Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1059/18.0T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA DO LESADO
PROVA DA CULPA DO LESADO
Data do Acordão: 02/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 570.º, N.º 1 E 572.º, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - O artigo 570.º/1 CC refere-se a duas realidades diferentes: uma, em que o facto do lesante e o facto do lesado concorrem para a produção dos danos, falando-se a esse respeito de concorrência de causas, e outra, em que se verifica concorrência do facto do lesado apenas para o agravamento dos danos, verificando-se uma causalidade sucessiva.

II - Estando em causa a culpa de passageiro transportado em automóvel por não usar cinto de segurança, o interessado na afirmação da culpa desse passageiro no agravamento dos danos que sofreu em consequência de acidente de viação tem que demonstrar que, no caso de mesmo ter usado o cinto de segurança, muito provavelmente não teria sofrido alguma ou algumas das lesões corporais que sofreu.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I -  C..., SA, intentou a presente ação contra AA, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 68.490,67, acrescida de juros legais, desde a citação, até integral pagamento.

Alegou, em síntese, ter ocorrido um acidente de viação cuja eclosão se ficou a dever à culpa do condutor do veículo que nela se mostrava seguro, pelo que indemnizou os danos que resultaram desse sinistro, pretendendo, com a  presente acção, exercer direito de regresso sobre o referido condutor, na medida em que o mesmo causou o acidente  quando conduzia sob efeito de álcool e de substâncias psicotrópicas.  Alegou ainda que o R., condutor do veículo, se fazia acompanhar de BB, que, em virtude do despiste resultou gravemente ferido.

O R. contestou, aceitando a ocorrência do acidente nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na petição inicial, mas impugnando os danos alegados e a condução sob efeito de álcool, invocando que o despiste se ficou a dever a deficiência no piso da faixa de rodagem. Alegou ainda que os danos corporais do sinistrado, a quem a A. pagou indemnização, resultaram agravados pela circunstância do mesmo, que viajava na parte da frente no lugar destinado ao passageiro, não fazer uso de cinto de segurança no momento do embate, apesar dele, R., lhe ter pedido por várias vezes que o colocasse. Invoca que a viatura derrapou e capotou e que o lesado BB foi projectado para o exterior da viatura, onde caiu inanimado, projecção que não teria ocorrido se levasse o cinto de segurança, pois que ele, condutor, levando cinto de segurança, se manteve no interior da viatura, saindo ileso do acidente. Por isso, requer que seja ponderada e declarada a culpa do lesado, nos termos e para o efeito do art 570º CC.

 Teve lugar audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, foi fixada à acção o valor de € 68. 490,67 e se procedeu à identificação do litigio e à enunciação dos temas de prova.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença que julgou a ação totalmente procedente, condenando o R. a pagar à A. a quantia de € 68.490,67 (sessenta e oito mil, quatrocentos e noventa euros e sessenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora desde a citação.

II – Do assim decidido, apelou o R. que concluiu as respectivas alegações, nos seguintes termos:

I -O Tribunal a quo condenou o Recorrente a pagar à Recorrida a quantia de € 68.490,67, a título de direito de regresso ao abrigo do disposto no art 27º, nº 1, alínea c), do Dec. Lei nº 291/2007, quantia corresponde à totalidade dos montantes que a Recorrida satisfez a terceiros, em consequência do acidente de viação ocorrido em 08/03/2015, no qual interveio o veículo BM.

II. Concretamente, desse montante € 29.300,00 (vinte e nove mil e trezentos euros) foram pagos a BB por conta da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos decorrentes do sinistro.

III. O Tribunal a quo deu como provado – Fundamentação – Factos provados 1 - que em 08-03-2015 o Recorrente tinha validamente transferido para a Recorrida, a responsabilidade civil emergente da circulação da viatura BM, pelo contrato de seguro obrigatório, titulado pela Apólice n. ...00,

IV. E que – Factos provados 2 - que no dia 08-03-2015, cerca das 00h15mn o Recorrente conduzia a viatura na Rua do ..., ..., ..., e perdeu o controlo da viatura, tendo saído da faixa de rodagem e foi embater num pinheiro existente na berma. – Factos provados 7.

 V. No interior da viatura BM, faziam-se transportar além do condutor, o aqui Recorrente, o passageiro BB e este, no momento do embate, não tinha colocado o cinto de segurança. – Factos provados 3. e 8.

VI. O Tribunal a quo deu como provado que em consequência direta e necessária do embate resultaram para o passageiro BB traumatismo craniano grave, fratura no joelho direito, fratura de três arcos costais com perfuração pulmonar, sujeição a exames e estabilização, sujeição a cirurgia ao crânio para tratamento do traumatismo e manutenção em coma induzido durante quatro dias, com posterior internamento durante quinze dias em unidade hospitalar de Coimbra, transferência para o hospital de ... e sujeição a cirurgia para colocação de prótese ao joelho direito, com internamento até 02/04/2015, destruição da roupa, calçado e telemóvel que usava no momento do sinistro – Factos provados 9;

VII. E que a Recorrida pagou, a BB, a quantia de € 29.300,00 (vinte e nove mil e trezentos euros) a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro. – Factos provados 9 e 10. g.

VIII. O Tribunal a quo deu como provado que no momento do acidente o Recorrente apresentava uma taxa de alcoolemia de 0,79gr por litro de sangue – Factos provados 6.

IX. O Tribunal a quo deu como não provado “que as lesões sofridas por BB não teriam ocorrido se o mesmo usasse, no momento do despiste, o dispositivo de retenção” – Factos não provados 5, considerando ter havido total ausência de prova da sua verificação.

