Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1924/13.0TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA DO PROCEDIMENTO
REQUERIMENTO FUNDAMENTADO
FORMA
CONDIÇÃO
Data do Acordão: 05/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 243.º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (C.I.R.E.)
Sumário: I) O requerimento fundamentado que é necessário para ser decretada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante pode ser apresentado na resposta a um pedido dos insolventes no sentido de que não se considerassem os subsídios de férias e de natal no cálculo do rendimento disponível e que lhes fosse fixado, a título do que era razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno deles e do seu agregado familiar, uma quantia correspondente a uma vez e meia o salário mínimo nacional.

II) Tal requerimento também pode ser formulado sob a sob a condição dos insolventes não entregarem ao fiduciário a partes dos seus rendimentos objecto de cessão.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

M… e A… foram declarados em situação de insolvência por sentença proferida em 25 de Junho de 2013.

Por despacho proferido em 10-09-2015 foi concedida liminarmente aos insolventes a exoneração do passivo restante. Em tal decisão foi determinado que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado período da cessão, o rendimento disponível que os insolventes viessem a auferir, após tal despacho, se consideravam cedido a fiduciário – nomeando-se fiduciário, desde logo, o administrador da insolvência.

Mais se determinou no referido despacho:

1. Que o apuramento do rendimento disponível devia ser alvo de acordo entre os insolventes e o fiduciário;

2. Que os insolventes deviam ceder quantia que podia situar-se a partir do montante equivalente ao salário mínimo nacional e o valor máximo que, por regra, não devia exceder três vezes o salário mínimo nacional;

3. Que durante o período de cessão os devedores ficavam ainda submetidos aos demais deveres previstos nas alíneas a) a e) do artigo 239.º, n.º 4, do CIRE.

O processo de insolvência foi declarado encerrado por decisão proferida em 9-06-2017, iniciando-se em tal data o período da cessão.

Em 18 de Setembro de 2018, o fiduciário informou que os insolventes não tinham cedido a quantia de 527,28 euros, referente ao rendimento disponível do 1.º ano da cessão, apresentando um mapa onde discriminou os rendimentos auferidos pelos insolventes e a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.

Notificados, os insolventes requereram a entrega desse rendimento em 10 prestações mensais e sucessivas de 52,73 euros, o que foi deferido por despacho proferido em 04-04-2019.

Em 18-09-2019, o fiduciário informou que os insolventes continuavam sem entregar o montante de 527,28 euros, apresentando novo mapa onde discriminou os rendimentos auferidos pelos insolventes e a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.

Em 28 de Janeiro de 2020, o fiduciário informou que, desde o início do período da cessão até Dezembro de 2019, os insolventes não haviam entregado 2 591,34 euros, apresentando novo mapa com a discriminação dos rendimentos auferidos pelos insolventes e a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.

Em 13 de Fevereiro de 2020, os insolventes requereram a entrega de tal quantia em prestações mensais e sucessivas de 52,73 euros.

O credor dos insolventes, C…, pronunciou-se sobre o pedido nos seguintes termos:

1. Nada tem a opor à reposição em prestações das eventuais quantias indevidamente retidas pelos insolventes, em 10 prestações mensais e sucessivas no valor de € 52,73, porquanto a restituição dos valores terá lugar dentro do período de cessão, requerendo que a entrega da 1.ª prestação ocorra no presente mês de Março de 2020;

2. Deverá a insolvente dar cumprimento à proposta apresentada, assim como à cessão do rendimento disponível, aguardando os autos a elaboração do próximo relatório anual para aferição da observância dos deveres ora assumidos;
3. A credora não se opõe à proposta de pagamento apresentada, sob pena de, não sendo mais uma vez cumprida, se considerar violado o disposto no artigo 239.º, n.º 4, alínea c) e nos termos do artigo 243.º do CIRE.

O requerimento dos insolventes foi deferido por decisão proferida em 24-04-2020.

