Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
26/22.3JAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
INCÊNDIO DE RELEVO
Data do Acordão: 03/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO - JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 412.º, N.º 3, ALÍNEA B), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGOS 272.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I - O incêndio levado a cabo com dolo em veículo automóvel é incêndio de relevo porque integra o tipo legal do crime.

II - O incêndio em veículo automóvel estacionado junto de outros veículos automóveis e em zonas residenciais é incêndio de relevo porque acarreta um perigo acrescido e substancial não só para o veículo incendiado, mas também para os demais bens à sua volta.

Decisão Texto Integral:
Relator: Luis Teixeira
1.º Adjunto: Vasques Osório
2.º Adjunta: Maria José Guerra

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1. Nos autos de processo comum supra identificados, foi o arguido AA condenado como autor material de dois crimes de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas, previstos e punidos pelo disposto no artigo 272.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal por referência ao disposto no artigo 202.º, alínea a), do mesmo Código, na pena de 4 anos por cada um dos crimes.

Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de seis anos de prisão.

Mais foram os objetos apreendidos nestes autos e utilizados na execução dos crimes declarados perdidos a favor do Estado.

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2. Desta decisão recorre o arguido, que formula as seguintes conclusões:

67ª - Ainda que o presente recurso não proceda quanto à decisão de facto – no que não se concede e só por mera hipótese se admite -, a decisão de direito deverá, de todo o modo, ser alterada, absolvendo-se o arguido quanto a ambos os crimes por cuja prática foi condenado, por não se mostrar preenchido, em ambos os casos, o pressuposto do tipo de ilício “incêndio de relevo”.

68ª - Para que o crime se mostre preenchido, o incêndio tem de ser de relevo.

69ª - Incêndio de relevo é aquele que sobressai, que é importante, quer pelo número de bens que atingiu, quer pelo seu valor do prejuízo que causa, quer pelo perigo concreto que provocou, quer pelo alarde social que causou, etc..

70ª - Em ambas as situações estamos perante incêndios que não podem considerar-se de relevo.

71ª – Foram ambos facilmente extintos, num período de10 a15 minutos, por 4 ou5 bombeiros, apoiados por um carro com água, os danos provocados em ambos os casos limitaram-se, no primeiro caso, à viatura ardida e a alguns danos, de reduzido valor, num portão e numa janela, e no segundo caso, à viatura ardida (com o valor venal de € 810,00) e em partes de duas outras viaturas, ascendendo, na globalidade, ao valor de € 2.830,00.

72ª – Os factos em apreço configurariam, assim, não crimes de incêndio, mas, sim, crimes de dano, p.e p. nos termos do disposto no artigo 212º do Código Penal, pelo que deve extinguir-se o procedimento criminal, por tal crime depender de queixa, que não foi apresentada.

73ª - Na hipótese de se entender que apenas a 1ª situação configura crime de incêndio e que foi o arguido o seu autor – no que não se concede e só por mera cautela de patrocínio se concebe -, a pena aplicada deve ser suspensa na sua execução, por se revelar manifesto que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

74ª – O Acórdão recorrido viola, designadamente, o disposto no artigo 32º, nº 2, da CRP, 127º do CPP, 50º e 272º, nº 1, alínea a), do CP, pelo que deve ser revogado, proferindo-se acórdão que absolva o arguido da prática dos crimes por que foi condenado, como é, aliás, de inteira Justiça”

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3. Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público dizendo o seguinte:

Ora, o resultado daqueles incêndios, que até foi o que arguido pretendeu, destruir aqueles veículos só não foi mais grave, devido à conduta de terceiros, não podendo esta intervenção de terceiros a que o arguido é completamente alheio ser significativa para retirar relevância/gravidade à conduta do arguido.

O mesmo se refere quanto ao valor dos veículos incendiados, mais uma vez se refere que os veículos foram avaliados, na perícia realizada nos autos e que não foi posta em causa.

Todavia, contrariamente ao que o arguido refere, no que concerne ao Seat Cordoba, o valor elevado para a consumpção da sua conduta ao ilícito criminal não se pode apenas limitar ao valor do veículo que aquele pretendia identificar, mas também ao valor dos veículos que se encontravam estacionados nas proximidades daquele, que o arguido resolve colocar em perigo, e que até chegou a danificar.

Assim sendo, e relativamente aos dois veículos os montantes dos bens que o arguido resolveu incendiar atingem o valor elevado, previsto no art. 202.º do Código Penal e como tal a sua conduta subsume-se aos mesmos.

Acresce ainda que como aliás se frisou no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra supra mencionado que não é o facto de o incêndio ter sido eficazmente combatido que lhe retira o relevo ou gravidade, veja-se que os veículos, pela sua natureza têm tanques de combustível que, por acaso, não explodiram, mas que poderiam ter explodido provocando danos de muito maior monta.

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4. Nesta instância, o Ministério Público emitiu o seguinte parecer:

A motivação do acórdão e a subsunção dos factos ao direito não merecem censura.

Carece de sentido, perante a factualidade provada, o enquadramento no crime de dano.

Não teve o tribunal quaisquer dúvidas sobre a responsabilidade criminal do arguido, pelo que não faz sentido invocar aqui o in dubio pro reo.

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5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.                                        

II

Questões suscitadas:

1. A impugnação de determinada matéria de facto dada por provada.

2.  Da errada subsunção jurídica dos factos provados.

3. Da suspensão da execução da pena.

III

1. São os seguintes os factos dados por provados e não provados no acórdão recorrido:

1. Por sentença transitada em julgado em 09-06-2021, confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo comum singular n.º 415/18...., foi o arguido AA condenado pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, conduta prevista e punida pelo disposto no artigo 152.º , n.ºs 1 al. a ) , 2, al. a ) e 5 , do C. Penal, na pena de três anos e nove meses de prisão, sujeito à regra de conduta de proibição de contacto, por qualquer meio, por parte do arguido com a vítima, e ainda, de afastamento deste da residência e do local de trabalho da vítima, durante o período da suspensão (3 anos e 9 meses), a fiscalizar por meios técnicos de controlo à distância - cfr. art. 52º, n.º 1, al. c) do CP e, art. 34º-B, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16.09 - e com regime de prova - cfr. art. 53º, do CP -, cujo plano de reinserção social privilegiou o comportamento e a orientação de atuação do arguido no relacionamento com o sexo oposto e com os seus familiares, privilegiando, igualmente, o tratamento da adição etílica e do comportamento psicopatológico.

2. A vítima do acima identificado crime é BB.

3. O arguido AA e BB contraíram casamento no dia 6 de julho de 1991 e encontram-se divorciados desde o dia .../.../2019.

4. No âmbito do referido processo de violência doméstica BB encontra-se a ser acompanhada pelo gabinete de apoio à vítima da entidade A..., designadamente por CC.

5. Ainda no âmbito do referido processo de violência doméstica, DD, prima de BB, interveio como testemunha em audiência de discussão e julgamento.

6. Em data não concretamente apurada, mas anterior e próxima do dia 28 de janeiro de 2022, o arguido AA formou o propósito de prejudicar patrimonialmente aquela entidade A... e quem a sua ex-mulher apoiasse no âmbito do referido processo de violência doméstica, através da destruição pelo fogo dos veículos automóveis de tais intervenientes.

7. Assim, e para dar execução a tal plano, no dia 28 de janeiro de 2022, entre as 01:31 horas e as 01:40 horas, o arguido AA, vestido com casaco de cor azul e uma máscara de cor preta com representação de uma caveira que lhe cobria a face deixando a descoberto os olhos, munido de artefacto incendiário, co características não apuradas            deslocou-se junto do n.ºs 57 a 61 da Rua ..., na ..., local onde se encontrava estacionado o veículo automóvel da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-SJ-...

