Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
269/09.5TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: FALSIFICAÇÃO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
USO DE DOCUMENTO FALSO
Data do Acordão: 11/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO CRIMINAL – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 256.º N.º 1 ALS. A), C), D) E E) CP
Sumário: 1. Numa evolução mais recente, a doutrina tem vindo a entender que o bem jurídico do crime de falsificação de documento é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que se respeita à prova documental.
2. Tal como se encontra regulado no nosso sistema jurídico, o crime de falsificação de documento é um crime de perigo abstracto e um crime de mera actividade ou um crime formal.
3. A consumação do crime não exige que em concreto se verifique uma concreta violação da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental, bastando tão-só que ocorra uma falsificação do documento.
4. O crime de falsificação de documento é um crime formal ou de mera actividade já que não exige a violação do bem jurídico que pretende salvaguardar.
5. No plano objectivo, o crime de falsificação comporta diversas modalidades de conduta: a) fabricar documento falso; b) falsificar ou alterar documento; c) abusar de assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso; d) fazer constar falsamente facto juridicamente relevante; e, por fim, e) usar documento falso (nos termos anteriores) fabricado ou falsificado por outra pessoa.
6. O uso de documento falso apenas é punido no caso de se tratar de uso de documento por pessoa distinta da que falsificou.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. No 3.º Juízo Criminal de Coimbra, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido F..., separado judicialmente, gerente comercial, reformado, residente em C… – Coimbra, acusado da prática, em autoria material, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. a), b) e c), do Código Penal, na versão vigente à data dos factos imputados no libelo acusatório, e, actualmente, pelo art. 256.º n.º 1 als. a), c), d) e e), do mesmo diploma legal, na redacção introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09.
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2. Em sentença de 4 de Junho de 2010, o tribunal condenou o arguido F... - por convolação jurídica do imputado crime de falsificação p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, als. a), b) e c), do CP, na versão vigente à data dos factos, e, actualmente, pelo art. 256.º, n.º 1, als. a), c), d) e) do CP -, pela prática, como autor material, de um crime de falsificação, p. e p. pelos art. 256.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, na redacção do DL 48/95, de 15-03 , na pena de 250 dias de multa, à razão diária de € 6,00.
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3. Inconformado o arguido interpôs recurso, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
Do presente recurso:
1.ª - O presente recurso versa sobre a reapreciação da prova gravada relativamente à motivação da prática do crime bem como sobre matéria de direito, no tocante ao não preenchimento dos requisitos objectivos para a punição e medida da pena.
2.ª - Com o presente recurso não se pretende colocar em causa o exercício das mui nobres funções das quais se mostram investidos os ilustres julgadores, mas tão-somente exercer o direito de “manifestação de posição contrária” ou “discordância de opinião”, traduzido no direito de recorrer, consagrado na alínea a) do n.º 1 do art. 61.º do CPP e no n.º 1 da CRP.

