Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
386/09.1TBNLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: FALSIFICAÇÃO
NOTAÇÃO TÉCNICA
CONCURSO DE CRIMES
PROVAS
Data do Acordão: 04/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: : ART. 30º, 258º Nº 1, AL C) E 261º Nº 1 DO CP ,355º, 356º Nº7, 374º, Nº2 E 379º DO CPP
Sumário: 1.O exame crítico das provas a que se refere o artigo 374º, nº2 do CPP, deve indicar, no mínimo, e não necessariamente por forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham, na perspectiva do tribunal, sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal.

2. De acordo com o disposto no artigo 356º,nº7 do CCP, os órgãos de polícia criminal, em audiência de julgamento, não podem ser inquiridos sobre o conteúdo de conversas informais sobre os factos que tenham mantido com o arguido.

3.A convicção do tribunal tanto pode assentar em prova directa como em prova indiciária da qual se possa inferir o facto a provar.

4.Existe concurso efectivo entre o crime de falsificação de notação técnica (art.258º,nº1 al.c) do CP) e o crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio (art. 261ºdo mesmo diploma legal), uma vez que os valores ou interesses protegidos em cada um deles são diferentes. No primeiro, o bem jurídico protegido é a segurança e credibilidade da informação fornecida exclusivamente por aparelhos técnicos; no segundo, é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

Em processo sumário do Tribunal Judicial de Nelas, por sentença de 09…..06, foi decidido, condenar o arguido N como autor material de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artº 258º nº 1 c) CP, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 6,00 e de um crime de utilização de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artº 261º nº 1 CP, na pena de 90 dias de multa à mesma razão diária.
Em cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena única de 150 dias de multa à taxa diária de € 6,00.
Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs recurso, em cuja motivação produziu as seguintes conclusões:
“ I - O recorrente não praticou os crimes pelos quais foi condenado em lª instância;
II - Da análise do acervo factual trazido à audiência de julgamento, decorre a legitimação da conclusão que, o tribunal a quo julgou indevidamente os factos expostos sob os nºs 2 a 7 da sentença recorrida que não poderiam ter sido dados como provados;
III - Em sede de audiência de julgamento não foi produzida qualquer prova que permita dar como provada tal factualidade;
IV - A factualidade dada como provada e ora posta em crise assentou, sobretudo, no testemunho do Cabo A, testemunha arrolada pela acusação, agente que procedeu ao levantamento do auto de notícia, pois da Audiência de Discussão e Julgamento não resultou a análise de qualquer documento ou outro depoimento testemunhal que permita concluir como o fez a sentença;
V - Impõe decisão diversa da recorrida, o exame do depoimento prestado pela testemunha A única testemunha que versou sobre a factualidade concreta dos autos, o qual se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, com início às 14:29:51 horas e términus às 14:52:56 - cfr. acta de Audiência de Discussão e Julgamento de 29 de Outubro de 2009, de fIs ... ;
VI - O cartão nº 36954000 foi introduzido às 06:12 no interior do tacógrafo, acto não presenciado por nenhuma testemunha;
VII - A testemunha A apenas possui conhecimento do que lhe foi transmitido verbalmente pelo arguido, afirmando que" segundo a versão do Sr. N foi ele" quem introduziu o cartão no tacógrafo;
VIII - O depoimento da testemunha nesta parte e na parte em que o mesmo referiu que o arguido lhe disse que pretendia ir para a Bélgica e que o seu problema era não fazer o descanso, pois queria regressar a Portugal o mais rapidamente possível, é irregular, vício arguido em sede de Audiência de Discussão e Julgamento pelo recorrente - que no mesmo insiste -, não só por resultar de testemunho de ouvi dizer, mas também por se traduzir na leitura de declarações, que inicialmente apenas constituíram conversas informais, vindo, acto contínuo, a constar do auto de declarações constante de fls. 7.
IX - O Arguido remeteu-se ao silêncio
X - A testemunha A manteve conversas informais com o arguido, cujo teor foi mais tarde reduzido a auto de declarações.
XI - Não se verificou nenhuma das situações que permite proceder-se à leitura das declarações do arguido - previstas no artigo 357º, nº 1 do CPP.
