Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2520/07.7TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: ACÇÃO NEGATÓRIA DE SERVIDÃO
ÓNUS DA PROVA
NULIDADE PROCESSUAL
SANAÇÃO DA NULIDADE
Data do Acordão: 01/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA 3º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 1305.º DO CÓD. CIVIL,
Sumário: I - Na acção negatória de servidão ao réu cabe o ónus de provar os factos que conduzem à conclusão de que esta (a servidão) existe, mas ao autor cumpre provar o direito de propriedade sobre o imóvel de que se alega titular.

II - Sendo cometida alguma nulidade processual, para a sanar, deve, em regra, apresentar-se reclamação, não constituindo, em princípio, o recurso o meio próprio para esse fim.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A (...) e B (...)instauraram, na comarca de Coimbra, a presente declarativa, com processo sumário, contra C (...)e D (...), pedindo que seja declarada a inexistência de qualquer direito de acesso, servidão, uso ou utilização, em favor dos réus, através do logradouro situado a tardoz[1] da fracção autónoma designada pela letra C do prédio urbano situado na Quinta (...), (...), composto de edifício para habitação de rés-do-chão e 1.º andar, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º (...), da freguesia de (...), Coimbra, propriedade sua.

Alegam, em síntese, que são donos do referido imóvel e que, desde há mais de 25 anos e sem qualquer interrupção, usam para lazer, confeccionar, tomar refeições e estender roupa, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, convictos de que o mesmo só a si pertence e que a porta e janela voltadas para o logradouro situado a tardoz da fracção autónoma sempre se mantiveram fechadas e nunca serviram para aceder a ele. Este prédio confronta a norte com um prédio urbano sito em (...), (...), descrito na 2ª Conservatória de Registo Predial de Coimbra sob o n.º X (...), da freguesia de (...), como sendo composto de casa de habitação de rés-do-chão e logradouro, que M (...), falecida a 26 de Dezembro de 1990, por testamento legou ao réu. Os réus, uns meses antes da propositura da presente acção, começaram a utilizar a dita porta para acederem a esse logradouro apesar de sobre ele não lhes assistir qualquer direito de utilização ou de passagem.

Os réus contestaram dizendo, em suma, que os prédios em causa foram construídos num terreno que constituía um único prédio e que aquando da construção dos edifícios ficou na parte de trás uma parcela de terreno que se desenvolvia em dois níveis e que se destinava a servir-lhes de logradouro, deitando a porta e janela mencionadas pelos autores para o logradouro situado no plano inferior, que faz parte integrante do seu prédio. Logradouro esse que sempre esteve ligado ao do prédio confinante, este situado num nível superior, por quatro degraus, dando passagem para um outro, primeiro à anteproprietária dos dois prédios e, depois, a eles próprios.

Assim, invocando como título aquisitivo a usucapião e a destinação de pai de família, concluem que a favor daquele seu prédio e logradouro que o integra se acha constituída uma servidão de passagem, uso e utilização, que onera o logradouro do prédio dos autores.

Os autores responderam afirmando que o logradouro em questão era utilizado na sua totalidade por M (...), enquanto proprietária quer do prédio de que os réus são donos, quer de todo o prédio de que fazem parte as fracções autónomas de que eles (os autores) são donos, mas que a partir do momento em que as adquiriram àquela, em 1982, a fruição do logradouro passou a ser exclusivamente sua.

Consideram que os réus alteraram conscientemente a verdade dos factos, e, nessa medida, devem ser condenados como litigantes de má-fé, em multa e indemnização a seu favor em quantitativo não inferior a € 2 000,00.

Os réus, pronunciando-se sobre o incidente da litigância de má-fé, sustentaram que são os autores quem altera a verdade dos factos e faz um uso reprovável do processo devendo, por isso, ser condenados como litigantes de má-fé em multa e indemnização.

Proferiu-se despacho saneador, fixaram-se os factos assentes e elaborou-se a base instrutória.

Realizou-se julgamento e foi proferida sentença em que se decidiu:

"- julgar improcedente a acção que A (...) e B (...) instauraram contra C (...)e D (...) e, em consequência, absolver os Réus do pedido;

- julgar improcedentes os incidentes da litigância de má-fé deduzidos por Autores e Réus".