8. Ali chegado, o arguido AA aproximou-se do veículo automóvel e de modo não concretamente apurado partiu o vidro situado atrás do pilar B do referido veículo, do lado do condutor, e colocou o artefacto incendiário a arder dentro do mesmo, mais concretamente na zona central do banco traseiro do veiculo automóvel.

9. Após, o artefacto incendiou a matéria combustível que de imediato se propagou aos objetos que se encontravam no interior do veiculo automóvel, que assim desse modo logo ficaram a arder em combustão autossustentada, o que o arguido se certificou, com o que causou a destruição do referido veiculo.

10. Após, o arguido AA abandonou o local e deslocou-se para a sua residência sita Rua ..., ....

11. O veiculo automóvel da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-SJ-.., pertence à A... CRL, estando adstrito à utilização aos colaboradores que exercem funções no gabinete de apoio à vítima de violência doméstica, sendo CC a sua condutora habitual, o que o arguido bem sabia.

12. Em consequência do sobredito incêndio, e por conseguinte, da conduta do arguido AA, o veiculo automóvel da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-SJ-.., com valor venal de pelo menos 9.100,00€, com exceção da zona frontal e próxima do motor, ficou destruído pelo fogo.

13. O calor que provinha do referido incêndio causou a destruição da pintura do para-choques da zona traseira e do respetivo spoiler do veículo automóvel da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-MS-.., propriedade de EE, que se encontrava estacionado junto ao veículo acima identificado, prejuízos/danos calculados no valor de 221,40 €.

14. Bem como causou a destruição da pintura do portão, da pintura das paredes exteriores e das janelas exteriores do edifício sito ao n.º ...7, da Rua ..., propriedade de FF.

15. Nessa ocasião, com a sua atuação o arguido AA causou danos/prejuízos no valor total de pelo menos 5100 euros

16. O local onde o arguido propagou o incêndio acima descrito encontra-se localizado no centro da cidade da cidade ..., confinando com zonas residenciais, dezenas de veículos automóveis ali estacionados e demais infraestruturas viárias, elétricas e telefónicas

17. Caso não tivesse sido de imediato combatido pela Corporação de Bombeiros da ... que de imediato acorreu ao local e logrou extinguir o fogo ateado pelo arguido, e que acima se descreveu, o fogo poderia ter alastrado aos veículos restantes estacionados nas proximidades, designadamente ao veículo da marca ..., modelo ..., de matricula ..-MS-.., o que o arguido bem sabia.

18. O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de provocar um incêndio no interior do veiculo automóvel acima identificado que sabia ter valor de pelo menos 9.100,00€, ser propriedade da entidade A... e habitualmente conduzido por CC, e desse modo destrui-lo, tendo ainda perfeita consciência que com a sua conduta punha em perigo os veículos estacionados nas redondezas.

19. Bem sabia o arguido que ao atear o fogo pela forma acima descrita, nas condições e local mencionados, punha em risco não apenas património alheio de valor elevado.

20. O arguido AA procedeu da forma descrita supra com o intuito de fazer com que o fogo se propagasse, de forma a, designadamente, destruir integralmente o veiculo automóvel acima identificado, e desse modo prejudicar patrimonialmente aquela entidade bem como amedrontar quem com a sua ex-mulher A... e apoia, o que representou, quis e conseguiu.

21. Ainda no desenvolvimento do plano previamente equacionado pelo arguido, nos termos acima descritos, no dia 15 de fevereiro de 2022, entre as 05:23 horas e as 05:50 horas, o arguido AA, munido de artefacto incendiário e características não apuradas, deslocou-se junto do n.º 7 da Rua ..., na ..., local onde se encontrava estacionado o veiculo automóvel da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-..-GB, com o valor venal de pelo menos 810,00€.

22. O veiculo automóvel da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-..-GB, pertence a DD, prima de BB, ex-mulher do arguido, testemunha arrolada na acusação relativa ao processo comum singular n.º 415/18.... e que prestou depoimento em audiência de discussão e julgamento no dia 19 de dezembro de 2019, entre as 11 horas e 32 minutos e as 11 horas e 49 minutos, o que o arguido bem sabia.

23. Ali chegado, o arguido AA aproximou-se do referido veículo e de modo não concretamente apurado partiu o vidro situado no lado direito, do lado do passageiro do referido veiculo e colocou o artefacto incendiário a arder dentro do mesmo, mais concretamente no banco dianteiro do lado direito do veículo automóvel.

24. Após, o artefacto incendiou a matéria combustível que de imediato se propagou aos objetos que se encontravam no interior do veiculo automóvel, que assim desse modo logo ficaram a arder em combustão autossustentada, o que o arguido se certificou, com o que causou a destruição total do referido veiculo e danos/prejuízos no valor de pelo menos 810,00€.

25. De imediato, o arguido AA abandonou o local e deslocou-se para Caminho ..., em ....

26. Nas referidas circunstâncias, junto ao veiculo automóvel marca ..., modelo ..., de matrícula ..-..-GB, encontravam-se estacionados pelo menos 20 veículos automóveis.

27. Em consequência do sobredito incêndio, e, por conseguinte, da conduta do arguido, o calor que provinha do mesmo causou danos aos veículos automóveis estacionados ao lado do acima identificado, designadamente:

a. no veículo da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-NB-.., propriedade de GG, com valor venal de 6.240,00€, ao qual causou destruição parcial do para-choques frontal do lado esquerdo e destruição do painel localizado do lado esquerdo do referido veiculo por cima da cava da roda, prejuízos/danos calculados no valor de 1.248,00€;

b. no veículo da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-..-RB, propriedade de HH, com valor venal de 1.480,00€, ao qual causou a destruição parcial do para-choques traseiro do lado direito, da ótica traseira do lado direito bem como da porta do mesmo lado situada atrás do pilar B, prejuízos/danos calculados no valor de 1.106,48€.

29. Nessa ocasião, com a sua atuação o arguido AA causou prejuízos/danos no valor total de pelo menos 3.164,48€.

30. O local onde o arguido propagou o incêndio acima descrito encontra-se localizado no centro da cidade da cidade ..., confinando veículos automóveis ali estacionados e que colocava em risco como colocou bens patrimoniais com o valor elevado.

31. O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de provocar um incêndio no interior do veiculo automóvel de matrícula ..-..-GB e restantes veículos ali estacionados, que sabia terem no seu conjunto valor bem superior a 5.100,00€ e ser o primeiro propriedade de DD e desse modo destrui-los, tendo ainda perfeita consciência que com a sua conduta punha em perigo os restantes veículos estacionados nas redondezas .

33. Bem sabia o arguido que ao atear o fogo pela forma acima descrita, nas condições e local mencionados, punha em risco não apenas património alheio de valor elevado.

34. O arguido AA procedeu da forma descrita supra com o intuito de fazer com que o fogo se propagasse, de forma a, designadamente, destruir integralmente o veiculo automóvel acima identificado pertencente a DD, e desse modo prejudicá-la patrimonialmente bem como amedrontar quem com a sua ex-mulher A... e apoia, o que representou, quis e conseguiu.

35. No dia 15.02.2022, pelas 10:00 horas, o arguido AA detinha:

a. no interior da sua residência sita em Rua ..., ... – ... - ... ..., um casaco almofadado, de cor azul escuro, com capuz, da marca ...”, com uma queimadura na zona do bolso esquerdo e corte, por queimadura, junto ao bolso direito;

b. no interior do seu veiculo automóvel da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-NP-..: na bagageira, dentro um saco de compras, uma máscara de esqui, de cor preta, da marca ...; Um telemóvel da marca ...”, modelo ..., com o IMEI nº ...61/1, sem cartão SIM; Num saco de compras no habitáculo dos passageiros, traseiro esquerdo, uma caixa de acendalhas, da marca ...”, aberta; Na consola central, vários documentos, com dizeres e diversas matrículas manuscritas, designadamente: ..-..-GB , ..-SJ-.. II, ..-FM-...