XII - O artigo 356°, nº 7 do CPP impede a testemunha A de depor sobre o teor das declarações do arguido não podendo tal testemunho ser valorado para efeitos de fundamentação da decisão de facto.
XIII - Entendimento contrário viola o estatuto do arguido, forçando-o a prestar declarações em Julgamento.
XIV - A testemunha A, conhecendo a qualidade de suspeito do arguido, que no momento da intercepção conduzia o veículo com o cartão de condutor da sua esposa no interior do tacógrafo, com ele manteve conversas informais, seguidamente vertidas em auto de declarações, só depois o tendo constituído arguido.
XV - Agiu aquele agente autuante em manifesta violação, entre outros, dos artigos 1° al. e), 254° a 2616° do CPP, artigo 58°, nº 1 al. c) e 59° nº 1 do CPP.
XVI - O principio "nemo tenetur se ipsum accusare" pressupõe o esclarecimento suficiente, pelo arguido, do alcance e significado processual que as suas palavras possam vir a ter, de forma a evitar comportamentos menos avisados conducentes à sua auto-incriminação pelo que, não tendo aquela testemunha cumprido com o estatuído na Lei, não podem as declarações prestadas pelo arguido ser utilizadas contra ele nos termos do art. 58°, nº 4, "ex vi" artigos 59°, nºs. 1 e 3, e 250°, nº 8;
XVII - A testemunha A declarou desconhecer quem conduziu as 7:02 horas registadas no cartão de tacógrafo apreendido, designadamente se tal condução havia sido feita pelo arguido;
XVIII - Igualmente não possui conhecimento directo de quem introduziu o cartão no tacógrafo;
XIX - Naquela data apenas esteve no interior do tacógrafo o cartão de condutor apreendido, tendo sido inserido cerca de 11 horas antes do momento da intercepção;
XX - O que ocorreu em condições que se desconhecem, incluindo o respectivo agente
XXI - Da sentença não se alcança o iter cognoscitivo do Tribunal a quo, estando a mesma insuficientemente fundamentada e, como tal, ferida de nulidade nos termos dos artigos 379°, nº 1, al. a) e 374°, nº 2 do CPP;
XXII - Mesmo a concluir-se que tenha sido o recorrente quem introduziu o cartão no interior do tacógrafo, nada ficou demonstrado quanto à sua culpa ou sequer intenção típica, existindo, desde logo, a possibilidade de tal se ter ficado a dever a um mero lapso, dada a reduzida dimensão do cartão, o facto de à hora da introdução ser noite e ao facto de o cartão do arguido se encontrar fora do alcance visual daquele (debaixo de uma folha), tanto mais que as testemunhas por si arroladas não o têm por pessoa que pratique tal tipo de actos.
XXIII - A matéria dada como provada pelo Tribunal a quo não integra os dois crimes pelos quais o recorrente foi condenado;
XXIV - Não resulta dos autos que o arguido tenha utilizado o cartão da sua esposa para se identificar, limitando-se a usar tal documento no interior do tacógrafo;
XXV - A única conduta imputada ao arguido consiste na introdução na ranhura do tacógrafo o cartão de condutor nº 3…, pertencente a AM;
XXVI - Tal, configura um claro exemplo de concurso de normas (também designado por concurso aparente - na forma de consunção) e não um verdadeiro concurso de crimes;
XXVII - Entre o crime de falsificação de notação técnica e o crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio, atenta a matéria de facto dada como provada, existe uma clara relação de subsidiariedade, servindo este último de crime meio ao primeiro, também denominado de crime fim;
XXVIII - Dos autos resulta que o único desígnio do arguido foi o fazer constar os dados da condução por si praticada naquele dia como tendo sido realizada pela sua esposa não se tendo demonstrado que a actuação do recorrente tenha ido para além do estritamente necessário à prática do crime de falsificação de notação técnica, uma vez que o arguido se limitou a utilizar o cartão de condutor da sua esposa no interior do respectivo tacógrafo;
XXIX - A sentença recorrida viola os artigos 258°, nº 1, al. c), artigo 261°, nº 1 ambos do Código Penal e artigos 357°, nº 6, 356°, 1° al. e), 254° a 2616°, 58°, nºs 1 al. c) e 4, 59° nºs 1 e 3, 250°, nº 8 e 379°, nº 1, al. a) e 374°, nº 2 do Código de Processo Penal, no sentido que lhes foi dado pelo Tribunal a quo, quando as mesmas deveriam ter sido interpretadas no sentido ora exposto, pelo que deve ser revogada por douto acórdão que decrete a absolvição dos recorrentes”.
O Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência do recurso
O Exmº Procurador-Geral Adjunto, emitiu douto parecer, concluindo igualmente pelo improvimento do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

A matéria fáctica considerada provada na sentença recorrida foi a seguinte:
“ 1. No dia 20…..09, pelas 17h23m, na EN 234 em Nelas, o arguido seguia ao volante do tractor de mercadorias de matrícula …CC-...
2. Fazia-o depois de às 06:12, ter introduzido na ranhura do tacógrafo o cartão de condutor n.º ..3… a A M, sem seu conhecimento.
3. Assim registando a sua actividade laboral no cartão de outra pessoa.
4. Pretendia o arguido desta forma não observar os períodos de descanso obrigatórios.
5. O arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente, bem sabendo que utilizava um documento de identificação (cartão de condutor) alheio, o que quis e conseguiu, visando, desta forma, obter um benefício, traduzido na possibilidade de poder conduzir mais horas do que as permitidas por lei, sem que tal fosse detectado em caso de fiscalização.
6. Mais sabia que ao agir como agiu, fazia constar do registo do tacógrafo factos que não correspondiam à verdade, designadamente que era outra
pessoa que não ele que conduziu no período a que se refere o registo do cartão de condutor n.º …3…, o que igualmente quis e conseguiu, visando aquele mesmo objectivo.
7. Mais sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
8. O arguido não tem antecedentes criminais.
9. Com a sua actividade aufere mensalmente a quantia de €800.
10. A sua mulher encontra-se desempregada, sendo o agregado familiar constituído ainda pelos seus três filhos, de 2, 9 e 10 anos de idade.
11. O arguido encontra-se pessoal e profissionalmente integrado, sendo considerado por aqueles com quem priva como uma pessoa séria e trabalhadora.”
Factos não provados:
“12. Que o arguido pretendesse chegar mais rapidamente a Portugal, da viagem designada para a Bélgica, sem que antes tivesse de efectuar um descanso semanal de 24h.”.
Motivação de facto:
“O Tribunal fundou a sua convicção no apuramento dos factos provados na ponderação crítica da prova testemunhal oferecida quer pela acusação quer pela defesa, conjugada com a documentação constante dos autos, em particular, os registos retirados do tacógrafo e juntos a fls. 6.
A prova quanto às circunstâncias de tempo e lugar em que os factos ocorreram resultou do testemunho credível e isento do Cabo A que, além do mais, explicou com pertinência os valores constantes dos talões de fls. 6, tendo esclarecido que o tacógrafo não foi, em si mesmo, adulterado, pelo que os valores registados no que concerne a velocidade, tempo e quilómetros percorridos são aqueles que, efectivamente se verificaram.
Não foi feita prova que o arguido pretendesse, como consta da acusação, chegar mais rapidamente a Portugal, da viagem designada para a Bélgica, sem que antes tivesse de efectuar um descanso semanal de 24h.
Ora, apesar disso, resulta das regras da experiência que não sendo o tacógrafo em si adulterado, pelo que as distâncias, períodos de pausa e condução e velocidade registadas correspondem aos efectivamente verificados, a utilização do cartão de condução de pessoa diversa traduz-se objectivamente numa vantagem que é a não contabilização do total das horas efectivamente conduzidas por aquele que se encontra na direcção do veículo, e consequentemente a não observância dos períodos de descanso impostos por lei, facto que o arguido, sendo motorista não desconhecia. Retirando-se, assim, da circunstância de ter usado um documento alheio e de, por esta forma ter feito constar no tacógrafo que era AM e não ele quem conduzia, que era exactamente seu propósito obter tal vantagem, eximindo-se das obrigações impostas por lei.
