Algumas vezes sancionam-se condutas que, quando adoptadas, terão normalmente como consequência (mais ou menos) directa ou previsível (segundo um juízo de adequação social-normativo) a insolvência (por exemplo, na hipótese da al. a) ou g)).

Mas em diversos outros casos, o que está em jogo é a reprovação de comportamentos que não conduzem por si, necessariamente, à situação de insolvência, requerendo-se a verificação de outros factores, algumas vezes fortuitos, para que ela ocorra (assim, v.g., nas al. d) ou f)). Por último, estão também em causa situações de responsabilidade por omissões, sendo que delas também não deriva, por si e infalivelmente, a insolvência (atente-se nas al. h) e i)).

(…) Assim, na al. d) sanciona-se como culposa a insolvência perante a mera disposição dos bens do devedor em proveito pessoal (sendo que essa disposição é susceptível até de ter tido uma contrapartida idónea para a sociedade). Do mesmo modo, na al. h) crisma-se de culposa a insolvência perante o simples incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada de que resulte prejuízo para a compreensão da situação financeira ou patrimonial do devedor. No fundo, analogamente, a al. b) do n.° 3 do art. 186 presume logo culpa grave na insolvência quando as contas anuais não foram elaboradas no prazo legal, submetidas a fiscalização ou depositadas na conservatória. Nenhum destes comportamentos autoriza com segurança a ilação de que dada insolvência radica na sua adopção. A infracção de uma disposição de protecção pode portanto corresponder a um delito de perigo abstracto. Nestes casos é certamente compreensível o estabelecimento de uma presunção de culpa”[4].

           Ora, percorrida a matéria de facto provada e supra descrita no confronto com as várias alíneas do n.º 2, temos desde logo e integrando a conduta prevista na sua alínea a), que a insolvente era proprietária de 21 veículos, galeras e diversas máquinas e de uma grua que constava da lista de bens da insolvente, que não foram encontradas pela Administradora da Insolvência (resposta aos artigos 17.º e 18.º da BI). Trata-se seguramente de património considerável da devedora, que foi ocultado ou feito desaparecer, já que não foi encontrado pela administradora da insolvência.

Portanto, demonstrada a verificação da previsão legal, a insolvência da devedora J (…)& Neto, S.A., já seria sempre legalmente considerada como culposa, mesmo que não se verificasse qualquer uma das outras apontadas situações. No entanto, porque tal releva do ponto de vista da graduação da culpa dos administradores, para os efeitos do artigo 189.º, n.º 2, alíneas b) e c), a sua apreciação não fica prejudicada.

     De facto, agora subsumível à alínea b), resultou também demonstrado que no balancete do mês 13 estava em aberto uma dívida da sociedade (…), conta 21111309, de 75.921,06€, que desapareceu no mês 14, por ter sido paga, contudo, no mês 14 as Disponibilidades não sofreram alteração em relação ao mês 13 (resposta aos artigos 8.º e 9.º da BI); no mês 14, no balancete que possui, consta a (…) a dever 229.792,33€ à insolvente, na conta 2111061, e 524.258,70€ na conta 26810601 (resposta ao artigo 10.º da BI); tais saldos foram anulados ou a insolvente não os quis incluir na lista de devedores no processo de insolvência (resposta ao artigo 11.º da BI); a conta 21810302 da CLC, encontra-se sem saldo (recuperada a dívida) no balancete de 14 de Dezembro (resposta ao artigo 12.º da BI); os saldos cruzados entra a insolvente e a (…) S.A. não estão certos no balancete do mês 14 (resposta ao artigo 13.º da BI); a insolvente era credora da (…)no valor de 1.618.665,89€ que não está traduzido na contabilidade nem na lista de devedores (resposta ao artigo 14.º da BI); factos que integram a referida previsão legal porquanto configuram alguns uma redução artificial do passivo e outros uma redução do activo.

A este respeito apenas não releva a prova de que o crédito da insolvente sobre a sociedade (…)Lda., de 1.635.375,90€ só está considerado na contabilidade por cerca de 1.419.000,00€ (resposta ao artigo 15.º da BI), uma vez que, estando o restante relacionado com juros que não entram na contabilidade (resposta ao artigo 16.º da BI), não se pode considerar que tal integre a referida previsão.

Também o facto de se ter demonstrado que em 10.10.2008, quando estavam a ser conferidos os bens apreendidos para se proceder à venda marcada para o dia 28.11.2008, não se encontravam um cilindro e duas escavadoras, pois tais máquinas tinham sido deslocadas para uma obra, na (..) , pertencente a um dos administradores da insolvente (resposta aos artigos 19.º e 20.º da BI), não tem relevo para integrar a previsão da alínea d), porquanto quando a Administradora da Insolvência se deslocou a tal obra, encontrava-se aí o Administrador S (…) que as tinha ido buscar (resposta ao artigo 21.º da BI), não podendo, consequentemente considerar-se que tenha existido efectiva disposição de bens em proveito próprio deste ou de terceiros.