36. O veículo de matrícula ..-FM-.. pertenceu, até 22-10-2021, a JJ, irmã de DD.

37. No dia 15.02.2022, pelas 10:00 horas, o arguido AA detinha no interior da sua residência sita na Quinta ..., ... – ... – ..., no quarto habitualmente usado pelo mesmo, uma máscara de cor preta com abertura na zona dos olhos com representação de uma caveira.

38. O arguido AA agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente bem sabendo que os bens destruídos e colocados em perigo acima identificados não lhe pertenciam, que agia contra a vontade dos seus legítimos proprietários e que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei penal.

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B)

a) O arguido AA, é o segundo de três filhos de um casal normativo e organizado, de mediana condição socioeconómica, decorrente da atividade profissional de ambos, funcionários na B... e terá usufruído de condições favoráveis a um desenvolvimento normativo, com um ambiente relacional e afetivo gratificante e com a transmissão valores e normas sociofamiliares adequados.

b) AA frequentou o espaço escolar até ao termo do 9º ano de escolaridade. Mais tarde e já em idade adulta, concluiu o 12º ano através do programa de Novas Oportunidades.

c) Incorporou o serviço militar aos 18 anos que manteve até aos 22 anos, altura em que após concurso publico, ingressou na PSP, tendo sido, inicialmente, colocado em ... e transferido para a ..., 8/9 anos depois.

d) Em 1991 contraiu matrimónio com BB, desta união nasceu um filho, atualmente com 26 anos de idade.

e) A dinâmica relacional no seio da família terá sido caraterizada por episódios de violência física e verbal, quer contra o então cônjuge, quer contra familiares próximos daquela (pais), decorrentes de uma atitude pessoal impulsiva e controladora, agravada por hábitos de consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Em 2016 o cônjuge saiu de casa, na sequência de novos episódios de agressão, contra o pai, por parte do arguido.

f) Entretanto volvidos 3 meses, devido a pressões e ameaças efetuadas por AA contra os familiares do cônjuge esta volta a reatar a relação. Todavia, em finais de 2018, novos episódios determinaram a separação definitiva com divórcio em março de 2019, e abertura do processo acima mencionado.

g) Na época o arguido ficou sujeito a medidas de coação de tratamento à problemática alcoólica, de acompanhamento psiquiátrico e ainda pena acessória de proibição de contactos com meios técnicos de controlo à distância – VE. De acordo com o apurado, apesar de muito revoltado com a situação cumpriu minimamente com todas das injunções a que esteve sujeito.

h) Suspenso de funções na PSP, entrou de baixa médica, sendo acompanhado pelos serviços de saúde mental da PSP.

I) Após a condenação na pena de prisão suspensa por 3 anos e 9 meses com regime de prova, mantiveram-se as obrigações contidas na medida de coação, de tratamento da problemática alcoólica e de acompanhamento nível psicopatológico, bem como a medida de proibição de contacto com VE. Não obstante o arguido recusar assumir qualquer problemática alcoólica ou de saúde mental, manteve o cumprimento destas obrigações com comparência nos serviços competentes sempre que convocado para tal.

j) AA era o principal responsável pelo sustento familiar; sendo o cônjuge totalmente dependente em termos económicos.

l) Após a separação o arguido ficou a viver na morada de família com o filho. Trata-se de uma habitação própria adquira com empréstimo bancário com uma prestação mensal de 300€ que o arguido afirma estar a seu cargo, uma vez que ainda não está. resolvida a partilha de bens. Enquanto esteve de baixa médica auferia cerca de 1000€ mensais, a partir de sua entrada em prisão preventiva não recebe qualquer vencimento, uma vez que está suspenso de funções na PSP. Refere que tem recorrido a bens de reserva para fazer face ás despesas.

n) Há cerca de dois anos, iniciou nova relação com KK passando a viver com esta na ..., embora mantenha a sua morada na ..., sendo esta união tida como gratificante com um relacionamento positivo entre o casal. Segundo KK o companheiro é uma pessoa afetuosa, respeitador e atencioso. O casal mantem desde o início da união uma relação próxima com os familiares de origem de ambos. KK, desde a prisão do arguido continua a manter contactos assíduos com os pais e irmã deste. KK não acredita na presente acusação nem na anterior, não vê o arguido como agressor e embora afirme que podem ter ocorrido agressões verbais, a nível físico terá sido o arguido o alvo das mesmas por parte do ex-cônjuge.

o) Este posicionamento é partilhado pela irmã e pais de AA que manifestam o seu total apoio ao mesmo, manifesto nas visitas regulares que efetuam no EPE.

p) Desde a sua entrada no estabelecimento prisional, tem mantido uma conduta adequada, com cumprimento das normas vigentes.

q) O arguido beneficia de acompanhamento psicológico e psiquiátrico.

r) Em sede de entrevista a dotou uma postura reservada e confusa relativamente á exposição a sua história de vida, expressando insistentemente a sua revolta relativamente á sua situação jurídico-penal nomeadamente á condenação de que foi alvo que considera injusta e descabida “a justiça é das mulheres. Os homens são sempre condenados” (sic).

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Não provados;

a)  Os incêndios facilmente se propagaria às residências, com pessoas no seu interior, e demais infraestruturas, que colocava em risco como colocou bens patrimoniais com o valor de pelo menos 2 681 020 360,06 €, o que o arguido bem sabia uma vez que reside em local próximo e desempenha as funções de agente da Polícia de Segurança Pública na cidade ....

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2. Fundamenta o tribunal recorrido a matéria de facto, nos seguintes termos:

O arguido declarou-se inocente dizendo que a sua presença nos locais e na hora dos incêndios foi mera coincidência.

Todavia o Tribunal não teve quaisquer dúvidas quanto aos factos provados, porquanto:

A testemunha LL, casada, socióloga, presidente da A...; que a associação tinha um Dacia Sandero, habitualmente conduzido pela CC; o veículo ardeu totalmente, tendo recebido da seguradora a quantia de 6 500 euros de indemnização; o preço do veículo novo é de 15 000 euros.

Mais informou que a Dr. ª CC era a única a fazer as consultas e apoio à vítima;

Resulta do depoimento da testemunha CC que o arguido tinha inimizade contra si, técnica da A..., a que quem perseguia, criado nela grande receio, como ressalta do seu depoimento motivando a sua declaração com o facto de CC, técnica do Gabinete começou a dar apoio à ex- esposa do arguido em Março de 2016 o que faz até agora;

Era a condutora habitual do veículo - Dacia ( incendiado)

Teve contacto com o arguido durante o julgamento do processo de violência doméstica;

O arguido fez-lhe um pedido de amizade no Facebook, que recusou; a partir dessa data, começou a notar, que o arguido a seguia, nomeadamente: Em Setembro/Outubro de 2021 começou a notar o arguido, sem consumir, comparecia na zona da Restauração no Centro Comercial ..., sempre virado para a zona onde se encontra sentada;

Em Novembro/ Dezembro de 2021, o sistema de vigilância eletrónica assinalava o presença do arguido na zona de gravações da RTP com as utentes da A..., entre as quais a ex- mulher do arguido

Mais assinalou a presença do arguido na Zona da A..., em 26/01/2022, em que estava a sair da A... na direcção do seu veiculo pessoal que estacionou junto do veículo Dacia, viu o arguido que circulava a pé, parado, a olhar para os veículos ( o pessoal e da A...).

