Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
421/21.5T8SRE-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: IMÓVEL DESTINADO À HABITAÇÃO PRÓPRIA E PERMANENTE
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
EXECUÇÃO FISCAL
EXECUÇÃO CÍVEL
PLURALIDADE DE EXECUÇÕES SOBRE OS MESMOS BENS
PENHORA ANTERIOR
SUSTAÇÃO DA EXECUÇÃO CÍVEL
PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO CÍVEL
VENDA JUDICIAL
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 788.º E 794.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
ARTIGOS 219.º, N.º 5, 244.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO
Sumário: I) Penhorado em execução cível um imóvel que constitua a casa de morada de família dos executados e sobre o qual incide uma outra penhora anterior realizada no âmbito de um processo de execução fiscal na qual tal imóvel não pode ser vendido a requerimento da Fazenda Nacional (artigo 244.º, n.º 2, do CPPT), o exequente cível que tenha reclamado o seu crédito na execução fiscal não pode prosseguir com esta a fim de nela ser vendido o imóvel penhorado.

II) Na situação referira em I), o artigo 794.º, n.º 1, do CPC, não obsta a que a execução cível prossiga a fim de nela se promover a venda do imóvel penhorado, com citação da Fazenda Nacional, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 788.º do CPC, para, querendo, reclamar os seus créditos.

Decisão Texto Integral:






            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A A..., SA, intentou a acção executiva comum, para pagamento de quantia certa, de que provêm os presentes autos, contra B ... e C... , já todos identificados nos autos, no montante global de 77.478,60 €, com origem em três contratos de mútuo, para cuja garantia foram constituídas duas hipotecas sobre o prédio urbano identificado no requerimento executivo, propriedade dos executados, que se encontram registadas a seu favor, cf Ap.2 de 2001/02/09 e Ap. 1 de 2006/06/08 – cf. certidão de ónus e encargos de fl.s 3 a 4 v.º, aqui dada por reproduzida.

Mais alegou que os executados deixaram de cumprir as obrigações decorrentes de tais mútuos, desde 23/05/2016, 27/10/2016 e 09/04/2016, não mais tendo procedido a qualquer pagamento.

Conforme certidão de ónus e encargos de fl.s 3 a 4 v.º, sobre o prédio pertença dos executados, incide penhora datada de 12 de Dezembro de 2014, a favor da Fazenda Nacional, constando como quantia exequenda o montante de 21.187,33 €.

E datada de 08 de Abril de 2021, incide sobre o referido prédio, penhora a favor da exequente A ... , figurando como quantia exequenda o montante global de 77.78,60 €.

Conforme doc. de fl.s 5, o prédio ali identificado – e penhorado – é um prédio urbano destinado a habitação e indicado (o que não foi impugnado) como sendo o domicílio dos executados.

Conforme requerimento aqui junto de fl.s 10 a 12, datado de 16 de Setembro de 2021, a exequente, A ... , veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 850.º, n.º 5, do CPC, o prosseguimento da execução quanto ao imóvel penhorado (prédio urbano constituído por casa de habitação de r/ch e logradouro, sito em ... , freguesia e concelho de ... , inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... .º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob a ficha n.º ... , da referida freguesia), bem como a citação da Fazenda Nacional, nos termos e para os efeitos do artigo 788.º, n.º 2, do CPC.

Alega para tal que o referido imóvel é a casa de morada de família dos executados.

Mais refere que a execução se encontra sustada, quanto a tal bem, nos termos do artigo 794.º, n.º 1, do CPC, tendo a exequente reclamado o seu crédito na execução fiscal, onde o mesmo foi primeiramente penhorado.

A Fazenda Nacional, nos termos do disposto no artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, está impedida de promover a venda do identificado prédio, na execução fiscal, em face do que, a exequente, se vê impossibilitada de liquidar os seus créditos com o produto da venda do imóvel que lhe foi dado de hipoteca, pelo que requer o prosseguimento da execução comum e sem que disso resulte que a Fazenda Nacional veja prejudicado o seu crédito, que aqui poderá reclamar, querendo, nos termos do disposto no artigo 788.º, n.º 2, do CPC, o que, igualmente, requer.

