Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
341/13.7TBSPS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: LETRA DE CÂMBIO EM BRANCO
ABUSO DE PREENCHIMENTO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 09/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – INST. CENTRAL – SEC. EXECUÇÃO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 10º E 17º DA LULL.
Sumário: I – A emissão de uma letra em branco está prevista no art.º 10º da L.U.L.L., podendo, nas relações imediatas o aceitante excepcionar a existência de uma situação de abuso no preenchimento, quando o beneficiário da letra venha a efectuar esse preenchimento desrespeitando o que fora convencionado com o aceitante da letra, nos termos permitidos pelo art.º 17º da L.U.L.L.
II - Contudo, no âmbito de processo executivo que tenha como título uma letra de câmbio aceite e preenchida naquelas condições competirá ao aceitante a demonstração da existência de uma situação de violação do pacto de preenchimento estabelecido, o que exige que este demonstre os termos desse pacto, de modo a verificar-se a sua desconformidade com o inscrito na letra de câmbio.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que a Exequente lhe moveu veio o Executado deduzir embargos, alegando em síntese:

- Nunca teve, a título pessoal, qualquer relação pessoal com a Exequente;

- A assinatura aposta na letra dada à execução no lugar do aceite não é sua.

A Embargada contestou, alegando em síntese:

- O Embargante outorgou na qualidade de sócio-gerente da P..., Unipessoal, L.da, a confissão de dívida e acordo de pagamento em prestações desta sociedade à Embargada, aceitando a letra de câmbio dada à execução como garantia do pagamento daquele débito em caso de incumprimento da sociedade.

- Essa letra foi entregue à Embargada logo após a data da celebração daquele acordo e foi condição sem a qual o mesmo não se teria concretizado.

- A assinatura aposta na letra é a do Embargante.

Concluiu pela improcedência dos embargos, pedindo a condenação do Embargante como litigante de má-fé em multa e indemnização a seu favor em montante não inferior a 10 UC.

Veio a ser proferida sentença que julgando os embargos procedentes determinou a extinção da execução.

A Exequente interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

...

O Embargante apresentou resposta, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

1. Do objecto do recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas.

Nessas conclusões o Recorrente não só questiona a sentença recorrida na parte em que decide julgar não provados os factos descritos sob os nº 1 e 2 da respectiva lista, como também revela a sua discordância quanto a ter-se entendido que se havia provado que a letra dada à Execução era completamente alheia ao cumprimento do acordo referido no ponto 3) da lista dos factos provados.

Verifica-se que este facto não consta da lista dos factos julgados provados.

Contudo, lendo a sentença recorrida, na motivação da decisão da matéria de facto constata-se que não só não se considerou provado que a letra dada à execução foi aceite pelo Embargante para garantir o pagamento do acordo invocado pela Exequente, como se entendeu que se tinha provado precisamente o contrário, isto é, que o aceite dessa letra era alheio ao referido acordo.

Na verdade, aí se escreveu: Não logrou a exequente produzir prova que o embargante com a referida assinatura tenha pretendido assumir a dívida reconhecida no contrato celebrado a 17.05.2013 a título pessoal, bem pelo contrário, a prova produzida foi no sentido claramente oposto, isto é, de que o executado anteriormente à sua assinatura do acordo declinou por mais que uma vez essa possibilidade. Fê-lo, como se viu, no dia imediatamente anterior à assinatura do contrato pela mão da sua Ilustre Mandatária - a 16.05.2013. Tudo, pois, para referir que a prova produzida foi de molde a convencer o Tribunal do contrário do que a exequente se propunha provar.

E, apesar da prova deste facto não ter sido incluída na lista dos factos considerados provados, foi o mesmo considerado na fundamentação jurídica da sentença recorrida, tendo sido, aliás, elemento decisivo para o desfecho da oposição, como se pode constatar da leitura do seguinte trecho:

Assim, aos embargantes é lícito opor ao exequente a inobservância do acordo de preenchimento, sobre si impendendo não só o ónus da alegação, como ainda da prova dos factos integradores de tal exceção, por ser impeditiva (parcialmente) do direito que do título resulta para o exequente.

