Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
520/13.7TBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
APOIO JUDICIÁRIO
CUSTAS
Data do Acordão: 06/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 248.º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO)
Sumário: I) Requerido e admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, há um regime de benefícios tributários automático e específico que se sobrepõe ou impede o processamento normal do apoio judiciário previsto na Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais (Lei nº 34/2004 de 29 de Julho), salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono.
II) Por isso, o devedor não pode ser dispensado do pagamento das custas.
Decisão Texto Integral:






Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos autos de insolvência de A… e B… , a correr termos pela 2ª Secção de Comércio da Instância Central de Alcobaça, Comarca de Leiria, foi decretada a exoneração do passivo restante relativamente à devedora B…  e determinado “o oportuno encerramento dos autos” por decisão de 04.02.2020.

Notificada da conta de custas, requereu a devedora em 21.10.2020 junto da Segurança Social o benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e restantes encargos processuais, o que lhe foi deferido.

Em 26.10.2020 a devedora requereu que em consonância fosse declarado que estava dispensada do pagamento das custas imputadas-

Por despacho de 27.10.2020 foi o processo de insolvência declarado encerrado por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas processuais e restantes dívidas.

Por despacho de 03.02.2021 decidiu-se indeferir na íntegra o requerido por B…., ficando a mesma desobrigada do pagamento das custas apuradas no presentes autos.

Notificada desta decisão, dela interpôs a devedora recurso, admitido como de apelação a subir imediatamente, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos cumpre decidir.

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação a recorrente levanta como única questão a de saber se, concedido a título definitivo o benefício da exoneração do passivo restante, cessa a aplicação do disposto nos nºs 1 e 4 do art.º 248 do CIRE, devendo a partir daí passar a ter lugar a dispensa do pagamento das custas por força da decisão do apoio judiciário que oportunamente havia sido proferida.

Contra-alegou o MºPº pugnando pela improcedência do recurso.

Apreciando.

Estabelece o art.º 248 do CIRE[1]:

1 - O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respectivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o organismo tenha suportado.

2 - Sendo concedida a exoneração do passivo restante, o disposto no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais é aplicável ao pagamento das custas e à obrigação de reembolso referida no número anterior.

3 - Se a exoneração for posteriormente revogada, caduca a autorização do pagamento em prestações, e aos montantes em dívida acrescem juros de mora calculados como se o benefício previsto no n.º 1 não tivesse sido concedido, à taxa prevista no n.º 1 do artigo 33.° do Regulamento das Custas Processuais.

4 - O benefício previsto no n.º 1 afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono.

No presente recurso está sobretudo em apreço a interpretação a dar ao nº 4.

Salvo o respeito sempre devido por quem pensa de modo diferente, esta interpretação não pode para nós ser outra que não a de que, requerido e admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, há um regime de benefícios tributários automático e específico que se sobrepõe ou impede o processamento normal do apoio judiciário previsto na LADT (Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais que é a Lei nº 34/2004 de 29 de Julho), salvo no que toca à modalidade prevista na parte final daquele nº 4.

Temos, portanto, como bem patente na aludida disposição, que, tendo presente as limitações do insolvente, o legislador quis facilitar ou simplificar a respectiva situação tributária, contemplando-o com o diferimento da obrigação do pagamento das custas e de reembolso dos valores devidos com remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário.

E apenas com isso.

Note-se que não há nisto uma dispensa definitiva mas um mero diferimento do pagamento dos montantes em causa até à decisão final do procedimento.

Mas os nºs 2 e 3 do mesmo art.º 248 são igualmente claros quando estatuem as consequências desse diferimento: se a decisão final for de concessão o devedor está obrigado a pagar os aludidos valores apenas tendo o benefício de o poder fazer em prestações nos moldes aí previstos; se for de não concessão todos os benefícios cessam sem mais.

Estas consequências são inexoráveis, pelo que não pode ser atribuído, antes ou depois, qualquer outra forma de apoio judiciário no que concerne às custas. Caso o tenha sido, ressalvada a nomeação de patrono e pagamento dos respectivos honorários, essa atribuição não poderá surtir qualquer efeito[2].

Aliás, mal se perceberia que o legislador tivesse previsto um especial pagamento em prestações dos aludidos montantes e, simultaneamente, o devedor ainda pudesse prevalecer-se da dispensa do pagamento das custas por efeito do apoio judiciário.