X. O Tribunal a quo, na sua motivação consagrou “ter por certo que o dispositivo de retenção, de uso obrigatório é de importância fundamental na redução do risco de ocorrência de lesões, em caso de sinistro. Disto se pode concluir, com certeza, que por não utilizar o cinto de segurança, o lesado BB fez aumentar o risco de sofrer lesões em consequência do embate ocorrido entre o BM e um pinheiro” Sentença, página 7 parágrafos 1 e 2.

XI. O Tribunal a quo consagrou na douta Sentença que “naturalmente se lhe afigura provável que as lesões poderiam ter sido menos graves caso o dispositivo de segurança estivesse em uso pelo lesado”.

XII. O Tribunal a quo foi de entendimento que cabia ao Réu/Recorrente fazer a prova de que as lesões do sinistrado seriam menos graves caso o dispositivo de segurança estivesse em uso pelo lesado, atentas as regras de repartição do ónus da prova. (Sentença página 7 parágrafo 7).

XII. Concluiu “não poder afirmar que alguma ou algumas das lesões sofridas pelo lesado não teriam ocorrido de todo, ou em que medida teriam sido atenuadas, caso o mesmo usasse o cinto de segurança.” Sentença página 7 parágrafo 3.

XIII. Não tendo relevado o facto do condutor, aqui Recorrente, ter saído ileso do sinistro.

XIV. O Tribunal a quo não fez a correta apreciação jurídica do facto do sinistrado BB não ter colocado o cinto de segurança e circular em violação do preceituado no artigo 82º do Código da Estrada, que impõe que “o condutor e passageiros transportados em automóveis são obrigados a usar os cintos e demais dispositivos de segurança”.

XV. Não cabia, nem cabe ao Recorrente a prova de quais os danos concretos que o lesado BB deixaria de sofrer se tivesse colocado o cinto de segurança, até porque tal prova seria impossível de fazer na prática, por não ser possível determinar, distinguir e individualizar, as concretas lesões que o lesado teria sofrido caso levasse o cinto de segurança daquelas outras que sofreu por não ter colocado o cinto de segurança, tal prova consubstanciaria a prova de um facto negativo, e por isso mesmo impossível de prova.  

XVI. O Réu/Recorrente alegou na sua Contestação (de 20º a 35º) que, o lesado, por não ter colocado o cinto de segurança, contribuiu para o agravamento dos danos por si sofridos com o embate, e cujo grau de culpa no agravamento das lesões deveria ser apreciado e fixado percentualmente pelo Tribunal, em conformidade com o preceituado no n. 1 do artº 570º do C.C.

 XVII. Em consequência da determinação da percentagem da culpa do lesado sempre teria que ser reduzido o valor que á Recorrente assiste a título de direito de regresso, pela indemnização paga ao sinistrado.

XVIII. O Tribunal a quo ao dar como provado que o lesado não tinha colocado o cinto de segurança (factos provados 7), não pode deixar de dar como provado que o sinistrado contribuiu com culpa para o agravamento dos danos por si sofridos, fixando percentualmente a culpa do lesado.

XIX. Pelo que, se pretende que a matéria dada como não provada 5. passe a constar da matéria provada acrescentando-se a esta dois novos itens na matéria provada sugerindo-se a seguinte redação: Factos provados 11. “O sinistrado BB, no momento do embate não fazia uso do dispositivo de retenção tendo contribuído com culpa para o agravamento dos danos por si sofridos no embate.” Factos provados 11. “O sinistrado BB contribuiu desse modo para o agravamento dos danos por si sofridos numa percentagem de 15%”

XX. Ao não ter colocado o cinto de segurança o lesado incumpriu uma obrigação legal – imposta pelo art. 82º do Código da Estrada - que poderia e deveria ter sido apreciada e decidida pelo Tribunal a quo para a fixação da respetiva culpa, em cumprimento do preceituado no artigo 570º do C.C. pois que, tal omissão na colocação do cinto de segurança, consubstancia um facto ilícito e por isso culposo.

XXI. Dispõe o nº 1 do art. 570º do CC que “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção e agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.

XXII. Ao dar por provado que o lesado não levava cinto de segurança, o Tribunal está obrigado a decidir do grau de culpa do lesado, no agravamento dos danos corporais por si sofridos.

XXIII. Qualquer pessoa medianamente diligente, colocada naquelas circunstâncias, não deixaria de observar o dever de cuidado – colocando o cinto de segurança –porque tal corresponde ao cumprimento de uma imposição legal, e porque não poderia deixar de saber que, em caso de acidente, a falta do cinto era suscetível de causar danos que de outra forma não se verificariam ou de causar danos bem mais graves do que aqueles que sofreria se tivesse o cinto colocado.

XXIV. Deve passar a constar da Sentença que, o sinistrado BB, pelo facto de não levar cinto de segurança contribuiu para a verificação ou agravamento dos danos que ele próprio sofreu.

XXV. Nesse sentido se pronunciou o Acórdão do STJ de 21/12/2013[5], “uma omissão de cuidado claramente culposa, ostensivamente reveladora da inobservância do cuidado e diligência exigíveis a uma pessoa medianamente diligente e cuidadosa, colocada na situação do lesado por ser do conhecimento geral que é perigoso fazer-se transportar num veículo automóvel sem ter o cinto de segurança colocado. “

 XXVI. Em consequência da culpa do lesado no agravamento dos danos sofridos, à A./Recorrida não assiste o direito de regresso pela totalidade do montante indemnizatório pago ao lesado.

