Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
| Descritores: | INCOMPETÊNCIA MATERIAL RELAÇÃO JURÍDICA ADMINISTRATIVA JUNTA DE FREGUESIA DIREITO DE PROPRIEDADE ENTRE CONFINANTES RELAÇÕES PRIVADAS | ||
| Data do Acordão: | 10/14/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PINHEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 4.º, N.º 1, AL.ª I), DO ETAF, 2.º, N.º 2, AL.ª I), DO CPTA, NA REDAÇÃO DO DLEI N.º 214-G/2015, DE 02-10, 212.º, N.º 3, DA CONSTITUIÇÃO, 26.º DA LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS E 66.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
| Sumário: | I – O conteúdo de cada uma das alíneas do nº 1, do artigo 4º do ETAF, deverá ser interpretado, em princípio, à luz da cláusula geral do artigo 212º da CRP, de modo a que a tutela que conferem se reporte a relações jurídicas administrativas.
II – O apelo à relação jurídica administrativa, serve, desde logo, para excluir as relações de direito privado em que intervém a administração, sendo de considerar relações jurídicas públicas aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando em vista à realização de um interesse público legalmente definido. III – Fundamentando o autor o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre determinada prédio, na aquisição derivada, na presunção derivada do registo e na usucapião, se o ato imputado à Junta de Freguesia como violador do seu direito de propriedade, é o facto de que, com as obras de ampliação de um prédio da Junta, confinante com o dos autores, ter ocupado uma parede deste, parede que a Ré entende ser meeira, encontramo-nos no âmbito de puras relações privadas, pertencendo a competência para tal ação aos tribunais comuns. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Relator: Maria João Areias 1º Adjunto: Chandra Gracias 2º Adjunto: Anabela Marques Ferreira
Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra: I – RELATÓRIO AA e esposa BB instauram ação declarativa sob a forma de processo comum contra a Agregação de Freguesias Sul de ..., Pedindo: a) que se declare que a parede nascente da casa do Autor é propriedade exclusiva deste; b) a condenação da ré a tal reconhecer e a retirar da dita parede as vigas, os pilares e as chapas, em metal, bem com a parede em painel tipo sandwich e a cobertura do salão, repondo- a na situação anterior às obras, deixando-a livre, coberta de telha ou chapas tipo lusalite; c) a condenação da ré a tapar as duas aberturas/janelas que abriu na parede poente do salão ou a colocá-las conforme a lei (situadas a mais de um metro e oitenta centímetros do solo, com grades fixas de ferro ou outro metal, de secção não inferior a um centímetro quadrado e cuja malha não seja superior a cinco centímetros). alegando, para tal e em síntese, serem proprietários do prédio em causa, tendo sido praticados sobre o mesmo, atos por parte da Ré que contendem com tal direito (além do mais, construção de parte da edificação erigida pela Ré sobre o telhado do prédio do qual a Autora é proprietária). A Ré apresenta Contestação, pugnando pela improcedência da ação. Notificadas as partes para se pronunciarem sobre a matéria de exceção oficiosamente levantada pelo tribunal, os autores vieram pugnar pela competência dos tribunais comuns, “uma vez que os tribunais administrativos serão competentes para dirimir os litígios surgidos no âmbito das relações jurídicas públicas, devendo como tal considerar-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido, ou seja em que o ente público atue no exercício do ius imperium”, o que não é o caso. Pelo juiz a quo foi proferido Despacho que, considerando encontrar-se a competência para a presente ação atribuída aos tribunais administrativos, conclui com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 96.º, al. a), 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 2 e 577.º, al. a), ambos do Código de Processo Civil, julgo procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta deste Juízo de Competência Genérica de Pinhel, em razão da matéria, e, consequentemente, absolvo a requerida da instância. Custas a cargo dos Autores (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC” * Inconformados com tal decisão, os autores dela interpõem recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões: (…). * Não foram apresentadas contra-alegações. Dispensados os vistos legais nos termos previstos no nº4, in fine, do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso. II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só: 1. Se o tribunal comum é incompetente em razão da matéria, por tal competência se encontrar atribuída aos tribunais administrativos por força do artigo 4º, al. i), do ETAF e art. 2º, nº2, al. i), do CPTA, na redação do DL 214-G/2015 III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO 1. Se o tribunal comum é incompetente em razão da matéria, por tal competência pertencer aos tribunais administrativos, por força do art. 4º, al. i, do ETAF Segundo a decisão recorrida, a causa de pedir e parte dos pedidos deduzidos pela autora podem ser enquadrados numa ação de reivindicação, na medida em que os autores alegam que parte da construção efetuada pela ré no seu prédio, foi efetuada sobre uma parte do telhado da casa inserida no prédio do qual os autores se arrogam proprietários. Partindo dessa apreciação da relação controvertida, a decisão recorrida conclui pela incompetência dos tribunais comuns, porquanto o DL nº 214-G/2015, de 2/10, veio alargar a jurisdição dos tribunais administrativos à apreciação de “litígios que tenham por objeto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, em que a Administração Pública atue sem título que as legitime, e que se enquadram no artº. 4º, n.