Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3389/09.2TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
FRACÇÃO AUTÓNOMA
PRÉDIO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Data do Acordão: 05/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 5º JUÍZO CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PERCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 830, Nº 1 DO CC
Sumário: 1. Num contrato-promessa de compra e venda de fracção autónoma de um prédio em regime de propriedade horizontal é admissível a execução específica da promessa não só em caso de mora mas também de incumprimento definitivo do promitente.

2. Mas só é de admitir que o incumprimento definitivo cabe na letra e na teleologia da norma do art.º 830, nº 1 do CC, na parte em que alude à “declaração negocial do faltoso”, desde que se prove que não se verificou um perda, objectivamente aferida, do interesse do credor na prestação prometida, e que tal prestação ainda é física e legalmente possível.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... intentou no 5º Juízo Cível de Leiria uma acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra B..., LDA, pedindo a execução específica do contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes em 20 de Maio de 2007, tendo, para tanto, alegado o seguinte:
Por contrato promessa reduzido a escrito a Ré prometeu vender-lhe, assim como o A. prometeu comprar-lhe, pelo preço global de € 110.000,00, determinada fracção autónoma de um prédio em regime de propriedade horizontal; a correspondente escritura pública deveria realizar-se até 28/02/2008, prazo que, por acordo, foi prorrogado até 28/05/2008; não obstante ter pago todas as quantias a que se vinculou, certo que é que nenhum representante da Ré compareceu nas datas, horas e locais que lhe foram designados para a celebração da aludida escritura, invocando a Ré a inexistência de qualquer contrato com o A.

Contestou a Ré B... e deduziu reconvenção.
Defendeu-se dizendo nunca ter outorgado qualquer contrato promessa com o A.; que sempre o por este junto é nulo, por não conter os requisitos do art.º 410 do CC; que a petição é inepta, por serem ininteligíveis quer o pedido, quer a causa de pedir; que o A. nunca pagou qualquer das quantias a que se obrigou no aludido contrato promessa, pelo que a haver incumprimento é, tão só, o do próprio A.. Em consequência, terminou com a improcedência da acção. Em reconvenção, alegando que o A. ocupa abusivamente a fracção desde Junho de 2008, e que o valor da renda que lhe seria proporcionada por esse gozo seria de € 500,00 mensais, pediu que aquele fosse condenado a desocupar e entregar-lhe a fracção, e, bem assim, a pagar-lhe a quantia de € 7.500,00 até à data da formulação do pedido reconvencional, acrescida daquele montante mensal até efectiva devolução.    

O A. replicou, pugnando pela improcedência das excepções e da reconvenção e alegando que as chaves da fracção lhe foram livremente entregues pela Ré, pelo que requereu a condenação da mesma como litigante de .

Houve ainda tréplica.

O A. procedeu ao depósito do remanescente do preço não pago – € 10.000,00 – juntando o respectivo comprovativo, bem como do cumprimento das obrigações fiscais inerentes à compra e venda da fracção em causa.

A final foi proferida sentença que julgando a acção procedente declarou transferida para o A. a propriedade da fracção autónoma designada pela letra F situada no 2º andar esquerdo do lote 23 da Urbanização (...), inscrito na matriz urbana da freguesia da (...) com o art.º (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o nº (...)/20070523; e condenou a Ré como litigante de má fé na multa de € 4 Ucs.

Inconformada, deste veredicto veio a Ré B... interpor recurso, admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

                                                                                  *

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação, a recorrente B... circunscreve o objecto recursivo às questões de saber se:

A decisão é nula, padecendo dos vícios aludidos nas alíneas b), c) e d) do nº 1 do art.º 615 do actual CPC;  
A decisão da matéria de facto deve ser alterada;
Ocorre a nulidade do contrato-promessa, por preterição das formalidades do art.º 410, nº 3, do CC;
Há mora do A.;
A estipulação de sinal afasta a execução específica do contrato promessa;
Mediante a modificação da matéria provada a reconvenção deve ser julgada procedente.

O A. e apelado contra-alegou.

Sobre a nulidade da sentença.