Inconformados com tal decisão, os autores dela interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação e com efeito meramente devolutivo, concluindo a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1.ª- Por força da absoluta falta de fundamentação da resposta dada à matéria de facto, a decisão proferida sobre a mesma enferma de nulidade, que se invoca nos termos e para os efeitos do disposto no art. 201.º do CPC.

2.ª- Caso tal não suceda, os Recorrentes entendem que o ponto 12 dos factos considerados provados se encontra incorrectamente julgado, uma vez que se encontravam nos autos meios probatórios que impunham decisão diversa da proferida, concretamente, o depoimento da testemunha I.(...), devidamente identificada nos autos, na acta de fls… com a referência 2312306, que indicada aos quesitos 1 a 8, 23 e 24 da base instrutória, foi ouvida à matéria deles constante, encontrando-se as suas declarações registadas em CD, segundo o sistema WMA, com uma duração de 25 minutos e 18 segundos.

3.ª- Do depoimento de tal testemunha, designadamente do registado à passagem dos minutos 1:05, 1:50, 2:30, 2:60, 3:48 e 4:34 resulta claramente que os AA. usam como sua a parcela de terreno situada a tardoz dos seus prédios e identificada nos pontos 9 e 10 dos factos provados, há cerca de 30 anos, ou, pelo menos 28 anos.

4.ª- Decorrente de tal prova entende-se que este Tribunal ad quem, lançando mão da norma contida no art. 712º do CPC, deve alterar a decisão proferida quanto à matéria de facto, alterando o ponto 12 dos factos dados como provados que deverá passar a ter a redacção “Os Autores cozinham na churrasqueira e tomam refeições na parcela de terreno situada a tardoz dos prédios identificados nos pontos 1 e 2 desde há, pelo menos, 28 anos.

5.ª- Os RR. não cumpriram o ónus probatório que sobre si recaía, tendo em conta o especialíssimo regime fixado no n.º 1 do art. 343º; uma vez que não fizeram a necessária prova ao reconhecimento e declaração do direito reclamado na sequência da articulação pelos AA. do estado de incerteza com que se debatem e cuja superação reclamam do Tribunal,

6.ª- Se aos RR. interessava o reconhecimento do Direito de acesso, servidão, uso ou utilização da parcela em causa nos autos, competia-lhes alegar e provar factos de que resultasse a existência de tal Direito; o que não sucedeu.

7.ª- A tal propósito, apenas foi dado como provado, sob o n.º 16, materialidade que não encontra qualquer contextualização temporal, não se tendo apurado em que momento foram praticados tais actos – desde quando, e até quando -; sendo também certo que os RR. não provaram ter praticado quaisquer uns na parcela em causa nos autos.

8ª- Em consequência da falta de cumprimento do ónus probatório que sobre si recaía, não podem os RR. ver acolhida a sua pretensão, devendo, extrair-se a necessária conclusão de inexistência do Direito, declarando-se procedente, por provada, a acção proposta pelos AA. e, consequentemente, inexistente qualquer Direito de acesso, servidão, uso ou utilização a favor daqueles RR.

9.ª- Ao decidir como decidiu, a sentença ora posta em crise violou frontalmente o preceituado nos arts. 343.º, 346.º, 516.º, 1263.º, 1268.º, 1287.º, 1317.º, al c), todos do C. Civil.

Terminam afirmando que "deverá declarar-se nulo todo o processado posterior à audiência de discussão e julgamento em consequência da omissão absoluta de fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Caso assim não se entenda, o que se admite por mera hipótese académica;

Deverá ser ordenada a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto constante do ponto 12 dos factos dados como provados, revogando-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo e substituindo-a por outra que, considerando a acção procedente, declare a inexistência de qualquer direito de acesso, servidão, uso ou utilização a favor dos RR. sobre a parcela de terreno devidamente identificada nos autos".

Os réus contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do Código de Processo Civil[2], as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) há alguma nulidade decorrente da "absoluta falta de fundamentação da resposta dada à matéria de facto"[3].

b) há erro no julgamento da matéria de facto dos quesitos 1.º e 2.º;[4]

c) "os RR. não cumpriram o ónus probatório que sobre si recaía, tendo em conta o especialíssimo regime fixado no n.º 1 do art. 343º; uma vez que" (…) se lhes "interessava o reconhecimento do Direito de acesso, servidão, uso ou utilização da parcela em causa nos autos, competia-lhes alegar e provar factos de que resultasse a existência de tal Direito."[5]