Mais uma vez em 3/02/2022, mais uma vez o arguido se aproximou de si, tendo desta vez telefonado à PSP, assinalando a seu presença;

Posteriormente, o arguido, identificando-se como AA pediu uma reunião; agendou-a para 8/02;

Quando o viu, apercebendo-se da identidade do arguido, telefonou à polícia; a pedido da PSP manteve a chamada em linha com a PSP.

Nessa reunião o arguido, disse querer felicitá-la pelo acompanhamento (excelente trabalho) à ex que esta era mentirosa e que ele é que era a vítima, que tinha que ver as provas que tinha; que não acreditava na justiça que esta disposto a tudo. Sempre sentiu vigiada em todas as suas rotinas;     que sentiu necessidade de alterar;

O segundo veículo incendiado era propriedade de DD, prima da ex-mulher do arguido ( veículo d matrícula ..-..-GB), mais dizendo que foi pro vingança do arguido por ter sido testemunha no processo de violência doméstica em que o seu primo foi arguido. Mais referiu o valor do veículo e está convencida de que foi o arguido que lhe incendiou o carro por vingança;

Mais se valorou a comunicação de notícia do crime de fls. 13-14 de onde consta a comunicação da deflagração do incêndio. Auto de notícia de fls 2 e depoimentos do sr. agente da PSP MM e depoimento da testemunha . NN, melhor id a fls. 49/659 que foi claro em afirmar ter vindo de autocarro de ... para a ..., que na deslocação para sua casa, vindo da garagem de S. João, ouviu um vidro a partir, olhou e viu um indivíduo máscara, , casaco azul escuro; que tal indivíduo acabou por fugir; mais disse que ligou à PSP;

Ora, conjugado tais depoimentos, hora do telefonema, conjugado com monotorização electrónica dos movimentos do arguido que o colocavam nessa rua, que foi este a partir o vidro e incendiar o veículo.

Saliente-se que o arguido tinha na sua posse, anotada, a matrícula deste veículo, não logrando dar explicação para tal.

Saliente-se que também m na segunda situação o arguido esta no local e sem dar para tal qualquer explicação para além da coincidência.

Conclui-se, assim que foi o arguido o autor dos incêndios.

A testemunha OO, residente na Rua ..., ..., cerca da ½ horas da manhã, estava cordado, na sequência de um estrondo, veio à janela e viu veículo a arder; de imediato ligou aos bombeiros. Não viu ninguém.

FF, é proprietário de uma casa na Rua ...; ...; Foi ao local passado ½ dias após o incêndio do veículo de que teve conhecimento pelo seu filho; teve prejuízos que descreveu , danos na porta e janela;

PP , agente da PSP, que foi ao local e desviou os carros que estavam ao lado.

GG, proprietário do veículo Clio e confirmou os prejuízos HH, disse nada saber da autoria do incêndio; teve conhecimento por vizinha cerca das 11 horas da manhã; teve prejuízos de 750 euros, que pagou.

Sobre os incêndios e o perigo deles resultantes valorou-se, ainda, o relatório de exame pericial n.º 011/2022 de fls. 55-66 referente ao incêndio do veículo Dacia, na Rua ..., ..., no dia 28/01/2022 e relatório intercalar de fls 67 onde se conclui que não havendo sinais de arrombamento, o autor ( arguido) teria partido o vidro traseiro da porta direita. Relatório de exame pericial n.º 30/2022 (NUIPC 43/22....) de fls. 301-319 referente ao incêndio no veículo de Marca Seta com a matrícula ..-..-GB e veículo de matrícula ..-NB-.. e ..-..-RB

Em ambos os casos os relatórios concluem terem sido utilizados acelerantes de combustão.

Relatório pericial de avaliação de danos de fls. 776-788;

Mais se valorou o Auto de notícia e respetivos aditamentos de fls. 17-18, 30-33, 186-187, 204-207, e de fls. 293-293v/528-538, 520-521, 523-526, 551-560, (NUIPC 43/22....);

Mais se valorou a certidão extraída do processo comum singular n.º 415/18.... de fls. 94-142v, 480-499; Informação da seguradora Lusitânia de fls. 146-158v; Informação da equipa de vigilância eletrónica da DGRSP de fls. 163-163v, 167, 322, 454; Informação de piquete de fls. 292-293v, 539-540v;

Reportagem fotográfica de fls. 333-338, 363-365, 366-391, 553-560;

Auto de exame direto de fls. 339-340, 342-343, 345-346;

Auto de revista de fls. 359-360;

Auto de busca e apreensão de fls. 361-365;

Documentos apreendidos ao arguido AA de fls. 514, 516;

Cópia de fatura a fls. 569, 654;

Informação da Associação de Bombeiros voluntários da ... a fls. 574; Assento de nascimento de fls. 790-791.

Situação pessoal e económica – relatório da DGRSP e informação clínica-.

As testemunhas arroladas pelo arguido  KK e QQ nada sabiam sobre os factos, apenas depoimentos sobre a sua personalidade.

Não foi feita prova sobre o facto dado como não provado.

IV

Cumpre decidir:

1ª Questão: 1. A impugnação de determinada a matéria de facto dada por provada.

1. Insurge-se o recorrente contra a matéria de facto dada como provada nos itens 6, 7, 8, 9, 10, 12, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 33, 34 e 38. Ou seja, praticamente toda a matéria de facto de onde emerge a responsabilidade criminal e civil do arguido.

Tal factualismo respeita a dois momentos da conduta do recorrente que se traduzem por sua vez na condenação pela prática de dois crimes de incêndio: a 1ª situação ocorrida no dia 28 de janeiro de 2022, entre as 01:31 horas e as 01:40 horas no veículo automóvel da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-SJ-.. – v. facto provado nº 7; a 2ª situação ocorrida no dia 15 de fevereiro de 2022, entre as 05:23 horas e as 05:50 horas  no veiculo automóvel da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-..-GB - v. facto provado nº 21.

***

2. A forma processual idónea para sindicar qualquer erro na apreciação da prova do julgador a quo, para além dos vícios do artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal (estes de conhecimento oficioso e desde que resultem do texto da decisão recorrida) é a impugnação da matéria de facto ao abrigo do artigo 412º, nºs 3 e 4, daquele diploma, dispondo o nº 3:

3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

Compulsado o teor da motivação de recurso do recorrente, constata-se que este especificou efetivamente os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados. Já quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, entende-se que não deu o recorrente cumprimento às exigências legais, pois limitou-se a, perante os elementos de prova produzidos nos autos e como resulta da síntese acabada de se expor (supra), a proceder a uma apreciação da prova à sua maneira, segundo a sua própria convicção e respetiva valoração, contrapondo claramente o seu próprio julgamento ao julgamento realizado pelo tribunal. Pode mesmo dizer-se que o que mais sobressai da impugnação do recorrente é tecer considerações e suscitar dúvidas sobre a avaliação/valoração que o tribunal fez sobre a prova produzida, retirando-lhe recorrente idoneidade e consistência no sentido de que o tribunal não deveria ter dado como provada a materialidade fáctica da sentença.

Em síntese, o recorrente, que prestou declarações mas apenas para negar a prática dos factos, realça e pretende fazer crer que todo o conjunto dos elementos probatórios valorados pelo tribunal, não passam de meras coincidências: que jamais perseguiu a testemunha CC, tratando-se sempre de encontros ocasionais em lugares públicos; que a proprietária da viatura ardida, DD, não tinha problema algum com ele; que as testemunhas ouvidas não identificaram a máscara e as roupas que visualizaram ao indivíduo no lugar dos factos com as que foram encontradas ao arguido; que as acendalhas foram adquiridas para outro fim específico e não para atear os incêndios; e, finalmente, que os registos da presença do arguido à hora dos incêndios, não passam disso mesmo, meros registos e coincidências.