Conclusos os autos ao M.mo Juiz a quo, este, cf. despacho aqui junto a fl.s 7 v.º, datado de 16/09/21) e aqui recorrido, proferiu o seguinte despacho:

“A questão colocada é recente e ainda não conhece tratamento uniforme dos Tribunais.

Contudo, julgamos mais correcta a interpretação jurisprudencial do Tribunal da Relação de Coimbra através do seu acórdão de 25-05-2020 (367/16.9T8CVL-C.C1), no sentido de que a aqui Exequente, e Credora Reclamante no Processo de Execução Fiscal, não está impedida de promover, no Processo de Execução Fiscal, a venda do imóvel que se encontra prioritariamente penhorado à ordem do Processo de Execução Fiscal.

No mesmo sentido se pronunciou, a 10-11-2020, o Professor MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA em comentário de jurisprudência [Jurisprudência 2020 (91)] no Blog do IPPC (https://blogippc.blogspot.pt).

Com efeito, é esta a interpretação que salvaguarda todos os interesses contrapostos e que, por outro lado, não obriga a uma clara inobservância do art.º 794.º/1 CPC. Pois, caso contrário, seria necessário fazer prosseguir a Acção Executiva quanto a um bem que se encontra prioritariamente penhorado à ordem de outra Acção Executiva e também obrigaria a duplicar a fase de convocação de credores, os quais já devem ter sido convocados e graduados no âmbito do Processo de Execução Fiscal. Por outro lado, tal procedimento, ao arrepio da regra da prioridade temporal, induziria em erro outros credores que pretendessem apresentar reclamação de créditos de forma espontânea ou na sequência de sustação por penhora posterior.

Por outro lado, é necessário levar em consideração que existem direitos de garantia não registáveis (como o privilégio creditório imobiliário especial dos trabalhadores) que poderão estar graduados no Processo de Execução Fiscal da penhora prioritária e esses credores não seriam citados para o concurso de credores na Acção Executiva de penhora não prioritária, ficando o seu direito caducado com a venda.

Posição no sentido do prosseguimento da Acção Executiva pode ser encontrada, pelo menos, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-01-2020 (1303/17.0T8AGD-B.P1.S1).

Pelo exposto:

Indefere-se o prosseguimento da acção executiva quanto ao imóvel que se encontra prioritariamente penhorado à ordem do Processo de Execução Fiscal.”.

Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso, a exequente A ... , o qual foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho aqui junto a fl.s 19 v.º), finalizando as suas alegações de recurso, com as seguintes conclusões:

(…)

Não há contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se penhorado, em execução comum, um imóvel que constitua a casa de morada de família dos executados e sobre o mesmo incide uma outra penhora, anterior, realizada no âmbito de um processo de execução fiscal, não podendo o imóvel ser neste vendido, face ao disposto no artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, há, ou não, lugar à suspensão da execução cível comum, nos termos do disposto no artigo 794.º, n.º 1, do CPC, ou se pode a mesma prosseguir a fim de nele, se promover a venda do imóvel penhorado.

A factualidade a ter em conta para decisão desta questão é a que consta do relatório que antecede.

Se penhorado, em execução comum, um imóvel que constitua a casa de morada de família dos executados e sobre o mesmo incide uma outra penhora, anterior, realizada no âmbito de um processo de execução fiscal, não podendo o imóvel ser neste vendido, face ao disposto no artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, há, ou não, lugar à suspensão da execução cível comum, nos termos do disposto no artigo 794.º, n.º 1, do CPC, ou se pode a mesma prosseguir a fim de nele, se promover a venda do imóvel penhorado.

Como resulta do relatório que antecede, a recorrente insurge-se contra a conclusão a que se chegou na decisão recorrida, no sentido de que se deve manter suspensa a execução comum, quanto ao imóvel que se encontra penhorado à ordem da execução fiscal, sendo nesta que a exequente poderá fazer valer o seu direito, ali podendo requerer o prosseguimento da execução com vista à venda do imóvel penhorado.

Como se refere na decisão recorrida, a questão sub judice não tem vindo a ser decidida uniformemente, existindo as duas correntes nela referidas.

Antes de mais, importa ter em consideração o disposto no artigo 794.º, n.º 1, do CPC, de acordo com o qual:

“Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tenha sido posterior, podendo o exequente reclamar o respectivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga”.

