Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
144/13.9TAACB.C3
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: INSOLVÊNCIA DOLOSA
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
TIPO OBJECTIVO
ACÇÃO DE FAZER DESAPARECER PARTE DO PATRIMÓNIO
Data do Acordão: 05/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE PORTO DE MÓS)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 227.º DO CP
Sumário: I – O tipo de crime de insolvência dolosa, hoje previsto no artigo 227.º do CP, deixou de exigir que a actuação do devedor seja causa directa e necessária da situação posterior de declaração de insolvência, bastando apenas a ocorrência de uma das actuações descritas no n.º 1 do referido preceito legal, realizada com a intenção de prejudicar os credores.

II – A situação de insolvência, com o respectivo reconhecimento judicial, constitui agora uma condição objectiva de punibilidade.

III – As condutas previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º do CP provocam uma diminuição real do património, isto é, «depreciam realmente o valor do património do devedor.»

IV – O inciso legal «fizer desaparecer» significa, por exemplo, levar todas as suas existências para a fábrica de terceiro, com a intenção de prosseguir, sob outro nome, a actividade.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. A sentença de 07 de Outubro de 2019, proferida no âmbito destes autos condenou o arguido A., da prática do crime de insolvência dolosa prevista e punida pelo artigo 227º, nº 1, alíneas a) e b), do Código Penal, na pena de duzentos dias de multa à taxa diária de sete euros e cinquenta cêntimos, perfazendo a pena de multa o montante de mil e quinhentos euros.

Mais julgou procedentes por provados os seguintes pedidos de indemnização civil deduzidos por:

- (…), condenando o Arguido/Demandado no pagamento de uma indemnização no montante de €19.282,00, a título de danos patrimoniais, acrescendo-lhe os juros legais vencidos e vincendos à taxa de 4% apurados sobre aquela quantia e contados desde a data da notificação (do pedido de indemnização cível) do Arguido/demandado e até efetivo e integral pagamento;

- (…), condenando o Arguido/Demandado no pagamento de uma indemnização no montante de€31.830,00, a título de danos patrimoniais, acrescendo-lhe os juros legais vencidos e vincendos à taxa de 4% apurados sobre aquela quantia e contados desde a data da notificação (do pedido de indemnização cível) do Arguido/demandado e até efetivo e integral pagamento;

- (…), condenando o Arguido/Demandado no pagamento de uma indemnização no montante de €52.136,00, a título de danos patrimoniais, acrescendo-lhe os juros legais vencidos e vincendos à taxa de 4% apurados sobre aquela quantia e contados desde a data da notificação (do pedido de indemnização cível) do Arguido/demandado e até efetivo e integral pagamento;

- (…), condenando o Arguido/Demandado no pagamento de uma indemnização no montante de €18.660,00, a título de danos patrimoniais, acrescendo-lhe os juros legais vencidos e vincendos à taxa de 4% apurados sobre aquela quantia e contados desde a data da notificação (do pedido de indemnização cível) do Arguido/demandado e até efetivo e integral pagamento.

2. Inconformado, o arguido interpõe o presente recurso, formulando as conclusões que a seguir se transcrevem:

1- 1. O arguido não se conforma com a douta sentença, considerando não ter praticado o crime de que vem acusado.

2. A douta sentença está eivada de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto previsto no artº 410º, nº 2, al. a), do CPP, e inviabiliza uma correta decisão da causa, impondo a anulação da decisão recorrida, uma vez que à acusação e ao pedido de indemnização civil foram deduzidas contestações e a sentença posta em crise não dá resposta a qualquer das questões suscitas, tais como quanto à venda de património pessoal ou familiar para pagamento a credores e ainda quanto à contestação do pedido de indemnização civil, quanto à alegada prescrição, e sobre o eventual recebimento por parte dos trabalhadores de quantias do Fundo de Garantia Salarial, deixando de os considerar provados ou não provados.

3. Não ter sido efetuada uma adequada apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, não concordando com o facto de se ter considerado como provado os factos constantes dos pontos 6. 10. 11.15. 22. 23. 24. 28. 32. 36. 40. 42. dos factos provados

4. Quanto ao ponto 6 deverá ser considerado como provado que os bens vendidos a (…) serviram para compensar o crédito que este detinha sobre a insolvente.

5. A prova produzida que impõe tal alteração consiste no relatório junto aos autos a fls…em 12/6/2018, onde se verifica (…) era credor da empresa insolvente, em algumas dezenas de milhares de euros, assim como a fls 5 do mesmo documento o valor da fatura foi utilizado para pagamento da fatura do fornecedor (…),

6. Tal valor já se encontrava na empresa, por empréstimos do credor (…), pelo que era legitimo ao credor (…) ter-se pago pelo menos em parte com os bens que adquiriu, tanto mais que não prejudicou credores uma vez que o valor que emprestou à insolvente em montantes muito superiores ao que compensou, serviu exatamente para pagar a credores

7. Se o dinheiro não tivesse entrado na empresa, não poderia ter ocorrido pagamento de faturas a fornecedores, e no documento pericial consta que aquele saldo contabilístico foi “utilizado no pagamento da mencionada fatura da (…)”.

8. Nem o Ministério Publico nem o Tribunal a quo averiguaram junto dos adquirentes dos bens em causa nos autos e dos credores da insolvente que receberam os seus créditos no período em questão, 2011-2012, a forma de pagamento de bens adquiridos e a forma de pagamento dos saldos devedores da sociedade insolvente,

9. Tal ausência de prova decorre das declarações da inspetora da Policia Judiciária (…) a que a instancias do mandatário do arguido declara no ficheiro de áudio 20190925135432_ 3713641_2871012 de 25/09/2019, ao minuto 15.03 que apenas falaram com os denunciantes.

10. A perita (…) é a própria a declarar que os credores que receberam bens para compensação de créditos não tinham que ser prejudicados, conforme decorre das suas declarações prestadas na sessão de julgamento do dia 27/09/2019 no ficheiro de áudio 20190927090725_3713641_2871012, ao minuto 35.34, a instancias da Mmª Juiz a quo.

11. Quanto ao ponto 10 dos factos dados como provados, não corresponde à verdade que parte do produto da venda reverteu a favor do arguido por subtração ao saldo contabilístico credor que ele mantinha em relação aquela sociedade.

12. No ponto 10 dos factos provados deverá ser considerado como provado que os valores que o arguido recebeu ou foram depositados na sua conta bancária serviram para pagar a credores.

13. Não é verdade que o produto da venda tenha revertido a favor do arguido.

14. A prova do alegado pelo arguido é sustentada pelos relatórios periciais juntos aos autos confirmam que o arguido era detentor de elevado crédito sobre a insolvente, conforme aliás consta do relatório complementar, a fls 9, e explicado pela perita (…), na sessão de julgamento do dia 27/09/2019, a instancias da Mmº Juiz a quo, no ficheiro de áudio 20190927090725_3713641_2871012 ao minuto 6.03.

15. Também o arguido alegou que do que recebeu e ao criar a nova firma andou e anda a pagar aos credores, conforme declara nas suas declarações prestadas a instâncias da Srª Procuradora, registadas no ficheiro de áudio 20190925103238_3713641_2871012, ao minuto 34.49.

16. O arguido procedeu de facto ao pagamento a credores, mas tal facto não foi investigado, e deveria ter sido efetuado.

17. É manifesta a omissão de diligencias probatórias para aferir se e de que forma é que os credores da insolvência foram pagos, e deveriam demonstrar de forma a apurar-se de o arguido ficou com algum valor para si.

18. O facto constante do ponto 11 dos factos considerados como provados, deverá ser considerado como não provado, porquanto aquele veiculo sempre foi propriedade de (…), mulher do arguido, que o comprou e pagou.

19. Não existe prova que contrarie a versão do arguido, que declarou na sessão de julgamento do passado dia 25/09/2019, registadas no ficheiro áudio 20190925091021_3713641_2871012, ao minuto 10.14, a instancias da Mmª Juiz a quo, que tal veiculo é e sempre foi propriedade da mulher do arguido.

20. De tais declarações destaca-se que foi ela que o comprou e pagou, e dos autos não existe prova de que foi a empresa insolvente que pagou o referido veiculo.

21. Quanto ao ponto 15 dos factos provados o arguido considera não ter sido efetuada qualquer prova quanto ao mesmo, pelo que deve ser considerado como não provado, atenta a ausência de prova quanto ao despedimento dos trabalhadores.