Fundamentos do recurso
A) Da alteração não substancial e nulidade:
3.ª – Entende-se que a douta sentença padece do vício da nulidade plasmado na alínea b) do n.º 1 do art. 379.º CPP, tendo-se tal alteração dos factos por não substancial e ilícita, nos termos da alínea f), a contrario, do n.º 1 do art. 11.º e n.º 1 do art. 358.º CPP, dado que foi o recorrente absolvido dos concretos pontos de facto vertidos na acusação pública e condenado por factos diversos e estranhos aos descritos na mesma, em nome de um suposto dolo eventual na junção de uma declaração falsa a um processo judicial.
B) Da contradição insanável:
4.ª – A condenação do ora recorrente encontra suporte unicamente num conhecimento de eventual (previsão de possibilidade) de uso de documento falsificado, pelo que, não tendo o arguido conhecimento efectivo de tal junção não poderia ser dado como provado que o mesmo “agiu livre, voluntária e conscientemente, conhecendo bem que praticava actos ilícitos e criminalmente puníveis”, tal como vertido no ponto 8.
5.ª - E tal junção do documento nunca poderia ser ordenada ou imposta pelo recorrente, atenta a independência, isenção e autonomia técnica do seu ilustre mandatário em tais autos, nos termos do artigo 76.º, n.º 1, do EOA.
6.ª – Ressalta da douta sentença certa contradição entre os factos dados como provados sob os n.ºs 6 e 7 e o segundo dado como não provado sob o ponto 1.2, tal como relativamente aos factos dados como provados sob os n.ºs 6, 7 e 8 e a condenação a título de dolo eventual (atento o teor do facto provado sob o n.º 5), assumindo tais factos primordial importância, por uma coisa não poder ser o que é e simultaneamente o seu contrário!
C) Das circunstâncias de actuação do arguido:
7.ª – É referido a fls. 6 da douta sentença que “sabia o arguido que deveria juntar ao processo documentos que provassem a situação económica difícil que ele sustentava viver” (sublinhado nosso), tratando-se tal facto de um pormaior por, à luz da legislação, não haver o menor interesse em tal documento, no seu conteúdo ou na sua junção aos autos!
8.ª – Refere-se na douta sentença que o arguido pretendeu fazer crer ao Tribunal de que a sua situação económica era difícil, que suportava despesas, pretendendo assim o levantamento da penhora, o que é apontado como sendo para si um benefício.
9.ª – A questão das despesas suportadas era, por si mesma, irrelevante, tal com a final, se veio a mostrar consagrado no douto despacho judicial de levantamento da penhora, datado de 11 de Junho de 2007, cuja cópia se deixou junta aos autos e ao qual não foi dada a devida relevância probatória.
10.ª – O limite mínimo correspondente ao montante de um salário mínimo nacional, vertido no n.º 2 do art. 824.º CPC vigente à data, apenas se mostraria verificado e intocável quando o executado não tivesse outro rendimento, sendo essa ausência de rendimentos, por se não tratar de crédito alimentício, que importaria fazer prova, e não de despesas, as quais não seriam consideradas para aquele efeito!
11.ª – Na fase em que se mostrava o processo, bastaria fazer prova da ausência de outros rendimentos, sendo irrelevante e processualmente estéril a prova de despesas, mostrando-se inverídica a referência especulativa aos demais números (apenas 5, à data) do art. 824.º CPC, sendo certo que o n.º 5 se não aplicava por se tratar de pensão.
12.ª – A consulta jurídica prestada pelo seu ilustre mandatário à data não foi coincidente com o que se alega, indo no sentido da prova e apresentação de despesas, conforme depoimento do mesmo em sede de audiência de discussão e julgamento (passagens 09:32 a 10:04 e 15:25 a 15:49), o qual na gravação se mostra inserto no da testemunha D....
13.ª – E tal facto afigura-se-nos essencial porque permitirá aquilatar da suposta motivação criminosa do recorrente e permitirá aquilatar do erro em que se encontrava, devendo o conteúdo da consulta prestada (concretamente a necessidade de juntar comprovativos de despesas!) passar a figurar nos factos dados como provados!
14.ª – Na situação em que o executado se mostrava à data ninguém se quereria colocar no seu lugar e passar a dispor unicamente de um rendimento disponível inferior a € 150.00 [concretamente € 148,82(6)], em resultado da penhora de 1/3 da pensão!
15.ª - As “regras da experiência e do normal acontecer” devem ser tidas em consideração quer para efeitos da condenação quer igualmente de absolvição.
16.ª - No âmbito do processo civil mostra-se consagrada uma norma relativamente aos factos que não carecem nem de alegação nem prova, por serem notórios, prescrevendo o n.° 1 do art. 514.° CPC que devem considerar-se como notórios “os factos que são do conhecimento geral”, razão pela qual se entende por juridicamente inócua (ou no limite sem qualquer relevância probatória!) a declaração junta e seu conteúdo.
17.ª - É do conhecimento geral que todas as pessoas, tendo em vista a subsistência precisam de se alimentar e terão de efectuar despesas com a aquisição ou das refeições ou dos alimentos e demais condimentos, utensílios e energia para as confeccionar!
18.ª - Tendo por parâmetro o critério do bonus paterfamilias, a despesa média mensal gasta por cada pessoa nas refeições referidas na dita declaração (almoço e jantar, correspondente a 60 refeições!) nunca será inferior a € 120,00, ou, dito de outro modo, constitui facto notório que o preço de uma refeição sempre terá de ser valorada em pelo menos € 2.00, mostrando-se a quantia razoável e adequada.
19.ª – O essencial da declaração, e o que poderia importar aos autos, estava na sua essência verdadeiro, por suportar o mesmo despesa mensal a título de alimentação dentro do valor referido, o qual sempre seria facto notório, não havendo interesse em juntar tal declaração e não tendo a mesma qualquer relevância probatória!
20.ª - Deveria ter havido um melhor aconselhamento jurídico (não ser referida a necessidade de juntar comprovativos de despesas para obter o levantamento da penhora financeiramente asfixiante!) e maior ponderação na sua junção, a qual sempre não dependia do recorrente!
D) Da punibilidade
21.ª - O ora recorrente via-se privado de parte substancial de uma já de si reduzida e única fonte de rendimentos, a ponto de poder colocar em causa a sua própria subsistência, mostrando-se essencial o levantamento da penhora!
22.ª - Na senda da consulta jurídica passou a encontrar-se em por julgar essencial a junção de documentos comprovativos de despesas, mostrando-se tal erro mitigado com um direito de necessidade ou no limite um estado de necessidade desculpante, nos termos dos arts. 34.° e 35.° CP, uma vez que via a sua subsistência ameaçada em nome de uma penhora que o deixaria com um rendimento mensal disponível que nem tão pouco chegava para efectuar o pagamento da renda!
23.ª - Tal situação de perigo não havia sido criada por si, verificava-se sensível superioridade do seu bem jurídico face ao do exequente (integridade física ou a própria vida vs um direito de crédito!), razão pela qual poderia o seu interesse ser sacrificado e a oposição era a forma adequada de remover tal perigo!
24.ª - Segundo Merkel, “sempre que uma conduta é, através de disposição do direito, imposta ou considerada como autorizada ou permitida, está excluída sem mais a possibilidade de, ao mesmo tempo e com base num preceito penal, ser tida como anti-jurídica e punível”.
25.ª - Tal conduta mostra-se enquadrável na concepção de Welzel relativamente à “teoria da inadequação social” (ou da potenciação do risco de ocorrência de um ilícito uma vez que o exequente com o seu comportamento imoral e ilícito contribuiu decisivamente para essa potenciação) a qual excluiria do tipo de ilícito todas as acções que não “caem notoriamente fora da ordenação ético-social da comunidade”.
26.ª - Razão pela qual sempre tenhamos por excluída quer a culpa quer a ilicitude da actuação do então executado, que nada mais visou que acautelar a sua subsistência!
27.ª - Tivesse sido explicitado que o levantamento da penhora estaria unicamente dependente da ausência de outros rendimentos nunca o recorrente se conformaria com a junção de documento falsificado a atestar despesas, excluindo tal erro o dolo!
28.ª - Nenhuma motivação e interesse na adopção de tal resolução criminosa tinha o executado por a mesma não ser necessária nem apta a produzir qualquer benefício ilegítimo ou prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, mostrando-se completamente estéril e despicienda tal junção aos autos por a legislação e a Justiça estarem do lado do então executado!
29.ª - E se é certo que terá o Estado interesse legítimo na veracidade dos documentos probatórios, também não será menos verdade que tal interesse apenas terá de ser aquilatado quando tais documentos tenham em concreto qualquer relevância probatória, o que não foi manifestamente o caso.
30.ª - Julga-se inconstitucional, por violação do princípio da culpa, da legalidade, da presunção de inocência e dos fins das penas, a consideração de que a relevância probatória de facto juridicamente relevante não tenha de ser analisada em concreto bastando-se com a sua consideração em abstracto.
31.ª - Foi em nome da não prova de existência de rendimentos alternativos, que a penhora foi levantada não tendo o executado retirado qualquer proveito de tal declaração nem qualquer utilidade na sua junção, como se comprova pela total ausência de referência à mesma no douto despacho judicial de levantamento da penhora.
32.ª - Temos para nós, e com o maior respeito por opinião contrária, que sempre se estaria perante uma tentativa impossível, nos termos do n.° 3 do art. 23.° CP, mostrando-se o meio usado manifestamente inidóneo à obtenção do fim visado: o levantamento da penhora.
33.ª - Por milhentas declarações de despesas que fossem elaboradas, assinadas ou juntas aos autos, nenhuma relevância teriam para o fim a que se destinavam por se mostrarem preenchidos os requisitos legais de ser a pensão inferior ao salário mínimo nacional e se não mostrarem conhecidos outros rendimentos do então executado.