Atentemos então no caso sub judice.

Emerge da factualidade atrás elencada que a exequente L..., SA deu à execução a letra com o n.º..., no valor de 246.797,00€, com data de emissão em 2013.05.17, em Viseu, com data de vencimento em 2013.10.02, onde figura como sacadora e como aceitante o executado/embargante J...

Mais se apurou que o executado/embargante apôs a assinatura no lugar do aceite.

De acordo com a versão da exequente a letra em causa foi-lhe entregue em branco, assinada pelo embargante, como condição da celebração do contrato outorgado em 17.05.2013 e como garantia do seu pagamento - é isso que alega no requerimento executivo ao referir que “- 3.º - Para garantia do pagamento daquele acordo, além do demais, o aqui executado, aceitou extra contratualmente, uma letra de câmbio, a qual se destinava a garantir o pagamento daquele débito e em caso de incumprimento daquela sociedade”.

Todavia, contrariamente ao alegado, não foi isso que se apurou no julgamento, na medida em que o embargante logrou provar que não assinou qualquer letra em relação àquele acordo.

É certo que não se apurou a verdadeira relação subjacente à sua emissão.

Todavia, não obstante o executado não ter provado a relação subjacente à sua emissão, logrou, no entanto, demonstrar que a mesma foi utilizada para ser preenchida com valores referentes a uma dívida relativamente à qual tinha declinado expressamente qualquer responsabilidade a título pessoal.

E isto é, na nossa perspetiva, quanto baste para concluir pelo seu preenchimento abusivo.

De forma que, face a tudo quanto antecede, entende-se ter existido preenchimento abusivo da letra dada em execução, pelo que, constatada essa violação, perde a livrança a sua eficácia executiva, deixando de poder ser usada contra o aceitante pelos valores nela apostos (o sublinhado é nosso).

A sentença recorrida considerou, pois, que tendo-se provado que o Embargante não havia assinado qualquer letra em relação àquele acordo, estava demonstrado que a letra dada à execução havia sido preenchida abusivamente pela Exequente, pelo que esta não podia exigir o pagamento pelo Embargante da quantia nela inscrita.

Assim, face à consideração decisiva pela sentença recorrida daquele facto como provado, apesar de, incorrectamente, não o ter incluído na lista dos factos julgados provados, deve o objecto da impugnação da decisão da matéria de facto, dado os termos em que esta foi formulada, igualmente abranger a prova daquele facto.

2. Os factos

2.1. A impugnação da decisão da matéria de facto

A Embargada pretende que, após reapreciação da prova produzida, seja alterada a matéria de facto, julgando-se provados os factos considerado não provados na 1.ª instância sob os n.º 1 e 2 e não provado o facto considerado provado pela sentença recorrida, segundo o qual o aceite pelo Embargante da letra dada à execução foi alheio ao acordo referido em 3 dos factos provados.

Para fundamentar esta sua pretensão invoca os depoimentos das testemunhas ... e os documentos juntos aos autos,

Os factos considerados não provados foram:

1- A letra dada em execução foi aceite extracontratualmente pelo executado para garantir o pagamento do acordo referido em 3 dos factos provados e em caso de incumprimento da sociedade P...

2 – A emissão da letra tinha sido condição para a exequente outorgar o acordo referido em 3.