22. As declarações do arguido prestadas na sessão de julgamento do passado dia 25/09/2019, registadas no ficheiro áudio 20190925091021_3713641_2871012, ao minuto 11.04, a instancias da Mmª Juiz a quo, contrariam tal versão quando declara que ninguém foi despedido.

23. A perita da policia judiciária, (…), a instancias da Mmª Juiz a quo quanto a este respeito declarou na sessão de julgamento do dia 27/09/2012 registadas no ficheiro de áudio 20190927090725_3713641_2871012, ao minuto 5.05, que não havia esse detalhe na contabilidade da nova empresa.

24. Quanto ao ponto 22 onde foi considerado como provado que a conduta do arguido contribuiu para a insolvência da (…), o mesmo terá de ser considerado como não provado.

25. Resulta da documentação junta aos autos, nomeadamente os relatórios periciais que a insolvente há vários anos que tinha dificuldades financeiras, que não tinha crédito, isto é, estava em falência técnica, conforme já fora decidido anteriormente na sentença revogada,

26. A própria prova testemunhal da acusação assim o indica, como a testemunha (…), a instancias da Srª Procuradora, na audiência de 25/9/2019, declarou o registado no ficheiro áudio 20190925103238_3713641_2871012, ao minuto 3.25 que tinha a perceção que havia muitas dificuldades, e ao minuto 3.42 que se lembra de sempre haver dificuldades, de nunca haver dinheiros, ao minuta 5.33 que a empresa estava muito mal, havia muitas dividas a fornecedores e pura e simplesmente acabou.

27. A conduta do arguido não determinou a insolvência da (…), esta já se encontrava em situação de falência técnica, e laborava com dificuldades constantes.

28. A declaração judicial a insolvência apenas veio confirmar a insolvência técnica que se verificava há vários anos.

29. O próprio arguido declara as dificuldades financeiras da firma insolvente a instâncias da Srª Procuradora, registadas no ficheiro de áudio 20190925103238_3713641_2871012, ao minuto 26.00 concluindo que teve de vender o património da firma para realizar dinheiro para pagar a credores.

30. Uma analise dos valores dos créditos reclamados nos autos de insolvência que de acordo com a douta sentença ascendiam a 571.088,00€ e o valor dos bens vendidos, demonstra a falência técnica da insolvente.

31. Quanto aos pontos 23 e 24, deverão ser considerados como não provados.

32. O arguido não delineou qualquer plano com o intuito de fazer desaparecer, ou dissimular o património da (…).

33. O arguido não teve a intenção de obstar a cobrança de créditos a credores, pois se assim fosse não tinha procedido ao pagamento a vários credores, e da própria sentença decorre que o arguido usou, pelo menos em parte, o produto das vendas para pagar a credores da insolvente.

34. Não conseguiu pagar a todos porque o valor do ativo não foi suficiente para proceder ao pagamento de todos os credores.

35. Não se pode concluir conforme a douta sentença faz que o fez por motivos estratégicos, com vista a continuar a mesma atividade com a empresa (…).

36. A insolvente, não tinha crédito e não tinha meios financeiros para se manter em atividade.

37. As dificuldades financeiras da (…) impediam-na de continuar a laborar, e a forma de proceder a pagamentos a credores, foi o desinvestimento e a exploração de uma outra empresa que permitisse a manutenção de alguns postos de trabalho e a libertação de meios para proceder a pagamentos a credores.

38. A perícia realizada é omissa quanto ao facto se os valores que alegadamente o arguido recebeu foram utilizados ou não para pagar a credores,

39. Nenhum fornecedor ou credor foi notificado em sede de investigação para aferir quando, de que forma e por quem é foram sendo pagos os seus créditos sobre a (…).

40. Não basta extrair-se a conclusão do relatório junto a fls 365-426 dos autos de que “os extratos contabilísticos demonstram que todas aquelas vendas foram registadas nas contas dos clientes correspondentes, e depois liquidadas através da conta C (…), onde entraram em movimentação corrente, não sendo possível identificar destinos individualizados dos mesmos.”.

41. Para acusar e condenar teria que ter sido constatado qual o destino efetivo de tais montantes.

42. Tal omissão de prova determina a insuficiência da prova produzida para a decisão dos factos provados.

43. Quanto aos factos constantes dos pontos nº 28. 32. 36. 40. 42. dos factos provados, deverão ser considerados como não provados, em virtude da insuficiência de prova que consistiu na omissão de prova quanto ao recebimento ou não de valores do FGS.

44. Os pedidos de indemnização nunca poderiam proceder, uma vez que se encontram prescritos, prescrição essa sobre a qual o Tribunal não se pronunciou, e se algum valor houvesse a receber, sempre teria de ter correspondência com a sua proporção no conjunto do passivo da insolvência.

45. O Tribunal não indagou se estes trabalhadores receberam qualquer quantia por parte do Fundo de Garantia Salarial, o que se requereu em sede de contestação.

46. Não sendo legalmente exigíveis juros, conforme peticionados nos pedidos que se contestam, uma vez que estes sempre seriam créditos a graduar no fim de todos os pagamentos efetuados.

47. Para além de uma menos adequada apreciação da prova realizada em sede de audiência de julgamento, verifica-se também uma insuficiência da prova produzida para a decisão dos factos provados e uma inadequada aplicação do direito aos factos considerados provados.

48. Pelo que se assim se não entendesse, e na falta de prova suficiente para a condenação, sempre seria de aplicar o principio in dubio pro reo.

49. Os factos considerados como provados não são de molde a preencher os elementos tipo do crime de que o arguido vem acusado,

50. Da prova produzida não resulta que o arguido tenha destruído qualquer património, não o danificou, não o inutilizou nem fez desaparecer, e nem teve qualquer intenção de prejudicar credores.

51. Decorre da sentença posta em crise que o produto das vendas realizadas serviu para pagar credores.

52. Na fundamentação da douta sentença condenatória, consta que “o Arguido fez desaparecer grande parte do património daquela primeira Empresa”,

53. No entanto servindo a expressão “fazer desaparecer parte do seu património”, para atalhar aos casos em que não se descobre o paradeiro de bens que supostamente se deviam encontrar na titularidade do devedor, atuação do arguido não tem respaldo em tal disposição.

54. A transferência dos bens efetuada encontra-se toda ela devidamente documentada na contabilidade da insolvente,

55. Os adquirentes dos bens encontram-se devidamente identificados.

56. Pelo que se pode concluir que o arguido não fez desaparecer o que quer que fosse.

57. Não se verificando assim preenchidos os requisitos para a prática do crime de insolvência dolosa,

58. As vendas efetuadas serviram para pagamento a credores, uns com pagamentos diretos, outros por compensação de créditos ou de suprimentos.

59. Mesmo que se entenda, o que por mera hipótese académica se admite, que o Arguido se fez pagar do crédito que detinha na empresa insolvente com parte do produto da venda do imobilizado da sociedade, ainda assim é o pagamento a um credor,

60. Pelo que se algum crime se tivesse verificado, o que o arguido não concebe, nunca seria o crime de insolvência dolosa.

61. Pelo se verifica uma manifesta inadequada aplicação do direito aos factos considerados como provados.

62. Por todo o exposto o arguido sempre deveria ter sido absolvido do crime e dos pedidos de indemnização de que vem acusado, absolvição essa que se requer.

63. A douta sentença enferma de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto previsto no artº 410º, nº 2, al. a), do CPP, viola o artigo 127º do Código Processo Penal, o principio in dúbio pro reo, e o artigo 227º, nº1 alínea a) do Código Penal,

64. Pelo que a douta sentença deve ser revogada por acórdão que absolva o arguido».

3. Em resposta ao Recurso, defende a Digna Magistrada do Ministério Público a manutenção da sentença recorrida, no que é secundada no parecer emitido pelo Digno Procurador junto desta Relação.

4.Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, nada obstando ao conhecimento de mérito do Recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A primeira instância proferiu decisão sobre a matéria de facto que a seguir se transcreve:

«Da discussão da causa, e com interesse para a decisão da mesma, resultaram os seguintes factos provados:

1. A empresa (…) era uma sociedade por quotas, constituída em 24 de Julho de 1990, com a sede na Rua (…), desde a constituição até 19.07.2007, depois com sede na (…), na (…) desde 19.07.2007 a 25.11.2011 e, desde então, novamente na (…), cujo objeto era o transportes rodoviários internacionais.