II

1.º


A primeira questão que os autores colocam prende-se com a alegada nulidade decorrente da "absoluta falta de fundamentação da resposta dada à matéria de facto"[6]. Para o efeito afirmam que "a decisão proferida sobre a matéria de facto não se encontra disponível nos autos", à qual "os ora Recorrentes não lograram nunca aceder, pese embora as múltiplas tentativas de consulta física ao processo (sempre infrutíferas, refira-se), e as também sucessivas consultas ao sistema informático Citius onde apenas se encontra lançada, após a mencionada acta de 19/05/2010 com lançamento a 20/05/2010, a conclusão electrónica com sentença do dia 02/05/2011."[7]

Antes de mais, há que salientar que não é verdade que "a decisão proferida sobre a matéria de facto não se encontra disponível nos autos"; ela está nas folhas 214 a 220, como facilmente se pode constatar. Se a sua junção ao processo não foi realizada em obediência às regras estabelecidas no Código de Processo Civil e se, em caso afirmativo, daí decorre alguma nulidade, é questão diversa, que aqui não foi colocada.

Por outro lado, examinando essa decisão facilmente se constata[8] que nela a Meritíssima Juíza a quo fundamenta as respostas que deu à matéria de facto, pelo que também não assiste razão aos autores quando afirmam que há uma "absoluta falta de fundamentação da resposta dada à matéria de facto".

Portanto nenhuma nulidade pode daí decorrer.

De qualquer forma, face à afirmação dos autores de que "não lograram nunca aceder (à decisão proferida sobre a matéria de facto), pese embora as múltiplas tentativas de consulta física ao processo (sempre infrutíferas, refira-se), e as também sucessivas consultas ao sistema informático Citius", convém lembrar que se essa impossibilidade se traduz numa nulidade processual, então há que considerar que o artigo 202.º dispõe que "das nulidades mencionadas nos artigos 193.º e l94.º, na segunda parte do n.º 2 do artigo 198.º e nos artigos 199.º e 200.º pode o tribunal conhecer oficiosamente, a não ser que devam considerar-se sanadas. Das restantes só pode conhecer sobre reclamação dos interessados, salvos os casos especiais em que a lei permite o conhecimento oficioso".

Percebe-se, assim, o famoso postulado de que "dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se". Na verdade, face a uma nulidade processual o interessado tem que contra ela reclamar[9] e a reclamação é apresentada e julgada[10] no "tribunal perante o qual a nulidade ocorreu, ou o tribunal a que a causa estava afecta no momento em que a nulidade se cometeu"[11].

"As nulidades processuais que não se reconduzam a alguma das nulidades previstas no art. 668.º, als. b) a e), estão sujeitas a um regime de arguição ou preclusão que não é compatível com a sua invocação apenas no recurso da decisão final. A impugnação que neste recurso eventualmente se possa enxertar deve restringir-se à decisões que tenham sido proferidas sobre reclamações oportunamente deduzidas com base na omissão de certo acto, da prática de outro que a lei não admita ou da prática irregular de acto que a lei previa"[12].

Deste modo, se os autores entendem que antes de ser proferida a decisão recorrida foi cometida alguma nulidade[13], de que necessariamente se terão apercebido face às "múltiplas tentativas de consulta física ao processo" e às "também sucessivas consultas ao sistema informático Citius", tinham que, em devido tempo, dela ter reclamado no tribunal a quo e, julgada essa questão, se discordassem da respectiva decisão poderiam, então, questioná-la em sede de recurso[14].


2.º

Os autores sustentam que, no que se refere ao julgamento da matéria de facto dos quesitos 1.º e 2.º, a prova dos autos conduz a conclusões diferentes das extraídas pelo tribunal a quo.

Estes quesitos têm o seguinte teor:

"1.º Os Autores, desde há mais de 25 anos, cozinham na churrasqueira existente na parcela de terreno referida na alínea J')[15]?

2.º Aí tomando refeições?

A eles a Meritíssima Juíza a quo respondeu:

"1.º Provado apenas que os Autores, desde de data indeterminada de um lapso de temporal situado entre 1991 e 1997, cozinham na churrasqueira existente na parcela de terreno situada a tardoz dos prédios identificados nas alíneas A) e H).

2.º Provado; "

Segundo os autores estes quesitos devia-se ter respondido provado que "os Autores cozinham na churrasqueira e tomam refeições na parcela de terreno situada a tardoz dos prédios identificados nos pontos 1 e 2 desde há, pelo menos, 28 anos."