XXVII. O Tribunal a quo podia e devia ter fixado o grau da culpa do lesado, no agravamento das lesões sofridas, nos ternos do art. 570º do C.C., e reduzido proporcionalmente o valor da culpa do Recorrente.

XXVII. Ao não fazê-lo o Tribunal a quo violou o dever de pronúncia que sobre ele impende.

XXVIII. O Tribunal a quo deveria ter fixado o grau de culpa do lesado em 15% à semelhança do que se considerou nos Acórdão do STJ de 21/02/2013 e no Acórdão do STJ de 03/03/2009, o que desde já se requer seja fixado por este Douto Tribunal.

 XIX. A Sentença recorrida está, ferida de contradição entre a matéria dada como provada e a decisão bem como entre a fundamentação e a decisão.

XX. O valor que a Autora pagou ao lesado para reparação dos danos sofridos foi de 29 300,00€, indemnização que esse valor se destinou a reparar todos os danos sofridos pelo lesado.

XXI. A culpa do lesado no agravamento dos danos sofridos, impõe a redução da indemnização a que tem direito em pelo menos 15%, pelo que, em consequência, o direito de regresso da Autora sobre a Ré deve ser reduzido em valor nessa proporção, o que desde já se requer.

XXII. A Recorrida não tem o direito de reaver do Réu/Recorrente, integralmente, a quantia que desembolsou a título de reparação pelos danos do sinistrado BB, mas tão só a correspondente ao seu grau de culpa, isto é, apenas lhe assiste o direito de regresso na proporção da culpa do Réu/Recorrente, pelo que àquele valor indemnizatório deverá ser reduzido na proporção da percentagem de culpa do lesado.

XXII. Nesse sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão proferido em 15-09-2015I – “A conduta ilícita e culposa do lesado que é transportado no veículo sem que tivesse colocado o cinto de segurança tem toda a aptidão para contribuir para o agravamento dos danos sofridos em caso de acidente, justificando-se, por isso, que essa conduta seja valorada, ao abrigo do disposto no art. 570º do CC, para reduzir, em 15%, o valor da indemnização a que tenha direito pelos danos que sofreu em consequência de um embate frontal do veículo onde seguia.” Bem como a Acórdão do S,T.J de 21-02-2013 – “O tribunal deve conhecer da culpa do lesado, “ainda que não seja alegada” … a falta de colocação do cinto de segurança … pode ter contribuído para o agravamento do dano causado pelo acidente e, por essa via, conduzir à redução da indemnização devida, porque se trata de uma omissão de cuidado claramente culposa, ostensivamente reveladora da inobservância do cuidado e diligência exigíveis a uma pessoa medianamente diligente e cuidadosa, colocada na situação da lesado. É do conhecimento geral que é perigoso fazer-se transportar num veículo automóvel sem ter o cinto de segurança colocado.”

XXIII. O Tribunal a não fez uma ponderosa e prudente análise crítica da prova produzida, a sentença ora objeto de recurso padece de omissão de pronúncia quanto á culpabilidade do sinistrado BB no agravamento das lesões por si sofridas, erro na apreciação da prova e contradição entre a fundamentação e a decisão e faz errada aplicação do direito.

XXIV. Deverá ser proferida sentença que fixe a percentagem da culpa do lesado para o agravamento dos danos por si sofridos e reduzido, o valor a que a Seguradora Recorrida tem direito a receber do Recorrente, a título de direito de regresso, valor que não deve exceder o valor da culpa do Recorrido nos danos causados.

XXV. Foi violado o preceituado no artº 570º C.C., artº 82º C.E., 615º n. 1 alínea c) e d) do C.P.C.

A A. ofereceu contra-alegações que concluiu nestes termos:

1-O douto Tribunal a quo ficou com a convicção de que, atenta a dinâmica do sinistro apurada, nomeadamente o impacto com o pinheiro ter ocorrido com a lateral direita do veículo, como decorre dos fotogramas constantes de fls. 31 verso e 32 dos autos, as lesões sofridas pelo passageiro do veículo teriam sempre ocorrido, não antevendo como a utilização do cinto de segurança as pudesse obstar, pois que devido ao impacto, aquele seria sempre projectado lateralmente, batendo com a cabeça no pilar B do veículo, como ocorreu, o que provocou, pelo menos, o traumatismo craniano e a fractura no joelho direito.

2- Como afirma o Réu/Recorrente no art.º 23.º da sua Contestação, o uso do cinto de segurança tem como função evitar a projecção do corpo para a frente e os danos de maior gravidade que essa projecção propicia.

 3- Não ficou demonstrado nos autos que passageiro do veículo tenha sido projectado para a frente, mas apenas o embate lateral com a direita do veículo, no lado onde o sinistrado era transportado.

4- O facto de o condutor do veículo ter saído ileso não constituem indício que as lesões do passageiro do veículo ou o seu agravamento foi causado pela ausência de cinto de segurança, uma vez que as concretas lesões sofridas por cada ocupante de um veículo num acidente de viação são resultado de múltiplos factores.

5- A demonstração sobre quais os danos decorrentes da falta de utilização do cinto de segurança e os danos exclusivamente decorrentes do embate do veículo com uma árvore são uma prova difícil para qualquer uma das partes.

 6- No entanto, não é pelo facto de se estar perante um facto negativo que se inverte o ónus da prova, nem tão-pouco pela dificuldade que a demonstração de tal facto representa.