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É jurisprudência pacífica do STJ que a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento, de um melhor julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância. O uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados – v. ac. do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de maio de 2010, proferido no processo nº 696/05.....

Mais se decide neste mesmo acórdão que “(…) não se pode deixar de ter presente que o legislador, quando se refere à especificação das provas, as restringe àquelas que imponham decisão diversa. A utilização do verbo impor, com o sentido de «obrigar a», não é anódina[1].

Não basta, pois, uma mera discordância do recorrente quanto à valoração feita pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida, contrapondo, mais que a sua própria versão dos factos, uma mera dúvida apoiada por um lado, na negação dos factos e por outro, em meras coincidências factuais, mas das quais jamais será possível concluir como concluiu o julgador a quo.

*

Nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Ou seja, neste caso, estamos precisamente no âmbito do princípio da livre apreciação da prova que tem como único limite à discricionariedade do julgador, as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

Este princípio (da livre apreciação da prova), é ainda indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância ou, se se quiser, do princípio da imediação da prova. Princípio que privilegia a perceção direta que o julgador tem da produção da prova, maxime os depoimentos testemunhais prestados em audiência.

“A imediação, traduz-se no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” - ac. desta Relação de Coimbra de 15.10.2008, proferido no processo nº 400/06.2GCAVR.C1, consultável em www.dgsi.pt.jtrc.

Já o Prof. Alberto do Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, págs. 566, ensinava que “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”.

*

Decide-se no acórdão do STJ de 11/11/2004, processo n.º 04P3182, Relator Simas Santos: “A garantia de legalidade da «livre convicção» a que alude o artigo 127.º do CPP, terá de bastar-se com a necessária explicitação objectiva e motivada do processo da sua formação, de forma a ficar bem claro não só o acervo probatório em que assentou essa convicção, possibilitando a partir daí o necessário controlo da sua legalidade, como também o processo lógico que a partir dele o tribunal desenvolveu para chegar onde chegou, nomeadamente da valoração efectuada, enfim, da razão de ser do crédito ou descrédito dado a este ou àquele meio de prova”.

*

Fixando-nos, pois, no teor da fundamentação da sentença, a mesma não deixa quaisquer dúvidas sobre a bondade do decidido quanto à matéria de facto dada como provada.

No que respeita ao 1ª incêndio do dia 28 de janeiro de 2022 - entre as 01:31 horas e as 01:40 horas - no veículo automóvel de marca ..., modelo ..., de matrícula ..-SJ-.., pertencente à A... CRL mas que estava adstrito à utilização dos colaboradores que exercem funções no gabinete de apoio à vítima de violência doméstica e sendo a testemunha CC a sua condutora habitual, esclarece desde logo a fundamentação toda a conduta do recorrente que levou à sua aproximação e concretamente à perseguição daquele a esta testemunha. Sem prejuízo de o recorrente afastar este conceito de perseguição, tudo resumindo a meros encontros ocasionais e em lugares públicos, a realidade factual aponta em sentido diferente. Sabia o arguido que esta testemunha, técnica do C..., dava apoio à sua ex-mulher, vítima de violência doméstica, crime pelo qual o arguido foi condenado. Como também sabia que esta testemunha era a condutora habitual do veículo Dacia, incendiado.

Ora, “o arguido fez-lhe um pedido de amizade no Facebook, que recusou; a partir dessa data, começou a notar, que o arguido a seguia, nomeadamente: Em Setembro/Outubro de 2021 começou a notar o arguido, sem consumir, comparecia na zona da Restauração no Centro Comercial ..., sempre virado para a zona onde se encontra sentada;

Em Novembro/Dezembro de 2021, o sistema de vigilância electrónica assinalava o presença do arguido na zona de gravações da RTP com as utentes da A..., entre as quais a ex-mulher do arguido

Mais assinalou a presença do arguido na Zona da A..., em 26/01/2022, em que estava a sair da A... na direcção do seu veiculo pessoal que estacionou junto do veículo Dacia, viu o arguido que circulava a pé, parado, a olhar para os veículos (o pessoal e da A...).

Mais uma vez em 3/02/2022, mais uma vez o arguido se aproximou de si, tendo desta vez telefonado à PSP, assinalando a seu presença;

Posteriormente, o arguido, identificando-se como AA pediu uma reunião; agendou-a para 8/02;

Quando o viu, apercebendo-se da identidade do arguido, telefonou à polícia; a pedido da PSP manteve a chamada em linha com a PSP”.

Como se verifica, são demasiados encontros ou aproximações do arguido à testemunha CC, com condutas estranhas, embora em lugares públicos, para os designar de meras coincidências.

Se se lhe acrescentar que o arguido tinha no interior do seu veiculo automóvel ... com a matrícula ..-NP-.., na consola central, vários documentos com dizeres e diversas matrículas manuscritas, designadamente ..-..-GB, ..-SJ-.. II, [2]..-FM-.. – v. facto provado nº 35º, b – a mera coincidência perde toda a consistência.

Aqui reproduzindo o que o Ministério Público em 1ª instância afirma na sua resposta ao recurso “como qualquer pessoa reconhece é muito diferente a situação de encontrar casualmente uma pessoa num local público, de sentir-se e estar a ser observada nesse local, vejamos um dos locais referidos pela testemunha é a zona de alimentação de um Centro Comercial, em que o arguido escolhia um local com visibilidade directa para a testemunha e ali ficava a olhar fixamente para a mesma, sem consumir nada.

Ora, este comportamento do arguido não é claramente uma coincidência, mas uma atitude deliberada de vigiar e tentar tirar satisfações do apoio dado por CC, no cumprimento daquelas que são as suas funções profissionais à ex-mulher do arguido.

(…)

Aliás a animosidade que o arguido tem para com a Sra. Técnica da Coolabora é de tal ordem que aquele resolveu marcar uma reunião com a mesma, usando nomes distintos daqueles pelos quais habitualmente se identifica, para se travar de razões com CC, tendo levado esta, devido ao medo que tinha do arguido a chamar a PSP e manter os agentes em linha, enquanto o arguido não abandonou as instalações da instituição onde trabalha”.

*

O segundo veículo incendiado, no dia 15 de fevereiro de 2022, - entre as 05:23 horas e as 05:50 horas – de matrícula ..-..-GB, era propriedade de DD, prima da ex-mulher do arguido, a qual foi testemunha no processo de violência doméstica em que o seu primo foi arguido. Ora, também esta matrícula fazia parte do acervo de matrículas anotadas pelo recorrente e que tinha na consola do seu veículo.

*

Mas os elementos fornecidos pelos autos indicam claramente que o arguido não só vigiou como esteve no local dos factos - dos dois incêndios – exatamente no momento em que os mesmos ocorreram.

Quanto ao 1º incendio, informou a DGRSP quanto ao percurso do arguido na Rua ..., na qual aquele ocorreu :

“- no dia 28jan2022, o arguido regista a primeira passagem na referida rua às 00:38h na coordenada 40.2819,-7.5019

- às 00:40h na coordenada 40.2817,-7.5020 e sai dessa rua

- às 00:44h regressa a essa rua para a mesma coordenada 40.2817,-7.5020

- regista nova passagem na referida rua a partir das 01:31h iniciando na coordenada 40.2834,-7.5031,

- às 01:32h na coordenada 40.2830,-7.5030

- às 01:33h nas coordenadas 40.2828,-7.5031 e coordenada 40.2828-7.5030

- às 01:34h na coordenada 40.2826,-7.5030

-às 01:35h na coordenada 40.2820,-7.5030

- às 01:36h na coordenada 40.2819-7.5029, onde inverte marcha para circular na mesma rua

- às 01:37h na coordenada 40.2819,-7.5030

- às 01:39h na coordenada 40.2821,-7.5030

- às 01:40h nas coordenadas 40.2827,-7.5030 e 40.2835,-7.5032 quando se afasta da rua, aonde não mais voltou até às 23:59h do dia 28jan2022.”