Quanto às condições económicas e pessoais do arguido teve-se em atenção as suas declarações e o testemunho abonatório de J e R, amigos do arguido que, não obstante, o prestaram de forma convincente e isenta.
Finalmente, foi analisada o cartão de condutor de A M apreendida nos autos, e o CRC do arguido, de fls. 13.”.
*

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação.
Assim as questões a apreciar são as seguintes:
- Nulidade da sentença;
- Valoração de depoimento obtido através de conversas informais;
- Impugnação da matéria de facto;
- Concurso de crimes.
Entremos na sua apreciação.
A) Da nulidade da sentença
Argumenta a recorrente que a sentença recorrida não contém suficiente fundamentação da motivação de facto.
Nos termos do disposto no artº 374º nº 2 CPP “ Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.
Significa isto que, para além da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este tenha ainda que expressar o respectivo exame crítico das mesmas, isto é o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas.
O objectivo dessa fundamentação é, no dizer do Prof. Germano Marques da Silva·, a de permitir “ a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina”.
Como escreve Marques Ferreira Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 229. “ Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência”.
Também a propósito da fundamentação das sentenças refere Eduardo Correia "só assim racionalizada, motivada, a decisão judicial realiza aquela altíssima função de procurar, ao menos, “convencer” as partes e a sociedade da sua justiça, função que em matéria penal a própria designação do condenado por “convencido” sugere" Parecer da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra sobre o artigo 653º do Projecto, em 1ª Revisão Ministerial, de alteração do Código de Processo Civil, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XXXVII (1961), pág. 184..
Impõe-se pois, a nosso ver, que esse exame crítico, indique, no mínimo, e não necessariamente por forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham, na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal.
Ora no caso dos autos, conforme decorre da análise da fundamentação apresentada, constata-se que o Mmº Juiz cumpriu cabalmente tal exigência, permitindo a este tribunal de recurso, acompanhar todo o processo lógico que foi seguido para tomar a decisão, bem como para demonstrar o acerto da mesma.
Não se vislumbra pois onde é que o mesmo pode ser censurado.
Aliás deve mesmo afirmar-se que o arguido também não indica nem na motivação nem nas conclusões onde é que encontrou a insuficiente fundamentação. O que o recurso revela é que o arguido não concorda com a apreciação da matéria de facto que foi feita pelo tribunal, mas isso, como é evidente não tem nada a ver com insuficiência de fundamentação, mas sim com impugnação da matéria de facto, que a seu tempo será devidamente apreciada.
Improcede assim manifestamente a invocada nulidade.
B) Da valoração de depoimento obtido através de conversas informais
Neste segmento do seu recurso o arguido vem dizer que o depoimento prestado pela testemunha A, na parte em que referiu que o arguido lhe disse que foi ele que introduziu o cartão no tacógrafo, que pretendia ir para a Bélgica e que o seu problema era não fazer o descanso, pois queria regressar a Portugal o mais rapidamente possível, não pode ser admitido, porque não só é resultante de conversas informais, como o arguido se remeteu ao silêncio em audiência, pelo que na sua perspectiva não pode ser valorado para efeitos de fundamentação da decisão de facto.
Vejamos.
Estabelece o artº 357º nº 7 que “ Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
Proíbe-se assim ou impede-se a inquirição de órgãos de polícia criminal sobre declarações cuja leitura não for permitida ( Cfr. entre outros, o AcSTJ 98.09.30, BMJ 479, 414 e extensa anotação a partir da pág. 428).
Daí que não possa ser inquirido em audiência um órgão de polícia criminal sobre, por exemplo, o teor de um auto de interrogatório que tenha feito a um arguido no decurso da investigação, se o mesmo arguido se remete ao silêncio no julgamento ou se não se verifica o condicionalismo do nº 1, al. a), do artº 357º CPP, sob pena de se deixar entrar pela janela o que se quis evitar que entrasse pela porta.
Por outro lado já “ são de considerar os depoimentos de agentes policiais baseados em diligências que fizeram para apurar a autoria do crime” ( AcSTJ 00.11.15, CJSTJ 3/00, 216 ).