2. A (…) teve, desde a sua constituição, como sócios: o arguido (…) e os respetivos filhos, (…) e (…).

3. A gerência pertencia a todos os sócios, obrigando-se a sociedade com a assinatura de dois deles, um dos quais, necessariamente, o Arguido.

4. Não obstante, a gerência de facto sempre foi levada a cabo pelo Arguido.

5. No decurso dos anos de 2011 e 2012, em datas não concretamente apuradas, a (…), após decisão tomada pelo Arguido, transmitiu parte do seu património, nomeadamente, equipamentos, camiões e galeras a terceiros, nos termos constantes da tabela no artigo 7.º da Acusação Pública, cujo teor se dá aqui se dá por integralmente reproduzido.

6. Os bens vendidos a (…) não chegaram a sair das instalações da (…) e não houve entrada do respetivo dinheiro nesta sociedade.

7. Em 13.07.2011, os sócios (…) e (…) transmitiram as respetivas quotas ao Arguido.

8. Em 06.03.2012, o Arguido adquiriu a totalidade das quotas da empresa de transportes de mercadorias Transportes (…), ficando, desde então, como seu gerente único.

9. Em 06.03.2012, o Arguido alterou a sede da (…) para o mesmo local onde, antes, funcionava a (…), na Avenida (…).

10. No decurso do ano de 2012, o Arguido registou, contabilisticamente, uma eliminação total do património da devinda insolvente (…), tendo parte do produto da venda revertido a favor do Arguido, por subtração ao saldo contabilístico, credor, que ele mantinha em relação àquela Sociedade.

11. A 08.07.2012, o Arguido vendeu uma viatura ligeira de passageiros, da marca e modelo VW a (…), cuja propriedade já se encontrava registada em nome desta desde 22.11.2000 e cujo seguro sempre foi pago pela (…).

12.Em Junho de 2012, o Arguido determinou que a (…), cedesse a sua posição contratual à (…), relativamente ao contrato de locação financeira com o M (…) relativo à viatura Scania (…).

13. Da totalidade dos camiões e semi-reboques acima referidos, pelo menos, dez foram vendidos diretamente da (…) à (…), nomeadamente, as viaturas com as matrículas: (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…) e (…).

14. Outras três viaturas foram transmitidas primeiramente a sócios da (…) e depois vendidos à (…).

15. Alguns dos trabalhadores da (…), sobretudo os de nacionalidade estrangeira, entre 2011 e 2012, foram formalmente despedidos, mas continuaram a exercer as mesmas funções, no mesmo local e sob orientação da mesma pessoa, o Arguido.

16. Passaram a trabalhar para a (…), nos seguintes termos:

a) (…) cessou contrato com a (…)  a 01/09/2012 e iniciou contrato com a (…) a 10/09/2012;

b) (…) cessou contrato com a (…) em data que se desconhece e iniciou contrato com a (…), em 13/06/2013;

c) (…) cessou contrato com a (…) 01/09/2012 e iniciou contrato com a (…) a 10/09/2012;

d) (…) cessou contrato com a (…) a 31/08/2012 e iniciou contrato com a (…) a 10/09/2012;

e) (…) cessou contrato com a (…) a 25/09/2012 e iniciou contrato com a (…) a 26/09/2012;

f) (…) cessou contrato com a (…) a 11/09/2012 e iniciou contrato com a (…) a 14/10/2013;

g) (…) cessou contrato com a (…) a 25/09/2012 e iniciou contrato com a (…) a 26/09/2012;

h) (…) cessou contrato com a (…) a 01/09/2012 e iniciou contrato com a (…) a 10/09/2012.

17. Em 29.08.2012, para pagamento de salários em atraso a (…), trabalhador da (…), o Arguido utilizou um cheque titulado pela (…).

18. Por sentença proferida no âmbito do Processo n.º 1060/12.7TBPMS, do extinto Tribunal Judicial da comarca de Porto de Mós, com data de 02.10.2012 e transitada em julgado em 24.10.2012, foi declarada a insolvência da (…).

19.Em Junho de 2012, a (…) abandonou a atividade por via da completa liquidação dos bens e despedimento dos seus trabalhadores.

20.Como dívidas da insolvente (…) foi reconhecido o montante global de € 571.088,00, valores devidos à Fazenda Nacional, à Segurança Social, à (…), a (…), a (…), a (…), a (…), a (…), à (…), a (…), a (…), à (…), a (…), a (…), a (…), a (…), a (…), a (…), à (…), à (…) , à (…), à (…), à (…), à (…), à (…), à (…) e à (…).

21. A atividade comercial antes exercida pela (…) continuou a ser desenvolvida pela (…), nas mesmas instalações – Avenida (…) –, com alguns dos mesmos veículos pesados de mercadorias, alguns dos mesmos trabalhadores e clientes e com a contabilidade organizada pelo mesmo T.O.C..

22. A conduta do Arguido contribuiu para a insolvência da (…).

23. O Arguido agiu de forma livre e voluntária, em obediência a plano previamente elaborado e no intuito, alcançado, de fazer desaparecer e dissimular o património da (…), e de, desse modo, obstar a que os credores da Sociedade conseguissem obter a cobrança coerciva do seu legítimo crédito à custa dos bens respetivos, o que representou.

24. O Arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

[dos pedido(s) de indemnização civis]

25. O assistente (…) foi admitido como trabalhador da (…) em 1993.

26. O assistente (…) trabalhou por conta da (…) até final de Dezembro de 2011, momento em que foi despedido com fundamento de extinção do posto de trabalho.

27. O assistente (…) auferia €622,00 no momento em que foi despedido.

28. Não foram pagos ao assistente (…) os direitos decorrentes da extinção do posto de trabalho.

29. Ao assistente (…), nos autos de reclamação de créditos por apenso à insolência da (…), foi reconhecido o crédito no total de €19.282,00.

30. O demandante (…) trabalhou por conta da (…) durante 21 anos até Janeiro de 2012, momento em que foi despedido com fundamento de extinção do posto de trabalho.

31. O demandante (…) auferia €620,00 no momento em que foi despedido.

32. Não foram pagos ao demandante (…) os direitos decorrentes da extinção do posto de trabalho.

33. Ao demandante (…), nos autos de reclamação de créditos por apenso à insolência da (…), foi reconhecido o crédito no total de €18.660,00.

34. A demandante (…) trabalhou por conta da (…) desde 1978 até Janeiro de 2012, momento em que foi despedida com fundamento de extinção do posto de trabalho.

35. O demandante (…) auferia €931,00 no momento em que foi despedida.

36. Não foram pagos à demandante (…) os direitos decorrentes da extinção do posto de trabalho.

37. À demandante (…), nos autos de reclamação de créditos por apenso à insolência da (…), foi reconhecido o crédito no total de €52.136,00.

38. A demandante (…) trabalhou por conta da (…) desde 1997 até Janeiro de 2012, momento em que foi despedida com fundamento de extinção do posto de trabalho.

39. A demandante (…) auferia €590,00 no momento em que foi despedida.

40. Não foram pagos à demandante (…) os direitos decorrentes da extinção do posto de trabalho.

41. À demandante (…), nos autos de reclamação de créditos por apenso à insolência da (…), foi reconhecido o crédito no total de €31.830,00.

42. Face à atuação do Arguido/Demandado, os Assistente/Demandantes ficaram impossibilitados de receber as quantias a que têm direito.

[situação pessoal, profissional e económica do Arguido]

43. O Arguido está reformado desde os sessenta e cinco anos de idade, com uma reforma no valor de €291,04.

44. A sua esposa, professora reformada, tem a reforma no valor líquido mensal aproximado de €1.700,00.

45. Do seu casamento, contraído com a idade de vinte e sete anos, nasceu um casal de filhos, com quem mantém um convívio próximo; tem três netos, com idades entre os cinco e os vinte e dois anos de idade.

46. A imagem social do Arguido é positiva.

47. O Arguido não tem hábitos de consumo tóxico ou outro problema que constitua uma necessidade ao nível da sua inserção social.

48. O Arguido não tem antecedentes criminais.


*

(…).

III. APRECIAÇÃO DO RECURSO

1.Insuficiência de para a decisão da matéria de facto provada

A primeira questão suscitada pelo Recorrente é a de saber se a sentença enferma do vicio da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410º nº, 2, alínea a), do Código de Processo Penal, por omissão de matéria alegada nas contestações.