7- O art.º 572.º do Código Civil prevê que “Àquele que alega a culpa do lesado incumbe a prova da sua verificação; mas o tribunal conhecerá dela, ainda que não seja alegada.”

8- A culpa do lesado é um facto impeditivo do direito invocado pela Autora, pelo que esse facto, invocado pelo Réu, funciona como facto constitutivo da situação subjectiva alegada, pelo que a sua prova incumbe àquele que a invocou, nos termos do disposto no art.º 342.º do Código Civil.

9- Assim, caberia ao Réu/Recorrente, no caso em apreço nos autos, alegar factos e demonstrar que a dinâmica do sinistro em concreto implicaria a produção de danos, estabelecendo uma relação causa-efeito entre as lesões sofridas e a falta de cinto, ou seja, de que forma a falta de cinto foi consequência de uma projecção que conduziu ao agravamento das lesões, a qual poderia, inclusivamente, ter sido sustentada por qualquer meio de prova disponível.

10-Todavia, o Réu nunca invocou factos de onde fosse possível inferir um agravamento dos danos, tendo, inclusivamente, alegado uma dinâmica do sinistro que em nada se relaciona com aquela que ocorreu nos autos (cfr. art.º 30.º da Contestação).

11-Acresce que, a gravidade do juízo de censura a formular terá que ser apreciada comparativamente ao condutor do veículo, condutor este que, além de ter sido o causador do sinistro, tinha o conhecimento de que o seu passageiro não utilizava o cinto de segurança e ainda assim entendeu iniciar a marcha do veículo (cfr. factos provados nº 7 e 8 da douta sentença recorrida).

12-Assim, o Réu/Recorrente bastou-se com meros juízos de probabilidade, suportando-se em outras decisões cujas dinâmicas de sinistro são completamente diferentes daquela em apreço nos autos, pois são decorrentes de embates frontais com projecção e não de um embate lateral sem projecção.

13-Face ao exposto, dúvidas não restam de que esteve bem o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, uma vez que não existem elementos no processo, decorrentes dos factos provados ou não provados que permitam fixar o grau de culpa do lesado.

14-Deste modo ao contrário do que sustenta o Réu/Recorrente, o douto Tribunal a quo fez uma correcta apreciação jurídica da prova produzida,

15- Sendo certo que a douta sentença recorrida não está ferida de qualquer contradição entre a matéria dada como provada e a decisão, nem está ferida de contradição entre a fundamentação e a decisão.

16-Não existe, ainda, qualquer omissão de pronúncia na douta sentença recorrida.

17-As afirmações conclusivas não devem fazer parte do elenco da matéria de facto.

 18-A percentagem de 15% sugerida pelo Réu/Recorrente para constar na matéria de facto provada apresenta-se totalmente desfasada da realidade lógica e factual, não existindo fundamentos para fixar a culpa do lesado nessa percentagem ou em qualquer outra.

19-A circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente, nomeadamente a circunstância daquele não utilizar o cinto de segurança no momento do sinistro, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, nem obriga, automaticamente, o Tribunal a decidir a culpa do lesado e o grau de culpa no agravamento dos danos sofridos pelo lesado se não existirem elementos que permitam determinar essa culpa ou o grau dessa culpa, no contexto da dinâmica do sinistro.

20- A existir alguma redução por conta de uma eventual culpa do lesado, o que não se concede, por todos os fundamentos supra expostos, por cautela se dirá que essa redução apenas pode ser efectuada ao valor pago directamente ao lesado, nomeadamente à quantia demonstrada na alínea g. do facto 10 dos factos considerados provados na douta sentença, de €29.300,00, em conformidade com o ponto XX das Conclusões do Recorrente.

           

III – O Tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1. No exercício da sua atividade profissional, a autora celebrou com CC, um contrato de seguro obrigatório titulado pela apólice n.º ...00, através do qual assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de marca ..., modelo ..., com a matrícula BM (de ora em diante, BM), o qual se encontrava em vigor em 08/03/2015;

2. No dia 08/03/2015, cerca das 00h15, o BM, conduzido pelo réu AA, seguia na Rua do ..., em ..., concelho ...;

3. No interior do BM faziam-se transportar, além do condutor, o passageiro BB;

4. Naquele local, a via é configurada como uma reta, com inclinação descendente, atendendo ao sentido de marcha do veículo BM, ladeada por árvores de ambos os lados e em bom estado de conservação;

5. Naquele momento fazia bom tempo, era de noite e as condições de visibilidade eram boas;

6. Naquele momento, o réu apresentava uma taxa de alcoolemia de 0,79 (zero vírgula setenta e nove) gramas de álcool por litro de sangue;

7. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o réu perdeu o controlo do BM, tendo saído da faixa de rodagem, indo embater num pinheiro existente na berma, em frente ao n.º 54 de polícia;

8. BB não fazia, no momento do embate, uso do dispositivo de retenção existente na viatura, o que era do conhecimento do réu;

9. Como consequência direta e necessária do embate resultaram para o passageiro BB: a. Traumatismo craniano grave; b. Fratura no joelho direito; c. Fratura de três arcos costais com perfuração pulmonar; d. Sujeição a exames e estabilização; e. Sujeição a cirurgia ao crânio para tratamento do traumatismo e manutenção em coma induzido durante quatro, com posterior internamento durante quinze dias em unidade hospitalar de Coimbra; f. Transferência para o hospital de ... e sujeição a cirurgia para colocação de prótese ao joelho direito, com internamento até 02/04/2015; g. Destruição da roupa, calçado e telemóvel que usava no momento do sinistro;