Em 21 de Julho de 2020, o fiduciário informou que os insolventes não lhe entregaram qualquer quantia, estando em dívida desde o início do período da cessão até Junho de 2020, o montante de 2 865,01 euros, apresentando novo mapa, onde discriminou os rendimentos auferidos pelos insolventes e a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.

Notificados para comprovarem o cumprimento do dever de cedência do rendimento disponível em falta, referente aos 3 primeiros anos do período da cessão, os insolventes requereram que não se considerassem os subsídios de férias e de natal no cálculo do rendimento disponível e que, uma vez que se tinham divorciado em 13-10-2020, fosse fixado a cada um deles, a título do que era razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno deles e do seu agregado familiar, uma quantia correspondente a uma vez e meia o salário mínimo nacional, desde o início do período da cessão.

Notificados deste requerimento, a credora C… pronunciou-se no sentido do indeferimento do pedido e requereu se ordenasse a notificação dos insolventes para regularizarem o valor em incumprimento, sob pena de ser decretada a cessação antecipada da exoneração do passivo restante.

A Caixa …, também credora dos insolventes, no seguimento da notificação do requerimento do credor “C…” veio declarar que nada tinha a opor à cessação antecipada da exoneração do passivo restante nos termos do artigo 243.º, n.º 1, al. a) do CIRE.

Por despacho proferido em 20-11-2020, foi indeferido o requerimento no sentido de excluir, do rendimento disponível, o subsídio de férias e de Natal e foi deferida a alteração do rendimento indisponível, fixando-o num valor correspondente a uma vez e meia o salário mínimo nacional, para cada um, dos devedores, a partir de Outubro de 2020.

Os insolventes foram notificados para, no prazo de dez dias, comprovarem o cumprimento da entrega do rendimento disponível em falta, no valor de 2 86501 euros, sob pena de recusa antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.

Notificado para informar se os devedores haviam entregado o rendimento disponível em falta, o fiduciário declarou, em 3 de Fevereiro de 2021, que tal entrega não havia sido feita.

De seguida, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo proferiu decisão a recusar antecipadamente a exoneração do passivo restante.

Os insolventes não se conformaram com a decisão e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse a decisão recorrida.

Os fundamentos do recurso consistiram, em resumo, na imputação à decisão recorrida da violação do artigo 243.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CIRE.

Não houve resposta ao recurso.


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Questões suscitadas pelo recurso:

Saber se a decisão recorrida, ao recusar antecipadamente a exoneração do passivo restante, violou o disposto no artigo 243.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CIRE.


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Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelos antecedentes processuais do despacho recorrido narrados neste acórdão.

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O presente recurso tem por objecto o despacho que recusou antecipadamente, isto é, antes do fim do período da cessão, a exoneração do passivo restante aos ora recorrentes. As razões da decisão foram, em síntese, as seguintes:
1. Os devedores violaram a obrigação contida na alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, pois não cederam o rendimento disponível referente ao primeiro, ao segundo e ao terceiro anos do período da cessão;
2. O incumprimento determinou um prejuízo para os créditos sobre os insolventes, correspondente à falta de entrega dos rendimentos objecto de cessão, havendo que concluir que os devedores incumpriram, pelo menos com negligência grosseira, o dever de ceder a parte disponível dos seus rendimentos.

Os recorrentes não põem em causa os pressupostos de facto em que assentou a decisão recorrida, concretamente:

1. Que no 1.º, no 2.º e no 3.º ano do período da cessão, a parte dos seus rendimentos que constituía objecto de cessão era no montante de € 2 865,01 [a discriminação de tais valores figura nos mapas anexos aos relatórios anuais apresentados pelo fiduciário];