É questão que igualmente não oferece dúvida que os elementos das autoridades policiais não estão impedidos de depor sobre factos de que possuam conhecimento directo obtido por meios diferentes das declarações que receberam do arguido no decurso do processo (cfr. AcSTJ92.05.13,CJ 3/92, 19; AcSTJ 93.02.24, CJSTJ 1/93, 202; AcSTJ; AcSTJ 04.04.22, CJSTJ, 2/04, pág. 165).
Acontece porém que os órgãos de polícia criminal, para além dos conhecimentos que adquirem directamente por meios diferentes das declarações do arguido, por vezes adquirem outros, muitas vezes no próprio local da infracção e antes de ser constituído arguido, através das chamadas conversas informais com o arguido.
Como escreveu José Damião da Cunha O Regime Processual da Leitura de Declarações na audiência de Julgamento ( artºs 356º e 357º do CPP), Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7, Fasc. 3º, pág. 426. “ Em primeiro lugar, não parece ser possível conceber a existência processual de «conversas informais» entre o arguido e qualquer entidade processual.... a função dos órgãos de polícia criminal é o de carrear para o processo todos os elementos que lhes advenham de declarações do arguido - além de que vale aqui o princípio quod non est in auto, non est in mundo; pela espe­cial posição processual do arguido não pode, no que toca às suas decla­rações, subsistir qualquer diferenciação de importância e, por isso, as «conversas» serão sempre formais.
O que deve, naturalmente, é realçar-se que não é possível, à luz do processo penal português (de qualquer processo penal, de resto), criar-se uma nova categoria processual de «conversas» ou de actos «informais» (inexistente numa teoria dos actos processuais-penais); sendo que tais categorias seriam, de todo, incongruentes com o estatuto processual con­ferido ao arguido. De facto, o arguido dispõe de um direito a tomar posição, em qualquer altura do processo, sobre os factos que lhe são imputados, pelo que qualquer «declaração» corresponde à prática de um acto processual (isto é, um acto que logra, necessariamente, uma valoração processual): nos cânones de uma teoria dos actos processuais, as declarações do arguido são sempre «actos determinantes» e, por isso, sujeitos a uma particular valoração processual .... o CPP estabelece mecanismos tais de garantia do esclarecimento e da liberdade de declaração do arguido, que nunca tais declarações se poderiam valorar como de informais.
.../....
Em segundo lugar, a especial posição dos órgãos de polícia criminal - nomeadamente o facto de actuarem na dependência funcional e sob directa direcção do Ministério Público - implica uma impossibilidade conatural de se aceitarem conversas informais (e, para mais, um poder de definição quanto à (in)formalidade de tais «conversas). De facto, se, como legalmente é admitido, ou até mesmo imposto, fosse o Ministé­rio Público a recolher, na fase de inquérito, as declarações do arguido, parece óbvio que, nesta hipótese, não subsistiriam dúvidas quanto ao carácter formal das declarações (de resto, mesmo que por hipótese académica existissem conversas informais com o Ministério Público, nunca este iria prestar testemunho sobre o conteúdo daquelas). Ora, devendo os órgãos de polícia criminal pautar-se, na sua actuação, tanto quanto possível pelos mesmos critérios por que se pauta o Ministério Público, parece claro que não podem aqueles deter poderes que a este (como de resto ao Juiz de instrução, na fase de instrução) não cabem.”.
Daí que também nós entendamos serem inadmissíveis os depoimentos dos órgãos de polícia criminal que tenham na sua base conversas informais.
Acontece porém que no caso em análise e conforme se alcança da leitura da sentença recorrida, a matéria que alegadamente configuraria depoimento indirecto, foi por um lado dada como não provada, o que significa que a Mmª juiz não valorou a factualidade relatada pelo Sr. agente da autoridade, no segmento referido, e por outro resulta das regras da experiência ser o próprio condutor quem introduz no tacógrafo o respectivo cartão.
Por outro lado todo o restante depoimento para apurar a autoria dos crimes assentou nas diligências feitas pela testemunha e por si directamente percepcionadas.
Assim sendo não assiste ao recorrente qualquer razão no que concerne à crítica feita à decisão recorrida neste ponto.
C) Da impugnação da matéria de facto
O recorrente entende que foram incorrectamente dados como provados os factos constantes dos pontos 2 a 7, porquanto não foi produzida qualquer prova que os sustente.