Facilmente se percebe que a divergência entre os autores e o juízo formulado pela Meritíssima Juíza a quo se situa ao nível do momento a partir do qual se deve ter por certo que aqueles usam a "parcela de terreno situada a tardoz dos prédios identificados nas alíneas A) e H)"; se desde "um lapso de temporal situado entre 1991 e 1997" ou se "desde há, pelo menos, 28 anos." E, por outro lado, não se compreende por que se impugnou a resposta dada ao quesito 2.º, quando, na realidade, o tribunal a quo respondeu-lhe no sentido pretendido pelos autores.

No que se refere à matéria do quesito 1.º convém começar por salientar que, quanto ao momento em que foi feita a churrasqueira, as testemunhas I (...)[16] e F (...)[17] referem que foi há 6/7 anos, G (...) diz que isso aconteceu depois de se ter mudado para a sua actual casa (ou seja há menos de 13 anos[19]), H (...) [20] afirma que ela foi colocada quando os autores fizeram obras nesse espaço numa altura em que a testemunha era vizinha deles, (o que implica que tenha sido depois de Setembro de 2000) e J (...) [21] e L (...)[22] falam em "meia dúzia de anos".

Ora, tendo estes depoimentos sido prestados em 2010, e havendo um consenso alargado relativamente a 6 ou 7 anos atrás, como sendo o momento em que a churrasqueira foi construída, nunca da resposta ao quesito 1.º poderá resultar, mesmo que de forma indirecta, que ela já existia antes de 2003/2004.

Por outro lado, no que toca à data a partir da qual os autores passaram a utilizar a "parcela de terreno referida na alínea J')" para aí cozinharem e tomarem refeições, temos que I (...) diz que isso acontece há cerca de trinta anos, mencionando que aí faziam "patuscadas" e que havia lá uma mesa. O depoimento desta testemunha não foi, nesta parte (na referência aos 30 anos), confirmado por qualquer outro e esta revelou-se bastante insegura quando foi instada pelo Ilustre Mandatário dos réus, tendo, por mais do que uma vez, respondido à questão que então lhe era colocada dizendo que já não se lembra, revelando pouca convicção em alguns aspectos. E fica por perceber por que é que a sua memória reteve certos factos e outros não.

As testemunhas G (...) e H (...), pese embora tenham feito ligeiras correcções a algo que antes tinham dito, depuseram com isenção e objectividade. Eles referem que os autores utilizavam esse espaço para aí tomar refeições, acrescentando esta última que nelas também participavam familiares e amigos.

Porém, G (...) só presenciou, o que neste aspecto relatou, depois de ir viver para a sua actual casa, há cerca de 13 anos[23], ou seja, desde por volta de 1997. E H (...) só tem conhecimento desses factos depois de Setembro de 2000, altura em que passou a ser vizinho dos autores.

Mais ninguém depôs sobre esta matéria.

Perante esta prova, não é possível afirmar em que momento é que os autores iniciaram a utilização deste espaço, pois, nesse aspecto, não se atingiu um patamar mínimo de certeza; mas ela é suficiente para poder ter-se como certo que isso acontece pelo menos desde 1997.

Assim, respondendo conjuntamente aos quesitos 1.º e 2.º, considera-se provado apenas que os autores, desde pelo menos 1997, cozinham e tomam refeições na parcela de terreno referida na alínea J') e utilizam uma churrasqueira que aí existe desde por volta de 2003/2004.


3.º

Estão provados os seguintes factos:

1. Na 2.ª Conservatória de Registo Predial de Coimbra encontra-se descrito sob o n.º (...), da freguesia de (...) um prédio urbano situado na Quinta (...), (...), composto de edifício para habitação de rés-do-chão e 1º andar, com a área coberta de 78 m2 garagem e arrumo com 19 m2 e área descoberta com 67 m2, a confrontar do norte com M (...), do sul e poente com estrada e do nascente com E (...) (alínea A));

2. Este prédio confronta a norte com um prédio urbano sito em (...), (...), descrito na 2ª Conservatória de Registo Predial de Coimbra sob o n.º X (...), da freguesia de (...), como sendo composto de casa de habitação de rés-do-chão e logradouro, com a área coberta de 30 m2 e descoberta de 10 m2, a confrontar do norte com Q(...), do sul com M (...), do poente com estrada e do nascente com E (...)(alínea H));