Por outro lado, cf. artigo 219.º, n.º 5, do CPPT, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, “A penhora sobre o bem imóvel com finalidade de habitação própria e permanente está sujeita às condições previstas no artigo 244.º”.

Preceituando o seu artigo 244.º, n.º 2, que “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim”.

Como se refere na citada Lei n.º 13/2016, teve-se em vista “proteger um direito essencial dos cidadãos, com maior relevância social, no campo do direito à habitação, posto em causa quando, num processo de execução fiscal, a habitação é objeto de venda judicial por iniciativa do Estado, por vezes em razão de quantias irrisórias”.

Daí que, no seu artigo 1.º, se refira que “A presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado”.

Desiderato que, entre outros, se concretiza com o disposto nos citados artigos 219.º e 244.º do CPPT e de onde se tem de concluir que o legislador concedeu uma maior protecção à casa de morada de família no âmbito da execução fiscal do que no processo executivo comum, uma vez que permitindo-se, em ambos os processos, a penhora de tal bem, o certo é que na execução fiscal – ao contrário do que acontece na comum – se impede, como regra geral e abstracta, a impossibilidade de proceder à sua venda, o que não se verifica na execução comum.

Ou seja, a proibição da venda do imóvel que se destina à casa de morada de família do executado, prevista no citado artigo 244.º, n.º 2, vale apenas para as execuções fiscais, sendo inoponível aos designados “credores comuns” do executado, no âmbito de uma execução comum.

Não obstante, aplica-se, também, às penhoras efectuadas no âmbito das execuções fiscais, a norma do artigo 794.º, n.º 1, do CPC, segundo a qual, como acima já referido, se tem de sustar uma execução comum em que exista penhora anterior a favor da Fazenda Nacional, envolvendo a casa de morada de família do executado.

Face ao que se impõe articular o disposto nestes dois preceitos, de sentido antagónico, a fim de determinar se, em tal caso, dada a impossibilidade de se proceder à venda de tal bem na execução fiscal, se deve ou não, manter a suspensão da execução comum, permitindo ou não, ao exequente comum a possibilidade de a mesma prosseguir, com vista à realização da pretendida venda, a fim de obter a satisfação do seu crédito, sempre, como é óbvio, salvaguardando, os direitos dos demais credores que gozem de penhora anterior ou outras garantias sobre o imóvel penhorado

E é aqui que surgem as duas correntes referidas na decisão recorrida:

Uma que defende que o artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, deve ser interpretado restritivamente, considerando que a impossibilidade legal da venda do imóvel penhorado só ocorre nos casos em a Autoridade Tributária seja o único interveniente no processo fiscal, nada obstando a que se proceda à venda na execução fiscal por impulso do credor comum.

Consideram os defensores de tal tese em que se incluem Delgado Carvalho in “As alterações introduzidas pela lei n.º 13/16, de 23/5, no CPPT e na Lei Geral Tributária, e as suas repercussões no concurso de credores no caso de venda de imóvel destinado a habitação própria e permanente na execução fiscal”, https://blogipc.blogspot.com e Miguel Teixeira de Sousa, in mesmo blogipc, em comentário ao Acórdão do STJ, de 23/1/20, Jurisprudência 2020 (91), que, em tal caso, o credor comum, se encontra numa situação similar à prevista no artigo 850.º, n.º 2, do CPC, que deve aqui ser aplicado analogicamente, com as adaptações necessárias e por reporte e suporte no disposto no artigo 246.º, n.º 1, do CPPT.

A outra corrente postula que o credor reclamante não pode prosseguir com a execução fiscal sustada, designadamente requerendo a prossecução desta para a realização da venda, devendo prosseguir a execução comum, com a citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos.

Argumentam para tal, em resumo, os defensores desta tese que a ratio legis da norma do artigo 794.º, n.º 1, do CPC, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de protecção tanto do devedor executado, como dos seus credores postula que ambas as execuções se encontrem numa situação de dinâmica processual, o que não se verifica porque na execução fiscal não há lugar à realização da venda, a qual, assim, está vedada nesta execução, independentemente de ser requerida por um credor comum, para além de que o CPPT não prevê o prosseguimento da execução fiscal por impulso dos credores reclamantes, por ausência de norma equivalente ao artigo 850.º, n.º 2, do CPC.