E no que respeita ao 2º incêndio informou a equipa de vigilância da DGRSP quanto ao dia 5.02.2022, sendo certo que o incêndio ocorreu na Rua ..., na ... entre as 05:23 horas e as 05:50 horas:

“- dia 15Fev2022 às 04:00h o arguido está localizado numa habitação, sita Caminho ... na coordenada 40.2362, - 7.5126, onde se mantém até às 05:08h

- seguidamente circula pela ..., passa na rua ... em direção o ..., coordenada 40.2801,- 7.4967 e dirige-se para a Rua ..., sendo a 1ª coordenada 40,2804,-7.4972, às 05:23h

- nessa rua movimenta-se até à coordenada 40,2800,-7.4974 às 05:24h e posteriormente na coordenada 40.2800,-7.4978 às 05:26h ( localizado ligeiramente afastado da rua em referência) e às 5:27h para a coordenada 40.2801,-7.4976

- às 05:28h, retoma a mesma rua na coordenada 40.2803,-7.4975 e desloca-se para a coordenada 40.2801,-7.4975 às 05:29h e seguidamente para a coordenada 40.2796,-7.4976 às 05:30h.

- num dos extremos da referida rua é localizado das 05:31h às 05:39h em diversas coordenadas muito próximas

05:31h na coordenada 40.2794,-7.4977

05:33h na coordenada 40.2794,-7.4979

05:34h na coordenada 40.2795,-7.4978

05:35h na coordenada 40.2796,-7.4978

05:38h na coordenada 40.2797,-7.4978

05:39h na coordenada 40.2799,-7.4977

- movimenta-se para o outro extremo da rua para a coordenada 40.2805,-7.4974 às 05:43h e em seguida inverte marcha e retoma a mesma rua em sentido contrário e às 05:47h é localizado na coordenada até à coordenada 40.2800,-7.4975 e para 40.2796,-7.74976 às 05:49h

- neste ponto inverte a marcha em sentido contrário e regressa ao outro extremo da rua às 05.50h na coordenada 40.2805,-7.4974 e sai dessa rua

- passa novamente no ..., circula pela Avenida ... e regressa ao ... para a mesma localização, Caminho ..., coordenada 40.2362,-7.5126 às 06:10h, onde permaneceu até às 08:30h do dia 15fev2022.”

**

Finalmente importa referir que na  situação do dia 28 de janeiro de 2022, o arguido estava vestido com casaco de cor azul e uma máscara de cor preta com representação de uma caveira que lhe cobria a face deixando a descoberto os olhos; resultando por sua vez ainda provado – v. facto nº 35 -, que no dia 15.02.2022, pelas 10:00 horas (data do 2º incêndio), o arguido AA detinha no interior da sua residência sita em Rua ..., ... – ... - ... ..., um casaco almofadado, de cor azul escuro e no interior do seu veiculo automóvel da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-NP-.., na bagageira, uma caixa de acendalhas, da marca ...”, aberta;

E ainda que no dia 15.02.2022, pelas 10:00 horas, o arguido AA detinha no interior da sua residência sita na Quinta ..., ... – ... – ..., no quarto habitualmente usado pelo mesmo, uma máscara de cor preta com abertura na zona dos olhos com representação de uma caveira – v. facto provado nº 37.

*

De todos estes elemento probatórios é feita pelo julgador a quo a respetiva análise e valoração, fundamentando ainda o seguinte:

“Mais se valorou a comunicação de notícia do crime de fls. 13-14 de onde consta a comunicação da deflagração do incêndio. Auto de notícia de fls 2 e depoimentos do sr. agente da PSP MM e depoimento da testemunha . NN, melhor id a fls. 49/659 que foi claro em afirmar ter vindo de autocarro de ... para a ..., que na deslocação para sua casa, vindo da garagem de S. João, ouviu um vidro a partir, olhou e viu um indivíduo máscara, , casaco azul escuro; que tal indivíduo acabou por fugir[3]; mais disse que ligou à PSP;

Ora, conjugado tais depoimentos, hora do telefonema, conjugado com monotorização electrónica dos movimentos do arguido que o colocavam nessa rua, que foi este a partir o vidro e incendiar o veículo.

Saliente-se que o arguido tinha na sua posse, anotada, a matrícula deste veículo, não logrando dar explicação para tal.

Saliente-se que também na segunda situação o arguido está no local e sem dar para tal qualquer explicação para além da coincidência.

Conclui-se, assim que foi o arguido o autor dos incêndios”.

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Como se percebe da argumentação do recorrente, refugia-se o mesmo nas já referidas meras coincidências e ainda no facto de não ser identificado por nenhuma das testemunhas.

Olvida todavia o recorrente que nem toda a prova tem de ser, necessariamente, direta, o que traduzido para o presente caso, significaria que as testemunhas ouvidas e que de algum modo presenciaram parte dos factos – v. fundamentação integralmente supra reproduzida e para a qual se remete -, teriam de identificar sem qualquer sombra de dúvida, o recorrente, como sendo ele o autor dos factos.

Ora, é bom de ver que toda a prova produzida tem de ser globalmente analisada e valorada na sua interconexão e também na perspetiva das deduções/presunções que é possível extrair dos factos conhecidos e provados segundo as normais regras da experiência. O que o julgador a quo fez.

Decidiu-se no ac. do STJ de 12-09-2007 proferido no proc. nº 07P4588, a propósito da prova indiciária:         

I - A prova do facto criminoso nem sempre é directa, de percepção imediata; muitas vezes é necessário fazer uso dos indícios.

II - Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura” (J. M. Asencio Melado, Presunción de Inocência y Prueba Indiciária, 1992, citado por Euclides Dâmaso Simões, in Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 205).

III - Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra.

IV - A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.

V - O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência.

Também no acórdão do STJ de 11/11/2004, processo n.º 04P3182 (já supra citado), se decide a propósito desta prova indiciária e/ou por presunções:

O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstancias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção.

Por isso que, em sede de apreciação, não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte de restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções correcção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência.

Desde logo, é legítimo o recurso a tais presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do CPP) e o art. 349.º do C. Civil prescreve que presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º).

Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa) são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções

*

Os indícios e as regras da experiência, como é evidente, não têm valor absoluto. Cedem perante os designados contra indícios.

Como se afirma no ac. do STJ proferido em processo desta Relação com o nº 936/08.0JAPRT.C1 “da afirmação convicta de uma presunção a força desta só poderia ser abalada ou debilitada pelo peso de contra indícios que à luz das regras da normalidade pudessem formar uma convicção de sinal contrário”.

Ou seja, a dedução ou raciocínio lógico pelo designado método indutivo que assenta nos indícios e nas regras da experiência não está imune a qualquer ruído ou obstáculo que lhe retire a força da indução necessária subjacente a tal avaliação. Para tanto, basta existirem outros factos/indícios conducentes a essa possibilidade. São os designados contra indícios.

*

A fundamentação da sentença assenta em prova direta, testemunhal, documental, autos de revista, buscas, registos e relatório da DGRSP, entre outra, e também na prova por dedução ou indícios, nos termos explicitados.