10. Como consequência direta e necessária do sinistro, a autora despendeu as seguintes quantias: a. € 512,92 (quinhentos e doze euros e noventa e dois cêntimos) ao Centro Hospitalar de ..., por conta das despesas hospitalares de BB; b. € 33.996,00 (mil e sete euros e vinte cêntimos) ao Centro Hospitalar ..., por conta das despesas hospitalares de BB; c. € 31,00 (trinta e um euros) ao Centro Hospitalar de ..., por conta de despesas hospitalares; d. € 110,70 (cento e dez euros e setenta cêntimos) à I..., Lda., pela consultoria médica realizada a BB; e. € 1.809,95 (mil oitocentos e nove euros e noventa e cinco cêntimos) ao Centro Hospitalar de ..., por conta do procedimento no joelho e/ou pena de BB (cfr. Doc. 12); f. € 158,00 (cento e cinquenta e oito euros) à S... SL; g. € 29.300,00 (vinte e nove mil e trezentos euros) a BB por conta da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro; h. € 120,00 (cento e vinte euros) à E..., Lda., por conta das sessões de fisioterapia realizadas por BB; i. € 120,00 (cento e vinte euros) à E..., Lda., por conta das sessões de fisioterapia realizadas por BB; j. 100,00 (cem euros) à E..., Lda., por conta das sessões de fisioterapia realizadas por BB; k. € 27,79 (vinte e sete euros e setenta e nove cêntimos) a M...,Lda, por conta do serviço de táxi para transporte de BB às sessões de fisioterapia; l. € 416,85 (quatrocentos e dezasseis euros e oitenta e cinco cêntimos) a M...,Lda, por conta do serviço de táxi para transporte de BB às sessões de fisioterapia; m. € 416,85 (quatrocentos e dezasseis euros e oitenta e cinco cêntimos) a M...,Lda, por conta do serviço de táxi para transporte de BB às sessões de fisioterapia; n. € 24,29 (vinte e quatro euros e vinte e nove cêntimos) a M...,Lda, por conta do serviço de táxi para transporte de BB às sessões de fisioterapia; o. € 416,85 (quatrocentos e dezasseis euros e oitenta e cinco cêntimos) a M...,Lda, por conta do serviço de táxi para transporte de BB às sessões de fisioterapia;  € 20,79 (vinte euros e setenta e nove cêntimos) a M...,Lda, por conta do serviço de táxi para transporte de BB às sessões de fisioterapia; q. € 27,79 (vinte e sete euros e setenta e nove cêntimos) a M...,Lda, por conta do serviço de táxi para transporte de BB a consulta hospitalar no Centro Hospitalar ... – ... E.P.E.; r. € 27,79 (vinte e sete euros e setenta e nove cêntimos) a M...,Lda, por conta do serviço de táxi para transporte de BB às sessões de fisioterapia; s. € 98,40 (noventa e oito euros e quarenta cêntimos) à C...,Lda., por conta da averiguação de danos; t. € 120,00 (cento e vinte euros) à E..., Lda., por conta de sessões de fisioterapia realizadas por BB; u. € 100,00 (cem euros) à G...,Lda por conta dos serviços médicos prestados a BB; v. € 6,13 (seis euros e treze cêntimos) à E..., S.A.; w. € 10,09 (dez euros e nove cêntimos) à I..., Lda.; x. € 49,20 (quarenta e nove euros e vinte cêntimos) à N..., Lda., por conta da diligência para levantamento do auto de ocorrência; y. € 9,00 (nove euros) à N..., Lda., por conta da certidão do auto de ocorrência; z. € 98,40 (noventa e oito euros e quarenta cêntimos) à N..., Lda., por conta da realização de exame ao local do sinistro; aa. € 61,50 (sessenta e um euros e cinquenta cêntimos) à N..., Lda., por conta da confrontação de danos realizada; bb. € 104,55 (cento e quatro euros e cinquenta e cinco cêntimos) à I..., Lda, pelo inquérito realizado ao sinistrado; cc. € 27,06 (vinte e sete euros e seis cêntimos) à E..., S.A.; dd. € 168,77 (cento e sessenta e oito euros e setenta e sete cêntimos) a M...,Lda, por conta do serviço de táxi para transporte de BB às sessões de fisioterapia;

E julgou não provados os seguintes factos:

 1. O despiste do BM tenha sido causado por uma depressão profunda no piso da via de circulação que, naquele momento, se encontrava oculta por manto vegetal húmido e escorregadio;

2. O réu tripulasse o BM a velocidade não superior a 50km/h;

3. O réu tenha instado BB a colocar o cinto de segurança;

 4. O réu não tenha consumido álcool ou substância psicotrópicas antes de iniciar a condução;

5. As lesões sustidas por BB não tivessem ocorrido se o mesmo usasse, no momento do despiste, o dispositivo de retenção.

IV –Do confronto entre as conclusões das alegações e a sentença recorrida, resultam para apreciação no recurso, as seguintes questões, que correspondem ao seu objecto:

- se a sentença é nula, por omissão de pronúncia, por contradição entre a matéria provada e a decisão, e por contradição entre a fundamentação e a decisão;

- se enferma de erro na apreciação da prova;

- se o direito de regresso da A. não pode corresponder à totalidade do montante indemnizatório pago ao lesado BB, antes tal montante se deverá ver reduzido em 15%, correspondente  à sua  culpa no agravamento dos danos que sofreu por se fazer transportar no veículo sem cinto de segurança.