O que, desde logo, nos remete para a discussão da questão de saber a factualidade que, segundo o Recorrente foi sido esquecida pelo Tribunal recorrido, integra causa de nulidade do Acórdão, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal ou insuficiência para a decisão de facto prevista no n.º 2, alínea a), do artigo 410.º, do mesmo diploma.

É fundamental aqui realçar que a nulidade de sentença por omissão de pronúncia reporta-se a questões e não a razões ou argumentos invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista.

É pacífico, também na jurisprudência, que esta nulidade não resulta da omissão de conhecimento de razões, mas sim de questões.

No que toca à insuficiência da decisão sobre a matéria de facto, referida na alínea a), do nº 2, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, como veremos melhor adiante, ocorre quando a factualidade apurada é exígua para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não tenha investigado toda a matéria com interesse para a decisão.

Estamos perante a ausência de factos essenciais para apoiar a decisão de direito e não omissão de pronúncia sobre uma concreta questão.

Quando o tribunal não se pronuncia sobre um facto essencial à determinação das circunstâncias do crime e/ou das que possam excluir ou diminuir a ilicitude ou a culpa do agente, da medida concreta da pena ou medida de segurança, não o julgando provado ou não provado, o vício da sentença não se enquadra, a nosso ver e salvo opinião contrária, na nulidade por omissão de pronúncia a que alude a alínea c), do nº1, do artigo 379.º, do Código de Processo Civil, mas, no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto já referenciada.

«Com efeito, neste caso, não se verifica em rigor uma omissão da especificação dos factos provados e não provados, nem se pode afirmar que o tribunal tenha preterido a tomada de posição sobre questões, ou seja, sobre “temas” ou “problemas”, mas sim sobre factos concretos com relevo para a decisão da causa que constituíam o objecto do processo e lhe cabia apurar» - Acórdão da Relação de Guimarães de 02 de Novembro de 2015.

No caso dos autos, percorrida a sentença sindicada não se vislumbra no texto da decisão, qualquer insuficiência de factos essenciais para a decisão ou omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade.

Com efeito, os factos enumerados como provados e não provados são suficientes para a tomada de decisão, não tendo o tribunal recorrido omitido a versão do arguido que, depois de ponderada, a descredibilizou.

O texto da sentença recorrida realça e aprecia a posição assumida pelo Recorrente nas contestações (fls. 1103) e em audiência, como segue:

«a versão ensaiada pelo arguido não pode ser colhida pelo Tribunal: se, pelo menos em parte, usou o produto das vendas para pagar aos credores da Insolvente, só o fez por motivos estratégicos, na perspectiva e com vista a continuar a exercer a mesma actividade profissional através da (…), não sendo, ainda de desconsiderar que, se estava tão, e/ou somente como tentou fazer crer, preocupado em pagar todos os créditos da Insolvente, não se compreende o motivo de se ter ele próprio feito pagar/compensar pelos valores de que, alegadamente era credor da insolvente, se se assegurar que, antes de mais, e de si próprio, fossem satisfeitos todos os demais créditos. Todo este comportamento por parte do arguido é clara e ostensivamente denunciador do plano que delineou e concretizou para continuar a laborar à frente de uma nova empresa.

De igual forma, consta na mesma sentença a apreciação dos negócios de compra e venda de bens celebrados com o filho do arguido, (…), onde se conclui da prova produzida que:

«Os bens alegadamente vendidos ao filho do arguido, (…), encontravam-se no escritório da insolvente e eram ali usados pelos trabalhadores desta e para o exercício da actividade desta – e não pelo seu filho, para seu interesse pessoal/individual,  como quis fazer crer o arguido - e ali permaneceram a ser usados nas mesmas condições após a alegada venda; e, ainda que afinal permaneceram a conduzir os veículos que os próprios até então conduziam os trabalhadores de nacionalidade ucraniana, vendo a circular, então e ainda hoje, os veículos que eram da Insolvente por conta da nova empresa de que o Arguido se tornou gerente, pelo menos um deles ainda com a inscrição da insolvente».

Por outro lado, são analisados todos os meios de prova produzidos em audiência que, no entender do tribunal afastarem, em absoluto, a versão que o arguido trouxe aos autos, designadamente, quando afirma que não preparou um plano para fazer desaparecer ou dissimular o património da (…).

A notificação aos fornecedores e/ou aos credores referida nas Conclusões nºs 38 e 39 não se mostra essencial à decisão, até porque na sentença recorrida considera-se que alguns deles foram pagos pela insolvente.  

Nenhum facto essencial à decisão ficou por apurar ou indagar, inexistindo qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provado.

E, nem se diga, como faz o Recorrente, que a sentença omitiu os factos alegados nas Contestações.

É que, lida e relidas aquelas peças processuais, facilmente constatamos que nenhum facto material e concreto foi alegado.

A noção de «facto» traduz um acontecimento individualizado da vida, uma situação real que se vivencia e experencia, uma realidade concreta e determinada, que se distingue de considerações genéricas, vagas, conceitos conclusivos ou de direito ou meios de prova, pois a sentença, nos termos do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal só deve narrar ou enumerar factos materiais e concretos, e não já as conclusões ou generalidades.

Ora, no caso dos autos, o Recorrente defendeu-se, por impugnação factualidade constante da acusação (nºs 1 e 2 da contestação) ou dos pedidos cíveis (nºs 1º, 2º, 6º, 8º, 11º, 13º, 16º, 17º  e 18º da respectiva contestação) negando, expressamente, os factos que lhe são imputados.

Para além disso, alude vagamente às razões pelas quais entende que os factos de que é acusado são falsos e os pedidos cíveis contra si deduzidos carecem de fundamento de facto e de direito.

Não elenca o recorrente quais os factos que, em concreto, poderiam demonstrar a seguinte matéria:

- A (…) foi declarada insolvente porque não tinha qualquer viabilidade económica der se manter no mercado;

- A que vendas efectuadas se refere e quais os valores que deram entrada na sociedade;

- Quais os credores que diariamente batiam à porta do arguido criando a necessidade de arranjar liquidez para lhes pagar;

- De que modo é que o arguido tentou evitar a insolvência e não conseguiu;

- Qual o património pessoal disponibilizado pelo arguido para pagar aos credores da (…) e quais foram estes credores;

- Em que circunstâncias é que a empresa (…) desenvolvia a actividade em paralelo com a (…).

-  Quais as diligências que realizou para que os credores recebessem os seus créditos.

- Quais as dividas que pagou com as vendas de bens da sociedade, com património pessoal   e com o património do filho.

Estamos, assim, perante a negação dos factos imputados ao Recorrentes, intercalada com breves e genéricas justificações, sem qualquer contextualização no local, no espaço ou no tempo, que esclarece os acontecimentos reais que o Recorrente tencionava chamar à colação.

Não tendo as contestações narrado qualquer facto, não se vislumbra (nem o recorrente indica) a que factos das contestações se refere, a fls. 1144 e 1145, do Recurso.

É certo que, o Recorrente se defendeu, também em audiência de julgamento, com a versão apresentada nas contestações, mas não é menos certo que, como já se referiu, o tribunal recorrido a ponderou, quando a descredibilizou, pelos motivos que melhor contam na sentença, a fls. 1116 e 1117.

Ou seja, se nenhum facto foi alegado nas contestações do Recorrente, nenhuma referência lhe podia ser feita na sentença.

Por outro lado, a versão que o arguido trouxe aos autos foi devidamente apreciada pelo tribunal, quando fundamentou as razões pelas quais a descredibilizou, inexistindo, assim, qualquer omissão de pronúncia sobre a facticidade alegada nas contestações.

No que respeita à omissão de pronúncia sobre a notificação do Fundo de Garantia Salarial, requerida pelo Recorrente na Contestação pedidos cíveis e que consistia na notificação daquela entidade para confirmar por referência processo de insolvência se pelos demandantes foi recebida qualquer quantia a titulo de créditos salariais, dir-se-á, que não se trata de omissão de diligência essencial determinante da nulidade insanável, enquadrada no citado artigo 410º, do Código de Processo Penal.

Com efeito,

No caso dos autos estaríamos perante uma nulidade de despacho (e não de sentença, que conhece a final do objecto do processo) pois que a omissão se reporta a questão interlocutória, que não põe termo ao processo, tudo conforme o artigo 97º, nº 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal.