Ora, quanto ao todos os indícios que existem nos autos – v. registos de presença do arguido nos locais dos factos durante a noite e a horas completamente inusitadas; a anotação da identificação das matrículas dos veículos incendiados com referência expressa à condutora habitual do veículo ..., de matrícula ..-SJ-.., CC; todos os contactos e aproximações que fez quanto a esta testemunha quer na zona da Restauração no Centro Comercial ..., quer os registados pelo sistema de vigilância electrónica;  a posse do casaco almofadado, de cor azul escuro, a máscara de cor preta com abertura na zona dos olhos com representação de uma caveira bem como as acendalhas, a única explicação ou contra indícios do recorrente são as meras coincidências!!

Entende-se que da conjugação de todos os elementos de prova produzidos, avaliados e valorados à luza das regras da experiência, apenas apontam para o recorrente como sendo o autor da prática dos factos em ambos os incêndios.

Pelo que, por todos os fundamentos enunciados, entende-se que andou bem o tribunal recorrido ao decidir como decidiu.

O que significa que não deve ser chamado à colação a aplicação do princípio do in dubio pro reo como pretendido pelo arguido, no qual assenta praticamente toda a impugnação dos factos provados.om efeito, este princípio só será de aplicar se o julgador tiver dúvidas sérias, razoáveis, justificadas e fundamentadas sobre o modo como os factos se passaram e/ou quem os praticou.

Como decidiu o STJ, a violação do princípio do in dubio pro reo só se verifica “quando o Tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido” – v. ac. do STJ de 18.3.98, proc. nº 1543/97 e ac. do STJ de 24.3.99, Col. Jurisp., Acs. do STJ, I, 247.

Ou, como se decide no ac. desta Relação de Coimbra de 25.10.2017, proc. nº 403/16.9GASEI.C1[4]:

VI - Se produzida a prova, subsiste na mente do julgador um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se-lhe proferir uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.

Mais se acrescentando neste acórdão:

VII. Na fase de recurso, a demonstração da violação do pro reo passa pela sua notoriedade, aferida pelo texto da sentença, devendo, por isso, resultar dos termos desta, de forma clara e inequívoca, que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.

VIII - A dúvida relevante para este efeito não é, no entanto, a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, em conformidade com a apreciação que dela, por si [recorrente], foi feita, mas antes, a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada.

A fundamentação do julgador a quo não evidencia qualquer dúvida sobre o decidido em matéria de facto. Nem motivo para a equacionar. Os factos base que resultam da prova direta, testemunhal, documental, autos de revista, buscas, registos e relatório da DGRSP, em conjugação com as regras da experiência, só podiam ter a leitura/valoração que lhes foi atribuída. Apreciação que foi sindicada por este tribunal de recurso e que não merece censura.

Ou seja, ao tribunal recorrido não se suscitou qualquer dúvida que justificasse a aplicação do princípio do in dubio pro reo.

E da análise feita por este tribunal, nomeadamente da apreciação sobre o decidido pelo julgador a quo, não existe fundamento válido para que seja chamado à colação o princípio do in dubio pro reo para a fixação da matéria de facto a apreciar e juridicamente a relevar.

*

Quanto aos factos impugnados respeitantes ao valor dos prejuízos causados nos veículos incendiados e potencial prejuízo que daí poderia advir se os incêndios não tivessem sido extintos como foram, a impugnação do recorrente não adianta prova concreta que imponha decisão diversa nesta matéria, devendo prevalecer a fundamentação do tribunal recorrido e consequente manutenção dos respeticvos factos provados.

Por todo o exposto, deve improceder a pretensão do recorrente quanto à impugnação do factualismo provado.

*

2ª Questão: da errada subsunção jurídica dos factos provados.

1. Entende o recorrente que em ambas as situações descritas nos autos não se está  perante incêndios de relevo, pois que “foram facilmente extintos, num período de 10 a15 minutos, por 4 ou 5 bombeiros, apoiados por um carro com água, os danos provocados em ambos os casos limitaram-se, no primeiro caso, à viatura ardida e a alguns danos, de reduzido valor, num portão e numa janela, e no segundo caso, à viatura ardida (com o valor venal de € 810,00) e em partes de duas outras viaturas, ascendendo, na globalidade, ao valor de € 2.830,00. Pelo que os factos em apreço configurariam não crimes de incêndio mas sim crimes de dano, p.e p. nos termos do disposto no artigo 212º do Código Penal”.

2. Dispõe o artigo 272º do Código Penal:

Incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas

1 - Quem:

a) Provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício, construção ou meio de transporte;

(…)

e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de três a dez anos.

2 - Se o perigo referido no número anterior for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos.

3 - Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos.

*

É o seguinte o factualismo provado que releva para a apreciação da questão:

Incêndio do dia 28 de Janeiro de 2022:

12. Em consequência do sobredito incêndio, e por conseguinte, da conduta do arguido AA, o veiculo automóvel da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-SJ-.., com valor venal de pelo menos 9.100,00€, com exceção da zona frontal e próxima do motor, ficou destruído pelo fogo.

13. O calor que provinha do referido incêndio causou a destruição da pintura do para-choques da zona traseira e do respetivo spoiler do veículo automóvel da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-MS-.., propriedade de EE, que se encontrava estacionado junto ao veículo acima identificado, prejuízos/danos calculados no valor de 221,40 €.

14. Bem como causou a destruição da pintura do portão, da pintura das paredes exteriores e das janelas exteriores do edifício sito ao n.º ...7, da Rua ..., propriedade de FF.

15. Nessa ocasião, com a sua atuação o arguido AA causou danos/prejuízos no valor total de pelo menos 5100 euros

16. O local onde o arguido propagou o incêndio acima descrito encontra- se localizado no centro da cidade da cidade ..., confinando com zonas residenciais, dezenas de veículos automóveis ali estacionados e demais infraestruturas viárias, elétricas e telefónicas

17. Caso não tivesse sido de imediato combatido pela Corporação de Bombeiros da ... que de imediato acorreu ao local e logrou extinguir o fogo ateado pelo arguido, e que acima se descreveu, o fogo poderia ter alastrado aos veículos restantes estacionados nas proximidades, designadamente ao veículo da marca ..., modelo ..., de matricula ..-MS-.., o que o arguido bem sabia.

18. O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de provocar um incêndio no interior do veiculo automóvel acima identificado que sabia ter valor de pelo menos 9.100,00€, ser propriedade da entidade A... e habitualmente conduzido por CC, e desse modo destrui-lo, tendo ainda perfeita consciência que com a sua conduta punha em perigo os veículos estacionados nas redondezas.

Incêndio do dia15 de fevereiro de 2022:

24. Após, o artefacto incendiou a matéria combustível que de imediato se propagou aos objetos que se encontravam no interior do veiculo automóvel, que assim desse modo logo ficaram a arder em combustão autossustentada, o que o arguido se certificou, com o que causou a destruição total do referido veiculo e danos/prejuízos no valor de pelo menos 810,00€.

25. De imediato, o arguido AA abandonou o local e deslocou-se para Caminho ..., em ....

26. Nas referidas circunstâncias, junto ao veiculo automóvel marca ..., modelo ..., de matrícula ..-..-GB, encontravam-se estacionados pelo menos 20 veículos automóveis.

27. Em consequência do sobredito incêndio, e, por conseguinte, da conduta do arguido, o calor que provinha do mesmo causou danos aos veículos automóveis estacionados ao lado do acima identificado, designadamente:

a. no veículo da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-NB-.., propriedade de GG, com valor venal de 6.240,00€, ao qual causou destruição parcial do para-choques frontal do lado esquerdo e destruição do painel localizado do lado esquerdo do referido veiculo por cima da cava da roda, prejuízos/danos calculados no valor de 1.248,00€;

b. no veículo da marca ..., modelo ..., de matrícula ..-..-RB, propriedade de HH, com valor venal de 1.480,00€, ao qual causou a destruição parcial do para-choques traseiro do lado direito, da ótica traseira do lado direito bem como da porta do mesmo lado situada atrás do pilar B, prejuízos/danos calculados no valor de 1.106,48€.

