Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
57/18.8T9MGL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
PRONÚNCIA
IRRECORRIBILIDADE
VÍCIOS DA DECISÃO INSTRUTÓRIA.
Data do Acordão: 10/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 405º CPP
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 310.º E 399.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário:
A irrecorribilidade prescrita no n.º 1 do artigo 310.º do Código de Processo Penal, relativa à decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, abrange os vícios da decisão em si mesma, como, por exemplo, a omissão de pronúncia ou a sua falta de fundamentação, bem como a decisão do juiz de instrução que posteriormente venha a pronunciar-se sobre eles, após a respetiva arguição.
Decisão Texto Integral:
 
Reclamação - artº 405º CPP
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Reclamação – artigo 405.º do Código de Processo Penal
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Reclamante/arguido/ ………AA
Reclamados………........……Ministério Público
........................... BB
 
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Sumário:
A irrecorribilidade prescrita no n.º 1 do artigo 310.º do Código de Processo Penal, relativa à decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, abrange os vícios da decisão em si mesma, como, por exemplo, a omissão de pronúncia ou a sua falta de fundamentação, bem como a decisão do juiz de instrução que posteriormente venha a pronunciar-se sobre eles, após a respetiva arguição.
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I. Relatório

1. A presente reclamação é dirigida ao despacho de 14 de setembro de 2022, que não admitiu o recurso interposto do despacho de 3 de maio do mesmo ano e inserese num processo comum singular. 

O despacho de 3 de maio pronunciou-se sobre diversas invalidades que o arguido apontou à decisão instrutória, a saber, como se refere no despacho:

- nulidade decorrente do facto do ofendido não ter sido ouvido na fase de inquérito e ter sido inquirido na fase de instrução pela autoridade policial sem que isso tivesse sido determinado pelo juiz de instrução e sem que o arguido tivesse sido notificado desse ato para poder exercer o contraditório (artigo 120.º, n.º 2, al. d) do CPP);

- Que alertou, em requerimento datado de 6 de abril de 2022, que a valoração deste depoimento do ofendido em sede de decisão instrutória violaria o direito ao contraditório, o princípio do inquisitório e de reserva do juiz, sem sucesso porque esta questão não foi apreciada existindo, por isso omissão de pronúncia quanto a esta matéria (artigo 120.º, n.º 2, al. d) do CPP)

- Que a decisão instrutória não mostra como, quando e de que forma foram transmitidas as ações do ofendido para o arguido, o que caso tivesse sido feito, ponderando ainda o depoimento da testemunha CC, levaria a um juízo de não pronúncia, tendo ocorrido nesta parte também omissão de pronúncia e, no mais, violação do princípio do acusatório e da presunção de inocência do arguido.

- Falta de indicação da convicção que levou à prolação do despacho de pronúncia;

- Face aos factos referidos na pronúncia não é possível saber quando se iniciou o prazo de prescrição, o que gera nulidade (artigo 283.º, n.º 3, al. b), ex vi artigo 308.º, n.º 2 do CPP).
Questões estas, e outras, que vêm mencionadas na «Conclusão B)» do recurso.

O referido despacho de 3 de maio apreciou essas invalidades a sentenciou deste modo:

«Face ao exposto, indefiro as alegadas invalidades invocadas pelo arguido, mantendo-se a decisão instrutória proferida nos autos.»

2. O arguido recorreu desta decisão e o tribunal, por despacho de 14 de setembro, não admitiu o recurso argumentando, em síntese, que não havendo recurso da decisão que pronunciou o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação do Ministério Público, então também não pode haver recurso do despacho que a seguir se pronuncia e indefira a arguição de vícios apontados à decisão instrutória.

3. A reclamação incide sobre este despacho e os seus fundamentos consistem, no essencial, em argumentar que a irrecorribilidade determinada no n.º 1 do artigo 310.º do CPP não abrange todos os despachos proferidos pelo juiz de instrução, e muito menos os posteriores á decisão instrutória, como é o caso, que pronunciou o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação.

E não abrange os vícios da própria decisão instrutória em si mesma (como, por exemplo, a ponderação de uma prova previamente já arguida de inválida, como o

apontado caso de inquirição do ofendido na fase da instrução, prova que não devia ter sido valorada e foi.

II. Objeto da reclamação

A questão colocada na presente reclamação consiste em saber se é recorrível o despacho proferido em 3 de maio de 2022, posterior à decisão instrutória (a qual pronunciou o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação), que se pronunciou, indeferindo, a arguição de diversas invalidades ocorridas durante a fase de instrução e na própria decisão instrutória, como é o caso, por exemplo, da omissão de pronúncia.