Invoca a apelante a nulidade da sentença recorrida por esta padecer dos seguintes vícios do nº 1 do art.º 615 do CPC:

Não especificação dos fundamentos de facto e de direito (al.ª b));
Oposição entre os fundamentos e a decisão (al.ª c);
Omissão de pronúncia sobre questões que devia conhecer (al.ª d).

Relativamente à pretensa falta de fundamentação de facto e de direito da sentença:
Assevera a apelante que a decisão recorrida não elenca “um único facto concreto” susceptível de fundar a não procedência da reconvenção.
Embora os factos relevantes para a apreciação do pedido reconvencional constem do acervo reunido, já no que toca aos fundamentos de direito da improcedência da reconvenção não há efectivamente qualquer alusão na parte dispositiva da sentença, que, aliás, até se mostra totalmente omissa quanto à sorte do pedido reconvencional.
Há, por conseguinte, uma omissão de pronúncia sobre a matéria da reconvenção e do respectivo pedido que se impõe declarar.
Importará, assim, suprir esta omissão, nos termos do art.º 665, nº 1, do CPC, o que se fará oportunamente.

Sobre a alteração da decisão da matéria de facto.

Insurge-se a apelante contra as respostas dadas aos nºs 1 a 11 e 18 a 22 dos factos provados, propugnando a sua modificação no sentido de a todas elas ser respondido Não provado.
Facilmente se constata que o tema probatório dos pontos 1 a 11 é o da autoria do contrato promessa de fls. 8, no que respeita à intervenção do gerente da Ré que declara subscrevê-lo; que o dos pontos 18 a 20 respeita aos três pagamentos intercalares imputados ao A. de harmonia com previsão do clausulado naquele contrato; e que os pontos 21 e 22 se relacionam com a anuência e consentimento da Ré para a ocupação do imóvel pelo A. desde Janeiro de 2008.
A impugnação será, por isso, apreciada separadamente em função de cada um dos temas probatórios suscitados.
É o seguinte o teor dos pontos 1 a 11:

                                                                                  1
Por acordo escrito a Ré prometeu vender ao Autor e este prometeu comprar livre de ónus, encargos ou responsabilidades o prédio mencionado em A. pelo preço de € 110.000,00?
                                                                                  2
Comprometendo-se o A. a entregar à Ré, na assinatura do acordo, a quantia de € 40.000,00?
                                                                                  3
E, no prazo de 90 dias a contar da assinatura do acordo, a quantia de € 20.000,00?
                                                                                  4
O Autor comprometeu-se a entregar à Ré, na assinatura do acordo, a quantia de € 20.000,00?
                                                                                  5
E, no prazo de 90 dias a contar da entrega mencionada em 4, a quantia de € 20.000,00?
                                                                                  6
Acordaram que, com a entrega da chave o Autor entregaria à Ré € 20.000,00, tomando posse provisória do imóvel?
                                                                                  7
Devendo os restantes € 10.000,00 ser pagos no dia da celebração da escritura?
                                                                                   8
Autor e Ré acordaram que as despesas decorrentes com registos provisórios, definitivos, certidões, sisa e escritura seriam suportadas pelo Autor?
                                                                                  9
Autor e Ré acordaram que a escritura seria celebrada até 28 de Fevereiro de 2008, podendo tal prazo ser dilatado em 90 dias?
                                                                                  10
Autor e Ré acordaram em dispensar em dispensar o reconhecimento notarial das assinaturas no acordo mencionado em 1?
                                                                                  11
A Ré assinou o acordo mencionado em 1?
                                                                          18
O autor entregou ao legal representante da Ré em 10-08-2007 a quantia de € 20.000,00?
                                                                             19
O autor entregou ao legal representante da ré em 07-11-2007 a quantia de € 20.000,00?
                                                                            20
O autor entregou ao legal representante da ré em 4-01-2008 a quantia de € 20.000,00?
                                                                           21
Em Janeiro de 2008 o legal representante da Ré entregou ao A. a chave do imível mencionado em A?
                                                                          22
Ocupando o imóvel desde essa data?                      


Sobre os nºs 1 a 11 e 18 a 20:
Entende a recorrente B... que não se fez prova pericial da assinatura constante do contrato promessa do aí mencionado sócio-gerente C... e que o depoimento do A. e da testemunha D..., em se teria apoiada a decisão da 1ª instância, seriam inidóneos para a demonstração de que o mesmo teve a intervenção da sociedade ora recorrente.
Vejamos.