Invoca para o efeito os depoimentos das testemunhas A, J e R.
Vejamos.
Como é sabido, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente ( artº 127º CPP).
Tal princípio não é, logicamente uma apreciação imotivável e arbitrária da prova que foi produzida nos autos, já que é com a referida prova que se terá de decidir. É que quod non est in actis non es in mundo.
Como refere Figueiredo Dias Direito Processual Penal, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 140., essa convicção existirá quando “ o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na “ convicção”, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e quanto à dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”.
E igualmente Maia Gonçalves Código de Processo Penal Anotado, 12ª ed., pág. 339. escreve que"... livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica..."
Também Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 126. refere que a livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração "racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão...; Com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim.
A convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre "uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros”.
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis.
Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).
Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência".
Assim a convicção do tribunal tanto pode assentar em prova directa como em prova indiciária da qual se possa inferir o facto a provar.
Na verdade em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei ( artº 125º CPP), sendo que o artº 349º CC estabelece que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
Assim no caso das presunções judiciais, provado determinado facto, é legítimo concluir pela existência de um facto presumido se, segundo as regras da experiência da vida um for consequência típica do outro.
São pois processos lógicos mentais que assentam nas regras da experiência comum, a base destas presunções.
E estes factores têm de ser tidos em conta mesmo no caso dos presentes autos, em que as provas se encontram gravadas.
Pois bem dirigindo agora a nossa atenção para a matéria de facto que foi impugnada pelo recorrente, desde já se avançará dizendo ser manifesto que o mesmo não tem qualquer razão na crítica que a ela dirigiu.
Com efeito objectivamente temos os talões de impressão dos dados contidos quer no cartão do condutor que se encontrava introduzido no aparelho de controle do tacógrafo, quer deste ( fls. 6 ) os quais foram obtidos na altura da intercepção do arguido pelo agente A. através das respectivas impressões.
Da sua análise resulta que o cartão que registava a actividade diária do condutor, era não o do arguido, mas sim o cartão pertencente a AM dele constando como hora de início de condução as 06:12.
Por outro lado, que era o arguido que conduzia a viatura, dúvidas não há porque foi interceptado no exercício da condução pelo Sr. agente.
Mas há mais !
Quando a referida testemunha depois de fazer o impresso se apercebeu que o cartão que estava introduzido no tacógrafo não era o do condutor, pediu o deste, verificando então que “ tinha o cartão dele colocado debaixo de um papel….em cima do tablier”, por ter sido o local onde o foi buscar.
Ora à luz da experiência comum e da lógica do homem médio suposto na ordem jurídica, outra conclusão não é possível tirar que não seja a de que o arguido tinha perfeita consciência de que o cartão que utilizava no tacógrafo não era o seu, pois o seu sabia bem onde se encontrava - em cima do tablier e debaixo de uma folha de papel. E bem ainda que ao conduzir a viatura com um cartão de outrem, aí registava a sua actividade laboral, violando assim a possibilidade de controle dos registos do tacógrafo referentes ao descanso do condutor, criado pelo Dec. Lei 272/89 de 19/8, que veio impor normas reguladoras de tempos máximos de condução e mínimos de repouso.
Finalmente e no que concerne aos factos que determinaram a sujeição do arguido a julgamento, as restantes testemunhas invocadas – J e R – nada sabem.
São puras testemunhas abonatórias, não se entendendo porque é que as mesmas foram invocadas para a análise do recurso da matéria de facto, pois dos factos o seu desconhecimento é total.
É certo que lhes foi perguntado a dada altura se o arguido era capaz de os praticar.
Mas tal pergunta bem como a resposta não têm qualquer interesse para a decisão da causa.
É completamente indiferente a resposta que ambas deram, no sentido de não o acharem capaz dessa prática.
É que o que aqui importa é saber se o arguido praticou ou não os factos de que era acusado.
Isto e só isto.
Saber se era capaz de os praticar, é matéria de todo inócua.
Assim sendo nenhuma razão existe para pôr em causa a decisão quanto à matéria de facto dada como provada no tribunal recorrido no segmento impugnado, a qual se harmoniza integralmente com a prova produzida.