III. Fundamentação (a) Matéria de facto processual
A matéria a considerar é a que consta do relatório que antecede. b) Apreciação
1. O n.º 1 do artigo 310.º do CPP diz o seguinte:

«A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento» (redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto).
Anteriormente esse normativo tinha esta redação: «A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.»
Foi no âmbito desta redação que foi fixada a jurisprudência do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2000 (DR, I – A, de 07.03.2000) no sentido de que «A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais

A alteração legislativa de 2007 fez caducar o referido Acórdão n.º 6/2000, pois ao acrescentar ao n.º 1 «formulada nos termos do artigo 283º ou do n.º 4 do artigo 285º» e «mesmo na parte em que em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais», a lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, dispôs expressamente sobre a matéria que o mencionado acórdão tinha decidido.

Este historial mostra que foi intenção do legislador acelerar o processo penal de modo a que não ficasse «preso» na fase de instrução e seus recursos, retardando com isso a submissão do arguido a julgamento e dando aso, como tem ocorrido não raras vezes, a que o arguido não seja julgado em prazo razoável, como determina o n.º 4 do artigo 20.º da Constituição («Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo»).
Vejamos a situação dos autos.

Verifica-se, e o arguido não discorda, que efetivamente ele foi pronunciado pelos mesmos factos que lhe haviam sido imputados na acusação.

Mas, argumenta, que a irrecorribilidade do n.º 1 do artigo 310.º do CPP não abrange as questões apreciadas no despacho de 3 de maio, tais como a nulidade decorrente do facto do ofendido não ter sido ouvido na fase de inquérito e ter sido inquirido na fase de instrução pela autoridade policial sem que isso tivesse sido determinado pelo juiz de instrução e sem que o arguido tivesse sido notificado desse ato para poder exercer o contraditório (artigo 120.º, n.º 2, al. d) do CPP); Ou a omissão de pronúncia imputada à própria decisão instrutória.
2. Vejamos então.
Não assiste razão ao arguido/Reclamante, pelas seguintes razões:

(a) Como se disse, o legislador com a nova redação dada ao n.º 1 do artigo 310.º do CPP, quis imprimir celeridade ao processo penal e decidiu fazê-lo por existir concordância entre a acusação deduzida pelo Ministério Público e o juízo formado pelo juiz de instrução acerca da acusação na fase processual da instrução.

O legislador entendeu que nestes casos as garantias do arguido estavam acauteladas e, por isso, podia-se avançar para julgamento sem necessidade de sujeitar a decisão instrutória a uma nova análise por um tribunal superior, através do respetivo recurso, permitindo-se sim que na fase de julgamento o arguido possa tomar posição sobre vícios processuais ou outros que ainda tenham capacidade para o afetarem negativamente [«…mesmo no caso de recurso da decisão instrutória, nunca se faz caso julgado quanto à questão de emérito: a decisão instrutória não incide sobre o mérito da causa, mas tão-só sobre as questões processuais.
Quanto às questões processuais, o tribunal de julgamento só conhece daquelas sobre as quais ainda não tiver recaído decisão com força de caso julgado (art. 368.º, n.º 1); se a decisão instrutória de pronúncia não admitir recurso, a decisão sobre essas questões não tem efeitos de caso julgado pelo que poderão ser novamente objeto de decisão pelo tribunal do julgamento» - Germano Marques da Silva. Direito Processual Penal (Do procedimento – Marcha do Processo). Universidade católica Editora, 2015, pág. 181]

 Este desiderato de celeridade só se consegue alcançar se efetivamente não existir possibilidade de impedir que o processo prossiga para a fase de julgamento quando a decisão instrutória pronunciar o arguido pelos mesmos factos que constam da acusação.

Se existir a possibilidade desta decisão instrutória, através de um recurso, ser anulada, alterada ou de algum modo revertida ou retardada, então frustra-se a finalidade que está contida no mencionado n.º 1 do artigo 310.º do CPP.

É que, é sempre possível invocar um qualquer vício oponível à decisão instrutória, sejam vícios que a afetam devido a situações processuais anteriores que nela se refletem ou repercutem, seja vícios da própria decisão, como, por exemplo, a falta de fundamentação ou a omissão de pronúncia.