34.ª - Inexistiu em concreto qualquer dano, e não tendo merecido tal declaração a mínima atenção por parte do Meritíssimo Juiz aquando da profericão do despacho decisório, não poderá haver crime, justificando-se a absolvição por se entender estar perante uma situação similar à denominada por “falso grosseiro”, por tal declaração nunca ter a virtualidade de causar prejuízo ou trazer benefício para quem quer que fosse.
35.ª - A situação dos autos deve considerar-se abrangida pela referência de Helena Moniz a falsificação inócua, quando escreve a pgs. 689 do Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II: “Dentro da tentativa impossível integra-se não só a falsificação grosseira (que é fácil e imediatamente reconhecida), mas também a falsificação inócua (que abrange toda a falsificação que não é apta a provocar um perigo de lesão na segurança e credibilidade do tráfico jurídico-probatório).
36.ª - Mas vejam-se os factos ainda à luz de um outro prisma: mostrando-se afastada a relevância jurídica em concreto de tal declaração conforme exigido pela alínea b) de tal disposição legal, não se poderá dizer que tenha sido usado “documento a que se referem as alíneas anteriores”, com o que se não mostra preenchida a previsão vertida na alínea c), primeira parte, de tal disposição legal.
37.º - A alínea c) do n.° 1 do art. 256.° CP exige o uso de “documento fabricado ou falsificado por outra pessoa”, pelo que, não se tendo provado a autoria nem o facto de não ter sido o arguido a fabricá-lo ou falsificá-lo não se pode ter por adquirido que tal documento foi fabricado ou falsificado por outra pessoa, tendo o arguido de ser absolvido.
38.ª - O uso de documento falsificado apenas será punido, atenta a legislação aplicável, no caso de se tratar de uso de documento por pessoa distinta da que terá procedido à falsificação, sendo certo que não se mostra provada ou afastada a fabricação de tal documento bem como a autoria da falsificação da assinatura pelo recorrente.
39.ª - Será inconstitucional, por violação do art. 32.° CRP n.ºs 2 e 5, ab initio, a interpretação segundo a qual, nos termos e para os efeitos da alínea c) do n.° 1 do art. 256.° CP, na redacção anterior à Lei 59/2007, poderá haver condenação sem que resulte provado o facto do documento não ter sido falsificado (em termos latos) pelo arguido.
40.ª - Mostra-se a condenação ao abrigo da alínea c) eivada do vício resultante da ausência de prova e não preenchimento do requisito elencado na sua parte final, não podendo justificar-se em nome de uma interpretação analógica, teleológica, pensante ou cum grano salis, uma vez que tal sempre colidiria com a proibição da analogia e com o princípio da legalidade, vertidos nos n.ºs 1 e 3 do art. 1.° CP.
41.ª - E seriam igualmente violadoras dos princípios de aplicação da lei penal no tempo, consagrados no n.º 1 do art. 2.° CP e 1 e 3 do art. 29.° CRP, mostrando-se tal violação consagrada na revisão da legislação penal, resultante da Lei 59/2007, que deixou de exigir expressamente para a punição a título de uso que o documento seja fabricado ou falsificado por terceiro, conforme alínea e) do art. 256.°, n.° 1, CP.
42.ª - E há ainda um outro argumento resultante da introdução da alínea f), punindo a mera detenção ou entrega de documento falsificado ou contrafeito, assim se mostrando abarcadas a (quase) totalidade das possibilidades, dando-se cumprimento à prevenção.
43.ª - Dúvidas não haverão de que a revisão do Código Penal se não aplicará ao presente processo, pelo que se entende que a mera detenção, posse ou entrega de documento falsificado ou contrafeito não se mostrava punível à data dos factos.
44.ª - Perante o supra exposto, entende-se como juridicamente errada a condenação e consequentemente temos por acertada a absolvição, atenta a não punibilidade da conduta, a qual se requer com a revogação da douta sentença condenatória.
F) Ad cautelam, da pena:
45.ª - Na hipótese de vir a ser considerado improcedente o recurso relativo à condenação, não deixa o recorrente de recorrer da medida concreta da pena de multa aplicada, em dois vectores distintos: o número de dias e o quantitativo diário.
46.ª - Mostra-se o recorrente condenado em pena de multa fixada em 250 dias, entendendo-se tal medida como excessiva e violadora do princípio da culpa e da proporcionalidade, consagrados nos n.ºs 2 e 3 do art. 40.° CP bem como as exigências de prevenção e reintegração do agente na sociedade plasmadas no n.° 1 de tal disposição legal.
47.ª - Na douta sentença é afirmado que milita a favor do arguido o facto de ter actuado com uma modalidade de dolo menos grave e de estar inserido na sociedade, tendo-se por ajustada uma condenação sensivelmente próxima do limite médio da moldura, sendo a existência de antecedentes criminais mitigada com a ausência de dolo directo.
48.ª - A ausência de consequências ou gravidade da prática do facto, a idade do arguido, o facto de viver só, ser tido por pessoa pacífica, a asfixia financeira motivada pela penhora (ou seja, a motivação!), e o facto de ser possível efectuar um juízo de prognose favorável, no sentido do recorrente prosseguir a sua vida sem cometimento futuro de crimes, são circunstâncias que diminuem de forma acentuada a ilicitude e a culpa, justificando uma atenuação especial.
49.ª - Têm-se por violadas as alíneas a) a d) e f) do n.° 2 e o n.º 1 do art. 71.° tal como do art. 72.°, ambos CP, julgando-se adequada condenação nunca superior a 185 dias de multa.
50.º - Quanto ao quantitativo diário dever-se-á ter em conta o princípio da aplicação da lei penal, aplicando-se a redacção anterior à Lei n.° 59/2007, por mais favorável no tocante ao limite mínimo que se mostrava inferior ao actualmente plasmado (€ 1,00 vs € 5,00).
51.ª - In casu foi fixado o quantitativo diário de € 6,00, o qual se reputa igualmente violador dos princípios da proporcionalidade e igualdade, bem como do n.° 1 do art. 47.° CP, tendo por parâmetro os factos dados como provados sob o n.° 9.
52.ª - Atentos os factos provados temos que o rendimento disponível do arguido se mostra correspondente a € 100,00, mostrando-se a multa aplicada 15 vezes superior a tal montante e correspondente a 5 rendimentos mensais, resultando que, para o seu pagamento, teria o arguido de não pagar a renda durante 5 meses (correndo o risco de ser despejado) e passar a viver durante esse tempo de caridade alheia.
53.º - Embora disponha da faculdade de substituição da multa por prestação de trabalho, tal possibilidade é mais legal que real, atendendo à sua idade e estado de saúde e um pagamento a prestações, mesmo na melhor das hipóteses, levaria a que ficasse com rendimento mensal disponível no valor de € 37,50, manifestamente insuficiente para poder fazer face às despesas minimamente indispensáveis à sua subsistência!
54.ª - E mostrando-se a multa desajustada face à realidade económico-financeira actual (por tremendamente asfixiante!) e consequente privação do recorrente de rendimentos por período considerável não se mostrará previsível nem alcançada uma reintegração do agente na sociedade, finalidade primacial das penas!
55.ª - Entende-se que in casu se estará perante uma situação excepcionalíssima a justificar a fixação do limite mínimo abaixo da tabela mínima jurisprudencial), devendo o montante do quantitativo diário ser reduzido para a quantia de € 4,00.
Factos incorrectamente julgados: 6, 7 e 8 dos factos provados. Entende-se ainda como relevante levar aos factos provados o teor da consulta jurídica prestada ao arguido no sentido da necessidade de apresentação de despesas.
Normas jurídicas violadas: maxime arts. 1.°, n.ºs 1 e 3, 2.°, n.ºs 1 e 4, 16.°, 17.°, 31.°, 34.°, 35.°, 40.°, 71.°, n.° 1 e n.° 2 a), b), c) in fine, d) e f), 72.°, n.° 1, 256. n.° 1 e) e f), CP; arts. 47.°, n.º 2 e 256.°, n.º 1, c), CP, na redacção anterior à lei 59/2007; arts. 1.°, n.º 1, f), 358.°, n.° 1, 379.º, n.° 1, b), CPP; arts. 29.°, n.ºs 1, 3 e 4, 32.°, n.°s 2 e 5 (ab initio) CRP; arts. 514.°, n.° 1 e 824.°, n.° 2 CPC; art. 76.°, n.°1 EOA.
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Sic,
Contando sempre com o mui douto suprimento de V/ Exas., atento o supra exposto, entende o recorrente que em obediência aos mais elementares princípios constitucionais que presidem a um Direito processual penal que se queira justo não poderá deixar de ser absolvido, devendo ser dada a devida relevância à informação jurídica prestada e passando a constar o teor da mesma nos factos provados, por essencial para correcta subsunção dos factos ao Direito.
Todavia, a não ser esse o entendimento de V/ Exas., sempre se entende que deverá a pena de multa ser redefinida e fixada mais próxima dos seus limites mínimos (em termos de número de dias e quantitativo diário), sem prejuízo da aplicação do instituto da atenuação especial. V/ Exas., todavia, como sempre, farão a costumada e almejada justiça!
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4. O Ministério Público rematou a resposta ao recurso nos termos infra transcritos:
1. A sentença não enferma de qualquer vício.
2. Fez adequada interpretação dos factos provados e acertada aplicação das normas legais.
3. Não foram violadas quaisquer normas legais, nomeadamente as indicadas pelo recorrente.
V.ªs Ex.ªs, Senhores Desembargadores, negando provimento ao presente recurso, farão justiça!
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5. Igual posição manifestou a Ex.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal da Relação, no parecer a fls. 315/318.
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6. Notificado nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, o arguido exerceu o seu direito de resposta. Ex novo, refere mostrarem-se cumpridas, na petição recursória, as exigências normativas do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP; na restante parte, reitera, no essencial, os fundamentos antes apresentados na motivação e conclusões do recurso.