Finalmente, resta apreciar quanto ao elenco de situações previstas no n.º 2 do artigo 186.º, se os factos provados integram a previsão da alínea h), ou seja, o incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

A este respeito provou-se que as contas da insolvente do ano de 2007 não foram certificadas pelo revisor oficial de contas porquanto não lhe foi possível examinar as demonstrações financeiras da insolvente do exercício de 2007, em virtude de a insolvente não lhe ter facultado, em tempo, os documentos de suporte a algumas contabilizações, principalmente por não terem sido preparadas as referidas demonstrações financeiras (resposta aos artigos 1.º a 3.º da BI).

Acresce que a insolvente não facultou à Administradora da Insolvência qualquer balancete de 2008, nomeadamente o relativo a 30.06.2008 (resposta ao artigo 4.º da BI), tendo esta recebido em 22.12.2008 apenas um balancete do razão, composto de uma página e um balancete parcial apenas com uma página, do mês de Julho (resposta ao artigo 5.º da BI), sendo ainda que na contabilidade apreendida não existe o Dossier Fiscal, nem pastas de Imobilizado (resposta ao artigo 6.º da BI).

Como é bom de ver, trata-se de omissões substanciais ainda que se reconduzam apenas ao período mais próximo da apresentação da empresa à insolvência, cujo prejuízo para a compreensão da respectiva situação foi objectivamente considerado pelo ROC que, por essa razão, não certificou as contas de 2007, e que já no decurso do processo se estendeu à Administradora da Insolvência nos termos sobreditos. Portanto, também se verifica a actuação culposa a que alude esta alínea h).

Assim sendo, inelutavelmente, não podem os seus administradores, com  sucesso, invocar factos que desculpem a respectiva actuação legalmente considerada ilícita e culposa pela sua simples verificação.

       Na verdade, a norma em referência tem um fim claramente preventivo, determinando a inadmissibilidade legal de ilisão da presunção nos casos ali referidos a fim de dissuadir a prática ou omissão de condutas que, segundo a experiência nos diz, são susceptíveis de ocasionar insolvências e estão habitualmente intimamente ligadas com tal desfecho da vida societária. É isso mesmo que justifica, nestes identificados casos, e por razões diversas, a declaração da insolvência como culposa sem necessidade de mostrar a ligação entre a conduta legalmente censurada aos administradores e a concreta insolvência ocorrida, estando legalmente vedada a prova em contrário dos referidos factos, ou seja, sendo a insolvência culposa mesmo quando concomitantemente se verifique a concorrência ou superveniência de elementos fortuitos que concorreram juntamente com a actuação dolosa ou culposa para a insolvência.

Pelo exposto, fica prejudicada a questão de saber se os factos demonstrados no sentido de nos últimos anos terem surgido alguns problemas de cobrança a alguns clientes (resposta ao artigo 25.º da BI); de a insolvente ter começado a sentir dificuldades na obtenção de crédito, quer junto da Banca quer junto de fornecedores (resposta ao artigo 26.º da BI); de a insolvente ter sido confrontada com uma forte diminuição da margem bruta de vendas (resposta ao artigo 42.º da BI); e de vários devedores não terem cumprido atempadamente com os pagamentos à insolvente (resposta ao artigo 44.º da BI), seriam bastantes para ilidir a presunção de culpa, porquanto tal ilisão só seria possível caso apenas se tivesse demonstrado, como também demonstrou, que a insolvente não depositou as respectivas contas relativas ao ano de 2007, na Conservatória do Registo Comercial (alínea E) dos factos assentes), facto que integra a presunção ilidível estabelecida no artigo 186.º, n.º 3, alínea b) do CIRE.

Não sendo assim, como vimos, porque se mostram preenchidas circunstâncias vertidas nas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º, a insolvência deve efectivamente qualificar-se como culposa, assim improcedendo as conclusões das Apelantes formuladas no sentido de a mesma ser considerada como fortuita.


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III.2.4. - Quem é abrangido pela qualificação e em que medida

Pretendem as apelantes que seria forçoso concluir que a administração efectiva, isto é, de facto, da Insolvente cabia apenas ao Oponente S (…) sendo as ora Apelantes, na realidade, meras administrativas, pelo que a qualificação da insolvência não as poderia abranger.

Ora, a resposta a esta questão resulta da conjugação do disposto no artigo 186.º, n.º 1, com o disposto no artigo 189.º, n.º 2, alínea a): ou seja, qualificada a insolvência de culposa, como efeito da mesma devem, identificar-se as pessoas afectadas pela qualificação, ou seja, os seus administradores de direito ou de facto.

O que deve entender-se por este segmento da norma «administradores de direito ou de facto»?