Daí que a irrecorribilidade determinada no n.º 1 do artigo 310.º do CPP se estenda também a decisões posteriores tomadas pelo Juiz de instrução que possam ter efeitos sobre essa decisão, como é o caso da decisão sobre nulidades arguidas em relação à própria decisão instrutória, com fundamento, por exemplo, em omissão de pronúncia.
Neste sentido pronunciou-se o Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º

482/2014, de 25 de junho de 2014 (DR, II Série, n.º 143 de 28-07-2014), quando ponderou (e abaixo se sublinha):

«20 — Como já foi referido, o Tribunal Constitucional, em jurisprudência constante, tem considerado constitucionalmente admissível, por não configurar uma restrição desproporcionada do direito ao recurso em processo penal, que o legislador, em benefício da celeridade processual, determine a irrecorribilidade do despacho que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação, bem como a irrecorribilidade da decisão instrutória na parte em que decide questões prévias ou incidentais àquele despacho (de pronúncia). Na base dessa jurisprudência constante está o pressuposto de que a natureza meramente provisória do juízo de imputação de factos suscetíveis de integraram a prática de crime que resulta da decisão instrutória de pronúncia permite que qualquer vício ou nulidade que a afete possa sempre ser ainda devidamente conhecido na fase subsequente de julgamento, concretamente em dois momentos: na sentença que vier a ser proferida após o encerramento da audiência de julgamento ou em sede de recurso a interpor da sentença seja desfavorável ao arguido. Neste âmbito, em coerência, não pode deixar de se entender que o mesmo raciocínio se aplicará à irrecorribilidade do despacho que decida a arguição de vícios (v.g., nulidades) que afetem especificamente a decisão instrutória, designadamente na parte em que decida a arguição de nulidade da decisão instrutória por omissão do dever de pronúncia ou por falta de concretização dos factos imputados ao arguido. Decidir o contrário seria, afinal, permitir, por via indireta, a recorribilidade de uma decisão cuja irrecorribilidade resulta claramente da lei, solução que tem sido constantemente confirmada pelo Tribunal Constitucional como conforme à Constituição.»

Por conseguinte, quando no n.º 1 do artigo 310.º se diz que «A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, …» abrangem-se aqui os próprios vícios da decisão em si mesma, como a omissão de pronúncia ou a sua falta de fundamentação, logicamente apreciados em despacho posterior.

(b) Se não se entendesse assim, a irrecorribilidade determinada no n.º 1 do artigo 310.º do CPP, pouco ou nada valeria, pois a decisão instrutória poderia vir a ser anulada por um tribunal superior pela procedência de uma qualquer nulidade apontada à decisão instrutória.

Com efeito, a possibilidade de serem feitas interpretações, qualificações, distinções, etc., são tantas quantos os casos concretos, dado que é sempre possível afirmar algo a respeito de uma decisão instrutória e é sabido que para recorrer não é necessário, como é da própria natureza do recurso, provar de antemão que se tem razão.

É certo que esta opção legislativa tem riscos, pois certamente ocorrerão casos em que a decisão instrutória padece efetivamente de vícios, como, por exemplo, a omissão de pronúncia ou a falta de fundamentação.

 Mas são riscos que não se podem evitar em alguns processos quando se pretende alcançar a necessária celeridade processual em todos os processos.

E são riscos que podem ser assumidos, pois como se referiu no mencionado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 482/2014, «… o legislador infraconstitucional delineou a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público como traduzindo em si mesma já o resultado de uma função que representa uma dupla garantia, na medida em que impõe a comprovação por um juiz de instrução da acusação deduzida pelo Ministério Público. Através desta opção legislativa, o legislador procura proteger o arguido contra acusações infundadas ou ilegais, enquanto se garante a liberdade de decisão ao juiz do julgamento quanto à valoração das provas produzidas e à fixação dos factos provados.»

Ou seja, o consenso entre um magistrado do Ministério Público que deduziu acusação e o juiz de instrução que apreciou os fundamentos da instrução e decidiu manter a acusação, bem como o facto da decisão instrutória ser uma decisão provisória, não definitiva, são garantia bastante de que se pode entrar na fase de julgamento, sem necessidade de submeter a recurso a decisão do juiz de instrução.

(c) Face ao exposto, a presente reclamação tem de ser desatendida porquanto os vícios apontados à decisão instrutória nas diversas alíneas da «Conclusão B» do recurso ou são vícios acorridos em momento anterior à decisão instrutória ou são vícios que não foram apreciados na decisão instrutória e, por isso, passaram a afetar a decisão instrutória em si mesma, como vícios da própria decisão instrutória.

E quanto a estes vícios, uns e outros, não há recurso, pelas razões que acabam de ser indicadas.

Concluindo, a irrecorribilidade prescrita no n.º 1 do artigo 310.º do Código de Processo Penal, relativa à decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, abrange os vícios da decisão em si mesma, como, por exemplo, a omissão de pronúncia ou a sua falta de fundamentação, bem como a decisão do juiz de instrução que posteriormente venha a pronunciar-se sobre eles, após a respetiva arguição.

IV. Decisão
Considerando o exposto, julga-se a reclamação improcedente.
Custas pelo arguido.

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Alberto Augusto Vicente Ruço 
(Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, por competência delegada - Despacho do
Ex.mo Sr. Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de março de 2022)