2. Que não entregaram ao fiduciário tal montante.

Acusam a decisão de ter violado o disposto no artigo 243.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CIRE com base na seguinte argumentação:
1. De acordo com o n.º 1 do artigo 243.º do CIRE a decisão de antecipar a recusa de exoneração do passivo restante depende do requerimento fundamentado de algum credor da insolvência ou do fiduciário, tendo o requerimento que respeitar o prazo previsto no n.º 2 deste artigo e de ser oferecida logo a respectiva prova;
2. As declarações dos credores C…. e Caixa … de que não tinham nada a opor à cessação antecipada da exoneração do passivo restante, quando se pronunciarem sobre o pedido dos insolventes no sentido de não se considerarem os subsídios de férias e de Natal no cálculo do rendimento disponível e que lhes fosse fixado um salário e meio para cada insolvente, não é comparável a um pedido de exoneração do passivo restante, já que se exige sobre quem requerer a cessação antecipada o ónus de alegar e provar os requisitos de que depende tal decisão;
3. Para que o incumprimento dos devedores constitua causa da cessação antecipada são necessários 2 requisitos cumulativos: primeiro que o incumprimento tenha sido doloso ou gravemente negligente; que dele tenha resultado prejuízo para os credores.
4. No caso, a não entrega dos requerentes deverá ser qualificada como culpa leve. Com efeito, os insolventes foram justificando o incumprimento, alegando que tinham uma situação financeira, pois tinham 2 filhos menores a cargo com idade escolar, tendo de providenciar ao seu sustento e habitação condigna, que foram penhorados rendimentos indevidamente e, por fim, que houve lugar ao divórcio, pelo que os rendimentos auferidos foram essenciais ao sustento do seu agregado familiar;
5. Que o período de cessação do rendimento disponível acaba em 9/06/2022, pelo que os insolventes podem até ao fim do período da cessão cumprir com as suas obrigações, já que as suas vidas já estão reorganizadas de forma a que possam liquidar o montante em dívida.  

Apreciação do tribunal:

Como se vê pela exposição acabada de fazer, os recorrentes começam por contestar a decisão recorrida com a alegação de que a cessação antecipada da exoneração do passivo restante não foi precedida de requerimento nos termos previstos nos números 1 e 2 do artigo 243.º do CIRE.

Sobre este fundamento do recurso cabe dizer que assiste razão aos recorrentes quando alegam que resulta do n.º 1 artigo 243.º do CIRE que o tribunal não pode decidir sobre a cessação antecipada da exoneração do passivo sem que tal cessação lhe seja pedida por algum credor da insolvência, pelo administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou pelo fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor.

Já lhes não assiste razão, no entanto, quando alegam que nem a C…. nem a Caixa …, credores dos insolventes, requereram a cessação antecipada da exoneração do passivo restante nos termos dos números 1 e 2 do artigo 243.º do CIRE. Com efeito, o requerimento da C… no sentido de os insolventes serem notificados para regularizarem o valor em incumprimento desde o início do período da cessão até Junho de 2020, no montante de 2 865,01 euros, sob pena de ser decretada a cessação antecipada da exoneração do passivo restante, configura um pedido fundamentado de cessação antecipada do procedimento de exoneração. 

A circunstância de tal pedido ter sido deduzido na resposta a um requerimento dos insolventes e sob a condição de estes não entregarem ao fiduciário a partes dos seus rendimentos objecto de cessão não lhe retira a natureza de requerimento fundamentado para efeitos do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE. Com efeito, este preceito não se opõe a que o pedido de cessação antecipada do procedimento de exoneração seja deduzido por um credor em tal circunstância e sob tal condição. 

Também a resposta da Caixa … deve ser configurada como requerimento de cessação antecipada da exoneração do passivo. Com efeito, ao declarar, no seguimento da notificação do requerimento do credor C…, que nada tinha a opor à cessação antecipada da exoneração do passivo restante nos termos do art.º 243º, n.º 1, al. a) do CIRE, a Caixa aderiu inequivocamente ao pedido de tal credor no sentido de ser recusada antecipadamente a exoneração do passivo restante, no caso de os insolventes não entregarem ao fiduciário a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.

Quanto à alegação de que nem a C…. nem a Caixa … ofereceram prova do fundamento invocado [constituído pelo facto de os insolventes não entregarem ao fiduciário os rendimentos objecto de cessão, desde o início do período da cessão até Junho de 2020] ela é exacta, mas não tem os efeitos que lhe assinalam os recorrentes.