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7. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2, do CPP (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
Tendo em conta as conclusões formuladas pela recorrente, resumem-se ao seguinte quadro as questões de que cumpre conhecer:

A) Nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, por não se mostrar cumprido o preceituado no artigo 358.º, n.º 1, daquele diploma legal;

B) Alterabilidade da matéria de facto;

C) Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

D) Se o arguido actuou no exercício de um direito de necessidade ou, no limite, num estado de necessidade desculpante;

E) Se o arguido agiu numa situação de erro, excludente do dolo;

F) Se é inconstitucional, por violação do princípio da culpa, da legalidade, da presunção de inocência e dos fins das penas, a consideração de que a relevância probatória de facto juridicamente relevante não tenha de ser analisada em concreto bastando-se com a sua consideração em abstracto;
G) Se nos situamos perante um caso de tentativa impossível, nos termos do n.º 3 do artigo 23.º do Código Penal, ou similar à denominada por “falso grosseiro”;
H) Mostrando-se afastada a relevância jurídica em concreto da declaração referida no ponto 3) da matéria de facto provada, conforme exigido pela alínea b) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal, não se poderá dizer que tenha sido usado “documento a que se referem as alíneas anteriores”, com o que não se mostra preenchida a previsão vertida na alínea c), primeira parte, de tal disposição legal?;
I) Por outro lado, não se mostrando provada ou afastada a fabricação de tal documento bem como a autoria da falsificação da assinatura pelo recorrente, não pode o arguido ser punido por uso de documento falsificado?
J) É inconstitucional, por violação do art. 32.° da CRP, n.ºs 2 e 5, ab initio, a interpretação segundo a qual, nos termos e para os efeitos da alínea c) do n.° 1 do art. 256.°, do CP, na redacção anterior à Lei 59/2007, poderá haver condenação sem que resulte provado o facto do documento não ter sido falsificado (em termos latos) pelo arguido?
K) Se a revisão da legislação penal decorrente da Lei n.º 59/2007 deixou de exigir expressamente para a punição a título de uso que o documento seja fabricado ou falsificado por terceiro, conforme alínea e) do n.º 1do artigo 256.º do CP;
I) Diverso entendimento é violadora do princípios de aplicação da lei penal no tempo, consagrados no n.º 1 do artigo 2.º do CP e n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º da CRP?
L) Medida da pena.

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2. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1) O arguido tinha pendente contra si o processo executivo n.º 521/05.9TBCBR, que corria seus termos pela 2.ª secção da Vara Mista de Coimbra.

2) Em tal execução tinha sido penhorado 1/3 da pensão de reforma do arguido.

3) No dia 27 de Abril de 2007 o arguido requereu ao Tribunal o levantamento de tal penhora, dizendo que a sua situação económica era difícil, alegando que nenhuns outros rendimentos auferia, além da pensão e que tinha avultadas despesas com medicamentos, instruindo tal requerimento com documentos vários que juntou naquela data aos referidos autos, entre os quais a declaração cujo teor a seguir se transcreve, que foi elaborada e assinada por pessoa cuja identidade não foi apurada, durante o ano de 2007:

“DECLARAÇÃO

Para todos os devidos efeitos legais declaro que o senhor F…, reformado, separado judicialmente, almoça e janta na minha casa diariamente pagando a quantia de 120,00€ (cento e vinte euros) mensais, isto porque somos amigos e já nos conhecemos à muitos anos e ele não familiares nsta cidade.

Por ser verdade e me ser pedido passo a presente declaração.

Coimbra, 24 de Abril de 2007“.

4) Tal documento está assinado com o nome de D..., e por baixo desta assinatura consta a morada do mesmo: Rua F…- Coimbra.

5) O arguido previu como possível que tal declaração ou uma declaração similar com idêntico conteúdo - que documentasse a sua situação de insuficiência económica para ver levantada a penhora da sua pensão de reforma e na qual constasse que almoçava e jantava diariamente em casa do seu amigo D..., por meros 120 euros - e que simularia ter sido elaborada por D…, ia ser em seu nome junta ao processo e conformou-se com tal facto.

6) Sabia o arguido que tal documento faria crer enganosamente quem o lesse que tinha sido elaborado por D..., colocando assim em crise a fé pública inerente aos documentos, bem sabendo que, assim, prejudicava - como fez - o Estado no seu interesse legítimo em que os documentos juntos a processos judiciais correspondam à verdade, conhecendo bem que daí retirava para si as supra descritas vantagens e benefícios indevidos, como pretendia.

7) Sabia o arguido que com a junção deste documento prejudicava o Estado Português no seu interesse legítimo que os documentos ostentem os elementos verdadeiros e obtinha para si um benefício: fazer crer ao tribunal que a sua situação económica era débil para assim ver levantada a penhora da sua pensão de reforma.

8) Agiu livre, voluntária e conscientemente, conhecendo bem que praticava actos ilícitos e criminalmente puníveis.

9) O arguido tem uma pensão de reforma de cerca de €:300,00.

Vive sozinho e paga €:200,00 de renda de casa.

Tem o 5º ano de habilitações literárias.

É tido como uma pessoa pacífica.

10) O arguido foi condenado:

a - por sentença datada de 6/7/2007 e transitada em julgado em 23/7/2007, pela prática, em 2006, de um crime de difamação, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €:5,00, pena esta extinta pelo pagamento.

b - por sentença datada de 21/8/2008 e transitada em julgado em 2/3/2009, pela prática, em 2/6/2004, de um crime de falsificação ou contrafacção de documento e de um crime de injúrias, na pena de 275 dias de multa, à taxa diária de €:5,00, pena esta extinta pelo cumprimento.

c - por sentença datada de 28/10/2009, pela prática, em 21/11/2007, de um crime de ameaça agravada, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de €:8,00.


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3. Relativamente aos factos não provados, ficou exarado na sentença:

Não se provaram outros factos para lá dos que se acabaram de descrever.

Em especial não se provou que:

- O arguido fabricou em computador e assinou pelo seu próprio punho a declaração, com a assinatura de D..., na sua residência da Rua da C…, em Coimbra, em data exactamente não apurada, mas compreendida durante o mês de Abril de 2007;

- Com a viciação da apontada declaração fez o arguido crer enganosamente -conforme queria e sucedeu - que tal declaração tinha sido elaborada e assinada por D..., colocando, assim, em crise a fé pública inerente aos documentos, bem sabendo que, assim, prejudicava - como fez e pretendia - o Estado no seu interesse legítimo em que os documentos oficiais juntos a processos judiciais correspondam à verdade, como também era seu intuito, conhecendo bem que daí retirava para si as supra descritas vantagens e benefícios indevidos, como pretendia.

- Para tanto fez constar de tal documento um conteúdo que sabia não ser verdadeiro – porque o arguido não almoçava e jantava diariamente na casa de D... – e uma assinatura deste que imitou, fabricando assim dados que sabia serem juridicamente relevantes.


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4. Quanto à motivação da decisão de facto, ficou consignado:

A convicção do Tribunal formou-se correlacionando diversos elementos probatórios, à luz das regras da experiência e do normal acontecer, nos termos infra expostos.

Assim, valorou-se desde logo o teor dos documentos de fls. 124 a 128, 149 e 217 e do relatório de exame de fls. e de fls. 42 a 44 e 143 a 148 dos autos.

Mais valorou o Tribunal o depoimento da testemunha D..., que disse de forma convincente não ter sido ele a elaborar e a assinar o documento em causa, sendo o seu conteúdo, de resto, falso.

Também o arguido, aliás, reconheceu que o conteúdo da declaração é falso.

Contudo, o certo é que a prova produzida em Tribunal não nos permite concluir, acima de toda a dúvida à qual possam ser dadas razões, pela identidade da pessoa que elaborou e assinou o documento em causa nos autos.

Efectivamente, sustentou o arguido não ter sido ele quem elaborou tal documento. Explicou aquando da penhora da sua pensão conversou com o seu advogado na altura, o Dr. P…. e este disse-lhe que era necessário juntar aos autos documentos que comprovassem as suas despesas, dizendo-lhe nomeadamente que poderia pedir na farmácia uma declaração referente aos seus gastos com medicamentos. Nesta altura disse a este advogado que podia dizer-se ao processo que ele comia em casa do Sr. D…, a quem pagava €:120,00, embora fosse mentira. Facultou-lhe a identificação da testemunha D… . Da conversa que manteve com o Dr. P... ficou convencido de que este iria arranjar um documento falso com o conteúdo do que aqui está em causa e de que iria juntar tal documento ao processo.