Do que decorre que estando suspensa a execução fiscal, não pode funcionar o regime previsto no artigo 794.º, n.º 1, do CPC, que tem como pressuposto a inexistência de qualquer impedimento legal ao prosseguimento normal da execução fiscal e decorrente venda do bem penhorado.

Por outro lado, a regra da preferência resultante da antiguidade da penhora, consagrada no artigo 822.º do Código Civil, não pode impedir a venda do imóvel no processo em que a mesma é posterior, uma vez que à Autoridade Tributária é concedido o direito de nele reclamar o seu crédito, que virá a ser graduado no lugar que lhe competir, em resultado da aplicação das normas que regulam o concurso de credores.

Existem várias decisões jurisprudenciais quer num quer noutro sentido (embora a segunda corrente seja maioritária), como se pode ver no Acórdão do STJ, de 23 de Janeiro de 2020, Processo n.º 1303/17.0T8AGD-B.P1.S1, em que, igualmente se perfilha esta tese.

É, também, a mesma, defendida no Código GPS, Vol. II, Almedina, 2020, a pág. 209, onde se refere que o disposto “no artigo 244.º, n.º 2, do CPPT configura um impedimento à venda judicial do imóvel penhorado que apenas vigora no âmbito do processo de execução fiscal, e já não no processo de execução comum”.

Acrescentando-se que, em face do “teor taxativo do n.º 2 do art. 244.º do CPPT (“não há lugar à execução da venda”), o credor reclamante não pode prosseguir com a execução fiscal sustada, nomeadamente para requerer o prosseguimento da execução e da venda, por estar legalmente impedida no âmbito do processo tributário, e o CPPT não prevê o prosseguimento da execução fiscal por impulso dos credores reclamantes, faltando uma norma equivalente ao art. 850.º, n.º 2. Assim, estando suspensa a execução fiscal, não pode funcionar o regime previsto no art. 794.º, n.º 1, que tem como pressuposto a ausência de qualquer impedimento legal ao prosseguimento normal da execução prioritária”.

Como se refere no Acórdão do STJ acima citado, que se passa a seguir por, quanto a nós, perfilhar a solução que mais se coaduna/se ajusta, aos interesses das partes e com os fins tidos em vista pelas normas legais aplicáveis, teremos de buscar a melhor articulação e harmonização entre estas normas antagónicas – artigos 794.º, n.º 1, do CPC e 244.º, n.º 2, do CPPT – , apelando ao disposto no artigo 9.º do Código Civil; ou seja, impõe-se encontrar uma solução que seja comportada com o espírito da lei e tendo em vista a unidade do sistema jurídico.

Está em jogo o direito à habitação dos executados por dívidas fiscais e o ressarcimento dos créditos dos credores comuns, o primeiro consagrado no artigo 65.º e o segundo no artigo 62.º, ambos da CRP.

Ora, como se salienta no Acórdão que seguimos, a primeira das teses defendidas, será a que menores garantias nos dará de ser encontrado um justo equilíbrio entre os ora mencionados interesses/direitos em jogo.

Efectivamente, se a ausência de norma semelhante ao artigo 850.º, do CPC, no processo tributário, poderia ser ultrapassada pela sua aplicação no processo fiscal, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, al. b), do CPPT, o facto é que as decisões citadas no já mencionado Aresto do STJ, proferidas pelo STA, impedem ou, no mínimo, dificultariam, que o credor reclamante requeira o prosseguimento da execução fiscal, o que, a assim ser, se traduziria, na prática, numa impossibilidade de o credor comum satisfazer o seu direito, numa denegação de justiça, o que a CRP não consente, cf. seu artigo 20.º, n.º 1.

Por outro lado, vedando o referido artigo 244.º, n.º 2, em termos categóricos e taxativos a proibição da venda de imóvel afecto à habitação do executado na execução fiscal, podem levantar-se dúvidas se a mesma já pode ali ter lugar a impulso de um credor comum reclamante. Para além de que não podendo a Fazenda Nacional proceder à venda do imóvel penhorado na execução fiscal, não seria facilmente que iria promover os termos de uma execução de que não poderia colher quaisquer frutos.