º 1, al. i) do ETAF e artº. 2º, nº. 2, al. i) do CPTA, na redação dada pelo citado DL 214-G/2015. Insurgem-se os Apelantes contra o decidido, com os seguintes fundamentos: com o alargamento das competências dos tribunais efetuado pelo DL 2014-G/2015, e com o aditamento da al. i) ao artigo 4º, nº1 do ETAF, o legislador teve em mente os casos em que, podendo a administração recorrer às vias que a lei põe ao seu dispor, designadamente à expropriação por utilidade pública, recorre às vias de facto para alcançar os seus objetivos, atuando como tantas vezes fazem os particulares; o legislador teve em mente os casos em que, podendo a administração recorrer às vias que a lei põe ao seu dispor, designadamente à expropriação por utilidade pública, recorre às vias de facto para alcançar os seus objetivos, atuando como tantas vezes fazem os particulares. estando em causa uma ação tipicamente real, já que o Autor invoca a propriedade do prédio parcialmente ocupado pela Agregação de Freguesias Sul de ..., o que, a confirmar-se, determinará a consequente obrigação da Ré a restituí-lo na situação em que se encontrava anteriormente à intervenção efetuada, é patente que estamos no âmbito da defesa de direitos reais, nos termos do artigo 1311º do CCivil, o que transcende a competência dos tribunais administrativos, pois não se está perante o exercício de quaisquer direitos e/ou deveres públicos. Cumpre apreciar, desde já se adiantando encontrar-se a razão inteiramente do lado dos Apelantes. Sendo residual a competência atribuída aos tribunais judiciais – tendo competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, e artigo 66º do CPC) – averiguemos se as invocadas normas atribuem a competência para julgar a presente ação aos tribunais administrativos. Segundo o disposto no artigo 212º, nº3 da Constituição da República Portuguesa compete aos tribunais administrativos o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redação da Lei nº 4-A/2003, de 19.02, redefinindo os critérios de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, começava por definir a competência dos tribunais administrativos de um ponto de vista substancial, reportando-a aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, aproximando-a, assim, da função jurídico-constitucional que lhe é atribuída pelo artigo 212º nº3 da Constituição. A delimitação substantiva da justiça administrativa feita por recurso à utilização de uma cláusula geral[1], foi, contudo, abandonada com a nova redação dada ao artigo 1º pelo DL nº214-D/2015, de 2 de outubro, optando por remeter a matéria da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal para o artigo 4º do ETAF. No nº1 do artigo 4º, do ETAF procede-se à enumeração exemplificativa[2] dos litígios sujeitos à apreciação dos tribunais administrativos e fiscais, indicando nos ns. 2 e 3, situações em que mostra excluída tal competência. Tratando-se de uma enumeração não taxativa, o conteúdo de cada uma das alíneas deverá ser interpretado, em princípio, à luz da cláusula geral Constitucional, de modo a que a tutela que conferem se reporte a relações jurídicas administrativas (adotado pela al. o) do nº1 do artigo 4º, como critério residual de competência). Na ausência de uma clarificação legislativa, e às enumeras tentativas de definição de tal conceito, o apelo à relação jurídica administrativa, no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, serve, desde logo, para excluir as relações de direito privado em que intervém a administração, sendo de considerar relações jurídicas públicas aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade publica ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando em vista à realização de um interesse público legalmente definido[3]. “Excluem-se, assim, em principio, do âmbito substancial da justiça administrativa as questões administrativas de puro direito privado, isto é, as decorrentes da atividade de direito privado da administração – quer seja a que corresponde ao mero exercício da sua capacidade privada (negócios auxiliares, administração do património, gestão de estabelecimentos económicos em concorrência), quer se trate de atividades essencialmente administrativas, quando ou não medida em que se através de instrumentos privatísticos (subvenções, fornecimento de bens e serviços, gestão privada de estabelecimentos públicos, intervenções no mercado), ainda que toda a atividade administrativa esteja sujeita aos princípios jurídicos fundamentais de direito administrativo[4]”. Quanto às questões emergentes de atuações jurídico privadas autorizadas ou licenciadas pela administração, se a questão disser respeito à ilicitude da atuação privada em aspetos que por lei pertençam ao âmbito próprio da autorização ou do juízo autorizativo da administração, havendo decisão administrativa que permitiu tal atuação, só o tribunal administrativo pode conhecer da legalidade da decisão, no contexto do respetivo meio impugnatório[5]”. É o seguinte o teor da alínea i), do nº1 do artigo 4º, ao abrigo da qual o tribunal recorrido veio a atribuir a competência para o presente conflito ao tribunal administrativo: “1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime; (…)”. A alínea i) consagra um alargamento da competência dos tribunais administrativos e fiscais a relações jurídicas administrativas cujos litígios estavam anteriormente sujeitos à jurisdição dos tribunais comuns: a condenação à remoção de situações constituídas em “vias de facto”, sem título que as legitime. Para a delimitação dos litígios que passam agora para os tribunais administrativos, Jorge Pação explicita a noção de via de facto: “Enquanto situação de estrema indefesa perante a Administração Pública e uma forma de “violência” para o cidadão e sobre os seus bens, incompatível com aquilo que é o poder publico e o que deve ser um Estado de Direito – servidor do cidadão e das suas liberdades – a via de facto, enquanto teoria de cunho predominantemente francês, corresponde numa primeira aproximação, a uma situação na qual a administração, na execução de uma atividade material (de facto), comete uma violação grosseira do direito de propriedade do cidadão ou de outra liberdade fundamental”. Como afirmava Anselmo de Castro, “se é certo que os tribunais administrativos não são competentes para dizer se a propriedade é de A ou de B, mas tal “não significa que os tribunais comuns sejam sempre competentes para o conhecimento e solução de todos os diferendos, respeitantes ao direito de propriedade, que eventualmente surjam, entre o proprietário e a administração. Na medida em que haja uma ingerência legitima da administração na esfera do direito subjetivo não há incompetência do tribunal administrativo para apreciar as questões surgidas por virtude dessa ingerência, muito embora esteja em causa a propriedade[6]”. Na leitura a que procede relativamente à norma em apreço, o tribunal a quo socorre-se da opinião assumida por Mário Aroso de Almeida, quando, em nosso entender, dela decorre a solução oposta à que chegou na decisão recorrida e que aqui reproduzimos, na íntegra: “Com a revisão de 2015, o ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios decorrentes de vias de facto, em que a administração atue sem titulo que a legitime, designadamente ocupando, designadamente ocupando imóveis de propriedade privada sem proceder à respetiva expropriação. No passado, como a competência para as ações de defesa da propriedade e de delimitação da propriedade pública em relação à propriedade privada era reservada aos tribunais judiciais, também estas situações eram atribuídas à competência destes tribunais. Diferentemente, a nova alínea i) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objecto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo”[7]. Da posição aí firmada por Mário Aroso de Almeida não se pode partir para a atribuição de competência aos tribunais administrativos para a apreciação e julgamento da presente ação. Antes pelo contrário, o que aí se afirma é o alargamento da competência dos tribunais administrativos àqueles conflitos de natureza claramente administrativa, no uso do ius imperii, mas em que a administração age sem título que a legitime, como por ex., ocupando terrenos para além da autorização dada pela declaração de utilidade pública. Trata-se de conflitos derivados da atuação das entidades publicas sem que se ache coberta por decisão prévia legitimadora. “A nova alínea i) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objeto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo[8]”. E, como conclui José Carlos Vieira de Andrade[9], se, ao contrário do que acontecia na lei anterior, o novo ETAF deixou de excluir expressamente da jurisdição administrativa as questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja uma pessoa de direito publico, também não optou por incluir essas questões, o que significará que elas estão excluídas por natureza, sem prejuízo de haver uma atribuição expressa aos tribunais administrativos do julgamento de determinados litígios de direito privado. A competência dos tribunais é aferida pela forma como o autor configura a ação, definida pelo pedido e pela causa de pedir, isto é, pelos objetivos com ela prosseguidos. No caso em apreço, encontra-se em causa o reconhecimento do direito propriedade dos autores sobre uma determinada parede do seu prédio e a condenação da Ré a repor a situação anteriormente existente, pelo facto de a ré, enquanto proprietária de um prédio confinante com o dos autores, ao proceder a obras de ampliação no respetivo prédio, ter efetuado obras sobre o telhado e a parede nascente da casa dos autores, sem o consentimento destes. A ré agiu enquanto proprietária de tal imóvel e não na qualidade institucional de um órgão da administração local, encontrando-nos perante um conflito relacionado com meras razões de vizinhança, sendo irrelevante que o proprietário de um deles seja uma pessoa de direito publico. Não só, os autores sustentam o seu direito de propriedade em normas de direito privado (artigos 1311º e 1371º, do Código Civil), como o ato que é imputado à ré como violador do seu alegado direito de propriedade, é um ato de natureza privada, praticado enquanto proprietário de um prédio confinante com o dos autores. A alegada ofensa ao seu direito de propriedade efetivou-se pela via de um ato privado, enquanto proprietário de um terreno confinante, em que o conflito reside na propriedade de uma parede pela qual os prédios estão unidos, que os autores dizem ser exclusivamente sua e a ré sustenta ser uma parede meeira[10]. Tratando-se de uma ação no âmbito dos direitos reais, uma típica ação de reivindicação, nos termos do artigo 1311º CC – reconhecimento do direito de propriedade e restituição à situação anterior à intervenção efetuada pela Junta, sem que se encontre em causa a sua qualidade de órgão da administração local –, a situação dos autos não se enquadra na al. i), do nº1 do artigo 4º do ETAF[11], não se reconhecendo a competência dos tribunais administrativos para apreciar e julgar a presente ação. A Apelação é, assim, de proceder, revogando-se a decisão recorrida. * IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida que decretou a incompetência do tribunal comum em razão da matéria para conhecer da presente ação, determinando-se o prosseguimento dos autos. Sem custas, face ao vencimento dos apelantes e à ausência de contra-alegações. Notifique. Coimbra, 14 de outubro de 2025
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