Na verdade, a falta de indicação de prova dos fundamentos do pedido seria de relevar contra a pretensão dos credores se os recorrentes impugnassem os fundamentos de facto da decisão, o que não aconteceu. Mais: as sucessivas informações do fiduciário, não impugnadas pelos insolventes, demonstram que os insolventes não entregaram os rendimentos objecto da cessão.

Contra a relevância atribuída pelos recorrentes à circunstância de a C…. e a Caixa … não terem oferecido prova de que os insolventes não entregaram os rendimentos objecto de cessão depõe ainda o seguinte. Embora o n.º 2 do artigo 243.º do CIRE imponha aos requerentes da cessação antecipada da exoneração do passivo restante o ónus de oferecerem a prova dos fundamentos do pedido, não resulta de tal preceito ou de qualquer outro do CIRE ou do Código de Processo Civil que o tribunal só possa decretar a cessação antecipada da exoneração se os fundamentos invocados tiverem sido demonstrados com a prova oferecida pelos requerentes.

No incidente onde foi proferida a decisão recorrida também vale o princípio da aquisição processual enunciado na 1.ª parte do artigo 413.º do CPC segundo a qual “o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las”.

E, assim, estando demonstrado pelas informações do fiduciário, não impugnadas pelos insolventes, que estes não entregaram os rendimentos objecto da cessão, era lícito ao tribunal a quo servir-se deste facto para decidir o pedido de cessação antecipada do procedimento de exoneração deduzido pela C… e pela Caixa ….   

Improcede, pois, o fundamento do recurso ora em apreciação.


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O segundo fundamento do recurso visa o segmento da decisão onde se afirmou que o incumprimento do dever de entrega dos rendimentos objecto da cessão era imputável aos insolventes pelo menos a título de negligência grosseira.

Sobre este fundamento cabe dizer o seguinte.

É exacto, como alegam os recorrentes, que, segundo a alínea a) do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE, o incumprimento da obrigação de entregar ao fiduciário a parte dos rendimentos objecto de cessão [obrigação prevista na alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE], constitui motivo de recusa antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, desde que o incumprimento seja imputável ao insolvente a título de dolo ou negligência grave e que tal incumprimento prejudique a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

Não lhes assiste razão, no entanto, quando alegam que a não entrega dos rendimentos é-lhes imputável apenas a título de culpa leve. Com efeito, há no processo elementos suficientes para afirmar que esse incumprimento é-lhes imputável, não a título de negligência grosseira, como afirmou a sentença, mas a título de dolo. Vejamos.

A violação de tal obrigação será de imputar ao devedor a título de dolo quando ele a não cumprir de forma consciente e intencional, sendo pressupostos desta consciência e intencionalidade o conhecimento, por ele, da obrigação de entregar imediatamente ao fiduciários os rendimentos objecto da cessão e o conhecimento de quais são esses rendimentos.

A violação será cometida com grave negligência quando, em face das circunstâncias do caso, só um devedor especialmente descuidado no cumprimento das suas obrigações é que não teria cumprido as obrigações que lhe são impostas. Cita-se em abono desta interpretação Assunção Cristas que escreve a este propósito o seguinte: “De acordo com os ensinamentos tradicionais da doutrina, que distingue entre culpa grave, culpa leve e levíssima, a negligência grave ou negligência grosseira corresponderá à conduta do agente que só seria susceptível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, actuando a maioria das pessoas de modo diverso” [Exoneração do Passivo Restante, página 171, nota 6, publicado na Revista Themis, 2005, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência”.

Ora, como se afirmou acima, há elementos no processo que permitem concluir, sem dúvida, que os recorrentes sabiam que estavam obrigados a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão e que estavam em condições de a quantificar. Os elementos a que nos referimos são os seguintes:

1. Em primeiro lugar, uma das exigências para que seja concedida liminarmente a exoneração do passivo restante é a de que o requerente se disponha a observar todas as condições exigidas no CIRE e entre elas figura a de entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão [alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º, do CIRE];

2. Em segundo lugar, os requerentes foram notificados do despacho que admitiu liminarmente a exoneração do passivo restante e que lhes assinalou expressamente que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que viessem a auferir fosse entregue ao fiduciário nomeado;

3. Em terceiro lugar, os recorrentes conheciam os seus rendimentos e o montante deles que estava excluído da cessão a título do que era razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno deles e do seu agregado familiar.