O despacho que admitiu as contestações do Recorrente foi proferido em 18 de Dezembro de 2017, não se tendo pronunciado sobre a aludida notificação ao Fundo de Garantia Salarial.

Tal omissão consubstanciaria uma mera irregularidade, sujeita ao regime de arguição previsto no artigo 123º do mesmo Código (cf. Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Volume I, 3ª Edição, 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 628 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 273).

De facto, segundo o princípio da legalidade consagrado no artigo 118.º do Código de Processo Penal, «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei».

Ora, a omissão de pronúncia sobre questão requerida pelo demandado civil não está contemplada no artigo 119º, do Código de Processo Penal, inexistindo qualquer preceito especial a cominar tal omissão com a nulidade insanável.

Como não está contemplada no artigo 120º, nºs 1 e 2, alínea d) do Código de Processo Penal, já que não se trata de uma omissão posterior de diligências que pudesse reportar-se essencial para a descoberta da verdade.

Resta-nos, pois, a irregularidade.

E, para que a irregularidade determine a invalidade do acto a que se refere e os termos subsequentes que possa afectar, deve ser arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto, nos termos do artigo 123.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Vale isto para dizer, como se lê no Acórdão da Relação de Coimbra de 22 de Maio de 2013 (Relatora: Fernanda Ventura, in www.dgsi.pt) que:

«A falta de invocação atempada de qualquer irregularidade como de resto de uma nulidade que não seja absoluta ou insanável, conduz à sua sanação (121.º, 123.º C. P Penal, por interpretação extensiva) – o contrário e a possibilidade de se conhecer a todo o tempo e oficiosamente uma mera irregularidade é, na prática, conferir-lhe o estatuto de uma nulidade insanável. (….)

Esta solução é consentânea com o modo como a lei adjectiva penal estabeleceu o sistema fechado das nulidades insanáveis e dependentes de arguição, configurando as normas relativas a nulidades como normas excepcionais, dado o seu carácter taxativo, e, portanto, insusceptíveis de aplicação analógica (cf. o artigo 11.º do Código Civil) – vide Conde Correia, in Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, Coimbra, 1999, p. 152 e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, 3.ª edição, Lisboa, 2009, p. 298».

No caso concreto, o recorrente, não obstante a notificação do despacho que apreciou a sua contestação cível, e a realização de duas audiências de julgamento, com produção de prova, não arguiu, em primeira instância, a omissão de pronúncia sobre a notificação ao Fundo de Garantia Salarial, encontrando-se, por isso, sanada.

Improcede, assim, esta pretensão do recorrente.

2.Omissão de pronúncia sobre a prescrição do pedido cível.

Ainda sobre a contestação do pedido cível, defende o Recorrente a omissão de pronúncia sobre a prescrição dos pedidos cíveis, invocada, ao abrigo do artigo 337º, do Código de Trabalho.

E, diga-se com razão.

Invocada a prescrição do direito de indemnização civil, o tribunal recorrido tinha o dever de se pronunciar sobre tal excepção peremptória. Não o tendo feito, como lhe competia, cometeu a nulidade por omissão de pronúncia em relação a esta questão, de acordo com o disposto na alínea c), do nº 1, do artigo 379º, do Código de Processo Penal, procedendo, nesta parte a pretensão do Recorrente.

Contendo os autos todos elementos necessários à apreciação da prescrição do direito de indemnização dos demandantes, o vicio da nulidade, por omissão de pronúncia, será sanado nesta instância (até porque apenas afecta o segmento da sentença que diz respeito ao pedido cível), com a prolação da decisão que se segue.

Com interesse para a decisão, foram julgados provados os seguintes factos:

O Assistente (…) trabalhou por conta da (…), até final de Dezembro de 2011, momento em que foi despedido com fundamento na extinção do posto de trabalho.

O demandante (…) trabalhou por conta da (…), até Janeiro de 2012, momento em que foi despedido com fundamento na extinção do posto de trabalho.

A demandante (…) trabalhou por conta da (…), até Janeiro de 2012, momento em que foi despedida com fundamento na extinção do posto de trabalho.

A demandante (…) trabalhou por conta da (…), até Janeiro de 2012, momento em que foi despedida com fundamento na extinção do posto de trabalho.

Nenhum destes demandantes recebeu as quantias devidas pela extinção do posto de trabalho.

Por sentença proferida no âmbito do processo nº 1060/12.7TBMS, datada de 2 de Outubro de 2012 e transitada em julgado em 24 de Outubro de 2012, foi declarada a insolvência da (…).

Nos autos de reclamação de créditos que correram termos por apenso ao processo de insolvência, foi reconhecido o crédito de 19 282,00€ ao assistente (…);

Nos autos de reclamação de créditos que correram termos por apenso ao processo de insolvência, foi reconhecido o crédito de 18 660,00€ ao demandante (…);

Nos autos de reclamação de créditos que correram termos por apenso ao processo de insolvência, foi reconhecido o crédito de 52 136,00€ à demandante (…);

Nos autos de reclamação de créditos que correram termos por apenso ao processo de insolvência, foi reconhecido o crédito de 31 830,00€ à demandante (…).

Os demandantes não receberam nenhuma destas quantias devido ao comportamento do arguido/demandado.

Dito isto, vejamos se o direito à indemnização dos demandantes se encontra prescrito, nos termos peticionados pelo Recorrente.

Dispõe o artigo 337º, nº 1, do Código de Trabalho:

«O crédito de empregador ou de trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho».

Esta é a regra geral da prescrição para os contratos de trabalho. Todos os créditos que dele resultem, bem como da sua violação ou cessação extinguem-se, por prescrição, se não forem reclamados no prazo de um ano contado a partir do dia seguinte àquele em que cessou o vínculo contratual.

Sucede que, no caso concreto, o direito à indemnização peticionado pelos demandantes contra o demandado emerge do crime imputado ao arguido e não de um contrato de trabalho.

A fonte dos créditos reclamados nesta acção é a conduta ilícita do arguido, que o torna civilmente responsável perante os demandantes, ao abrigo do disposto no artigo 483º, do Código Civil, e não a violação dos deveres inerentes à relação laboral decorrentes do contrato de trabalho celebrado entre demandantes e a (…).

Não podemos olvidar a diferença entre responsabilidade por facto ilícito (extra contratual ou aquiliana) e a responsabilidade civil contratual, como é o caso do contrato de trabalho, cujos regimes jurídicos prescrição são diferentes.

A prescrição do direito à indemnização por factos ilícitos vem regulada no artigo 498º. Código Civil, estatuindo, no seu nº1:

O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.

Todavia, de acordo com o nº 3 do mesmo preceito e diploma, se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável, situação que ocorre no caso dos autos. O demandado foi constituído arguido e acusado pela prática do crime de insolvência dolosa previsto e punido no artigo 227º, nº1, do Código Penal.

Donde, o regime da prescrição do direito de indemnização dos demandantes sobre o demandado é o que consta nos artigos 118º a 121º do Código Penal, não havendo que chamar à colação o artigo 337º, do Código de Trabalho, como defende o Recorrente.

Mas ainda que se entenda que o regime da prescrição aplicável ao caso é o previsto no citado artigo 337º, do Código de Trabalho, há que considerar a imputação ao Recorrente da prática de um crime de insolvência dolosa, estendendo o prazo de prescrição 3 para 5 anos [cf. artigos 118º, nº 1, alínea c) e 227º, nº 1, alínea a), do Código Penal], sem prejuízo das regras de suspensão e interrupção (vide artigos 120º e 121º, do Código Penal), tempo que ainda não decorreu.

Tudo para concluir que os créditos reclamados pelos demandantes ainda não se encontram prescritos.

3. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Impugna o Recorrente os factos provados sob os números 6, 10, 11, 15, 22, 23, 14, 28, 32, 36, 40 e 42, que apreciaremos de seguida.
3.1.Facto nº 6: Os bens vendidos a (…) e (…) não chegaram a sair das instalações da (…). E não houve entrada do respectivo dinheiro nesta sociedade.
Como meios de prova a determinar se julgue este facto como não provado, indica o Recorrente, o relatório junto aos autos em 12 de Junho de 2018, onde consta que (…) era credor da empresa insolvente, em algumas dezenas de milhares de euros e que o valor da factura foi utilizado para pagamento do fornecedor da (…).
Reanalisados estes meios de prova, reiteramos a posição assumida pela primeira instância.
Com efeito, ressalta de fls. 36, datada de 4 de Julho de 2011, que a (…), vendeu a (…), os bens nela descritos, pelo preço de 3 075,00€, sem qualquer alusão a uma possível compensação de créditos do comprador sobre a vendedora.
Também o relatório complementar datado de 11 de Junho de 2018 dá nota que não foi localizada qualquer evidência do pagamento do preço dos bens à insolvente, que registado, como entrada, foi acrescido ao saldo daquela até ser contabilisticamente utilizado no pagamento da mencionada factura da (…).
Por outro lado, as declarações do assistente e demandantes confirmaram que os bens referidos naquela factura não ficaram na posse de (…), antes continuaram no escritório da insolvente, sendo ali usados pelos trabalhadores desta para o exercício da sua actividade, tudo ocorrendo como se a referida venda não tivesse existido.
Já (…), inspectora chefe da polícia judiciária não teve dúvidas em afirmar que “houve uma preparação” para a transferência de património, tratando-se, aqui, de uma “situação típica de continuação com outra empresa”.
A análise destes meios de prova, conjugados com a demais produzida em audiência e bem evidenciada na sentença recorrida, segundo as regras do normal acontecer, aponta, indubitavelmente, para se concluir que o preço dos bens vendidos ao filho do arguido não entrou efectivamente na empresa, independentemente da sua referência contabilística.
O pagamento foi registado na Contabilidade como entrada, acrescendo ao saldo tal valor até ser usado no pagamento à (…), gerando uma menos valia contabilística no valor equivalente ao preço dos bens.
Estando em causa a entrada efectiva nos cofres da sociedade o preço dos bens adquiridos por (…), não indicou o arguido prova que justificasse se tivesse por não provado o facto nº 6.
E se o filho do arguido era credor da empresa, o valor do preço deveria constar na contabilidade como abate no crédito e não como entrada efectiva de dinheiro, que, obviamente não entrou, como até é reconhecido pelo recorrente nas suas alegações, quando chama à colação a compensação de créditos.
Reitere-se que o próprio Recorrente aceita que não houve qualquer entrega do preço dos bens, até porque sendo o filho credor da empresa, sempre poderia ser pago, pelo menos em parte com os bens que adquiriu.
Em suma, os meios de prova indicados pelo Recorrente não colocam em crise a convicção formada pela primeira instância, quando decidiu, julgar provado que o peço dos bens vendidos a (…) não deu entrada efectiva nos cofres da sociedade.
Mantém-se, pois este facto como provado.

3.2. Facto nº 10: parte do produto da venda reverteu a favor do arguido por subtracção ao saldo contabilístico credor que ele mantinha com a sociedade
Como meio de prova indica parte das declarações da Senhora perita (…), prestadas em audiência, a saber:
«… em 2011 houve vendas, de imobilizado que foram entrando na conta da (…), depois há uma factura que é a 153 de Agosto 2011 em que o cheque de pagamento já é depositado na conta do Sr (…), e em 2012 a maioria dos bens que foram vendidos, o detalhe, os valores concretos estão no relatório complementar, as formas de pagamento utilizadas pelas pessoas que os compraram como Srª (…), que já foram entrando sempre na conta do sócio (…) e depois foram contabilisticamente lançados como pagamento de suprimentos pelo valor que existia em suprimentos a favor desse sócio que tinha sido, era o resultado do valor , o valor que estava nessa conta de suprimentos era o resultado da aglutinação da conta de todos os sócios que inicialmente, como diz na página 9 do relatório complementar, existiam inicialmente três contas de sócios, de suprimentos, empréstimos ou pagamentos dos sócios feitos em nome da (…) que era uma em nome do Sr (…), outra em nome do Sr (…) e outra da Srª (…). E depois estes valores foram todos em 2011, houve entradas e saídas e depois acabaram por ficar todos aglutinados na mesma conta, só do Sr (…). E portanto, em virtude de ter este saldo a seu favor, foram lançados, foi recebendo estes valores da venda do imobilizado e descontado nesses valores que teria a receber da (…), embora teria os teria a receber muito mais tarde, quando todos os outros credores estivesses liquidados».
Estas declarações, ao contrário do que pretende o arguido, apenas confirmam que parte do produto da venda dos bens da (…) reverteu a favor do arguido, por subtracção ao saldo contabilístico credor que ele mantinha em relação à sociedade.
Tal facto encontra-se devidamente explicado pela Senhora Perita, quando em relação a esta matéria, diz:
Vendido o património da empresa, esta deixa de poder exercer a actividade, sendo que parte do produto da venda não foi usado para pagar as dividas ao Estado, trabalhadores, etc, mas para dividas do sócio.
Ou seja, mesmo que se aceite que a empresa pagou a alguns credores, ainda assim, veio a constatar-se que parte do produto da venda do património da (…) reverteu a favor do arguido por subtracção ao saldo contabilístico credor que ele mantinha em relação àquela sociedade.
Diante destas declarações e demais meios de prova, bem andou o tribunal a quo em julgar provado o facto nº 10.

 3.3. Facto nº 11: Em 8 de Julho de 2012 o arguido vendeu a viatura ligeira de passageiros, da marca e modelo VW a (…), cuja propriedade já se encontrava registada em nome desta, deste 22 de Novembro de 2011, e cujo seguro foi sempre pago pela (…).
 Defende o arguido que o veiculo foi sempre da propriedade da sua mulher, (…), que o comprou e pagou, tendo ficado no nome da empresa apenas por razões contabilísticas.
Como meio de prova indica as suas declarações prestadas em audiência, na parte em que refere que foi a sua mulher quem pagou o veículo.
Ora, se bem lemos o facto impugnado, em momento algum se refere que o veículo foi adquirido pela empresa ou por (…).
A matéria que se conseguiu apurar respeita a uma viatura de marca Volkswagen registada em nome de (…), desde 22 de Novembro de 2011, cujo seguro foi sempre pago pela (…) (fls. 131 e 133, do apenso II).
Em 8 de Julho de 2012, tal viatura foi vendida pela insolvente (…), pelo valor de 500€, como atesta a factura nº 920.
Diante da documentação existente nos autos, inexiste qualquer fundamento para modificar o facto nº 11, mantendo-se, consequentemente como provado.

3.4. Facto nº 15: Alguns dos trabalhadores da (…), sobretudo de nacionalidade estrangeira, entre 2011 e 2012, foram formalmente despedidos, mas continuam a exercer as mesmas funções, no mesmo local e sob orientação da mesma pessoa, o arguido.
Defende o Recorrente que nenhuma prova foi feita deste facto.
Sem razão, porém.
Nos quadros de pessoal de fls. 325 a 329, constam as seguintes menções:
(…) trabalhou na (…), entre 14 de Dezembro de 2010 até 1 de Setembro de 2012, data em que cessou o contrato por extinção do posto de trabalho. Em 10 de Setembro de 2012, inicia funções na empresa (…).
 (…) desempenhou funções naquela empresa entre 8 de Novembro de 2009 até 1 de Setembro de 2012, data em que cessou o contrato por extinção do posto de trabalho. Em 10 de Setembro de 2012, inicia funções na empresa (…).
(…) desempenhou funções naquela empresa entre 3 de Novembro de 2008 até 31 de Agosto de 2012. Em 10 de Setembro de 2012, inicia funções na empresa (…).
(…) desempenhou funções na (…), entre 1 de Julho de 2008 até 25 de Setembro de 2012, data em que cessou o contrato por extinção do posto de trabalho. No dia seguinte – 26 de Setembro de 2012 – inicia funções na empresa (…).
(…) desempenhou funções na (…), entre 1 de Setembro de 2002 até 25 de Setembro de 2012, data em que cessou o contrato por extinção do posto de trabalho. No dia seguinte – 26 de Setembro de 2012 – inicia funções na empresa (…).
(…) iniciou funções na (…) em 19 de Julho de 2011, passando a figurar como trabalhador da empresa (…), entre 13 de Junho de 2013 a 21 de Junho de 2013.
(…) desempenhou funções na (…), entre 1 de Fevereiro de 1996 até 1 de Setembro de 2012, data em que cessou o contrato de trabalho. Em 10 de Setembro de 2012, inicia funções na empresa (…).
Todos estes trabalhadores, na sua maioria estrangeiros, viram cessar o contrato de trabalho celebrado com a (…), por extinção do posto de trabalho, iniciando, de seguida, funções na (…), cujas quotas foram adquiridas pelo arguido, em 6 de Março de 2012, ficando, então como seu gerente único.
Além de que, segundo as declarações dos demandantes, os trabalhadores de nacionalidade ucraniana da (…) conduzem, agora, os veículos que eles próprios conduziam, antes de serem despedidos.
Acresce, ainda, o testemunho de (…), Técnico Oficial de Consta, desde há muitos anos da insolvente, a confirmar claramente que quase todos os trabalhadores passaram para a nova empresa.
Este o conjunto probatório que contraria a argumentação do Recorrente, quando defende a inexistência de qualquer meio de prova do facto provado sob o nº 15.
Improcede, assim, a impugnação desta factualidade.