O que está verdadeiramente no cerne da impugnação do documento de fls. 8 (cfr. o art.º 10 da contestação em que a Ré declara impugnar o teor bem como a letra e assinatura do doc. nº 3, com referência à p.i.)) não é a representação legal da Ré no contrato escrito de fls. 8: é apenas a questão de saber se a assinatura ali aposta pertence ao indicado sócio-gerente C.... Não se compreenderia, aliás, que nunca tendo sido tal pessoa representante da Ré, ou, pelo menos, não o sendo na data da outorga do aludido contrato, esse facto ou circunstância não tivesse sido desde logo adversado na respectiva contestação.
Justifica-se, apesar de tudo, a transcrição do excerto da fundamentação da 1ª instância a este respeito inserido a fls. 172, ainda segundo o formalismo anterior à reforma processual de 2013:
“ … começaremos por dizer que a matéria relacionada com a elaboração do contrato promessa, designadamente a matéria referente à sua efectiva outorga entre A. e Ré, se fundamenta no depoimento da testemunha D..., pelas razões de ciência supra indicadas. O depoimento de parte do autor foi conjugado com este depoimento e ainda com o documento que se mostra a fls. 8, sendo possível visualizar que do mesmo consta a assinatura do sócio gerente da ré, à data, bem como do carimbo da Ré que apesar de sumido, consta do mesmo documento. Do confronto deste documento com a certidão narrativa de matrícula da Ré a fls. 161 é possível constatar que em 20.05.2007 C... era sócio-gerente da Ré, funções que exerceu desde 20.06.2005 (fls. 163) até 03.03.2008 (fls. 164).”
Não nos sendo possível divisar (ainda que “sumido”) o dito carimbo da Ré, isso não nos impede de aferir da respectiva vinculação no contrato.
Ao invés do que assevera o apelante, a prova da autoria do documento é livre: não há aqui uma prova legal ou vinculada, nomeadamente, não há qualquer imposição de prova pericial.
Ora não resta a menor dúvida de que o mencionado C... era à data sócio-gerente da Ré, como se infere da certidão mencionada.
E da prova testemunhal produzida extrai-se que foi esse sócio-gerente quem subscreveu o documento em apreço.
Tal como dela decorre que foi esse mesmo sócio-gerente quem emitiu os recibos ou declarações de quitação de fls. 59, 60 e 61, a que se reportam os nºs 18 a 20 da b.i..
Tendo-se procedido à integral audição da prova gravada, foi possível apurar que sobre a autoria do contrato promessa de fls. 8 recaiu directamente o depoimento de D..., funcionária de um agência de documentação, sendo também de considerar o da testemunha E..., funcionário de uma agência de contabilidade que prestou apoio à Ré, ora apelante.
Ora aquela testemunha – D... – prestou um depoimento sereno e absolutamente credível no sentido do conhecimento pessoal daquele gerente da Ré e também quanto ao facto de lhe ter cedido minutas para o contrato promessa e recibos e à sua identificação com os que estão em causa nestes autos.
No que respeita à testemunha E..., embora se afigure como verosímil o que afirma sobre a prestação de serviços de contabilidade e assessoria diversa à Ré B..., o seu depoimento não é excludente da possibilidade de aquele C..., sendo ainda gerente da Ré, ter querido evitar o registo contabilístico dos valores entregues pelo A., omitindo o contrato à empresa do depoente.
Donde que as respostas de Provado dadas aos nºs 1 a 11 e 18 a 20 se nos afigurem estar perfeitamente adequadas à prova testemunhal e documental (esta de fls. 8, 59, 60 e 61), sendo de manter intocadas.

Sobre os pontos 21 e 22:

Consta do documento de fls. 79 que em 4 de Janeiro de 2008, através do então seu sócio-gerente C..., a Ré B... entregou a chave da fracção ao A. com o recebimento da quantia de € 20.000,00. De resto, a entrega da chave ao promitente comprador estava já consignada no nº 4 da cláusula 3ª do contrato promessa de fls. 8.
As testemunhas F... e G..., que foram as primeiras a habitar no prédio, desmentem que o A. se tenha introduzido na fracção por arrombamento ou outro modo violento.   
Nesta conformidade, a resposta de provado dada a estes números é a única coerente com a prova produzida.
Daí que a impugnação da matéria de facto tenha de improceder in totum.