É, assim, isento de dúvida que os ora recorrentes estiveram sempre na posse dos elementos necessários e suficientes para quantificarem a parte dos seus rendimentos que estavam obrigados a ceder ao fiduciário.

Além de estarem na posse de tais elementos, foram notificados mais do que uma vez para entregarem os rendimentos em falta, com a indicação do respectivo montante, tendo mesmo requerido a entrega deles em prestações, através de um plano da sua autoria.

Nestas circunstâncias, a não entrega dos rendimentos ao fiduciário foi fruto necessariamente de uma decisão, deles, consciente e intencional.

Contra esta conclusão não vale a alegação de que os rendimentos não entregues foram essenciais para o sustento do seu agregado familiar e que apresentaram, em 22/11/2018, 20/01/2020, 13/02/2020 e 16/10/220, requerimentos a justificar a não entrega dos rendimentos. Com efeito, ao alegarem nestes termos, os recorrentes reconhecem implícita, mas inequivocamente, que a não entrega dos rendimentos foi consciente e intencional. Consideram é que a não entrega foi justificada. A alegação não colhe.

Em primeiro lugar, não está demonstrado que os rendimentos não entregues ao fiduciário foram essenciais para o sustento do agregado familiar dos insolventes.

Em segundo lugar, uma vez definida pelo tribunal a quantia que o insolvente pode reter, a título do que é razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dele e do seu agregado familiar, é essa quantia e apenas ela que serve de referência ao cálculo do rendimento objecto da cessão e não aquela que o insolvente diz ser necessária para o sustento dele e da sua família.

Em terceiro lugar se, na realidade, depois de fixada tal quantia houver alteração de circunstâncias que tenham relevo para o que é razoavelmente necessário para o sustento digno do devedor, a faculdade que assiste a este é a de requer ao tribunal, com fundamento em tal alteração, a modificação da decisão inicial. O CIRE não consente que, a pretexto de os rendimentos serem necessários para o sustento da sua família, o devedor não os entregue ao fiduciário.

Pelo exposto, improcede a alegação de que os insolventes deviam ser censurados a título de culpa leve por não terem entregado os rendimentos objecto de cessão.

Por último, não vale contra o despacho recorrido a alegação de que o período de cessação do rendimento disponível acabará em 9/06/2022, pelo que eles, insolventes, sempre poderiam até ao fim do período da cessão cumprir com as suas obrigações, já que as suas vidas estão reorganizadas de forma a que possam liquidar o montante em dívida.

Ao alegar neste sentido, os recorrentes argumentam como se resultasse da lei que a obrigação de entrega ao fiduciário da parte dos rendimentos objecto de cessão, a que se refere a alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, não fosse de cumprir pelo devedor logo que recebesse os rendimentos.

Este argumento tem contra si a letra da alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, da qual resulta que, após receber os rendimentos, o devedor tem a obrigação de entregar imediatamente ao fiduciário os que constituem objecto de cessão.

O argumento dos recorrentes tem ainda contra a si a própria hipótese, prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE, combinada com a alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do mesmo diploma, de cessação antecipada do procedimento de exoneração no caso de o devedor não entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão”. Com efeito, se, como alegam os recorrentes, o devedor tivesse a faculdade de entregar os rendimentos objecto da cessão só no final do período de cessão, então não teria sentido a hipótese de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo com fundamento no incumprimento da obrigação a que se refere a alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE.

Em síntese: ao recusar antecipadamente a exoneração do passivo restante, a decisão recorrida não violou o disposto no artigo 243.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CIRE.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de os recorrentes terem ficado vencidos no recurso, cabia aos mesmos suportar as custas do recurso. Visto que os mesmos beneficiam de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, não se condenam os mesmos em custas.

Coimbra, 25-05-2021