29. Nessa ocasião, com a sua atuação o arguido AA causou prejuízos/danos no valor total de pelo menos 3.164,48€.

30. O local onde o arguido propagou o incêndio acima descrito encontra-se localizado no centro da cidade da cidade ..., confinando veículos automóveis ali estacionados e que colocava em risco como colocou bens patrimoniais com o valor elevado.

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O que deve considerar-se, pois, incêndio de relevo?

Incêndio de relevo, “é um incêndio com uma extensão ou com uma intensidade que se devam considerar, à luz das regras da experiência, como manifestas, indiscutíveis ou relevantes. (…) O legislador deu-nos exemplo daquilo que, segundo o seu critério, são incêndios de relevo. Por outras palavras: são incêndios de relevo, o incêndio de edifício, de construção ou de meio de transporte. (…) um incêndio de relevo não o tem de ser exclusivamente em extensão ou em duração. (…) em princípio, um incêndio em edifício, construção, meio de transporte, floresta, mata…é indiscutivelmente, um incêndio de relevo” – v.  Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 870/871 e ac. TRC de 14-01-2015, proc. nº 319/12.8PBVIS.C1    

Por sua vez, cabe ao julgador a avaliação, em cada caso concreto, da relevância ou inobservância do incêndio – ac. STJ de 24-3-1999, proferido no proc. n.º 98P1463, publicado na CJ, STJ, 1999, Tomo I, pág. 250.

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No incêndio do dia 28 de Janeiro de 2022, o valor venal do veiculo automóvel era de pelo menos 9.100,00€, tendo ficado parcialmente destruído, só não tendo ficado destruído na totalidade devido à intervenção rápida da Corporação de Bombeiros da ... que de imediato acorreu ao local e logrou extinguir o dito incêndio.

Para além do dano direto sobre o veículo incendiado, advieram danos em outro veículo que se encontrava estacionado junto ao ..-SJ-.. – v. facto nº 13. Causou a destruição da pintura do portão, da pintura das paredes exteriores e das janelas exteriores do edifício sito ao n.º ...7, da Rua ..., propriedade de FF. v. facto nº 14.

Por sua vez, tendo o incêndio ocorrido no centro da cidade da cidade ..., confinava com zonas residenciais e dezenas de veículos automóveis ali estacionados e infraestruturas viárias, elétricas e telefónicas – v. facto nº 16.

Ou seja, para além do prejuízo efetivamente causado, o potencial perigo para outros bens é muito elevado, bem superior ao legalmente estipulado como mínimo - 5100,00€ - o que só não aconteceu devido à intervenção de terceiros, no caso, a Corporação de Bombeiros da ....

Este mesmo raciocínio é de aplicar ao incêndio do dia15 de fevereiro de 2022, devendo levar-se em conta não só o valor e danos causados no veículo incendiado, o ..., de matrícula ..-..-GB, mas também que os factos ocorreram no centro da cidade ..., confinando com veículos automóveis ali estacionados, pelo menos 20, de valor elevado, tendo alguns deles sofrido danos efetivos – v. facto provado nº 27.

Ora, os incêndios levados a cabo intencionalmente (com dolo), pelo arguido, em veículos automóveis, tratam-se efetivamente de incêndios de relevo. Desde logo, porque o incêndio em automóvel (meio de transporte), integra o tipo legal do crime. Mas também porque o incêndio em veículo automóvel estacionado junto de outros veículos automóveis e zonas residenciais, acarreta um perigo acrescido e substancial não só para o veículo incendiado mas também para os demais bens à sua volta, como efetivamete ocorreu. Só não tendo atingido outras proporções ou dimensões porque foi prontamente extinto pelos bombeiros. Pois que, se tivesse continuado a sua propagação, sem a intervenção de outrem, atingiria com certeza resultados bem mais extensos, quer nos bens atingidos quer no respetivo prejuízo, pois deve levar-se em conta que os veículos são constituídos por materiais, alguns deles, bastante inflamáveis, de fácil propagação, culminando com um depósito de combustível que pode traduzir-se na explosão de uma verdadeira bomba, com efeitos imprevisíveis.

Mas para além da qualificação de incêndios de relevo, em ambas as situações se verifica o requisito de verificação do perigo para bens alheios de valor elevado – v. ac. STJ de 12-9-2007, proferido no proc. n.º 07P2270, in www.dgsi.pt: “A noção de perigo é «uma categoria relacional» (ob. cit. pág. 875), devendo ser integrada «dentro da normatividade inerente ao direito penal» por critérios de «probabilidade racional». Haverá, assim, perigo sempre que, em dada situação, e através de formulações de prognose com base nas regras da experiência, a acção possa ser considerada como susceptível de produzir um resultado desvalioso para os bens que a lei refere”.

Pelo exposto, não merece censura a qualificação dos factos pelo tribunal recorrido.

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3. Da suspensão da execução da pena.

Diz o recorrente:

Na hipótese de se entender que apenas a 1ª situação configura crime de incêndio e que foi o arguido o seu autor – no que não se concede e só por mera cautela de patrocínio se concebe -, a pena aplicada deve ser suspensa na sua execução, por se revelar manifesto que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” – conclusão nº 73, cujo teor corresponde à fundamentação da motivação.

Esta pretensão do recorrente – de suspensão da execução da pena - tem como pressuposto a consideração, por este tribunal, de que a apenas a 1ª situação configurará um crime de incêndio. E como por este crime foi o arguido condenado na pena de 4 anos de prisão, entende o mesmo que esta pena deve ser suspensa na sua execução.

Acontece que este pressuposto avançado pelo recorrente não se verifica, pois que constituindo ambas as situações crimes de incêndio, significa que se mantém a sua condenação por cada um dos crimes em quatro anos de prisão e o respetivo cúmulo jurídico na pena de seis anos de prisão. Logo, inexistindo fundamento para alterar quer a medida de cada pena parcelar de prisão quer a pena única, não é possível ponderar a eventual  suspensão da execução da pena porque legalmente inadmissível.

Mas sempre se adianta que sendo cada um dos crimes punido com pena de prisão entre 3 e 10 anos, face ao elevado grau de culpa da conduta do arguido, ao também elevado grau de ilicitude (o arguido agiu de noite, de forma dissimulada), o espírito de vingança com que agiu, o não assumir da conduta, negando-a, às prementes necessidades de prevenção geral deste tipo de crime e às necessidades de prevenção especial, pois o arguido praticou os factos no período de suspensão de uma pena de prisão de 3 anos e 9 meses pela prática de um crime de violência doméstica, a pena de 4 anos para cada um dos crimes mostra-se mais que justificada. O mesmo se diga quanto à pena única fixada de seis anos, tendo em conta a globalidade da conduta do arguido e à personalidade por este revelada, agindo por vingança e sem mostrar qualquer arrependimento pois nem sequer admitiu a sua prática, sempre a negando.

Pelo que é de improceder a pretensão do recorrente.

V

Dispositivo

Por todo o exposto, decide-se julgar improcedente o recurso do recorrente AA, mantendo-se a decisão recorrida.

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Custas a cargo do recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 6 (seis) Ucs.

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Coimbra, 22.3.2023.

Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários.





[1] Sublinhados nossos
[2] Sublinhado nosso
[3] Sublinhado nosso
[4] Relator Vasques Osório.