A questão da nulidade do contrato promessa.

Para a hipótese de se dar como provada a celebração do contrato de promessa invocado pelo A., aduz a apelante que o mesmo se tem de haver por nulo uma vez que dele não consta o reconhecimento presencial das assinaturas a que alude o nº 3 do art.º 410 do CC.
Está provado que o contrato-promessa foi outorgado.
Mas não tem a apelante razão quanto à suposta nulidade.

Com efeito, se é exacto que aquele reconhecimento não consta do documento, o fundamento da formalidade em causa é o da tutela do futuro adquirente, procurando-se salvaguardar os interesses da parte contratualmente mais fraca[1], razão que explica o modelo restritivo da legitimidade activa da arguição de nulidade que foi consagrado na parte final do nº 3 do art.º 410 para a promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão de direito real sobre fracção autónoma de edifício construído ou a construir: “o contraente que pretende transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.”
Nada tendo sido alegado a tal respeito pela Ré – que é a promitente-vendedora – isto é, não tendo sido aduzido qualquer facto ou circunstancialismo susceptível de configurar dolo ou negligência do A., como promitente-comprador, para a omissão do requisito, a arguição da aludida nulidade não pode ser atendida.
Donde que improceda a questão em apreço.

Da eventual mora do A.

Alegou a apelante que o A. está em mora porquanto não efectuou os pagamentos das quantias mencionadas na cláusula terceira do contrato promessa.
Sucede que não tendo sido acolhida a impugnação da decisão de facto, o acervo reunido nos autos comprova o facto contrário: o A. efectuou todos os pagamentos previstos no contrato.
Inexiste, portanto, a aludida mora do A.

Quanto à execução específica.

Objecta também a apelante com a ausência de requisitos para a execução específica do contrato promessa, invocando expressamente a circunstância de ter existido convenção de sinal.
Mas sem êxito, também neste ponto.
É que, tal como se enfatizou na decisão recorrida, uma vez que o objecto contratual se reconduz a uma promessa do tipo identificado no art.º 410, nº 3, do CC, aplica-se-lhe a primeira parte do nº 3 do art.º 830: “O direito à execução específica não pode ser afastado pelas partes”. O que significa que a existência do sinal não pode ter o valor de “convenção em contrário” para o efeito do nº 2 do mesmo artigo.
Questão que se prende com a execução específica do contrato promessa é ainda a de saber se ela é admissível havendo incumprimento definitivo do promitente (havendo mora o problema não se coloca), atenta a aparente amplitude da redacção do nº 1 do art.º 830.
 
Estamos aqui, como se sabe, perante uma quase vexata questio. Relativamente a ela tem-se manifestado uma tendência da doutrina e da jurisprudência para o entendimento que confina a execução específica da promessa à mera mora ou incumprimento temporário, embora uma parte da doutrina e um sector significativo da jurisprudência a admita restritivamente em algumas situações de inadimplemento definitivo.

A sentença ora criticada no recurso concedeu em aceitar a execução específica da promessa da Ré, não obstante ter dado como adquirido o incumprimento definitivo respectivo com base numa recusa inequívoca da mesma em cumprir, recusa que se acharia plasmada na carta que em 16.06.2008 enviou ao A. negando com ele ter celebrado qualquer contrato promessa.
Sem embargo de à hipótese concreta não caber o clássico conceito de recusa do cumprimento, mas antes de negação da própria promessa, e, por essa via, da existência, em si, da obrigação de celebração do contrato prometido, cremos ter sido acertada a opção final da decisão sob recurso (pela declaração de execução específica).
Se não, detenhamo-nos na teleologia que está na origem do instituto da execução específica.
        