Daí que, como considerado no Aresto que vimos seguindo e reafirmada pelo STJ, em Acórdão proferido em 02 de Junho de 2021, Processo n.º 5729/19.7T8LRS-A.L1.S1, disponível no respectivo sítio do itij, a solução terá de ser encontrada através da interpretação do artigo 794.º, n.º 1, do CPC, tendo em atenção que a proibição a que se alude no artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, não é oponível aos credores comuns.

Como acima já referido, decorre do disposto no artigo 794.º, n.º 1, do CPC, que pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, susta-se quanto a estes a execução em que a penhora tenha sido posterior.

Como já ensinava Alberto dos Reis, in Processo de Execução, Vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, 1985, pág. 287, atento o regime então previsto no artigo 871.º, do CPC, “O que a lei não quer é que em processos diferentes se opere a adjudicação ou a venda dos mesmos bens; a liquidação tem de ser única e há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar”.

Mais ali referindo que “o preceito do artigo 871.º não se inspira em razão de economia processual, visto que não se manda atender ao estado em que se encontram os processos; susta-se o processo em que a penhora se efectuou em segundo lugar, ainda que a execução respectiva tenha começado primeiro e ainda que esteja mais adiantada do que aquela em que precedeu a penhora”.

Pretende-se, pois, evitar uma dupla venda ou adjudicação dos mesmos bens em mais do que um processo judicial, o que revela um intuito de certeza jurídica e de protecção das partes envolvidas (exequente e executado), do que resulta que tal intenção do legislador só poderá ter relevância e utilidade no caso de a execução em que se realizou a penhora mais antiga estar em condições de poder ser tramitada, “estar em plena actividade”, nas palavras utilizadas nos Arestos do STJ citados. Nos casos em que a execução em que foi realizada a penhora mais antiga, onde terão de ser reclamados os demais créditos, esteja em condições de poder prosseguir os seus normais trâmites.

Como é óbvio, a reclamação dos créditos peticionados nas execuções sustadas só poderá vir a acontecer se a execução em que a lei determina deverem ser reclamados esteja apta, em condições, de tais reclamações aí poderem ser efectuadas. De outra forma ficariam os credores reclamantes e que viram sustadas as execuções em que beneficiam de penhora a seu favor, impedidos de reclamar os seus créditos e, consequentemente, impedidos de os verem satisfeitos/liquidados.

Ora, como, por força do disposto no artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, a execução fiscal se encontra “paralisada”, mercê da proibição legal de nela se proceder à venda do imóvel penhorado, nos termos acima já expostos, tal implica que os credores reclamantes se encontram impossibilitados de nela reclamarem os seus créditos e, assim, verem denegado o direito a serem pagos pelos créditos que detêm sobre o executado, o que, salvo o devido respeito por contrário entendimento, só pode ser solucionado mediante a possibilidade de o credor comum poder requerer o prosseguimento da execução cível a fim de se proceder à venda do imóvel penhorado, com vista a serem pagos pelos respectivos créditos, salvaguardadas as regras de prioridade no pagamento, resultantes das regras que regulam o concurso de credores.

Assim sendo, a solução preferível é a propugnada pela ora recorrente, em função do que entendemos não ser de subsistir a decisão recorrida, impondo-se a sua revogação e substituição por outra que, nos termos expostos, defira o prosseguimento da execução cível, quanto ao imóvel penhorado, identificado na certidão de ónus e encargos junta de fl.s 3 a 4 v.º  e a que se refere a caderneta predial urbana junta a fl.s 5, aqui dados por reproduzidos, devendo ser citada a Fazenda Nacional, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 788.º, do CPC.

Consequentemente, face ao exposto, procede o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar procedente o presente recurso, em função do que se revoga a decisão recorrida, que se substitui por outra que ordena o prosseguimento da execução de que provém o presente apenso, quanto ao imóvel acima identificado, devendo proceder-se à citação da Fazenda Nacional, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 788.º, do CPC, para, querendo, reclamar o seu crédito.

Sem custas, o presente recurso.

Coimbra, 15 de Dezembro de 2021.