3.5. Facto nº 22: A conduta do arguido contribuiu para a insolvência da (…).
Advoga o Recorrente que não tendo sido a venda do património para pagamento de credores causa da insolvência da empresa, deve julgar-se como não provado o facto nº 22.
Contudo, os meios de prova que indica – as suas declarações e as da testemunha A (…) -  são manifestamente insuficientes para abalar o juízo critico e a convicção do tribunal recorrido.
É que toda a prova documental, pericial e pessoal devidamente esmiuçada pela primeira instância demonstram que o Recorrente, com a sua conduta, contribuiu para a insolvência da empresa, não obstante as dificuldades económicas existentes antes de 2011.

Nesse mesmo sentido e mais explicitamente se pronunciou a Senhora Perita, (…), quando explicou, que a situação financeira (…) se agravou por duas vias. A primeira porque se viu desapossada de todo o seu património, ficando, por isso, impossibilitada de exercer a sua actividade. A segunda porque parte do produto da venda do património não se destinou ao pagamento de credores, como o Estado e os trabalhadores, tendo sido usado para as dividas dos sócios.

Também a Sr.a Inspectora da PJ, (…), assertiva no relato das diligências que realizou no âmbito da investigação, reforçou a ideia que houve uma preparação para a transferência do património, tratando-se aqui, de uma situação típica de continuação com outra empresa.

O mesmo resulta do depoimento do Técnico Oficial de Contas, (…), quando afirma que continuou a prestar a sua actividade, nas mesmas instalações e com as mesmas matérias da insolvente.

Tudo a convencer-nos, como convenceu o Tribunal recorrido, que o arguido procedeu à transferência da atividade da (…) para a (…), contribuindo, assim, para a insolvência da primeira.

Ademais, mesmo que se considerem as dificuldades económicas financeiras existentes nos anos de 2010-2011, ainda assim, a venda dos seus bens e o despedimento e/ou transferência de todos os seus trabalhadores, impediu-a de continuar a laborar e manter a sua actividade, sendo, por isso, seguro afirmar, que aquela conduta do Arguido contribuiu para a sua (declaração de) insolvência.

Mantém-se, pois, provado o facto nº 22.

3.6. Factos nºs 23 e 24.
Em relação a esta factualidade, limita-se o Recorrente a afirmar que é manifesto que não delineou qualquer plano no intuito de fazer desaparecer ou dissimular o património da (…), não tendo nunca tido a intenção de obstar a cobrança der créditos que alguns credores ainda detinham.
Ora, como salienta a sentença recorrida, sendo o arguido o efectivo gerente da sociedade insolvente, necessariamente conhecia da situação económica da Empresa e, nesse quadro, da (in) existência e montante das respetivas dívidas, outrossim, e designadamente, conhecia, vivenciou e, mais, protagonizou a venda de todos os seus bens e o despedimento, o material do Assistente e dos Demandante, e o meramente formal de tantos outros trabalhadores, seguido da transferência para a nova Empresa, cuja totalidade das quotas adquiriu e cuja gerência assumiu. Neste conspecto, os atos levados a cabo pelo Arguido apresentam-se, pelo que em si mesmo significaram e/ou importaram e pela sua oportuna – que, por apelo àquilo que é o normal acontecer, não se pode ter como meramente coincidente – sequência e localização temporal (com relação, também, à declaração de insolvência), denunciadores, além de concretizadores, da motivação do Arguido, que, nesta sequência – assim se depreende –, foi de operar a transferência de património e atividade da (…) para a (…), e, por conseguinte, evitar a satisfação dos créditos dos Credores da Primeira, desde logo dos Assistente e Demandantes, e não só, se tivermos presentes os demais créditos reconhecidos nos autos de insolvência.

Por todo o exposto, a versão ensaiada pelo Arguido não pode ser acolhida pelo Tribunal: se, pelo menos em parte, usou do produto das vendas para pagar a credores da Insolvente, só o fez por motivos estratégicos, na perspetiva e com vista a continuar a exercer a mesma atividade profissional através da (…), não sendo, ainda, de desconsiderar que, se estava tão, e/ou somente como tentou fazer crer, preocupado em pagar todos os créditos da Insolvente, não se compreende o motivo de se ter ele próprio feito pagar/compensar pelos valores de que, alegadamente, era credor da Insolvente, se se assegurar que, antes de mais e de si próprio, fossem satisfeitos todos os demais créditos. Todo este comportamento por parte do Arguido é clara e ostensivamente denunciador do plano que delineou e concretizou para continuar a laborar à frente de uma nova Empresa.

Estes os motivos que justificam se mantenham como provados os factos nºs 23 e 24.

3.7. Factos nºs 28, 32, 36, 40 e 42
Segundo o Recorrente esta factualidade deve ser julgada não provada, na medida em que a prova é insuficiente, por ausência de informação quanto ao recebimento ou não dos valores por parte do Fundo de Garantia Salarial.
Mas, também, aqui sem razão.
Na verdade, tais factos foram julgados provados com base na lista de créditos apresentada pelo Administrador da Insolvência e, ainda na sentença proferida nos autos de reclamação de créditos, conjugados com as declarações prestadas pelos demandantes e, mais ainda atento o facto decorrente do encerramento do processo de insolvência e confirmado em audiência que os demandantes jamais receberam os direitos que lhes assistia na sequência do seu despedimento por força da extinção do posto de trabalho, nem do próprio arguido, nem no âmbito da insolvência.
Sem razão, pois, a critica apontada pelo Recorrente à sentença recorrida.

3.8. Violação do principio in dubio pro reo
Ainda, no que toca à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Recorrente convoca a violação do principio in dubio pro reo.

Mas, também, aqui, sem razão.

Com efeito, a violação do princípio in dubio pro reo, «só se verifica quando, seguindo o processo decisório, se chega à conclusão que o tribunal, tendo ficado na dúvida, decidiu contra o arguido ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis» - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2012, www.dgsi.pt.

Na sentença sob recurso e nesta instância, não se evidencia que, no final do julgamento, o tribunal se tenha debatido com qualquer dúvida - razoável e/ou insanável - e que perante ela tenha decidido em desfavor do arguido ou, muito menos, que, perante a prova que foi produzida e examinada, essa dúvida devesse ter subsistido.

Desta feita e perante a inexistência dessa dúvida razoável, não faz sentido apelar à aplicação do princípio in dubio pro reo, improcedendo, assim, esta pretensão do recorrente.
Esta interpretação não viola qualquer norma de direito constitucional, designadamente, a do artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa

3.9. Conclusão
De tudo resulta a improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se, na íntegra, a decisão da primeira instância.

4. Subsunção dos factos ao direito

Em causa está, assim, a interpretação do artigo 227º, n.º 1, do Código Penal, na redacção vigente à prática dos factos, onde se lê:

«O devedor que com intenção de prejudicar os credores:

a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património;

b) \Diminuir ficticiamente o seu activo, dissimulando coisas, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida;

c) Criar ou agravar artificialmente prejuízos ou reduzir lucros, ou

d) Para retardar falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente;

é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias».

As sucessivas alterações legislativas deste preceito vieram reforçar a ideia de que a incriminação da insolvência dolosa deixou de exigir na tipicidade que a actuação do devedor seja causa directa e necessária da situação e posterior declaração de insolvência, bastando apenas que se mostre preenchido o tipo de ilícito que se verifique uma das actuações descritas no nº 1 do preceito em análise, realizadas com intenção de prejudicar os credores.