No âmbito da realização coactiva da prestação, e no que concerne aos contratos-promessa, estatui-se no art.º 830, nº 1 do CC que Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso se não oponha a natureza da obrigação assumida”.
Sendo pacificamente entendido que a expressão “contraente faltoso” cobre sempre a simples mora ou atraso na prestação, já não suscita tal unanimidade a ideia de que ela também abarca o chamado incumprimento definitivo e as situações que a ele devem ser equiparadas, isto é, aquelas que, em consequência da mora, e de acordo com o art.º 808 do CC, envolvem a perda do interesse do credor ou o não acatamento de uma interpelação admonitória para o cumprimento em prazo suplementar razoável (recusa tácita); e, bem assim, a recusa implícita ou ostensiva em cumprir (antecipadamente manifestada ou não), ou a impossibilidade da prestação por causa imputável ao devedor, conforme o disposto nos art.ºs 798 e 801, nº 1 do CC.
Segundo a notícia que nos é dada por GRAVATO MORAIS in Contrato-Promessa em Geral, Contratos-Promessa em Especial, Almedina, 2009, 109, considerando que a execução específica está limitada ao caso de mora no cumprimento da promessa, podem citar-se HENRIQUE MESQUITA (in Obrigações e Ónus Reais, 233); CALVÃO DA SILVA (in Sinal e Contrato-Promessa, 154); MENEZES LEITÃO (in Direito das Obrigações, I, 227; ALMEIDA COSTA (in RLJ, 124, 94). Sustentando a aplicabilidade do mecanismo, pelo menos, a algumas hipóteses de incumprimento definitivo, refere aquele autor as posições de JANUÁRIO GOMES, (Temas de Contrato-Promessa, 17); MENEZES CORDEIRO (O novíssimo regime do contrato-promessa); e A.VARELA (Direito das Obrigações, I, 351 e ss).  
A jurisprudência parece ter pendido para esta última orientação, sendo disso paradigmático o Ac. do STJ de 04/03/2008[2].
Temos hoje por preferível a interpretação que deixa aberta a porta da execução específica também aos casos em que, sem embargo do incumprimento definitivo do promitente, não houve perda de interesse objectivo do credor e a prestação objecto da promessa é ainda fisicamente ( e legalmente) possível[3].
A inserção sistemática da execução específica no âmbito da Secção epigrafada de Realização coactiva da prestação, e a referência única ao contrato promessa, só podem inculcar que a lei considera essa forma executiva a consequência jurídica natural do não cumprimento (possível) do contrato promessa, visto que é pelo efectivo suprimento por parte do Juiz que se consegue o mesmo resultado que se obteria com a declaração negocial em falta, isto é, com a manifestação da vontade do contraente incumpridor. Temos, portanto, como mais razoável a tese que não afasta totalmente tal suprimento em situações de incumprimento definitivo, desde que viável sob o ponto de vista do interesse do credor promissário tomado objectivamente. Isto porque o meio coactivo para obter a realização do contrato prometido mediante a acção prevista no art.º 830º do CC. compreende-se como acto substitutivo de uma manifestação de vontade que seria possível do lado do promitente, de um contrato ainda por concretizar. Só se inviabilizada tal manifestação de vontade pela ruptura do contrato pelo contraente beneficiário da promessa é que haverá tão só que reparar o dano ocasionado (aqui coincidindo com o respectivo interesse contratual positivo). Não há lugar, neste caso, à realização forçada da prestação porque a vontade desse contraente inocente não é mais a de consumar o contrato, por se ter colocado na posição de o repudiar, sem prescindir do direito à indemnização que daí possa advir. Dito por outras palavras, com o decretamento da execução específica o tribunal apenas emite a declaração negocial omitida, o que pressupõe que ao beneficiário da promessa sempre interessou o acto de cumprir, e, assim, de perfeccionar o negócio.
Como é óbvio, a recusa do cumprimento pelo contraente-promitente não acarreta, por si só, a perda de interesse objectivo na prestação (ou seja, a declaração negocial) do contraente beneficiário da promessa, sendo esta ainda possível.
Persistindo esse interesse do lado do credor da promessa, não há que premiar o infractor, evitando-lhe a execução específica e confinando-o a um mero direito de indemnização, porventura de menos segura concretização.
O interesse do credor na prestação que para este fim há que aferir é o que decorre de um juízo objectivo e de normalidade sobre as circunstâncias que precedem a acção. Não o meramente subjectivo, que está obviamente evidenciado no próprio pedido de execução específica.
Em suma, também sufragamos a visão de que o incumprimento definitivo cabe na letra e na teleologia da norma do art.º 830, nº 1 do CC, na parte em que alude à “declaração negocial do faltoso”, contanto que não haja existido perda de interesse credor na prestação prometida, objectivamente aferida, e tal prestação ainda seja possível.
No caso vertente, é indiscutível que houve uma negação da obrigação prometida, negação que foi, aliás, o motivo expresso do não cumprimento da Ré, ora apelante; mas objectivamente não se divisa que em qualquer momento tenha ocorrido perda de interesse do A. no cumprimento dessa obrigação.
Como a declaração negatória da Ré tem o efeito prático de um incumprimento culposo (e mesmo doloso) – na medida em que se configura como uma declaração inegavelmente incompatível com o cumprimento – e sendo ela tão só uma das variantes do inadimplemento definitivo, há que postular que, comprovada tal negação por banda da Ré, completado está o substrato fáctico idóneo a desencadear a produção do efeito negocial previsto pelo art.º 830, nº 1, do CC.
Na realidade:
Há incumprimento da promessa efectuada pela Ré, mantendo-se o assinalado interesse do A. na prestação;
Não opera aqui qualquer convenção em contrário face à imperatividade do nº 3 do art.º 830 do CC;
Não há oposição da natureza da obrigação (parte final do nº1 do art.º 830).
Donde que nada obstasse à execução específica do contrato-promessa nos termos declarados na sentença.
Pelo que improcede a questão a este título suscitada.