Pensamos que, com esta previsão o legislador não visa excluir os administradores de direito que não exerçam as funções de facto, como pretendiam as Apelantes, mas, ao invés, veio estender a qualificação a actos praticados por administradores de facto[5].

Assim, por via desta importante previsão, a qualificação abrange quer os administradores de direito, ou seja, os administradores legalmente designados constantes do contrato de sociedade e do registo comercial; e os administradores de facto, entendidos estes como as pessoas que praticam actos de administração sem que se encontrem legalmente nomeados como titulares do cargo que exercem. Portanto, cremos que a noção legal é bem diferente daquela que as Apelantes invocam em sede de recurso, porquanto no caso dos autos, todos os administradores são administradores de direito e, como tal, encontram-se sempre abrangidos pela qualificação da insolvência.

De facto, os administradores da sociedade devem observar os deveres fundamentais previstos no artigo 64.º do CSC, são responsáveis perante a sociedade nos termos previstos no artigo 72.º, mormente quando não tenham exercido o direito de oposição conferido na lei, e tal responsabilidade não pode ser excluída por cláusula em contrário do contrato que, se ali foi inserta, é nula por força do disposto no artigo 74.º do referido diploma legal.

Desta sorte, sendo administradoras de direito da sociedade Insolvente, a qualificação da insolvência como culposa abrangeria sempre as ora Apelantes.

Os factos alegados quanto à medida da sua responsabilidade na administração apenas relevam a este respeito para efeitos de determinação da medida da inibição para o exercício do comércio, a graduar entre um mínimo de 2 e um máximo de 10 anos.

Na medida de tal graduação deve efectivamente atender-se à medida da culpa das pessoas afectadas pela qualificação na criação ou agravação da situação da empresa que motivou a sua insolvência.

Porém, no caso dos autos, apesar de se ter demonstrado que o administrador S (..) negociava todos os contratos, incluindo os contratos de empreitada e os contratos celebrados com instituições bancárias e financeiras (resposta ao artigo 34.º da BI), e que as administradoras S (…) e L (…) tratavam do expediente geral do escritório, deslocavam-se aos correios, aos bancos, preparavam documentos para escrituras e contratos, para a obtenção das licenças de construção, preparavam a documentação a entregar ao ROC (resposta aos artigos 35.º e 36.º da BI), portanto, tendo um papel aparentemente menos relevante na vida societária, o certo é que tal situação se encontra prejudicada.

Efectivamente, a inibição das Apelantes para o exercício do comércio foi fixada na sentença recorrida pelo período legal mínimo de dois anos relativamente a todos os administradores. Assim, a medida fixada quanto àquelas não é passível de alteração em face da norma legal que fixa como mínimo aquele período. E, ainda que se considerasse que tal período devia ser superior ao fixado relativamente ao Administrador S (…) não tendo o Ministério Público interposto recurso quanto ao período da inibição fixada, não poderia aquele ver aumentada tal medida, atento o caso julgado parcial que sobre a mesma se formou e o princípio da proibição da reformatio in pejus.


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III.3 - Síntese conclusiva:

I - Demonstrados factos que integrem qualquer uma das diversas situações taxativamente previstas nas várias alíneas do artigo 186.º, n.º 2, do CIRE, a insolvência é culposa, não admitindo a prova do contrário, ainda que se verifique a concorrência ou superveniência de elementos fortuitos que concorreram juntamente com a actuação dolosa ou culposa dos administradores para a insolvência.

II – Com a utilização da expressão «administradores de direito ou de facto», o legislador não visa excluir das pessoas afectadas pela qualificação da insolvência os administradores de direito que não exerçam as funções de facto, mas estender tal qualificação também aos administradores de facto, ou seja, às pessoas que praticam actos de administração sem que se encontrem legalmente nomeados como titulares do cargo que exercem.

III – Não obstante, os factos alegados pelos administradores quanto à medida da sua responsabilidade na administração da Insolvente, relevam para efeitos de determinação da medida da respectiva culpa, graduação que deve reflectir-se na medida da inibição para o exercício do comércio, a fixar entre um mínimo de 2 e um máximo de 10 anos, por força do disposto no artigo 189.º, n.º 2, alínea c) do CIRE.


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      IV - Decisão

      Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.

     Custas pelas Apelantes. 


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Albertina Pedroso ( Relatora )

Virgílio Mateus

Carvalho Martins     


[1] Doravante abreviadamente designado CIRE, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 22 de Julho, e com as alterações introduzidas pelo DL n.º 282/2007, de 7 de Agosto.
[2] Com base nas disposições conjugadas dos artigos 660.º, 661.º, 664.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, e 713.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha.
[3] Cfr. neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, (Reimpressão) Quid Juris, 2009, pág. 610, e Manuel A. Carneiro da Frada, in A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência, disponível no sítio da Ordem dos Advogados.
[4] Cfr. Carneiro da Frada, ob. e loc. citado.
[5] Cfr., neste sentido Carneiro da Frada, ob. e loc. citado.