A testemunha P..., por seu turno, declarou que representava efectivamente o arguido no processo de execução em causa mas que foi o arguido quem lhe entregou o documento, juntamente com outros, que ele juntou ao processo.

Perante estas declarações divergentes, e na ausência de qualquer outro elemento probatório, não pode de facto o Tribunal concluir ter sido o arguido a elaborar e a assinar o documento em causa: tem que fazer intervir o princípio in dubio pro reo, enquanto expressão, ao nível da apreciação da prova, do princípio político-jurídico da presunção de inocência e que se traduz, precisamente, na imposição de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido.

Contudo, o certo é que o arguido declarou que ficou convencido, aquando da conversa que sustentou ter mantido com o Dr. P..., de que ia ser junto ao processo, em seu nome, um documento dizendo que ele tomava as refeições em casa do Sr. D...e que lhe pagava €:120,00 por mês, o que era falso, e que tal documento pareceria ter sido elaborado pela testemunha D… .

Sabia o arguido que deveria juntar ao processo documentos que provassem a situação económica difícil que ele sustentava viver, por ser importante para obter a isenção da penhora da sua pensão.

Daí que se tenha dado como provado que o arguido admitiu como possível o uso em seu nome, a junção ao processo em seu nome de documento como aquele que foi junto ao processo, e que se conformou com tal facto, agindo sempre com intenção de para si obter um benefício que era o de documentar uma situação que não correspondia à verdade, que é a declarada no documento para assim obter a isenção da penhora da pensão.

Relativamente aos antecedentes criminais do arguido, foi valorado o teor do CRC junto aos autos e, quanto às suas condições de vida, os depoimentos prestados pelas testemunhas S... e A..., que abonaram da personalidade do arguido, de quem são amigos, e o seu próprio depoimento.

Quanto aos factos não provados, pelas razões que supra constam não se provaram os mesmos.


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4. Do mérito do recurso:

4.1. Antes de mais, importa corrigir um patente erro de escrita revelado no ponto 3) da matéria de facto, no segmento relativo ao conteúdo da “DECLARAÇÃO”, para o qual o recorrente desde logo chama a atenção.

A correcção de qualquer lapsus calami decorre do disposto no alínea b) do n.º 1 do artigo 380.º do CPP, e pode ser efectuada no tribunal competente para conhecer do recurso, em conformidade com o estatuído no n.º 2 do mesmo artigo.

Em conformidade, no dito ponto de facto, onde consta, sob a epígrafe “declaração”:

«Para todos os efeitos legais declaro que o senhor F…, reformado, separado judicialmente, almoça e janta na minha casa diariamente pagando a quantia de 120,00€ (cento e vinte euros), isto porque somos amigos e já nos conhecemos à muitos anos e ele não familiares nsta cidade», passará a constar o real conteúdo da declaração em causa, deste teor:

«Para todos os efeitos legais declaro que o senhor F..., reformado, separado judicialmente, almoça e janta na minha casa diariamente pagando a quantia de 120,00€ (cento e vinte euros), isto porque somos amigos e já nos conhecemos há muitos anos e ele não tem família nesta cidade».


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4.2. Nulidade da sentença:

Na tese argumentativa do recorrente, a sentença recorrida consagrou como provado um facto, decisivo para a decisão da causa, que não se encontra descrito na acusação.
Tal facto consta do ponto 5) da matéria dada como provada na sentença, a saber: «O arguido previu como possível que tal declaração ou uma declaração similar com idêntico conteúdo – que documentasse a sua situação de insuficiência económica para ver levantada a penhora da sua pensão de reforma e na qual constasse que almoçava e jantava diariamente em casa do seu amigo D..., por meros 120 euros – e que simularia ter sido elaborada por D..., ia ser em seu nome junta ao processo e conformou-se com tal facto».
Inegavelmente, o facto em causa assumiu manifesta relevância na decisão de direito proferida, porquanto foi fundamental para a condenação do arguido/recorrente nos termos em que se revelou, ou seja, pela prática de um crime de uso de documento falso, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, na versão vigente à data dos factos (cfr. DL n.º 48/95, de 15-03).
A essência da problemática objecto do recurso conduz-nos directamente ao disposto nos artigos 379.º, n.º 1, alínea b) e 358.º, n.º 1, ambos do CPP.

Dispõe a primeira norma:

«É nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º».

Prescreve a segunda:

«1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa».

Esta disposição processual articula-se directamente com os poderes de cognição do tribunal de julgamento que, vinculado ao objecto traçado pela acusação (ou pela pronúncia), se vê confrontado na audiência com o conhecimento de outros factos relevantes Cfr. Simas Santos/Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, II volume, Editora Rei dos Livros, 2000, pág. 412..

Na realidade, no nosso sistema processual penal, a acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do processo; é ela que define o conjunto de factos que se entende constituírem um crime, estabelecendo assim os limites dos poderes cognitivos do tribunal.

Segundo Figueiredo DiasDireito Processual Penal, 1.ª Ed. 1974 reimpressão, Coimbra Editora 2004, pág. 145., nisto se traduz o princípio da vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade (segundo o qual o objecto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objecto do processo penal (mesmo quando o objecto não tenha sido conhecido na sua totalidade, deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo).

Com efeito, «um processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantidas de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objecto do processo, uma vez definido este pela acusação» Ac. do T.C. n.º 130/98, de 05-02-1998, com texto integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt..

Ao vedar, em regra, os poderes de cognição do tribunal a outros factos, que não os contidos na acusação, garante-se ao arguido que só deles se terá de defender e que apenas por estes poderá ser julgado. A finalidade visada é a protecção do arguido, assegurando-lhe o direito de não se não deparar com surpresas relativas à imputação de factos com que não contava e não podia contar. A defesa não pode ser eficazmente assegurada se não puder ter por referência e por objecto o conjunto de factos imputados na acusação.

Pretendendo conciliar a celeridade processual e o aproveitamento do processo com os imperativos legais do princípio do contraditório e de uma defesa eficaz e em tempo útil por parte do arguido, o processo penal admite, não obstante, a condenação por factos novos, ou seja, que traduzam alteração dos descritos na acusação ou na pronúncia, nos precisos termos definidos nos artigos 358.º e 359.º do CPP.

Em contraposição à “alteração substancial dos factos”, ou seja, cfr. alínea f) do artigo 1.º do CPP; «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis», existe alteração simples ou não substancial sempre que se não verifique uma alteração do objecto do processo. Para além dos factos constantes da acusação (os quais constituem o objecto do processo em sentido técnico), podem existir outros factos que não foram formalmente vertidos na acusação, mas que têm “com aqueles uma relação de unidade sob o ponto de vista subjectivo, histórico, normativo, finalista, sociológico, médico, temporal, psicológico, etc.”. Estes factos novos fazem parte do chamado “objecto do processo em sentido amplo”. Não têm como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (isto é, não contendem com a identidade do objecto do processo), mas, por serem relevantes para a decisão, o seu conhecimento pressupõe o recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º, n.º 1, do CPP Cfr. Marques Ferreira, Da Alteração dos Factos Objecto do Processo Penal, RPCC, ano I, tomo 2, pág. 226, citado no Ac. da Relação de Guimarães de 11-11-2009, proc. n.º 226/07.6GAVVD.G1, disponível em www.dgsi.pt..

Neste caso, a lei exige apenas, como condição de admissibilidade, que ao arguido seja comunicada, oficiosamente ou a requerimento, a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

Todavia, não constitui “alteração não substancial dos factos” toda e qualquer alteração ou desvio da sentença em relação ao texto da acusação ou pronúncia. A modificação dos factos constantes destas peças processuais só integra o referido conceito normativo quando tiver relevo para a decisão da causa e implique uma limitação dos direitos de defesa do arguido, vista em função do condicionamento da estratégia e utilidade da defesa.