3. Os prédios referidos foram construídos num terreno que constituía um prédio único descrito sob o n.º Y(...), do Livro n.º 99, fls. 198, da 2.ª Conservatória de Registo Predial de Coimbra, do qual foram desanexados (alínea J));

4. Por escritura outorgada em 18.Outubro.1978 M (...), invocando a qualidade de proprietária do referido prédio, declarou constitui-lo em propriedade horizontal passando o mesmo a ser constituído por quatro fracções autónomas individualizadas pelas letras “A”, “B”, “C” e “D” descritas nessa escritura da seguinte forma:

- a fracção autónoma designada pela letra “A” como “rés-do-chão (…) um arrumo e um pequeno logradouro na frente da fracção, tornejando para nascente, com a área de 24 m2”;

- a fracção autónoma designada pela letra “B” como “primeiro andar (…) um arrumo e o vão da escada exterior onde está o tanque de lavar a roupa”;

- a fracção autónoma designada pela letra “C” como “uma garagem ampla e um logradouro anexo, com a área de 30 m2, sito na frente da respectiva fracção”;

- a fracção autónoma designada pela letra “D” como “um arrumo independente, todo envidraçado, virado a nascente” (alíneas B) a E));

5. Por escritura pública outorgada em 10.Maio.1982 M (...) declarou doar aos Autores as fracções autónomas do prédio identificado no ponto 1. designadas pelas letras “C” e “D”, doação que aqueles declararam aceitar (alínea G));

6. A aquisição do direito de propriedade sobre as fracções “A”, “C” e “D” encontra-se inscrita em nome do Autor A (...) - da inscrição da aquisição da fracção “A” (Ap. 16 de 1980/01/02) constando que foi adquirida por compra a M (...) (alínea F));

7. Por testamento outorgado em 2.Outubro.1985 M (...) declarou legar ao Réu C (...)o prédio identificado no ponto 2. (alínea I));

8. A referida M (...) faleceu em 26.Dezembro.1990 (provado por documento nos termos previstos no n.º 3 do artigo 659.º do Código de Processo Civil);

9. A tardoz dos prédios identificados nos pontos 1. e 2. existe, desde a data da sua construção, uma parcela de terreno delimitada do prédio vizinho pertença de “P.T. – Comunicações, S.A.” com um muro encimado de uma estrutura em blocos de cimento[24] (alíneas J´) e L) e quesito 9.º);

10. A referida parcela desenvolvia-se (e desenvolve-se) num plano superior e num plano inferior, sem qualquer divisória entre eles, existindo quatros degraus com 70 cm de largura que partiam do logradouro situado no plano inferior para o logradouro situado no nível superior, destinados à passagem de um logradouro para outro (quesitos 10.º a 12.º);

11. No logradouro situado no plano superior foi colocada uma churrasqueira (alínea M));

12. Os autores, desde pelo menos desde 1997, cozinham e tomam refeições na parcela de terreno situada a tardoz dos prédios identificados nos pontos 1. e 2. e utilizam uma churrasqueira que aí existe desde por volta de 2003/2004. (quesitos 1.º e 2.º);

13. Actos que praticaram em toda a área dessa parcela, sem interrupção alguma, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse e na convicção de serem seus donos (quesitos 4.º a 8.º);

14. O prédio identificado no ponto 2. tinha uma porta e uma janela viradas para o logradouro situado no plano inferior (quesito 15.º);

15. Os Réus acedem à parcela de terreno identificada nos pontos 9. e 10. através dessa porta (alínea N));

16. A M (...) utilizava essa porta para aceder ao logradouro situado num nível inferior e os degraus referidos no ponto 10. para dali aceder ao logradouro situado no nível superior, no qual circulava livremente(quesitos 16.º, 23.º e 24.º).


4.º

Antes de mais é oportuno realçar, como o fez a Meritíssima Juíza a quo, qual é, efectivamente, o objecto da lide, pois o que foi dito pelos Ilustres Mandatários no início da sessão de julgamento do dia 4 de Março de 2010[25] afastou alguma ambiguidade que vinha dos articulados e levou a Meritíssima Juíza a introduzir alterações, quer nos factos assentes, quer na base instrutória[26].