Bem se compreende que assim seja: a concessão do benefício implica apenas o desaparecimento das dívidas que incidiam sobre a insolvência, não abrangendo as custas que esta provocou. É este o alcance do art.º 245 do CIRE ao dispor que a exoneração importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência (o chamado “fresh start”).

Como contrapartida, deve o insolvente responder pelas custas que o seu rendimento disponível não tenha satisfeito, ainda que lhe seja consentido um regime de prestações especial quando lhe tenha sido concedida a exoneração do passivo restante.

Deste modo, para se eximir ao pagamento das custas do processo, não pode o devedor a quem foi outorgada a exoneração do passivo restante invocar o direito à protecção jurídica e ao acesso à justiça, e, designadamente que o benefício do nº 1 do art.º 248 se compagina com o regime geral consagrado para qualquer cidadão no âmbito do Acesso ao Direito e aos Tribunais, actualmente sustentado na Lei nº 34/2004, de 29 de Julho e respectivas alterações.

Isto não colide com o facto de um tal regime geral dar corpo ao imperativo constitucional de assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos, nos termos art.º 1º, nº 1, da Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais, (destacando-se, no contexto desta proteção jurídica, o apoio judiciário - art.º 6º - no qual se prevê - art.º 16º, nº 1, d) – a dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

Encontrando-se encerrada a insolvência, não há já lugar a uma actividade processual justificada, pelo que o insolvente não corre o risco ver beliscada a garantia constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva do art.º 20 da CRP.

Aliás, a partir do diferimento do pagamento decorrente do art.º 248 do CIRE deixou de o devedor de poder arguir qualquer limitação de natureza económica no seu acesso ao direito e aos tribunais no tocante ao processo.

Esgrime ainda a apelante com a inexistência de responsabilidade do devedor diante da norma do art.º 304 do CIRE, artigo no qual se prescreve que as custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente – e não do requerente – quando a insolvência seja decretada.

Mas não tem razão.

É certo que se a insolvência for decretada as custas são dívidas da massa (art.ºs 46, 47 e 51, nº 1, al.ª a) do CIRE).

Mas, ao lado desta responsabilidade directa, há uma responsabilidade indirecta e subsidiária pelas custas que a lei põe a cargo do devedor que requer a exoneração do passivo restante.

Com efeito, deflui do art.º 241, nº 1, al.ªs a) e b) do CIRE, que o fiduciário afecta os montantes recebidos no final de cada ano de cessão às custas da insolvência ainda em dívida e ao reembolso das remunerações e despesas do AI e do fiduciário.

Acontece que o aludido diferimento do pagamento previsto no art.º 248, nº 1, do CIRE tem justamente por objecto as custas, remunerações e despesas em relação às quais a massa insolvente e o rendimento disponível no período de cessão não tenham sido suficientes para o seu integral pagamento.

Por conseguinte, com a decisão final da exoneração subsiste a responsabilidade do devedor pelo pagamento das custas.

Trata-se aqui de uma responsabilidade subsidiária que sempre recai sobre o devedor não obstante ter apresentado o pedido de exoneração do passivo restante.

Daí que, respeitando esta responsabilidade subsidiária, a conta de custas tenha sido bem elaborada no que toca à sua imputação à devedora apelante.

Mesmo que a apelante pudesse socorrer-se do regime geral de protecção jurídica da Lei nº 34/2004 de 24 de Julho, a tudo isto se juntaria ainda o argumento do despacho recorrido de que o apoio judiciário da devedora, ora apelante, foi requerido extemporaneamente.

Com efeito, esse apoio foi requerido quando a devedora foi notificada da conta de custas, muito para além do limite temporal que se mostra claramente fixado no art.º 18, nº 2, da Lei nº 34/2004 de 24 de Julho: o da primeira intervenção processual ou da primeira intervenção após o conhecimento da insuficiência económica do requerente quando esta seja superveniente.

Em suma: o recurso soçobra.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

                        Coimbra, 15 de Junho de 2021 

    

                                               (Freitas Neto – Relator)

                                               (Paulo Brandão)

                                               (Carlos Barreira)       

 


[1] Seguimos aqui muito de perto o que o relator deixou consignado no acórdão desta Relação proferido na Apelação nº 419/13.7TBVIS.C1, acórdão em que desempenhou idêntica função.
[2] Também nos parece ser esta a interpretação de Carvalho Fernandes e João Labareda no seu CIRE Anotado, 2006, na nota 3 ao art.º 248. Em sentido diverso, todavia, se colocaram os Acórdãos da Rel. do Porto de 13.06.2018 e 11.09.2018, disponíveis em www.dgsi.pt/jtrp.