A resposta negativa, donde também consta a justificação para a prova do facto provado que a Recorrente igualmente impugna, foi fundamentada do seguinte modo:

Os factos não provados em 1) e 2) ficam a dever a sua resposta à prova do contrário. Isso mesmo resulta, na nossa perspetiva, de forma cristalina do depoimento da ... mas também de toda a documentação trocada entre ambos os mandatários no período que precedeu a assinatura do acordo. Veja-se, por exemplo, a mensagem eletrónica de 16.05.2013, isto é um dia antes da assinatura do contrato, onde se referiu expressamente e a negrito que “ele (executado) não assume com o seu património pessoalmente a dívida da empresa, apenas assume até ao valor dos imóveis que dá de garantia” - entre parêntesis nosso. Não foi produzida prova que a exequente face a esta postura do executado não aceitasse celebrar o acordo. Bem pelo contrário, o acordo foi celebrado mas nos exatos termos que constam de fls. 79 a 81. Desse documento não resulta qualquer assunção expressa ou tácita por parte do embargante/executado a assumir a título pessoal a responsabilidade pelo pagamento da dívida da sociedade P.... Tal como não resulta qualquer referência à letra dada em execução. Não é crível que as partes que, previamente à celebração do referido acordo encetaram diversas conversações, omitissem um facto com esta relevância, mormente quando essa questão foi prévia e amplamente discutida - e de que a última mensagem eletrónica, de 16.05.2013, é bem evidenciadora. Não é crível, nem verosímil quando analisado à luz das regras da experiência comum. É certo que o Tribunal não ignora os depoimentos de algumas das testemunhas da exequente ao referir que a letra foi junta com o referido acordo. Todavia, este elemento, por si só, e face aos restantes meios de prova produzidos, é insuficiente para concluir que o embargante/executado com a sua assinatura tenha pretendido assumir a responsabilidade pelo pagamento da dívida reconhecida no contrato que tinham acabado de celebrar. Acresce que apesar do Tribunal ter dado como assente que foi o embargante/embargado a assinar a referida letra, desconhece-se em rigor em que circunstâncias é que o fez, designadamente se a assinou naquela mesma data ou inclusivamente numa data anterior, pois algumas das testemunhas referiram que existiam outras letras. A reforçar esta dúvida (isto é, de que não ficou provado que a letra dada em execução foi aceite para garantir o referido acordo) o próprio depoimento da testemunha ... (atual diretor-geral da exequente) ao referir que o acordo celebrado era para o que estava vencido, a prestação de outras garantias era uma condição para continuar a fornecer combustíveis. Depreende-se, salvo melhor opinião, deste depoimento que a assinatura da referida letra apenas foi imposta como uma condição para continuar a fornecer combustíveis e não para garantir o cumprimento do acordo redigido a escrito. Não logrou a exequente produzir prova que o embargante com a referida assinatura tenha pretendido assumir a dívida reconhecida no contrato celebrado a 17.05.2013 a título pessoal, bem pelo contrário, a prova produzida foi no sentido claramente oposto, isto é, de que o executado anteriormente à sua assinatura do acordo declinou por mais que uma vez essa possibilidade. Fê-lo, como se viu, no dia imediatamente anterior à assinatura do contrato pela mão da sua ilustre mandatária - a 16.05.2013. Tudo, pois, para referir que a prova produzida foi de molde a convencer o Tribunal do contrário do que a exequente se propunha provar.

Da audição de todos os depoimentos prestados em audiência de julgamento efectivamente não resulta evidenciada, com o grau de certeza necessário, a causa do Embargante ter aceite a letra dada à execução.

Assim, os depoimentos das testemunhas ..., respectivamente mulher e filho do Embargante, nada revelaram porquanto não tinham conhecimento da letra em causa.

...

Assim, apesar da entrega da letra, aceite pelo Embargante, ter coincidido com a outorga do acordo com a Exequente, o que poderia indiciar que a sua emissão se destinava a garantir o cumprimento do acordado, a globalidade dos depoimentos prestados, analisados em conjunto com os documentos constantes dos autos, nomeadamente o teor dos mails trocados entre a então advogada da P... e a Exequente, não permitem concluir com um grau de certeza suficiente que os factos considerados não provados tenham ocorrido, ou seja, após a produção da prova, continuou sem se saber, com a segurança necessária, qual foi a finalidade que justificou o aceite pelo Embargante daquela letra e a sua entrega à Exequente.