Na verdade, as questões acima fraccionadamente  indicadas como correspondendo ao objecto do recurso resumem-se a uma única, que, do nosso ponto de vista, melhor reflectirá o pensamento da recorrente, e que é a seguinte: se, tendo-se o R. defendido invocando a culpa do transportado no veículo por não fazer uso do cinto de segurança, o tribunal tinha, necessariamente, que fixar a final a percentagem com que esse lesado contribuiu para os danos que sofreu com o sinistro por não poder  deixar de admitir que aquele comportamento ilícito e culposo implicou o agravamento dos danos por ele sofridos.

Daí pretender a recorrente que a sentença é nula por omissão de pronúncia, pois, na verdade, a mesma não fixou qualquer percentagem correspondente à referida culpa do lesado, e daí que pretenda alterações na matéria de facto sem, consabidamente, ter procedido à impugnação dessa matéria, nos termos do art 640º CPC.

Vejamos primeiro em que consiste a figura da culpa do lesado.

Referem-se directamente à mesma os arts 570º e 572º CC.

Aquele dispõe no seu nº 1:

«Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».

Referindo no seu nº 2: «Se  a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar».

 E o art 572º dispõe que «àquele que alega a culpa do lesado incumbe a prova da sua verificação; mas o tribunal conhecerá dela, ainda que não seja alegada».

Resulta evidente do texto do nº 1 do art 570º que nele se englobam duas realidades diversas: por um lado, a concorrência do facto culposo do lesado para a produção dos danos; por outro, essa concorrência para o agravamento dos danos.

 A essas duas diferentes realidades faz referência Dario Martins Almeida no seu «Manual de Acidentes de Viação», [1]falando de «concorrência de causas», quanto à concorrência de facto culposo do lesado para a produção dos danos, e de «causalidade sucessiva», quanto à concorrência de facto culposo do lesado para o agravamento dos danos «ou (para) a não remoção deles, quando possível».

Explicando: «Na primeira hipótese estamos perante um acidente desencadeado, no seu processo causal, pela convergência de duas condutas culposas – a do lesante e a do lesado» – exemplificando, com o caso do automobilista que transita com velocidade excessiva numa curva encoberta e atropela um peão que na altura segue em plena faixa de rodagem . «Na segunda hipótese, o dano produzido resulta em parte do facto praticado pelo lesante e em parte (o seu agravamento) do facto posto pelo próprio lesado».

Importa evidenciar, que, o que é comum às duas situações é o fenómeno da causalidade – a conduta do lesado, seja para a produção dos danos na primeira situação, seja para o seu agravamento na segunda, há-se sempre apresentar-se como causal, e a causalidade relevante é a adequada.

A circunstância de se estar num plano de causalidade sucessiva na referida segunda situação, não afasta a necessidade da conduta do lesado se ter de se apresentar como causa adequada do agravamento dos danos.

Assim, para que a conduta do lesado seja tida como causa jurídica do agravamento dos danos, tem a mesma de ser tal que nas condições normais da vida, se tenha como  idónea (apta, adequada) à produção daquele tipo de consequência danosa.

Quanto ao disposto no art 572º o mesmo implica que quem invoca a culpa do lesado com o objectivo de ver excluída ou reduzida a indemnização, servindo-se de facto modificativo,  no todo ou em parte, ou mesmo impeditivo, da pretensão do autor, vê recair sobre si  o ónus da prova, segundo a regra do 342º/2 CC.

A culpa do lesado constitui uma excepção peremptória modificativa ou impeditiva e comporta-se como uma excepção facto por ser do conhecimento oficioso do tribunal – mesmo que não seja alegada por qualquer das partes o tribunal conhecerá da mesma quando ela resulte da prova alcançada. 

Deve  salientar-se ainda que não é pacífico, para o efeito do art 570º, que a actuação do lesado lhe seja subjectivamente censurável em termos de culpa e que, por isso, não baste a mera causalidade da sua conduta em relação aos danos[2], havendo, efectivamente, quem defenda uma interpretação ampla da referência à culpa, considerando suficiente para a aplicação da referida norma qualquer conduta do lesado, ainda que não censurável, de tal modo que  “facto culposo” equivalha tão somente a facto imputável de um ponto de vista naturalístico ao lesado[3].

 De todo o modo, mesmo quando esteja em causa uma actuação do lesado que lhe seja subjectivamente censurável em termos de culpa, a culpa do lesado só é culpa em sentido impróprio – no sentido de que este não usou das cautelas exigíveis ou transgrediu preceitos regulamentares que lhe impunham essas cautelas. È que a actuação culposa do lesado não corresponde a um acto ilícito mas apenas ao desrespeito de um ónus jurídico, uma vez que não existe um dever jurídico de evitar a concorrência de danos para si próprio.

Feitas estas considerações, retornemos aos autos.

Na situação dos mesmos, como é evidente, está em causa a contribuição do facto culposo do transportado no veículo acidentado, não para a produção do acidente, que foi causado exclusivamente pelo condutor do mesmo, mas para a agravação das lesões na sua pessoa resultantes desse sinistro, importando, pois, saber, se a circunstância da falta de colocação do cinto de segurança por parte dele, contribuiu, e em que medida, para esse agravamento. Se se concluir por essa agravação, a indemnização que a A. faz valer na acção a titulo de direito de regresso ver-se-á  mitigada na medida percentual que se venha a encontrar para aquele agravamento dos danos, pela qual será responsável o próprio lesado.