A este propósito afirmou-se na sentença recorrida que:

"Através da presente acção os Autores pretendem que seja declarada a inexistência de qualquer “direito de acesso, servidão, uso ou utilização” dos Réus através do logradouro componente da fracção “C” do prédio identificado no ponto 1., pretensão que fundamentam no inexistência de qualquer direito de servidão que o onere em benefício do prédio identificado no ponto 2., pertença dos Réus, contrapondo estes que a parte inferior do apodado logradouro integra aquele seu prédio e que sobre a parte superior do mesmo, afecta ao prédio identificado no ponto 1. e não à fracção autónoma desse prédio designada pela letra “C” e pertença dos Autores, se acha constituída, em benefício daquele seu prédio, uma servidão de “acesso, uso e utilização” invocando como título aquisitivo desse direito a usucapião e a destinação de pai de família.

A parcela de terreno em questão, doravante referida como logradouro, nada tem a ver com o logradouro da fracção “C” do prédio identificado no ponto 1. e a que concretamente alude o ponto 4. dos Factos Assentes como logradouro anexo com a área de 30 m2 em frente da respectiva fracção - como as partes tiveram oportunidade de esclarecer já em sede de audiência de discussão e julgamento (cf. fls. 189) – antes se tratando-se de um espaço localizado nas traseiras dos prédios identificados nos pontos 1. e 2. dos Factos Assentes.

Trata-se de um espaço compreendido entre as paredes desses prédios e um muro, de configuração irregular e composto de dois patamares desnivelados, situado a um nível inferior, com uma área aproximada de 6 m2, no qual existem umas escadas com quatro degraus que dão acesso ao patamar superior, este de dimensões superiores àquele. Para o logradouro inferior deitam directamente uma porta do prédio dos Réus e uma porta de uma das fracções dos Autores, permitindo o acesso de qualquer um deles a esse espaço, assim como uma janela daquele primeiro prédio - permitido a quem a utilize que se debruce sobre esse espaço – e para o logradouro superior deitam directamente uma janela do prédio dos Réus e diversas “aberturas” das fracções dos Autores (fls. 104)."

Esclarecido, que está, que parcela em causa é mencionada em 9 dos factos provados[27], cumpre agora apurar se, como sustentam os autores os réus "não cumpriram o ónus probatório que sobre si recaía, tendo em conta o especialíssimo regime fixado no n.º 1 do art. 343º; uma vez que" (…) se lhes "interessava o reconhecimento do Direito de acesso, servidão, uso ou utilização da parcela em causa nos autos, competia-lhes alegar e provar factos de que resultasse a existência de tal Direito."[28]

Dispondo o artigo 4.º n.º 2 a) que as acções declarativas de simples apreciação "têm por fim (…) obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto" e formulando os autores o pedido de que seja declarada a inexistência de qualquer direito de acesso, servidão, uso ou utilização, em favor dos réus, através do logradouro componente da fracção autónoma designada pela letra C do prédio urbano situado na Quinta (...), (...), composto de edifício para habitação de rés-do-chão e 1.º andar, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º (...), da freguesia de (...), Coimbra, propriedade sua (dos autores), logo se conclui que, como aliás bem entendeu o tribunal a quo, estamos na presença de uma acção declarativa de simples apreciação negativa.

Como bem observa a Meritíssima Juíza a quo:

"E visando aquela acção a declaração judicial da inexistência de um direito de servidão de passagem (ou utilização) onerando o logradouro da fracção autónoma de que os Autores são proprietários configura-se como uma acção negatória. Tipo de acção em que, como refere Menezes Cordeiro, "o titular de um direito real que seja, por qualquer forma, posto em dúvida, quer quanto à sua existência e natureza, quer quanto aos seus limites, pode sempre dirigir-se ao tribunal e conseguir uma sentença que esclareça a existência do seu direito ou a inexistência a direitos adversos (…)", ou seja, de uma acção pela qual "o titular de um direito sobre determinada coisa consegue que seja declarada a inexistência de outro direito concorrencial sobre a mesma coisa"[29].

 (…)

Na acção negatória de servidão é desnecessária a formulação expressa do pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio alegadamente onerado com uma servidão de passagem uma vez que tal pretensão está implicitamente contida no pedido de declaração de inexistência desse direito. Com efeito, constituindo a servidão predial num encargo imposto num prédio, o serviente, em benefício exclusivo de outro prédio, o dominante, pertencente a dono diferente (artigo 1543º) a actividade jurisdicional a desenvolver para atingir o fim último da acção – a declaração de existência ou inexistência da servidão de passagem – supõe que previamente se apure da existência e titularidade do direito de propriedade sobre o prédio alegadamente dominante e serviente, cabendo ao autor demonstrar o seu direito de propriedade[30].