Por isso improcede o recurso manifestamente quanto a este ponto.
D) Do concurso de crimes
É entendimento do recorrente que entre o crime de falsificação de notação técnica e o crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio, existe concurso aparente e não concurso de crimes porquanto este último crime serve de meio ao primeiro.
Mas mais uma vez não lhe assiste razão.
Vejamos porquê.
O arguido foi condenado como autor material de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artº 258º nº 1 c) CP e de um crime de utilização de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artº 261º nº 1 CP.
Nos termos do artº 30º nº 1 CP o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Atende-se assim ao número de tipos legais de crime que são efectivamente preenchidos pela conduta do agente ou ao número de vezes que essa conduta preenche o mesmo tipo legal de crime, assim se adoptando a unidade e pluralidade de tipos violados como critério básico de distinção entre a unidade e pluralidade de crimes.
Contudo aquele comando sofre duas importantes ordens de restrições: os casos de concurso aparente de infracções e de crime continuado:
E no que concerne aos primeiros refere Maia Gonçalves Código Penal Português, 18ª ed., pág. 155.:
“ Nos casos de concurso aparente, são formalmente violados vários preceitos incriminadores, ou é várias vezes violado o mesmo preceito. Mas esta plúrima violação é tão só aparente; não é efectiva, porque resulta da interpretação da lei que só uma das normas tem cabimento, ou que a mesma norma deve funcionar uma só vez. Apontam-se diversas regras, das quais as mais indiscutidas são as da especialidade e da consunção, para delimitar estes casos.”
Assim quanto à regra da especialidade, um dos tipos aplicáveis (lex specialis) incorpora os elementos essenciais de um outro tipo aplicável ( lex generalis), acrescendo elementos suplementares ou especiais referentes ao facto ou ao próprio agente. Assim e dentro do princípio que a lei especial derroga a lei geral, só deve aplicar-se o tipo especial.
Relativamente à regra da consunção, o preenchimento de um tipo legal ( mais grave) inclui o preenchimento de um outro tipo legal ( menos grave), devendo a maior ou menor gravidade ser encontrada na especificidade do caso concreto.
Como escreve Eduardo Correia Direito Criminal, Vol. II, pág. 205. “ uns contêm-se já nos outros, de tal maneira, que uma norma consome já a protecção que a outra visa. Daí que, ainda com fundamento na regra “ ne bis in idem”, se tenha de concluir que “ lex consumens derogat legi consumtae”. O que, porém, ao contrário do que sucede com a especialidade, só em concreto se poderá afirmar, através da comparação dos bens jurídicos violados”. Pode no entanto acontecer o caso inverso da consunção impura, em que, como refere Eduardo Correia ( obra citada, pág. 207), a lei descreve um tipo de crime que só se distingue doutro por uma circunstância tal que apenas se pode admitir tê-la querido o legislador como circunstância qualificativa agravante – verificando-se todavia que a pena para ela cominada é inferior à do tipo fundamental.
Ora, em hipóteses tais, se não pode falar-se de especialidade, também não pode dizer-se verificada uma relação de consunção pura.

Ora no caso em análise dúvidas não há de que são diferentes os interesses jurídicos protegidos por aqueles crimes.
Assim enquanto no tipo legal do crime de falsificação de notação técnica o bem jurídico protegido é a segurança e credibilidade da informação fornecida exclusivamente por aparelhos técnicos, no de uso de documento de identificação ou de viagem alheio é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório.
Ora considerando que os valores ou interesses protegidos são diferentes;
Considerando igualmente que o próprio artº 261º nº 1 CP prevê a incriminação autónoma daquele que utiliza um documento de identificação alheio como meio da prática de outro crime;
Haverá que concluir pela sua autonomia, e como tal o seu autor cometeu em concurso real ou efectivo, os dois crimes por que foi condenado.
Termos em que sem demais considerações se julga improcedente igualmente o recurso neste segmento.


DECISÃO

Por todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando-se inteiramente a douta decisão recorrida.
Fixam a taxa de justiça devida a cargo do recorrente em 6 UC.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP)
Coimbra, 7 de Abril de 2010.