Há, desde logo, que excluir a nulidade da sentença por omissão de pronúncia  relativamente à questão,  indiscutivelmente integrante da defesa da  R./apelante,  da culpa do lesado. 

Se para essa conclusão (de inexistência de omissão de pronúncia) não fosse suficiente a preocupação com essa questão que a motivação da decisão da matéria de facto indiscutivelmente demonstra, sempre decorreria da fundamentação da sentença tal pronúncia, quando nela se diz: «Mesmo ultrapassada, por falta de prova, a questão da eventual culpa do lesado  na produção ou agravamento dos danos … »

Em segundo lugar, e como resultará concludentemente das observações cima feitas, não basta para se concluir pela culpa do lesado para o agravamento dos danos que este tenha praticado um facto ilícito e culposo como o é o de voluntariamente não se fazer uso de cinto de segurança durante a circulação do veiculo em que se transite.

Já se viu que, o que é afinal essencial à chamada culpa do lesado, não é tanto a censurabilidade do acto em termos de culpa - pois, como se referiu, há até quem entenda que “facto culposo” equivale a facto meramente decorrente da conduta  do lesado -  mas o da sua necessária causalidade para (a produção) ou para o agravamento dos danos.

Ora, a afirmação da causalidade é questão que, por excelência, só se resolve em função de um processo causal e este tem de decorrer necessariamente de factos.  

Só é possível afirmar que um resultado se mostra  decorrente de uma determinada acção em função de factos que encadeadamente o demonstrem, a menos que o legislador  interferira na questão especifica de determinada causalidade estabelecendo uma presunção legal, como de alguma maneira sucedeu, justamente, com a al c) do nº 1 do art 27º do DL 291/2007 de 21/8, de que decorre o direito de regresso da seguradora contra o condutor em função deste «ter dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida». Com esta disposição, e no confronto com a anterior constante da al c) do art 19º do DL 522/85 de 31/12,  o legislador  pretendeu pôr termo ao entendimento que veio a ser estabelecido com o Ac Uniformizador de Jurisprudência nº 6/2002,  no âmbito da vigência daquele  DL 522/8 de 31/12, segundo o qual,  se exigia  para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool, o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.

Hoje, no âmbito da al c) do nº 1 do art 27º do DL 291/2007 de 21/8, em que nos movemos na presente acção, a lei (como que) presume que quem conduz com taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e causa um acidente o fez em função da influência do álcool na condução, cabendo ao condutor que queira afastar o direito de regresso da seguradora ilidir essa presunção, provando que não foi por essa causa que ocorreu o acidente.

 Ora, se a afirmação da causalidade é questão que só se resolve em função de um processo causal e este há-de decorrer de factos e de presunções de facto entre eles  – a menos que haja a referida presunção legal, e não existe na matéria em que nos encontramos - cabia ao R., agora apelante,  que invocou a culpa do lesado, fazer a prova desse processo causal, isto é, que foi porque, nas concretas circunstâncias em que o acidente se deu, circulava sem cinto de segurança que o transportado BB viu agravadas as lesões corporais que para ele sempre decorreriam do acidente.

Mas, na verdade, a dinâmica do acidente que o R. alegou na contestação não se veio a provar. Efectivamente, não se provou que o veiculo tivesse capotado (como o R. o alegou no art 33º da contestação) e tão pouco que o lesado tenha sido projectado para o exterior da viatura, onde caiu inanimado (como o alegou no art 30º daquela.)

Assim, desde o momento em que o Exmo Juiz a quo explicou por que é que «não se  pode afirmar «(…) que caso BB fizesse uso do dispositivo de retenção, fosse certo que, na sequência do embate dos  autos, o mesmo  não sofresse qualquer lesão corporal (…) ou que alguma ou algumas das lesões sustidas por ele não teriam ocorrido de todo, ou em que medida teriam sido atenuadas» - referindo que «o impacto com a árvore parece ter ocorrido com a lateral direita do veículo, como decorre dos fotogramas constantes de fls. 31 verso e 32 dos autos, o que, em principio, sempre acarretaria  a projecção lateral, para a direita, da cabeça do dito passageiro, com consequente impacto provável no pilar B do veiculo,  não se vendo como pudesse o dispositivo de retenção obstar (a tal projecção)» – não se vê como poderia o apelante obter a alteração da matéria de facto sem a respectiva impugnação, necessariamente que nos termos previstos no art  640º  CPC, demonstrando, em função dos meios de prova produzidos, que outra teria sido a dinâmica do acidente e que dessoutra decorreria, como consequência muito provável, que o lesado não tivesse sofrido traumatismo craniano ou mesmo  fractura do joelho se tivesse circulado com cinto de segurança.

Como é evidente, não pode o apelante pretender que este Tribunal dê como provado que as lesões sustidas por BB não teriam ocorrido se o mesmo usasse, no momento do despiste, o dispositivo de retenção - julgando provada a matéria contida no ponto 5 dos factos não provados  - quando  não impugnou a matéria de facto de modo a que fosse possível concluir-se, da fenomenologia do acidente, que assim se devia ter entendido.

Menos ainda poderia este Tribunal aditar à matéria de facto, matéria que, por definição, o não é, antes se traduz em juízos conclusivos e em juízos de valor formulados com base em critérios legais, como resultaria de se dar como provado, por um lado, que «o sinistrado BB, no momento do embate, não fazia uso do dispositivo de retenção tendo contribuído com culpa para o agravamento dos danos por si sofridos no embate», e que «o sinistrado BB contribuiu desse modo para o agravamento dos danos por si sofridos numa percentagem de 15%», não se compreendendo, aliás, em função das premissas de raciocínio de que parece partir o apelante, por que motivo  necessitaria da formulação em sede de factos das referidas afirmações .