E, de igual modo, pelas razões acima indicadas, também não é possível concluir, com o grau de certeza exigível, que aquela letra seja completamente alheia ao mencionado acordo.

O resultado da avaliação das provas produzidas é antes o de um estado de dúvida sobre a relação existente entre o acordo celebrado entre P... e Exequente referido no ponto 3 dos factos provados e o aceite da letra dada à execução, uma vez que existem sinais e indícios contraditórios quanto à existência ou inexistência dessa relação (por um lado, a letra é entregue com o acordo, mas, por outro lado, nos momentos preparatórios da celebração ao acordo, a mandatária do Embargante manifestou uma posição firme no sentido do seu cliente não desejar assumir compromissos pessoais).

Daí que não se acompanhe a sentença recorrida quando considera que o Embargante logrou provar que não aceitou qualquer letra, designadamente a letra em discussão nos presentes autos, relacionada com o referido acordo, devendo tal facto também considerar-se não provado.

Assim, mantém-se como não provados os factos constantes da lista dos factos não provados sob os nº 1 e 2) e julga-se também não provado que o aceite pelo Embargante da letra dada à execução tenha sido alheio ao acordo referido em 3 da lista dos factos provados.

Os factos provados são, pois, os seguintes:

...

3. O direito aplicável

A letra de câmbio dada à execução foi preenchida pela Exequente após ter sido aceite pelo Embargante, pelo que foi uma letra aceite em branco, isto é, sem menção de quaisquer outros dizeres.

Esta situação está prevista no art.º 10º da L.U.L.L., podendo, nas relações imediatas o aceitante excepcionar a existência de uma situação de abuso no preenchimento, quando o beneficiário da letra venha a efectuar esse preenchimento desrespeitando o que fora convencionado com o aceitante da letra, nos termos permitidos pelo art.º 17º da L.U.L.L.

Contudo, no âmbito de processo executivo que tenha como título uma letra de câmbio aceite e preenchida naquelas condições, competirá ao aceitante a demonstração da existência de uma situação de violação do pacto de preenchimento estabelecido, o que exige que este demonstre os termos desse pacto, de modo a verificar-se a sua desconformidade com o inscrito na letra de câmbio.

Como refere Carolina Cunha[1], em sintonia com a jurisprudência dos nossos tribunais : nunca é demais recordar que em sede do art.º 10.º da L.U.L.L. nos movemos no interior de um conflito aberto: cabe ao subscritor em branco demonstrar o quid com o qual o preenchimento é desconforme. Por conseguinte, se não lograr reconstruir em juízo os termos do acordo de preenchimento, o credor será admitido a exercer esse direito cartular tal como o título o documenta.

No presente caso estamos no âmbito das relações imediatas, pelo que o Embargante tinha a possibilidade de alegar e provar que a Exequente tinha procedido ao preenchimento da letra dada à Execução em desrespeito do que havia acordado com o Embargante, de modo a evitar o seu pagamento.

Contudo, face à parcial procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, verifica-se que a Embargante não logrou efectuar essa prova, uma vez que não demonstrou que a aquela letra não tivesse sido aceite para garantir o cumprimento do acordo celebrado entre a Exequente e a Petrojofer, pelo que nada obsta a que a Exequente reclame o pagamento do valor da referida letra, nos termos do art.º 28.º da L.U.L.L., devendo, por isso, o recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e em consequência, julgar-se improcedente a oposição deduzida pelo Embargante.

Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, julgando-se improcedente a oposição à execução deduzida por J...

Custas da oposição e do recurso pelo Embargante.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Maria Domingas Simões

 Jaime Ferreira


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[1] Em Letras e livranças. Paradigmas actuais e recompreensão de um regime, pág. 621, ed. 2012, Almedina.