O pedido reconvencional.

Como se concluiu na apreciação das nulidades da sentença, esta não chegou a pronunciar-se sobre o fundamento da reconvenção e a tomar posição sobre a sua procedência ou improcedência.
Cumpre-nos, agora, constatada essa nulidade, decidir em substituição do tribunal a quo.
Em reconvenção pediu a Ré a condenação do A. a indemnizá-la pela ocupação abusiva da fracção prometida vender a partir de Junho de 2008, em consequência do respectivo arrombamento.
Esta factualidade, constante do nº 12 da base instrutória, não se provou.
Ao invés, demonstrado ficou que o A. passou a ocupar a fracção em Janeiro de 2008 por virtude da entrega da respectiva chave pelo legal representante da Ré.
Ou seja, soçobrou a Ré na prova do facto ilícito e do inerente dano na propriedade imputados à conduta do A. de que dependia a responsabilidade que lhe imputava.
Pelo que o pedido reconvencional tendente à indemnização com esse fundamento cai pela base.

Sobre a condenação da apelante como litigante de má fé.

Na conclusão 26ª do recurso a apelante rebela-se contra a sua condenação como litigante de nos termos do art.º 542 do CPC.
Porém, só o fez porque acreditou na alteração de decisão de facto no que concerne à celebração do contrato promessa (que afirmou não se ter verificado).
Subsistindo o contrato-promessa e a sua outorga, é patente que a apelante não visou contrariar aquele segmento da sentença.

 
Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, acordam em:

A – Declarar a nulidade da sentença recorrida por se não ter pronunciado sobre a reconvenção, e, em substituição do tribunal recorrido, julgar a reconvenção improcedente por não provada, absolvendo o A. do respectivo pedido:
B – Confirmar a sentença recorrida, mantendo a declaração de transferência para o A. da propriedade da fracção autónoma aí identificada, e, bem assim, os termos condenação da Ré como litigante de má fé.
Custas pela apelante.

                                   Coimbra, 20 de Maio de 2014  


Freitas Neto (Relator)
Carlos Barreira
Barateiro Martins

[1] Neste sentido, vide Gravato de Morais, ob. e ed. citadas, p. 267-268..
[2] Relatado pelo Ex.mo Cons. Fonseca Ramos, disponível no ITIJ, P. 8A272, Doc. nº ST20080304002726.
[3][3] Apontando Gravato de Morais (ob. e ed. citadas, p.108) que teria sido esta a orientação perfilhada por Antunes Varela em “O Novíssimo Regime do Contrato Promessa”, Estudos de Direito Civil, p. 85, e do Ac. do STJ de 29/04/2004, relatado pelo Ex. Cons. Salvador da Costa, in www.dgsi.pt.