A este propósito, escreve Luís Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, pág.s 343/344:

«No âmbito da redacção anterior, exigia-se que a falência que viesse a ser declarada em consequência da prática dos referidos factos, o que implicava a exigência de uma relação de causalidade entre os referidos comportamentos e a declaração da falência. Actualmente, no entanto, deixou de se exigir essa relação, exigindo-se apenas que ocorra a situação de insolvência e esta venha a ser judicialmente reconhecida (…). Estamos assim perante meras condições objectivas de punibilidade do agente, o que implica que hoje, os crimes insolvenciais tenham que ser qualificados como crimes de perigo abstrato, cuja ilicitude corresponderia aos comportamentos previstos no tipo respectivo e cuja punibilidade seria limitada de duas condições objectivas: a ocorrência da insolvência e o respectivo reconhecimento judicial. Estas condições de punibilidade teriam como função a confirmação da perigosidade típica dos comportamentos incriminados nas várias alíneas, e daí a exigência para que o agente possa ser sancionado».  

Nesta senda, são elementos do tipo: o elemento material concretizado na acção típica descrita nas várias alíneas do nº, 1, do preceito em análise – reconduzidas por Pedro Caeiro (Comentário Conimbricense, parte especial, tomo II, pág. 412 e 413), a cinco grupos: a) as condutas que provocam diminuição real do património; b) condutas que provocam uma diminuição fictícia do património liquido; c) condutas que visam ocultar uma situação de crise conhecida do devedor; d) a não justificação da aplicação regular dos valores pelo devedor concordatário; e e) a prática de uma das condutas referidas por parte de um terceiro, como o conhecimento do devedor ou em seu beneficio – e o elemento subjectivo mediatizado na intenção, por parte do sujeito activo, de prejudicar os credores.

E condição objectiva de punibilidade, a situação de insolvência com o respectivo reconhecimento judicial.
Defende o Recorrente que, os factos provados não integram nenhuma das acções materiais previstas na alínea a), do nº 1, do artigo 227º, do Código Penal, em especial, o desaparecimento de parte do património, na medida em que é conhecido o paradeiro dos bens vendidos pela insolvente, através das vendas devidamente documentadas e registadas na contabilidade.
Com o devido respeito pela posição do Recorrente, entendemos que não lhe assiste razão.

Decorre dos factos provados, que o arguido agiu, em obediência a um plano previamente elaborado e no intuito, alcançado, de fazer desaparecer e dissimular o património da (…), obstando desse modo a que os credores da Sociedade conseguissem obter a cobrança coerciva do seu legítimo crédito à custa dos bens da insolvente.

Na concretização de tal propósito, o arguido, no decurso dos anos de 2011 e 2012, transmitiu para terceiros parte do património da (…), nomeadamente, equipamentos, camiões e galeras a terceiros, nas condições descritas na tabela constante do artigo 7.º da Acusação Pública.

O preço dos bens vendidos a (…) não deu entrada nos cofres da (…).

O arguido preparou e conseguiu a transferência de parte do património e dos trabalhadores da insolvente para a empresa de transportes de mercadorias (…).

Em 06.03.2012, o Arguido adquiriu a totalidade das quotas desta empresa de Transportes, ficando, desde então, como seu gerente único.

No mesmo dia - 06.03.2012 -  o Arguido alterou a sede da Transportes (…) para o mesmo local onde, antes, funcionava a (…), na Avenida (…).

Durante o ano de 2012, o Arguido registou, contabilisticamente, uma eliminação total do património da devinda insolvente (…), tendo parte do produto da venda revertido a favor do Arguido, por subtração ao saldo contabilístico, credor, que ele mantinha em relação àquela Sociedade.

Em 08.07.2012, o Arguido vendeu uma viatura ligeira de passageiros, da marca e modelo VW a (…), cuja propriedade já se encontrava registada em nome desta desde 22.11.2000 e cujo seguro sempre foi pago pela (…).

Em Junho de 2012, o Arguido determinou que a (…), cedesse a sua posição contratual à (…), relativamente ao contrato de locação financeira com o M(…) relativo à viatura Scania (…).

Da totalidade dos camiões e semi-reboques acima referidos, pelo menos, dez foram vendidos diretamente da (…) à (…), nomeadamente, as viaturas com as matrículas: (…).

Outras três viaturas foram transmitidas primeiramente a sócios da (…) e depois vendidos à (…).

Alguns dos trabalhadores da (…), sobretudo os de nacionalidade estrangeira, entre 2011 e 2012, foram formalmente despedidos, mas continuaram a exercer as mesmas funções, no mesmo local e sob orientação da mesma pessoa, o Arguido.

Em 29.08.2012, para pagamento de salários em atraso a (…), trabalhador da (…), o Arguido utilizou um cheque titulado pela (…).

Em Junho de 2012, a (…) abandonou a atividade por via da completa liquidação dos bens e despedimento dos seus trabalhadores.

A atividade comercial antes exercida pela (…) continuou a ser desenvolvida pela (…), nas mesmas instalações – Avenida (…) –, com alguns dos mesmos veículos pesados de mercadorias, alguns dos mesmos trabalhadores e clientes e com a contabilidade organizada pelo mesmo T.O.C..

            Neste contexto factual, podemos concluir que todos os actos praticados pelo arguido constituem actos de dissipação do património da insolvente, na medida em que, alienou todo o património da (…), provocando o encerramento da actividade da empresa e respectiva liquidação.

As condutas descritas na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º podem ser caracterizadas como aquelas que provocam uma diminuição real do património, isto é, correspondem à actuação do devedor que «deprecia realmente o valor do seu património».

No que respeita ao acto material do devedor fazer desparecer, com o devido respeito que nos merece a posição contrária, acolhemos a posição assumida na sentença, na esteira do defendido por Leal Henriques e Manuel Simas Santos (Código Penal Anotado, 2º Vol. Parte Especial, 3ª edição, Editora Rei dos Livros, Lisboa, página 967), em que fazer desaparecer significa, por exemplo, que o arguido «levou todas as suas existências para a fábrica do outro arguido» com a intenção de «prosseguir a actividade (…) sob outro nome (…) dissipando o seu património».

No caso vertente, o esvaziamento de todo o património da (…), nos termos que constam nos factos provados acima transcritos, constitui um verdadeiro acto de dissipação, diminuição real (e não meramente fictícia) do património da devedora, pois transferiu os instrumentos de trabalho e a actividade da insolvente para a (…), fazendo, assim, desaparecer grande parte do património daquela primeira Empresa.

Por outro lado, como se lê na sentença recorrida, o arguido movido, para e nessa atuação, pela «intenção de» desprover a «(…) de bens que pudessem responder pelo seu passivo e, dessa forma, de «prejudicar os seus credores» nos termos provados, conduta a que sobreveio a «situação de insolvência» da (…), que foi reconhecida judicialmente.

A tudo acresce a circunstância do Recorrente, durante o ano de 2012, registar, contabilisticamente, uma eliminação total do património da devinda insolvente (…), fazendo reverter a seu favor parte do produto da venda de bens, por subtração ao saldo contabilístico, credor, que ele mantinha em relação àquela Sociedade.

Do que precede, concluímos que a facticidade provada integra os elementos objectivos e subjectivos do crime de insolvência dolosa previsto e punido pelo artigo 227º, nº1, alínea a), do Código Penal, não assistindo razão ao Recorrente.

5. Do pedido Cível

Sem indicar qualquer fundamento legal, afirma, genericamente, o Recorrente que os pedidos cíveis e os juros de mora não poderiam proceder.

Ora, resulta dos factos provados que a conduta criminosa do Recorrente causou aos demandantes os danos patrimoniais peticionados, ficando, por isso, obrigado a indemniza-los, nos termos do artigo 483º, do Código Civil.

Nesta relação jurídica, inexiste fundamento legal (aliás não indicado pelo Recorrente) para excluir qualquer montante aos valores indemnizatórios a fixados, pois, como acima se disse, não está aqui em causa a relação laboral entre a (…) e os demandantes, mas os danos causados pela conduta tipicamente ilícita do próprio Recorrente.

Como os danos foram reclamados neste processo crime e não foram pagos pelo demandado, fazem-no incorrer em mora, desde a data em que foi notificado para se pronunciar sobre os pedidos cíveis formulados, havendo, por isso, lugar a juros, nos termos decididos pela primeira instância.

Improcede, pois, também, esta pretensão do Recorrente.

IV. DECISÃO

Nestes termos, os Juízes, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, acordam julgar não provido o Recurso.

Notifique.

Coimbra, 27 de Maio de 2020

Alcina da Costa Ribeiro (relatora)

Ana Carolina Cardoso (adjunta)