No caso em análise, é patente a alteração de factos, realidade que é facilmente constatável pela comparação do texto da acusação pública com o conteúdo da sentença, tendo sido aditado à sentença o facto citado supra.

Há, no entanto que ver se essa alteração do quadro factual narrado na acusação não envolve qualquer limitação do efectivo e consistente direito de defesa do arguido provocada por um arbitrário alargamento da actividade cognitiva e decisória do tribunal.

Para dar resposta cabal a esta questão é preciso considerar também o n.º 2 do artigo 358.º do CPP, onde é referido: «Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa». Dito por outras palavras, não obstante o registo de alteração não substancial dos factos narrados na acusação ou na pronúncia, marcante para a decisão de mérito, não é imposta a comunicação da mesma e a concessão de prazo para a organização da defesa, se a dita alteração decorrer da versão fáctica invocada pelo arguido.

Deste modo, sempre que dessa alteração não surja qualquer surpresa nem prejuízo para a defesa do arguido – por resultar de factos alegados pelo próprio –, ela não se torna, obviamente, atentatória da plenitude de garantias de defesa exigidas pelo artigo 32.º, n.º 1, do texto constitucional.

Mas, em situação contrária, não só a estratégia de defesa do arguido como a própria utilidade da defesa podem resultar inteiramente frustrados por uma inesperada posição factológica vertida na sentença. Efectivamente, se soubesse que corria o risco de vir a ser condenado em função de facto(s) diverso(s), o arguido podia ter-se ocupado a carrear para os autos outros elementos de prova, assentando o seu esforço probatório e argumentativo no afastamento da relevância de determinada base factual.

Feita esta abordagem sobre a configuração legal da alteração não substancial e da sua correlação com os direitos de defesa do arguido, é chegado o momento de nos debruçarmos sobre a concreta situação, para o que se torna necessário preliminarmente, proceder à descrição dos actos/elementos caracterizadores do processo, ao referido nível.

Relativamente à acusação pública de fls. 133/137, na qual está imputado o crime de falsificação de documento p. e p., na data dos factos, pelo artigo 256.º, n.º 1, als. a), b) e c), do CP (não obstante a referência qualificativa à dita alínea c), em causa não poderia estar a autoria material de uso de documento falso, já que toda a matéria de facto descrita no libelo acusatório respeita tão só à falsificação pelo arguido da declaração de fls. 128), o julgador do tribunal de 1.ª instância deu como provado, na sentença recorrida, o facto já acima transcrito.

Simultaneamente, considerou não provados os factos, de índole objectiva e subjectiva, narrados na acusação, directamente correlacionados com a falsificação pelo próprio arguido da aludida declaração, a saber:

- «O arguido fabricou em computador e assinou pelo seu próprio punho a declaração, com a assinatura de D..., na sua residência da Rua da C…, em Coimbra, em data exactamente não apurada, mas compreendida durante o mês de Abril de 2007;

- Com a viciação da apontada declaração fez o arguido crer enganosamente -conforme queria e sucedeu - que tal declaração tinha sido elaborada e assinada por D..., colocando, assim, em crise a fé pública inerente aos documentos, bem sabendo que, assim, prejudicava - como fez e pretendia - o Estado no seu interesse legítimo em que os documentos oficiais juntos a processos judiciais correspondam à verdade, como também era seu intuito, conhecendo bem que daí retirava para si as supra descritas vantagens e benefícios indevidos, como pretendia.

- Para tanto fez constar de tal documento um conteúdo que sabia não ser verdadeiro – porque o arguido não almoçava e jantava diariamente na casa de D... – e uma assinatura deste que imitou, fabricando assim dados que sabia serem juridicamente relevantes».

Na contestação (cfr. fls. 208/215), nos segmentos que ora temos como relevantes, o arguido apenas confessa que efectivamente o teor da “declaração” não corresponde à realidade, negando, todavia, que haja procedido à sua falsificação.

Revertendo ao teor da sentença, embora, como ficou dito, tenha sido dado como não provada a falsificação pelo arguido da “declaração”, em parte alguma a matéria de facto provada exclui o arguido como autor da falsificação registada. Apenas se refere no ponto 2) que a “declaração” foi elaborada e assinada por pessoa cuja identidade não foi apurada. Se os factos provados e não provados afastam inequivocamente o crime de falsificação da alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º do CP, como foi entendido pelo tribunal a quo, como melhor veremos em sede própria, são também manifestamente exíguos para a condenação do arguido pela modalidade de conduta da alínea c) do mesmo número e artigo, por o uso de documento falso (nos termos das alíneas do n.º 1 do artigo 256.º) apenas ser punido no caso de se tratar de uso de documento por pessoa distinta da que falsificou.

Nesta linha de raciocínio, afigura-se-nos completamente inócuo o facto do ponto 5) e, dada a sua irrelevância para a decisão da causa, rectius para a determinação da culpabilidade do arguido, afigura-se-nos não ter ocorrido alteração não substancial dos factos descritos na acusação.


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4.3. Alterabilidade da matéria de facto:

4.3.1. Questão prévia:
No parecer a fls. 315/318, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da rejeição do recurso em matéria de facto com base nos seguintes argumentos:
«Pretende o recorrente impugnar a matéria de facto através da reapreciação da prova gravada.
Porém, não cumpriu o ónus de impugnação especificada imposto no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Na verdade, não obstante a indicação pontual dos concretos pontos de facto que reputa incorrectamente provados, nas conclusões, não faz qualquer alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida e às provas que devem ser renovadas, nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 3 do referido artigo, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, e o recorrente tem de indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4 do citado art. 412.º).
Por outro lado, a exigência legal de especificação das “concretas provas” impõe a indicação do conteúdo específico do meio de prova.
E, tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação.
Por outro lado, o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida.
Ora, neste particular, o que o recorrente nos trouxe para apreciação, parece-nos deveras insuficiente para o pretendido efeito e, assim, estamos em crer que o recorrente não cumpriu as exigências normativas previstas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP e, em consequência, estará o Tribunal da Relação impossibilitado de proceder á modificação da decisão proferida sobre matéria de facto, fora do quadro dos vícios elencados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo diploma legal».
Vejamos se assim é.
De acordo com a previsão dos arts. 411.º, n.º 3, e 414.º, n.º 2 (redacção decorrente da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto) o requerimento de recurso é sempre motivado, sob pena de não admissão do recurso.
A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1).
Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar (artigo 412.º, n.º 3):
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas citadas als. a) e b) são feitas por referência ao consignado na acta de julgamento, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º - que dispõe: «quando houver lugar a gravação magnetofónica ou audiovisual, deve ser consignado na acta o início e o termo da gravação de cada declaração» -, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412.º, n.º 4).
Se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir totalmente ou parcialmente as indicações supra referidas, é dirigido convite ao recorrente no sentido de apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido (art. 417.º, n.º 3).
A motivação integra:
- A enunciação especificada dos fundamentos do recurso, com indicação dos pontos de divergência e das razões de facto e de direito pelas quais o recorrente entende que a decisão impugnada não se deve manter;
- As conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido mais extensamente formuladas nos fundamentos do recurso.
Foi finalidade do legislador criar um conjunto de regras de natureza prática que permitam, uma vez observadas pelos recorrentes, colocar perante o tribunal ad quem, de forma clara, as razões de facto e de direito que os levam a discordar e a impugnar as decisões recorridas, de molde a que o tribunal possa apreciá-las com rigor, nem mais nem menos do que é pedido (salvo obviamente a margem de actuação oficiosa).
A formulação de conclusões, com observância dos requisitos exigidos pelo art. 412.º do CPP, insere-se no mesmo propósito, com o desiderato de ser apresentado um quadro sintético, um resumo das questões a conhecer pelo tribunal para que se recorre.
No caso sub judice, analisada a petição recursória, vê-se que o recorrente observou, de forma suficientemente compreensível, os requisitos enunciados no artigo 412.º, n.ºs 3, als. a) e b), e 4.
Na verdade, acaba por impugnar, na motivação e bem assim nas conclusões, os (concretos) pontos de facto provados [6), 7) e 8)] que tem como incorrectamente julgados pelo tribunal a quo (cfr. fls. 16 da motivação de recurso e a parte final das respectivas conclusões, pretendendo, em simultâneo, o aditamento ao acervo factológico «do teor da consulta jurídica prestada ao arguido no sentido da necessidade de apresentação de despesas».
Concomitantemente, o recorrente elege as concretas provas que, na sua perspectiva, impõem a alteração dos aludidos pontos de facto (declarações da testemunha P...), com menção explícita e concretizada das passagens em que está fundada a impugnação, sendo também indicada a localização, no suporte de gravação, das declarações/depoimentos em causa (cfr. fls. 7, pontos 54. a 57. da motivação e conclusão 12.ª).
Além do depoimento da testemunha P..., o recorrente apela a prova documental, concretamente, ao «despacho judicial de levantamento da penhora, datado de 11 de Junho de 2007», junto aos autos e que constitui fls. 217 (cfr. pontos 96. e 97. da motivação e conclusão 9.ª).