Ora, a defesa dos Réus assenta precisamente na impugnação da titularidade do direito de propriedade que os Autores se arrogam sobre a parcela de terreno em questão pois que sustentam que o patamar inferior dessa parcela constitui o logradouro do prédio identificado no ponto 2. de que são donos, e que o patamar superior da mesma constitui uma parte comum do prédio identificado no ponto 1., estando onerado com uma servidão de "passagem, uso e utilização" em benefício daquele seu prédio."

E, por isso, a Meritíssima Juíza a quo vem a concluir que

"A indemonstração do decurso do lapso de tempo necessário à aquisição por usucapião do direito de propriedade que os Autores se arrogam sobre a parcela de terreno identificada nos pontos 9. e 10. dos Factos Assentes, como lhes competia de harmonia com critérios de repartição do ónus probatório vazados no artigo 342.°, n.º 1, determina uma resposta negativa à questão de saber se naqueles radica o direito de propriedade posto em dúvida quanto à sua existência e natureza e, em decorrência, a improcedência da acção".

Concorda-se inteiramente com esta visão da coisas, pois a "acção negatória, […] tinha [no Direito Romano] por objecto a declaração da inexistência de gravames sobre a coisa [, sendo dirigida] contra a pessoa que se arrogava uma servidão ou um direito de usufruto, sobre a coisa pertencente ao proprietário, prejudicando-o no seu desfrute. No processo a que esta acção dava lugar, o proprietário ocupava uma situação privilegiada quanto à prova: bastava-lhe demonstrar a existência da sua propriedade, deixando a cargo do seu adversário o ónus de provar o seu pretendido direito. Este elemento tem sido invariavelmente reconhecido pela nossa jurisprudência, precisamente em situações, manifestamente paralelas da aqui em causa, de acções negatórias de servidão."[31]

Com efeito, na acção negatória de servidão, independentemente de ao réu caber o ónus de provar os factos que conduzem à conclusão de que esta existe, o autor sempre "terá de fazer prova do seu do seu direito de propriedade."[32]

Na verdade, nestas situações "a doutrina tradicional é no sentido de que o Autor só carece de provar a sua propriedade. Sendo esta ilimitada, em princípio (Cód. Civil, art. 1305.º), e tendo como elemento intrínseco a exclusão de terceiros, o Réu é que terá de provar a constituição da servidão".[33]

Justamente por isso, a dada altura a Meritíssima Juíza a quo afirma que "importa, assim, averiguar da titularidade do direito de propriedade sobre a parcela de terreno identificada nos pontos 9. e 10. dos factos assentes que os Autores se arrogam invocando como título aquisitivo desse direito a usucapião", o que bem se compreende face ao que estes tinham alegado, nomeadamente, nos artigos 11.º a 19.º da petição inicial.

No presente recurso não se atacou o segmento da decisão em que, perante os factos dados como provados pelo tribunal a quo, em que tem particular importância o que resultou da resposta dada ao quesito 1.º, se averiguou "da titularidade do direito de propriedade sobre a parcela de terreno" que teria, por parte dos autores, "como título aquisitivo desse direito a usucapião" e onde, face aos fundamentos de direito expostos, se conclui pela "indemonstração do decurso do lapso de tempo necessário à aquisição por usucapião do direito de propriedade que os Autores se arrogam sobre a parcela de terreno identificada nos pontos 9. e 10. dos Factos Assentes".

O que se atacou foi a resposta a esse quesito 1.º, visando, por essa via, provar uma outra realidade perante a qual ficaria demonstrado o "decurso do lapso de tempo necessário à aquisição por usucapião do direito de propriedade que os Autores se arrogam sobre a parcela de terreno identificada nos pontos 9. e 10. dos Factos Assentes" e que, por isso mesmo, se seria conduzido à conclusão de que lhes assiste esse direito sobre tal parcela.

Ora, como se viu, na reapreciação da matéria de facto respondeu-se ao quesito 1.º em termos um pouco mais restritivos do que havia sido o juízo do tribunal a quo. Consequentemente, aquele segmento da decisão que, repete-se, não foi colocado em crise, tendo presente os factos que estão provados, mantém-se.

Não tendo sido efectuada a prova do direito de propriedade dos autores, no que à parte do terreno em discussão diz respeito, acompanha-se a Meritíssima Juíza a quo quando concluiu pela improcedência da acção, não obstante, como salientam aqueles, os réus (também) não terem feito prova dos factos constitutivos do direito que afirmavam assistir-lhes[34]. No entanto, o pedido não pode proceder por faltar um dos pressupostos em que radica.


III

Com fundamento no atrás exposto julga-se improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelos autores.

                                                 

António Beça Pereira (Relator)

Nunes Ribeiro

Hélder Almeida


[1] Tal como resulta de forma clara e inequívoca do esclarecimento prestado na folha 189.
[2] São deste código, na sua versão anterior ao Decreto-Lei 303/2007, de 24 de Agosto, todos os artigos adiante mencionado sem qualquer outra referência.
[3] Cfr. conclusão 1.ª.
[4] O ponto 12 dos factos provados que figuram na sentença provem das respostas dadas aos quesitos 1.º e 2.º. Cfr. folhas 168, 214 e 224, bem como a conclusão 4.ª.
[5] Cfr. conclusões 5.ª e 6.ª.
[6] Cfr. conclusão 1.ª.
[7] Cfr. folha 248 e 249.
[8] Cfr. folhas 215 a 220.
[9] Há algumas excepções como é, por exemplo, a prevista na parte final do n.º 4 do artigo 668.º do Código de Processo Civil.
[10] Também aqui há excepções, nomeadamente no caso das nulidades mencionadas no n.º 2 do artigo 204.º e na situação prevista no n.º 3 do artigo 205.º, ambos do Código de Processo Civil.
[11] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, 1945, pág. 513. Isso também resulta do artigo 205.º.
[12] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil Novo Regime, pág. 187.
[13] Importa dizer que não é mencionada qualquer nulidade das referidas na primeira metade do artigo 202.º, o que significa que não se trata de uma que seja de conhecimento oficioso.
[14] Neste sentido veja-se os Ac. da Rel. Lisboa de 19-2-2009 e 25-3-2010 nos Proc., respectivamente, 169/2002.L1-1 e 594/2002.L1-6, em www.gde.mj.pt.
[15] É oportuno lembrar que nos factos assentes existe a alínea J) e a J'). Cfr. folha 167 e 190.
[16] É amiga dos autores há muitos anos e conhece o local em questão há cerca de 30 anos, por frequentar a casa daqueles.
[17] É amigo do réu e chegou, nas suas funções de bombeiro, a deslocar-se à casa quando ainda aí vivia M (...).
[18] É vizinha dos autores desde há 13 anos, altura em que conheceu estes e o local em causa.
[19] Inicialmente chegou a afirmar que quando foi viver para a sua casa a churrasqueira já lá estava.
[20] Foi vizinho dos autores entre Setembro de 2000 e Setembro de 2008, período em que conheceu o sítio em discussão nos autos.
[21] É amigo dos réus há 20/30 anos e chegou a ir à casa quando M (...) ainda era viva, pese embora nessa altura não tivesse lá entrado.
[22] Foi colega de profissão do réu e frequentou a casa ainda em vida de M (...), a quem ia dar apoio.
[23] O depoimento foi prestado em 2010.
[24] Desta forma se deixando rectificada a alínea L) por força da realidade constatada por ocasião da ida ao local no âmbito da audiência de discussão e julgamento (cf. acta de 6.Maio.2010).
[25] Cfr. folha 189.
[26] Cfr. folha 190.
[27] E não o logradouro relativo à fracção C que é mencionado em 4. dos factos provados. 
[28] Cfr. conclusões 5.ª e 6.ª.
[29] In Direitos Reais, pág. 594.
[30] Pires de Lima e Antunes Varela, in ob. e loc. cit.
[31] Ac. Rel. Coimbra 12-6-2007 no Proc. 372/06.3TBVIS-A.C1, www.gde.mj.pt.
[32] Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, pág. 307.
[33] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 204. Neste sentido veja-se José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2008, pág. 499 e Ac. Rel. Coimbra de 19-1-2010 no Proc. 422/08.9TBSCD.C1, www.gde.mj.pt.
[34] Cfr. artigo 343.º n.º 1 do Código Civil e as respostas de não provado aos quesitos 17.º a 22.º e 25.º a 29.º, bem como as respostas restritivas aos quesitos 23.º e 24.º.