È que, afinal, do ponto de vista do apelante, sempre seria pelo simples facto de um passageiro transportado num automóvel não fazer uso do cinto de segurança que se poderia concluir que tal conduta teria implicado, necessariamente, em maior ou menor medida, esta a fixar equitativamente, o agravamento das lesões por ele sofridas no sinistro.

Mas não é assim.

O interessado nessa conclusão tem que demonstrar que, nas circunstâncias concretas do acidente, se o lesado tivesse usado o cinto de segurança, muito provavelmente não teria sofrido alguma ou algumas das lesões corporais que sofreu, por outras palavras, que o uso daquele cinto, nas concretas circunstâncias do sinistro, teria funcionado como causa adequada à não ocorrência das lesões ou parte delas.

Trata-se de uma prova não necessariamente difícil, como o apelante o faz crer,  porque, como se vê de muita da jurisprudência a respeito da matéria, tem vindo a ser,  adequadamente, ajudada pelas inferências lógicas resultantes de presunções de facto. È assim, que em muitas decisões se conclui pela culpa do lesado, em maior ou menor grau, em função da simples circunstância do veículo em que o mesmo circulava sem cinto de segurança ter capotado ou o lesado ter sido projectado do interior do veículo em função de uma colisão frontal e tais factos serem acompanhados de traumatismo craniano ou de problemas na coluna. [4]. Fazendo todo o sentido que em sinistros desse tipo se refira e conclua que «a conduta do lesado que é transportado no veiculo sem que tivesse colocado o cinto de segurança, tem toda a aptidão para contribuir para o agravamento dos danos por ele sofridos no acidente».

Ora, na situação dos autos não houve colisão frontal mas (claramente) lateral, como se vê das fotografias juntas aos autos e se depreende da motivação da decisão da matéria de facto, e nem sequer houve projecção do sinistrado BB.

Não pode pretender-se que a simples circunstância do sinistrado não levar colocado o cinto de circulação o torne  responsável ou co-responsável pela produção dos danos, quando não se provou que a não colocação do cinto concorreu para a produção do resultado [5].

Diga-se ainda por fim, que não se verifica na sentença recorrida, oposição entre os fundamentos de facto e a decisão, e que a haver contradição entre a fundamentação da matéria de facto e a decisão – contradição essa que também não se entrevê – a mesma só implicaria nulidade quando se volvesse em ambiguidade ou obscuridade  que tornasse a decisão ininteligível, o que a apelante não refere ter sucedido.

Há, pois, que julgar a apelação totalmente improcedente e confirmar a sentença recorrida.

V – Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

                                                                       Coimbra, 15 de Fevereiro de 2022
(Maria Teresa Albuquerque)
(Falcão de Magalhães)

                                                                       (Pires Robalo)

                       

(…)


                [1] - Edição de 1980, p 139/140
                [2] - Neste sentido, Antunes Varela, «Obrigações», I, pág. 917 e nota 3, Almeida Costa, «Obrigações», pág. 726, Ribeiro Faria, «Obrigações», 1, pág. 523 e Menezes Leitão, «Direito das Obrigações», I, pág. 333 
                [3] - Neste sentido, Pessoa Jorge, «Obrigações», 1º, pág. 555 e Menezes Cordeiro, «Obrigações», 2º, pág.409 e nota 251 e «Da Boa Fé», II, pág. 768, nota 457 e 841.
                [4] - Assim, e só a título de exemplo, no Ac R G 12/7/2016, (Mª Amália Santos), o veiculo onde seguia o lesado capotou várias vezes, o que lhe causou, além do mais, lesões na cabeça (traumatismo craniano) e na coluna (fractura e luxação da coluna vertebral); também no Ac STJ de 6/5/2004 (Ferreira de Almeida), ocorreu «capotamento e circunstâncias particularmente aparatosas», referindo-se nesse aresto, apesar de se ter concluído pela culpa do lesado, «que o simples não uso do cinto de segurança pelos passageiros dos veículos automóveis (em violação do dever imposto pelo art. 82°, nº 1 do Código da Estrada de 1994 - anterior artº 83º, nº 1 do mesmo diploma) não deve, em princípio (sendo, todavia, sempre necessária uma ponderação casuística), mormente se a eclosão do acidente houver sido provocado por terceiro, ser considerado (presumidamente) concausal para as lesões sofridas, nos termos e para os efeitos do artigo 570º do Código Civil, pois que em termos de previsibilidade normal e típica, se encontrará à margem do processo causador/desencadeador das lesões»; no Ac R C de 15/9/2015 (Mª Catarina Gonçalves), citado pelo apelante, a colisão foi frontal e dela decorreu a projecção do sinistrado que não usava cinto de segurança; o que igualmente sucedeu no acidente a que se reporta o Ac STJ de 21/12/2013 (Mª dos Prazeres Beleza). No Ac R P de 14/3/2016, o lesado foi projectado do habitáculo do veículo e os restantes quatro ocupantes do mesmo veículo permaneceram no seu interior apenas tendo sofrido ferimentos ligeiros, dado terem colocados os respetivos cintos de segurança.
                [5] - Neste sentido, Ac R G  21/1/2016  (António Sobrinho)