Nesta ordem de ideias, não existe razão que obste ao conhecimento do recurso, na dimensão que o recorrente verdadeiramente lhes conferiu: versando matéria de facto e direito.

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4.3.2. O recorrente insurge-se contra a decisão proferida sobre matéria de facto, por terem sido dados como provados os pontos individualizados com os n.ºs 6), 7) e 8), pretendo ainda que se erija à condição de provado «o teor da consulta jurídica prestada ao arguido no sentido da necessidade de apresentação de despesas».

Verificado o documento de fls. 217, proferido em 11-06-2007, consubstancia despacho de levantamento da penhora referida no ponto provado n.º 2) [1/3 da pensão do arguido/recorrente], proferido no âmbito do processo executivo n.º 521/05.9TBCBR, na sequência do requerimento referido no ponto 3) da factualidade provada.

Cingindo-nos à prova oralmente prestada na audiência de discussão e julgamento, confrontamo-nos com duas versões manifestamente divergentes do arguido e da testemunha Sr. Dr. P....

Na posição sustentada pelo arguido, em apertada mas suficiente síntese, o texto e a assinatura apostas na “declaração” transcrita no ponto 3) dos factos dados como provados não lhe pertencem. Apenas forneceu elementos ao seu então Advogado, Dr. P..., para que posteriormente fosse apresentado em processo cível base documental tendente ao levantamento da penhora de 1/3 da sua pensão de reforma.

Diversamente, revelou a testemunha Dr. P... que a declaração em causa lhe foi dada, “em mão”, no seu escritório, preenchida e assinada, pelo arguido. No que toca à sua participação no caso, limitou-se a juntar ao processo cível o dito documento.

Por sua vez, a testemunha D... negou peremptoriamente qualquer envolvimento na elaboração e subscrição da declaração.

Procedendo à análise crítica da prova, o julgador de 1.ª instância, perante as declarações antagónicas, supra referidas, por imperativo do princípio in dubio pro reo, deu como não provados os factos (objectivos e subjectivos) da acusação, relativos à prática pelo arguido do imputado crime de falsificação de documento do artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal (redacção do DL n.º 48/95, de 15-03).

E, consequentemente, o arguido foi absolvido da prática daquele ilícito penal (embora a sentença não refira expressamente a absolvição pelo referido crime de falsificação, acaba por proceder, após convolação, à condenação do arguido pela autoria de crime de uso de documento falso).

Todavia, a ausência de prova sobre um facto, no caso, a falsificação da declaração pelo arguido, não afasta a possibilidade de esse dado da realidade se ter verificado. Apenas e tão só o facto não se provou.

Nos factos provados, o tribunal a quo acabou por consagrar, inter alia, que a declaração «foi elaborada e assinada por pessoa cuja identidade não foi apurada, durante o ano de 2007».

Ora, como já antes ficou dito, o crime previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 256.º do CP (redacção levada a efeito pelo DL 48/95) só é punido quando o falso documento é usado por pessoa diversa da que procedeu à falsificação.

No entanto, como se vê do extracto da matéria de facto citado supra, não está irremediavelmente afastada a possibilidade de ter sido o arguido o autor da falsificação.

Para a incriminação do arguido, como autor de um crime de uso de documento fabricado ou falsificado por outra pessoa, haveria de constar da matéria de facto que a declaração fora elaborada e assinada por pessoa de identidade desconhecida, mas não pelo arguido.

Esta omissão, fundamental na definição do crime de uso de documento falso pelo qual o arguido foi condenado, comportaria insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, se não se desse o caso de o tribunal de 1.ª instância ter procedido a todas as diligências probatórias possíveis, não se vislumbrando, deste modo, a realização de outras no referido contexto.


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No que concerne aos factos atinentes à intenção e motivação dos arguidos, convém recordar a lição de Cavaleiro Ferreira Curso de Processo Penal, vol. 1, 1981, pág. 292., quando refere que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica, aos quais apenas se poderá aceder através de prova indirecta (presunções naturais não jurídicas), a extrair de factos materiais comuns e objectivos dados como provados.

Assim, partindo da objecção contraposta ao facto objectivo supra analisado, insusceptível, diga-se desde já, de configurar o crime de uso de documento falsificado por terceiro, impõe-se que se dêem como não provados os factos dos pontos 6), 7) e 8) do acervo factológico provado, alusivos ao tipo subjectivo de ilícito (dolo específico), à culpa e à consciência da ilicitude da conduta.

Por fim, quanto aos factos que o recorrente pretende aditados à factualidade provada, a motivação e as respectivas conclusões são completamente omissas na sua concretização, porquanto apenas está referido, na sustentação desse propósito, «o teor da consulta jurídica prestada ao arguido no sentido da necessidade de apresentação de despesas».


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4.4. Do vício de contradição da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão:

Invoca o recorrente contradição insanável da fundamentação entre o ponto de facto provado n.ºs 5, por um lado, e os pontos 6, 7) e 8), também da factualidade provada, e, ainda, entre o segmento factológico provado constituído pelos pontos 6) e 7) e o ponto 1.2. dos factos não provados.

Todavia, as apontadas contradições, ainda que, em hipótese, se verificassem, estariam definitivamente supridas pela alteração a introduzir no acervo factológico provado e não provado.


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4.5. Procedendo à assinalada modificação da matéria de facto [cfr. art. 431.º, al. b), do CPP], nos pontos em destaque, os factos provados e não provados são os seguintes (para melhor identificação, os pontos de facto alterados serão registados a “itálico”):

Factos provados:

1) O arguido tinha pendente contra si o processo executivo n.º 521/05.9TBCBR, que corria seus termos pela 2.ª secção da Vara Mista de Coimbra.

2) Em tal execução tinha sido penhorado 1/3 da pensão de reforma do arguido.

3) No dia 27 de Abril de 2007 o arguido requereu ao Tribunal o levantamento de tal penhora, dizendo que a sua situação económica era difícil, alegando que nenhuns outros rendimentos auferia, além da pensão e que tinha avultadas despesas com medicamentos, instruindo tal requerimento com documentos vários que juntou naquela data aos referidos autos, entre os quais a declaração cujo teor a seguir se transcreve, que foi elaborada e assinada por pessoa cuja identidade não foi apurada, durante o ano de 2007:

“DECLARAÇÃO

Para todos os devidos efeitos legais declaro que o senhor F..., reformado, separado judicialmente, almoça e janta na minha casa diariamente pagando a quantia de 120,00€ (cento e vinte euros) mensais, isto porque somos amigos e já nos conhecemos à muitos anos e ele não tem família nesta cidade.

Por ser verdade e me ser pedido passo a presente declaração.

Coimbra, 24 de Abril de 2007“.

4) Tal documento está assinado com o nome de D..., e por baixo desta assinatura consta a morada do mesmo: Rua F…- Coimbra.

5) O arguido previu como possível que tal declaração ou uma declaração similar com idêntico conteúdo - que documentasse a sua situação de insuficiência económica para ver levantada a penhora da sua pensão de reforma e na qual constasse que almoçava e jantava diariamente em casa do seu amigo D..., por meros 120 euros - e que simularia ter sido elaborada por D..., ia ser em seu nome junta ao processo e conformou-se com tal facto.

6) O arguido tem uma pensão de reforma de cerca de €300,00.

Vive sozinho e paga €200,00 de renda de casa.

Tem o 5.º ano de habilitações literárias.

É tido como uma pessoa pacífica.

7) O arguido foi condenado:

a - por sentença datada de 6/7/2007 e transitada em julgado em 23/7/2007, pela prática, em 2006, de um crime de difamação, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €5,00, pena esta extinta pelo pagamento.

b - por sentença datada de 21/8/2008 e transitada em julgado em 2/3/2009, pela prática, em 2/6/2004, de um crime de falsificação ou contrafacção de documento e de um crime de injúrias, na pena de 275 dias de multa, à taxa diária de €5,00, pena esta extinta pelo cumprimento.

c - por sentença datada de 28/10/2009, pela prática, em 21/11/2007, de um crime de ameaça agravada, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de €8,00.


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Factos não provados:

- O arguido fabricou em computador e assinou pelo seu próprio punho a declaração, com a assinatura de D..., na sua residência da Rua da C…, em Coimbra, em data exactamente não apurada, mas compreendida durante o mês de Abril de 2007;

- Com a viciação da apontada declaração fez o arguido crer enganosamente -conforme queria e sucedeu - que tal declaração tinha sido elaborada e assinada por D..., colocando, assim, em crise a fé pública inerente aos documentos, bem sabendo que, assim, prejudicava - como fez e pretendia - o Estado no seu interesse legítimo em que os documentos oficiais juntos a processos judiciais correspondam à verdade, como também era seu intuito, conhecendo bem que daí retirava para si as supra descritas vantagens e benefícios indevidos, como pretendia.

- Para tanto fez constar de tal documento um conteúdo que sabia não ser verdadeiro – porque o arguido não almoçava e jantava diariamente na casa de D... – e uma assinatura deste que imitou, fabricando assim dados que sabia serem juridicamente relevantes.

- Sabia o arguido que tal documento faria crer enganosamente quem o lesse que tinha sido elaborado por D..., colocando assim em crise a fé pública inerente aos documentos, bem sabendo que, assim, prejudicava - como fez - o Estado no seu interesse legítimo em que os documentos juntos a processos judiciais correspondam à verdade, conhecendo bem que daí retirava para si as supra descritas vantagens e benefícios indevidos, como pretendia.

- Sabia o arguido que com a junção deste documento prejudicava o Estado Português no seu interesse legítimo que os documentos ostentem os elementos verdadeiros e obtinha para si um benefício: fazer crer ao tribunal que a sua situação económica era débil para assim ver levantada a penhora da sua pensão de reforma.

- Agiu livre, voluntária e conscientemente, conhecendo bem que praticava actos ilícitos e criminalmente puníveis.


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À alteração da matéria de facto, nos pontos assinalados, foram determinantes os fundamentos que, casuisticamente, em sede própria, ficaram expostos.
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4.6. Qualificação jurídica dos factos:

Segundo o disposto no artigo 256.º, n.º 1, do Código Penal (redacção dada pela pelo DL 48/95), comete o crime de falsificação de documento:
1- Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa beneficio ilegítimo;
a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento, ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso”;
b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante; ou
c) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa»,
sendo que nos termos do n.º 3 da mesma disposição legal qualifica-se a falsificação quando esta respeitar a “(...) a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º”.
O crime de falsificação de documento encontra-se previsto no título relativo aos crimes contra a vida em sociedade, sendo considerado um tipo de crime a “meio caminho entre os crimes contra os bens colectivos e os crimes patrimoniais” cfr. Figueiredo Dias, Actas 1993, 297..
O bem jurídico protegido com a criminalização da falsificação de documento é a respectiva fé pública: pretende-se salvaguardar o sentimento geral de confiança que devem revestir os documentos.
Numa evolução mais recente, a doutrina tem vindo a entender que o bem jurídico do crime de falsificação de documento é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que se respeita à prova documental Helena Moniz, in O crime de falsificação de documentos, 1999, 41 e seguintes..
Tal como se encontra regulado no nosso sistema jurídico, o crime de falsificação de documento é um crime de perigo abstracto e um crime de mera actividade ou um crime formal.
Por um lado, é um crime de perigo abstracto na medida em que tal ilícito criminal se encontra consumado independentemente de se produzir ou não o resultado querido pelo agente. Basta que este com a sua conduta crie potencialmente o perigo da produção daquele resultado.
Ou, numa outra óptica, a consumação do crime não exige que em concreto se verifique uma concreta violação da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental, bastando tão-só que ocorra uma falsificação do documento.
Por outro lado, o crime de falsificação de documento é um crime formal ou de mera actividade já que não exige a violação do bem jurídico que pretende salvaguardar.
No plano objectivo, o crime de falsificação comporta diversas modalidades de conduta: a) fabricar documento falso; b) falsificar ou alterar documento; c) abusar de assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso; d) fazer constar falsamente facto juridicamente relevante; e, por fim, e) usar documento falso (nos termos anteriores) fabricado ou falsificado por outra pessoa Helena Moniz, Comentário conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 682..
Em causa está a modalidade de falsificação referida na última das referidas alíneas. Reafirmando a ideia predominante que ao longo deste acórdão se vem fazendo vingar, a matéria de facto é insuficiente para o preenchimento do tipo de crime pelo qual o arguido foi condenado em 1.ª instância (p. e p. pela alínea c) do n.º 1 do artigo 256.º do CP), porquanto não é definitivamente elucidativa sobre quem falsificou o documento a que nos vimos reportando: se pessoa distinta de quem o usou, o arguido, se este próprio.
Ora, reitera-se, o uso de documento falso apenas é punido no caso de se tratar de uso de documento por pessoa distinta da que falsificou, circunstancialismo que carece de absoluta demonstração.
Em síntese conclusiva: desde logo, por falta dos elementos típicos objectivos, não cometeu o arguido/recorrente o crime de uso de documento falso pelo qual foi condenado pelo tribunal a quo.


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Consequentemente, ficam prejudicadas todas as outras diversas questões, por via das quais o recorrente pretendia, por outras vias jurídicas, ver declarada a sua absolvição.
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5. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam os juízes da 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em:
A) Proceder à correcção do erro material constante do ponto 3) da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida nos seguintes termos:
- onde consta “«Para todos os efeitos legais declaro que o senhor F…, reformado, separado judicialmente, almoça e janta na minha casa diariamente pagando a quantia de 120,00€ (cento e vinte euros), isto porque somos amigos e já nos conhecemos à muitos anos e ele não familiares nsta cidade», passará a constar o real conteúdo da declaração em causa, deste teor:

«Para todos os efeitos legais declaro que o senhor F..., reformado, separado judicialmente, almoça e janta na minha casa diariamente pagando a quantia de 120,00€ (cento e vinte euros), isto porque somos amigos e já nos conhecemos à muitos anos e ele não tem família nesta cidade».

B) Na concessão de procedência ao recurso, revogar a sentença recorrida, absolvendo o arguido F... da prática do crime de uso de documento falso, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea c) [redacção do DL 48/95, de 18-03], do Código Penal.

Sem tributação.


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(Processado e integralmente revisto pelo relator, o primeiro signatário)

Coimbra, 23 de Novembro de 2010

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales