Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | ALBERTO MIRA | ||
| Descritores: | ASSISTENTE LEGITIMIDADE PARA RECORRER SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA | ||
| Data do Acordão: | 12/12/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | S. PEDRO DO SUL | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 205 CP 99º, 1,2 C) .401,B) CPP , 201º, 205º CC | ||
| Sumário: | 1-O assistente não dispõe de legitimidade para recorrer da matéria penal debatendo-se pela agravação da pena de prisão fixada em 1.ª instância mas já dispõe de legitimidade quando pugna pela suspensão da execução da mesma, sujeita esta à condição de a arguida, em determinado prazo, devolver certa quantia em dinheiro. 2- Verifica-se a inversão do título de posse sobre o dinheiro da herança quando o mesmo é utilizado em proveito próprio, porque usado fora da finalidade que motivou a sua entrega, aliado ao facto de não ter restituído o dinheiro. 3- O objecto da acção praticada pela arguida é a quantia em dinheiro e não qualquer direito ou crédito | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: I. Relatório: 1. No Tribunal Judicial da Comarca de São Pedro do Sul, foi submetida a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, a arguida: -A..., casada, auxiliar de cozinha, nascida no dia 17 de Agosto de 1961, filha de B..., natural do Brasil, residente no Lugar de Quintela, em Várzea, S. Pedro do Sul; sob imputação, na pronúncia de fls. 619/620, da prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança, previsto e punível pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), por referência à alínea b) do artigo 202.º, ambos do Código Penal. * 2. A assistente C..., D.., E..., F..., G..., deduziram pedido de indemnização civil contra a arguidaA..., no qual peticionaram a condenação desta na devolução, à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C.., da importância global, incluindo juros vencidos, de 242.618,06 euros, acrescida de juros vincendos.* 1. Julgou a acusação procedente e, em conformidade: A) Condenou a arguidaA..., como autora material de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), por referência ao disposto no artigo 202.º, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; B) Suspendeu a execução da referida pena de prisão pelo período de 2 (dois) anos; C) Julgou os demandantes parte ilegítima, relativamente ao pedido civil pelos mesmos formulado no âmbito destes autos e, em consequência, absolveu a arguida/demandada da respectiva instância. * 4. Inconformados, a arguida e a assistente C... interpuseram recurso da sentença, formulando nas respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões:4.1. Arguida: «1.ª - A arguida, nas suas declarações, afirmou que tem o dinheiro em seu poder e que o devolverá, no momento próprio, a ter lugar nos autos de inventário 14/98 que se encontram pendentes, logo que lhe seja exigido ou determinado. 2.ª - Não podia o tribunal dar como provado, como consta do ponto 16, in fine, dos factos provados na sentença, que a arguida fez seus mais de 160.000,00 € já que se trata de uma conclusão a retirar de factos que não foram dados como provados, nomeadamente, que foi pedida a devolução ou entrega daquela quantia e ela recusou-se. 3.ª - O tribunal devia dar como provado o facto constante da 1.ª conclusão, donde concluiria que a arguida não teve, nem tem, intenção de se apropriar daquela quantia. 4.ª - Para que se verifiquem todos os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança é necessário que a arguida se tenha apropriado de coisa móvel; que a coisa móvel seja alheia ao domínio e posse da arguida; que tenha havido inversão do título de posse sobre a coisa móvel. 5.ª - Dos factos dados como provados resulta que o dinheiro entregue à arguida pertence à herança ilíquida e indivisa por óbito da sua mãe, isto é faz parte de uma universalidade de direitos, de cujo titular também ela faz parte. 6.ª - Logo, tal dinheiro não é uma coisa alheia em relação à pessoa da arguida e os demais herdeiros, tal como ela, apenas são titulares de um direito ao quinhão hereditário da herança e, concomitantemente, um direito sobre a quantia em dinheiro. 7.ª - No crime de abuso de confiança o objecto do crime é a coisa móvel alheia e não direitos de que a arguida também é titular. 8.ª - Para que se pudesse falar em inversão do título de posse sobre o dinheiro, para daí concluir pela intenção da arguida em subtraí-lo aos demais herdeiros, era necessário que a detentora tivesse deduzido oposição contra aqueles em nome dos quais estava a possuí-la, isto é, era necessário que fosse dado como provado que a arguida, quando lhe foi exigido o dinheiro pelos demais herdeiros, se recusou a entregá-lo ao dono. 9.ª - Isto é, era necessário provar que foram intentadas acções possessórias ou de reivindicação contra a arguida, que tinham por objecto aquele dinheiro, e ela invocar que não o devolvia porque o fez seu. 10.ª - Estando provado que existem pendentes autos de prestação de contas em que consta como crédito aquela quantia, não podia o tribunal concluir que a mesma já não existe para ser devolvida, porque a arguida já a gastou em seu proveito, na medida em que o dinheiro, como coisa fungível, não altera a sua qualidade, quantidade e valor, podendo aquela, no momento em que lhe for exigida, entregá-la ao seu dono. 11.ª - A arguida, porque ainda se encontram pendentes os autos de inventário para a partilha do dinheiro, conjuntamente com mais bens, entre os quais imóveis de valor que ronda os 125.000,00 €, altura em que é definido o montante a entregar aos demais herdeiros, ficou impossibilitada de poder reparar ou restituir a quantia nos termos do artigo 206.º do Código Penal, o que só por si é demonstrativo em como não podia ter cometido o crime de abuso de confiança sem que lhe fosse exigido o dinheiro e ela se recusasse a entregá-lo. 12.ª - Para a hipótese de vir a entender-se que estão verificados todos os pressupostos de que depende a condenação da arguida pelo crime de abuso de confiança e, como tal, manter-se a sua condenação, sempre haveria lugar ao perdão de um ano de pena de prisão, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, da Lei da Amnistia n.º 29/99, de 12 de Maio. 13.ª - A douta sentença recorrida violou, entre outras, as normas dos artigos 14.º, 205.º e 206.º, do Código Penal». Solicita, a final, a procedência do recurso, com a revogação da sentença que condenou a arguida pela prática de um crime de abuso de confiança. 4.2. Assistente/demandante civil: «Quanto ao pedido cível: a) Nos termos do disposto no artigo 2.075 do C. Civil, qualquer herdeiro, de per si ou acompanhado com outros, tem legitimidade para peticionar a devolução à herança de dinheiro que fazia parte desse acervo e que foi ilegitimamente apropriado por uma herdeira, que incorreu por isso no crime de abuso de confiança. b) Aliás, essa obrigação deveria resultar quase ou mesmo automaticamente da própria condenação. Como tal, c) Os demandantes, habilitados pelos factos provados e que se arrogam no pedido herdeiros testamentários, são partes legítimas para peticionar a condenação da arguida a devolver à herança ilíquida e indivisa de que eles são herdeiros a quantia e juros de que ilicitamente se apropriou a arguida. Quanto à matéria de facto: d) Tendo a arguida confessado nas suas declarações que, quando solicitou ao tribunal através do procedimento cautelar a entrega dos fundos, invocando a necessidade de fazer face a encargos da herança, já então tinha em mente utilizar tais fundos em proveito próprio, ou seja, em gastos ou dispêndios seus e de sua família e que ainda tem em seu poder parte desse dinheiro, em montante e local que disse não querer revelar e que nunca afirmou pretender ou devolver, devem tais factos constar da matéria dada como provada porque relevantes para a determinação da medida da pena e da ponderação da suspensão da mesma. Quanto à medida da pena e sua suspensão: e) Atento o valor da apropriação, o facto de ultrapassar já e mesmo sem juros, em muito a metade que à arguida será devida na partilha (os restantes bens da herança não velem mais de 125.000 euros – ponto 25 dos factos provados), a premeditação da actuação, que é a própria arguida a dizer que ainda tem parte do dinheiro na sua posse, em local que não revela e que se recusa a devolver, o uso absolutamente arbitrário desse dinheiro, a pouca relevância da sua confissão para a descoberta da verdade, perante os inequívocos dados documentais constantes do processo, e finalmente que a sua conduta em não devolver à herança, voluntariamente, o dinheiro que ainda confessa ter na sua posse, revela à saciedade que não tem qualquer intenção de reparar o mal praticado. f) Tendo em atenção toda a factualidade referida na conclusão anterior, não se justifica a suspensão da execução da pena ou, em todo o caso, só se justificará mediante a aplicação da condição suspensiva de devolução em prazo curto de pelo menos metade da quantia de que se apropriou e que confessou ainda deter. g) Pois só assim se cumprirão os fins das penas e do direito e a justiça de alguma forma igualmente se redime de um notório erro praticado e se vê igualmente credibilizada e afirmada na sua plena vigência. Foram violados, entre outros, os artigos 2075.º do C. Civil, 368.º e 369.º do C.P.P., 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b) e 71.º, 50.º e 51.º, do Código Penal». Em síntese conclusiva, preconiza a procedência do recurso, em moldes tais que se julguem os demandantes do pedido cível partes legítimas e se condene a arguida no mesmo; se condene a arguida em pena de prisão efectiva não inferior a 3 anos ou, preferencialmente, seja a arguida condenada em pena de prisão não inferior a 3 anos, suspensa na sua execução, mas sujeita à condição de, em prazo não superior a 10 dias a contar do trânsito, aquela devolver à herança, nos termos que constam do pedido cível, pelo menos metade do dinheiro de que a mesma se apropriou. * 5. Admitidos os recursos e cumprido que foi o disposto no artigo 411.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, o Ministério Público aos mesmos respondeu, na vertente exclusivamente penal no que concerne ao recurso da assistente/demandante civil, pugnando pela improcedência de ambos. * 6. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, no douto parecer que emitiu, manifestou-se no sentido de a assistente carecer de legitimidade para recorrer da matéria penal, aduzindo ainda que, caso assim não seja entendido, não devem proceder um e outro dos recursos interpostos.A assistente e a arguida não exerceram o seu direito de resposta. Foram colhidos os vistos legais. Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal, cumprindo, agora, apreciar e decidir. * II. Fundamentação: 1. Questão prévia: Antes de mais, há que decidir a questão prévia suscitada pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, traduzida em saber se a assistente dispõe (ou não) de legitimidade para recorrer da matéria penal da sentença do tribunal a quo, nos termos em que o fez, ou seja, debatendo-se pela agravação da pena de prisão fixada em 1.ª instância e pela suspensão da execução da mesma, sujeita esta à condição de a arguida, em determinado prazo, devolver à herança aberta por óbito de C..., certa quantia em dinheiro. «Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvo as excepções da lei. Compete em especial aos assistentes: (…) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito» (artigo 69.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do Código de Processo Penal). De acordo com o disposto no artigo 401.º, n.º 1, alínea b), do citado diploma legal, «têm legitimidade para recorrer o arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas». O Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no seguinte sentido: «O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir» Ac. de 30/10/2007, DR, IS-A, de 10/08/1999.. Em sede de recursos, e com excepção dos interpostos pelo Ministério Público, a legitimidade pressupõe por parte do recorrente um interesse directo na impugnação do acto, concebendo-se tal pressuposto processual como uma posição de um sujeito processual relativamente a determinada decisão proferida em processo penal que justifica que ele possa impugnar tal decisão através da via recursória. O interesse em agir (também conhecido por interesse processual) consiste na necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção. O recorrente tem interesse processual quando a situação de carência em que se encontra necessita da intervenção dos meios judiciários para assegurar um direito em crise. Ressalvado o caso do Ministério Público (face ao seu estatuto e extensão dos seus deveres), o interesse em agir do assistente para a interposição de recurso tem de ser aferido perante as circunstâncias de cada caso. Desde há muito, prevalece a concepção de que as questões atinentes à medida da pena fazem parte do núcleo punitivo do Estado, do jus puniendi, cuja defesa não cabe aos particulares, mas sim ao Ministério Público Cfr, entre outros, os Acórdãos do STJ de 07/04/1999, 01/07/1999, 16/05/2002, 16/10/2002 e 25/06/2003, proferidos, respectivamente, nos processos n.ºs 1488/98 - 3.ª Secção; 394/99 - 5.ª Secção; 1672/02 - 5.ª Secção; 2536/02 - 3.ª Secção e 3263/01 - 3.ª Secção, todos como sumário publicado no Boletim Interno do STJ. . Noutra vertente, tem sido entendimento largamente maioritário da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que, o assistente tem legitimidade para recorrer quando exprima a pretensão de que a suspensão da pena suporte a condição de pagamento indemnizatório em determinado prazo ou a de um dever de reparação a cumprir em prazo fixado, pois que, em tal situação, visa-se o ressarcimento do lesado pelos danos sofridos (ou de reparar ao ofendido os prejuízos que o atingiram) em consequência do facto ilícito criminalmente praticado. Cfr., a título meramente exemplificativo, os Acórdãos do STJ de 02/06/1999, 17/05/2001 e 27/03/2003, publicados, respectivamente, nos processos n.ºs 379/99 - 3.ª Secção, 683/01 - 5.ª Secção e 3127/02 - 5.ª Secção. No mesmo sentido, o Ac. do STJ de 13/07/2006 (proc. n.º 06P2172), publicado, em texto integral, no site da dgsi. Na situação em análise, o Ministério Público conformou-se com a decisão condenatória de 1.ª instância. Só a assistente se manifesta insatisfeita, pretendendo a subida da pena aplicada e a suspensão da execução da mesma subordinada à condição de a arguida, em determinado prazo, devolver à herança aberta por óbito de C..., certa quantia em dinheiro. Por falta de interesse em agir, não é admissível o recurso relativamente à medida da pena principal. Na restante parte, relativa à suspensão da execução da pena, mediante a referida condição, é inequívoco que a assistente tem legitimidade para recorrer, por estar demonstrado um concreto interesse em agir. Aqui, o recurso da assistente traduz uma pretensão autónoma, que se não reconduz a uma mera pretensão punitiva. Antes se relaciona com a reparação do prejuízo sofrido pela herança indivisa, da qual ela é herdeira testamentária, com a prática do crime. Em conclusão, impõe-se a rejeição do recurso da assistente, mas tão só na parte em que impugna a medida da pena principal, sendo o recurso apreciado, na vertente penal, quanto à pena de substituição, nos preditos termos. * 2. Delimitação do objecto dos recursos e poderes de cognição do tribunal ad quem:Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995). Tendo sido documentadas, através de gravação, as declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, os recursos podem versar simultaneamente matéria de facto e de direito, o que decorre das disposições conjugadas dos arts. 364.º, 412.º, 428.º e 431.º, todos do Código de Processo Penal. No caso sub judice, as questões postas à consideração deste tribunal ad quem são as seguintes: A) Se ocorreram erros de julgamento em matéria de facto, invocados pelos recorrentes; B) Se a arguida incorreu na prática do crime de abuso de confiança, previsto e punível pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), por referência à alínea b) do artigo 202.º, ambos do Código Penal; C) A verificar-se a prática do referido crime, se sobre a pena concretamente aplicada (dois anos de prisão) deve incidir o perdão de um ano de prisão, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio; D) Se a suspensão da execução da pena imposta à arguida deve ficar subordinada à condição de aquela devolver à herança, pelo menos metade do dinheiro de que se apropriou; C) Da legitimidade dos demandantes para a dedução do pedido de indemnização civil e se a arguida deve ser condenada nos termos do referido pedido. * 3. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (transcrição): «1 - No dia 4.9.97 faleceu, no estado de viúva, C.... 2 - A arguida é filha adoptiva daquela C..., e a sua única herdeira legitimária. 3 - A dita C... instituiu, através de testamento outorgado no cartório notarial de Vouzela, em 4.10.90, como herdeiros da sua quota disponível, os seus irmãos M... e L... 4 - Esta L... faleceu em 14.5.97, deixando a suceder-lhe 6 filhos, a saber: a) C..., nascida em 15.3.53; b) D.., nascido em 12.3.55; c) E..., nascido em 24.4.57; d) F..., nascido em 20.1.61; e) J..., nascido em 4.11.69; e f) k.., nascida em 1.9.65. 5 - Estes 6 filhos da L.. constituíram-se como herdeiros da quota disponível daquela C.., por direito de representação. 6 - Entre os bens a partilhar por morte da dita C...contava-se, além do mais, a quantia de 163.190,99 euros (à altura Esc. 32.716.858$70), quantia essa que se encontrava depositada em 3 contas bancárias tituladas pela dita C..., com os nºs 074103525400, 074132525120 e 074103525828, todas domiciliadas na agência de S. Pedro do Sul da Caixa Geral de Depósitos (CGD). 7 - À arguida, enquanto única herdeira legitimária da falecida C..., competia o exercício do cargo de cabeça-de-casal (c. c.) da herança indivisa aberta pela morte daquela C... e, como tal, competia-lhe a administração de tal herança. 8 - Posteriormente a arguida, na qualidade de c. c. da supra mencionada herança indivisa, interpôs no tribunal judicial de S. Pedro do Sul, em 11.12.97, o procedimento cautelar comum que tomou o nº 229/97. 9 - Nesse procedimento cautelar a arguida, invocando a necessidade de efectuar o pagamento dos encargos daquela herança indivisa, nomeadamente as despesas com o funeral da dita C..., os gastos de luz, água e telefone de uma casa de habitação que fazia parte do acervo hereditário, os gastos com o salário dos trabalhadores que prestavam serviço nos prédios que pertenciam àquela herança, e os gastos com a alimentação dos animais que pertenciam ao acervo hereditário, peticionou que se ordenasse a entrega, a si, da quantia em dinheiro existente nas contas bancárias supra referidas, no montante global de 163.190,99 euros, a fim de fazer face a tais encargos. 10 - Através de decisão judicial proferida em 27.1.98, no âmbito desse procedimento cautelar comum, foi julgada procedente a providência requerida e ordenada à CGD, a requerimento da arguida, que procedesse ao levantamento das quantias em dinheiro depositadas nas supra referidas contas bancárias, quantias essas que totalizavam o montante de 163.199,99 euros, e que as entregasse à arguida para que esta, enquanto c. c. daquela herança indivisa, pudesse saldar os encargos e dívidas da herança. 11 - Através daquela decisão judicial foi ainda ordenado à arguida que depositasse tais quantias nessa agência de S. Pedro do Sul da CGD, numa conta bancária por si titulada, devendo, mensalmente, remeter ao tribunal judicial de S. Pedro do Sul o comprovativo do levantamento mensal efectuado. 12 - Assim, no cumprimento daquela decisão judicial, os responsáveis pela CGD procederam à entrega, à arguida, das quantias que se encontravam naquela data – 27.1.98 – depositadas nas supra referidas contas bancárias, cujo montante global ascendia a 163.190,99 euros, através do seu depósito numa conta à ordem aberta em nome da arguida, conta bancária essa da agência de S. Pedro do Sul da CGD, com o nº 0741040356500. 13 - A arguida porém, pelo menos desde o final de Janeiro de 1998, firmou o propósito de fazer sua, gastando-a em proveito próprio, a supra mencionada quantia depositada naquela conta bancária com o nº 0741040356500, pertencente tal quantia à dita herança indivisa. 14 - Assim, na execução desse propósito, a arguida, no período compreendido entre 11.2.98 e 15.10.02, e mais concretamente nas datas que constam no documento de fls. 185 a 187 do autos (que por economia aqui se dá por reproduzido), procedeu ao levantamento dos referidos 163.190,99 euros. 15 - Dessa quantia em dinheiro a arguida gastou com os encargos daquela herança indivisa uma quantia não concretamente apurada, mas de todo o modo não superior a 3.750 euros. 16 - A restante quantia em dinheiro pertença daquela herança indivisa, quantia essa superior a 160.000 euros, que se encontrava depositada na aludida conta bancária com o nº 0741040356500, foi gasta pela arguida em proveito próprio, que assim fez seus aqueles mais de 160.000 euros. 17 - A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que enquanto c. c. daquela herança indivisa só podia utilizar a supra mencionada quantia em dinheiro para prover aos encargos normais daquela herança. 18 - Sabia igualmente que aqueles mais de 160.000 euros que se encontravam depositados na dita conta bancária com o nº 0741040356500, e que aquela gastou em proveito próprio, não lhe pertenciam, actuando com o propósito, concretizado, de fazer sua aquela quantia em dinheiro, contra a vontade dos legítimos proprietários da mesma, ou seja, o conjunto dos herdeiros daquela herança indivisa supra referida, a quem sabia estar obrigada a entregá-la. 19 - Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei. * 20 - Nos autos de inventário nº 14/98, que correm termos por este tribunal, a aqui arguida foi ali nomeada cabeça-de-casal.21 - A quantia referida em 12 encontra-se relacionada, para partilha, nos autos de inventário referidos. 22 - A instância de tais autos esteve suspensa no período compreendido entre 22.6.99 e 22.6.05. 23 - Tal suspensão foi determinada por decisão judicial, em consequência da pendência prejudicial de uma acção instaurada pelos herdeiros testamentários, através da qual impugnaram a qualidade de herdeira da aqui arguida. 24 - Em tal inventário, e para além de outros bens, encontram-se relacionados os seguintes imóveis: a) casa de habitação de r/c e 1º andar, sita no Lugar de Quintela, inscrita na matriz predial da freguesia de Várzea sob o artigo 703; b) terra de cultura denominada ‘Regada Grande’, inscrita na matriz predial da freguesia de Várzea sob o artigo 1234; e c) terra de cultura denominada ‘Mimosas’ ou ‘Porta da Viúva’, inscrita na matriz predial da freguesia de Várzea sob o artigo 1239. 25 - O valor do conjunto dos imóveis descritos em 24 ascenderá a cerca de 125.000 euros. 26 - Por apenso aos autos de inventários referidos correm termos uns outros de prestação de contas, nos quais é requerida a aqui arguida, e são requerentes a assistente e outros. 27 - Com taxas de justiça pagas no dito inventário, e com o custo de certidões matriciais e outros documentos que daquele constam, a arguida despendeu a quantia de 584,37 euros. * 28 - A arguida exerce a sua actividade profissional de auxiliar de cozinha num estabelecimento de hotelaria.29 - Vive com o marido, tendo o casal um filho de maioridade a cargo. 30 - O agregado da arguida habita em casa pertença da herança da referida C.... 31 - A arguida é pessoa trabalhadora. 32 - A sua mãe, inventariada no referido inventário, gostava de si. 33 - A arguida tem como habilitações o 11º ano de escolaridade. 34 - Não possui antecedentes criminais». * 4. E como não provados:- «Que a arguida tenha em seu poder a quantia referida em 12 da factualidade apurada, isto é, 163.190,99 euros. - Que nunca quisesse fazer sua a quantia referida em 12. - Que o valor dos imóveis descritos em 24 da factualidade apurada ascenda a mais de 200.000 euros. - Que os imóveis descritos em 24-b) e 24-c) da factualidade apurada tenham aptidão construtiva. - Que a arguida, do dinheiro referido em 12 da factualidade apurada, tenha gasto, em encargos da herança, quantia superior a 5.000 euros. * 5. Relativamente à motivação da decisão de facto, ficou consignado:« Fundou-se a convicção do tribunal, desde logo, no teor das declarações da arguida, a qual, no essencial, confessou os factos que lhe eram imputados, designadamente a utilização de mais de 160.000 euros, que declarou saber pertencerem à herança da sua falecida mãe, em seu proveito próprio, ou proveito do respectivo agregado. Que para o efeito procedeu a levantamentos e saques da conta bancária para a qual haviam sido transferidos os fundos anteriormente existentes nas contas bancárias tituladas pela sua falecida mãe. Mais referiu que nos encargos e despesas da herança não gastou, efectivamente, quantia superior a 3.750 euros. Esclareceu ainda que quando solicitou do tribunal judicial de S. Pedro do Sul, através de procedimento cautelar, a entrega, a si, do montante de tais fundos, invocando a necessidade de fazer face aos encargos da herança, já então tinha em mente utilizar tais fundos em proveito próprio, ou seja, em gastos ou dispêndios seus e da sua família. Tais declarações foram complementadas e corroboradas pelo teor da certidão de fls. 46 a 77 (especialmente fls. 47 a 62 e 66 a 71), nos documentos de fls. 87 a 90, 160, 234 a 360 e 513 a 516, na informação documentada, extracto e cópias de cheques de fls. 184 a 220, na certidão de fls. 417 a 425 (complementada esta com o teor dos documentos de fls. 391 a 398 e 438 a 448), e bem assim no teor da certidão de fls. 691 a 712, e dos documentos de fls. 518 e ss.. Mais foi relevante o teor do CRC de fl. 627. Já para a situação socio-económica da arguida foram relevantes as suas próprias declarações, em conjugação com o teor do depoimento da testemunha Celeste Figueiredo. No que tange à factualidade expressamente deixada como não provada decorreu a mesma da falta ou insuficiência de prova em ordem a convencer o tribunal da respectiva veracidade, designadamente ante a infirmação desta, pela própria arguida, nas suas declarações». * 6. Dos alegados erros de julgamento em sede de matéria de facto:Há que ver, então, se as provas produzidas no âmbito deste processo impõem, relativamente aos concretos pontos de facto discriminados pelos recorrentes, decisão diversa da recorrida. Insurge-se a arguida contra o ponto n.º 16, in fine, da matéria de facto provada, na parte em que estabelece que a arguida “fez seus aqueles mais de 160.000 euros”, invocando que se trata de uma conclusão retirada de factos que não foram dados como provados. Simultaneamente, pretende a arguida que se dê como provado o facto constante da 1.ª conclusão da motivação do seu recurso, onde se encontra escrito: “A arguida, nas suas declarações, afirmou que tem o dinheiro em seu poder e que o devolverá, no momento próprio, a ter lugar nos autos de inventário 14/98 que se encontram pendentes, logo que lhe seja exigido ou determinado”. A prova que serve de base à dita pretensão, di-lo a recorrente, são as suas próprias declarações. Reportando-nos ao ponto n.º 16 do acervo factológico provado, facilmente se verifica que a parte final do mesmo, impugnada pelo recorrente, ou seja, que a arguida “fez seus mais de 16.000 contos”, não pode ser considerada isoladamente, devendo, antes, ser conexionada com a restante parte do dito ponto de facto, donde consta: “A restante quantia em dinheiro pertença daquela herança indivisa, quantia essa superior a 160.000 euros, que se encontrava deposita na aludida conta bancária sob o n.º 0741040356500, foi gasta pela arguida em proveito próprio (…)”. Neste contexto, o ponto de facto em causa, considerado na sua globalidade objectiva, não comporta uma mera abstracção, mas sim um acontecimento da vida real. E não nos suscitam dúvidas que a decisão do tribunal a quo, ao dar como provado o analisado ponto de facto, não é merecedora de qualquer reparo. No decurso do interrogatório a que voluntariamente se submeteu, a arguida foi hesitante, indefinida e inconcludente. Na sequência das sucessivas perguntas no sentido de determinar o destino dado à quantia em causa (mais de 160.000,00 €), reconheceu, por vezes, ainda que implicitamente, tê-la gasto no seu todo. Sugestivas são as seguintes passagens do interrogatório: Juiz: “Então, o que é que a senhora fez com o dinheiro? Arguida: Gastei naquilo … já não me recorda bem naquilo. Juiz: Em coisas suas? Arguida: Não. É. Coisas também necessárias para a nossa sobrevivência também. Juiz: Suas? Arguida: Minhas. Juiz: Da sua família? Arguida: Sim, também” (cfr. fls. 7/8 das respectivas transcrições. Serão daqui as referências que se vierem a fazer sem indicação de fonte). (…). Procurador: “Se gastou o dinheiro como refere porque não tinha dinheiro consigo, como é que agora pretende repor o dinheiro? Arguida: “Olhe, senhor doutor, tem a casa e tem as terras”. Procurador: Mas isso não é da herança? Arguida: Exactamente” (fls.12). Em outras passagens do seu interrogatório, a arguida refugiou-se numa posição diversa, referindo não ter gasto a totalidade do dinheiro. - “O resto tenho para dar quando for necessário” (fls. 7); - “O que não gastei devolvo” (fls. 7); - Juiz: “Portanto, foi tudo gasto os 32 mil contos (…)”. Arguida: E se eu disser que tá numa conta, mas que agora não pretendo falar sobre isso”. (…) Eu posso ter levantado e ter guardado (…). Juiz: “Mas então a senhora gastou 32 mil contos ou não gastou (…)”? Arguida: “Sim, tirei do Banco”. (…) Juiz: “Então a senhora ficou com algum ou não lá na outra conta, ou noutra coisa qualquer?” Arguida: “Sim”. Juiz: “E com quanto é que ficou?” Arguida: “Prefiro não responder”. A arguida revelou-se, pois, hesitante, indefinida, inconcludente e contraditória, recusando, sem motivo aparente, concretizar, com recurso a elementos objectivos, a existência na sua posse de parte do dinheiro em causa. Inexoravelmente, a segunda das duas versões em perspectiva não merece, assim, qualquer credibilidade, nenhum reparo merecendo a decisão recorrida por ter decidido nos termos em que o fez. * Pelas razões supra expostas, também não colhe atendimento a pretensão da recorrente de elevar à categoria de factos provados a alegação contida na conclusão 1.ª da sua motivação de recurso.* Sendo de rejeitar o recurso da assistente na parte em que impugnou a medida da pena principal imposta à arguida, fica, obviamente, prejudicada a reapreciação da matéria de facto que se conexiona com o proposto agravamento dessa pena.Quanto à alteração da matéria de facto proposta pela assistente, como consta da 2.ª parte da conclusão d), em termos de se dar como provado que “a arguida ainda tem em seu poder parte desse dinheiro (…)” relevam os fundamentos considerados na apreciação da impugnação da arguida sobre matéria de facto. * Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, o acervo factológico em causa não justifica a formulação de juízo valorativo diferente do assumido pelo tribunal a quo, mantendo-se, nos precisos termos a matéria de facto que o mesmo tribunal deu por provada e não provada.* 10. Da prática do crime de abuso de confiança: Nos termos (inequívocos) do artigo 205.º, n.º 1, do Código Penal, comete o crime de abuso de confiança quem, ilegitimamente, se apropriar de coisa móvel que lhe foi entregue por título não translativo de propriedade. São, pois, elementos típicos do crime de abuso de confiança: a) a entrega ao agente, por título não translativo de propriedade, de coisa móvel, por parte do proprietário ou legítimo detentor desta, entrega essa livre e válida, em virtude de uma relação fiduciária entre o agente e o dono ou detentor da coisa, que constitua aquele na obrigação de afectar a coisa móvel, que lhe foi entregue materialmente ou colocada sob a sua disponibilidade, a um uso determinado ou na obrigação de a restituir; b) a posterior apropriação da coisa móvel pelo agente, contra a vontade do proprietário ou legítimo detentor desta, através da prática de actos que exprimem a inversão do título de posse, isto é, que o agente passou a dispor da coisa ut dominus, com animus rem sibi habendi, integrando-a no seu património. C) o conhecimento pelo agente dos elementos descritos sob as alíneas a) e b) e a vontade de realizar o referido sob a alínea b) ou a consciência de que da conduta resulta a sua realização como consequência necessária ou como consequência possível e conformando-se, neste último caso, com o resultado. A apropriação revela-se numa íntima conexão de elementos subjectivos e objectivos ou materiais. «Justamente porque o agente já detém a coisa por efeito da entrega, a apropriação há-de radicar-se, iminentemente, numa certa intenção, numa certa atitude subjectiva nova: o dispor da coisa como própria, a intenção de se comportar relativamente a ela como proprietário, ut dominus, com o chamado animus rem sibi habendi. É, porém, evidente, que tal apropriação, como nota SCHONKE, não pode ser, por outro lado, um puro fenómeno interior - até porque cogitations poenam nemo patitur - mas exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, através de um comportamento que o revele e execute» V.g, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 93, p. 35/36.. Temos, pois, como assente que, não haverá crime de abuso de confiança se não houver apropriação ilegítima da coisa móvel, por parte daquele a quem ela foi entregue. Tal apropriação dá-se quando o agente - que, por a ter recebido por título não translativo de propriedade, é um mero possuidor em nome alheio - inverte, ilegitimamente, o título de posse e passa a dispor da coisa como se fosse o seu verdadeiro dono, exteriorizando, objectivamente, essa sua intenção. Obtempera a arguida que o crime de abuso de confiança pelo qual foi condenada em 1.ª instância não se verifica, porquanto o dinheiro que lhe foi entregue pertence à herança indivisa aberta por óbito de sua mãe, isto é, faz parte de uma universalidade de direitos, de cuja titularidade ela também faz parte. Logo, tal dinheiro não é uma coisa alheia em relação à sua pessoa e aos demais herdeiros. Não se afigura fácil a definição do carácter “alheio” do bem quando em causa estão patrimónios colectivos ou patrimónios autónomos. Como esclarece Mota Pinto, o património colectivo não se confunde com a compropriedade ou propriedade em comum. “Na propriedade em comum ou compropriedade (…) estamos perante uma comunhão por quotas ideais, isto é, cada proprietário ou consorte tem direito a uma quota ideal ou fracção do objecto comum. (…). O património colectivo pertence em bloco, globalmente, ao conjunto de pessoas correspondente. Individualmente nenhum dos sujeitos tem direito a qualquer quota ou fracção; o direito sobre a massa patrimonial em causa cabe ao grupo no seu conjunto. (…) Um caso em que parece divisar-se a figura do património colectivo no nosso direito é a comunhão conjugal» In Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 239/240.. No mesmo sentido, discorre Manuel de Andrade que, nos patrimónios colectivos, de que é exemplo a comunhão conjugal, várias pessoas são titulares de um património que globalmente lhes pertence. Trata-se de “uma comunhão de mãos reunidas” “ou de mão comum”. A massa patrimonial pertence em bloco e só em bloco a todas essas pessoas, à colectividade por ela formada In Teoria Geral da Relação Jurídica, 1983, p. 225/226.. No domínio da jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem sido entendido, quase uniformemente, que os bens que compõem o património colectivo do casal não podem ser considerados “alheios” para efeitos de preenchimento do tipo de crime de furto Neste sentido, cfr. Ac. do S.T.J. de 03/06/1996, da Relação do Porto 26/11/97 e de 16/03/2005, todos publicados na Colectânea, tomo V, p. 232, tomo II, p. 208, respectivamente. Cfr., ainda, Ac. da Relação do Porto de 12/09/2007, publicado, em texto integral, no site da dgsi. . Os fundamentos invocados - que merecem a nossa inteira adesão - radicam nas explicitações conceituais que já se aduziram. Se os cônjuges, são, os dois, titulares do direito de propriedade sobre os bens que integram a comunhão, então tais bens não podem, enquanto a comunhão persistir, ter a natureza de coisa alheia, em relação a qualquer cônjuge. Afigura-se-nos, porém, que a situação evidenciada pela herança indivisa comporta, relativamente à comunhão dos bens do casal, uma realidade distinta. A herança indivisa constitui um património autónomo, segundo alguns tratadistas, ou uma universalidade, segundo outros. Da aceitação sucessória apenas decorre directamente para cada um dos chamados o direito a uma quota hereditária, sendo que os herdeiros são titulares, apenas, de um direito à herança, universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais esse direito hereditário se concretizará. Até à partilha, os herdeiros são titulares tão-somente do direito a uma fracção ideal do conjunto, sendo certo que só depois da realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança. Como é dito no Acórdão desta Relação de Coimbra de 14/06/2006, que constitui fls. 601 a 609 dos autos, existe na herança indivisa, diferentemente do que sucede nos bens do casal, uma nítida separação entre o património - autónomo - da herança e o dos herdeiros, que nunca detiveram a disponibilidade individual de qualquer bem da herança. No caso dos autos, e de acordo com a matéria de facto provada, a quantia depositada na conta bancária com o n.º 0741040356500 (mais de 160.000 euros) era pertença da herança indivisa aberta por óbito de C.... Daí que, na relação a estabelecer com a arguida, como herdeira, seja de considerar coisa alheia. * Contrapõe a arguida: “no crime de abuso de confiança o objecto do crime é a coisa móvel alheia e não direitos de que a arguida é titular”.Não se contesta que assim seja. O objecto da acção (da apropriação) no referido crime é uma “coisa móvel” alheia. A noção de coisa móvel deve recolher-se no domínio da realidade material e jurídica (artigos 201.º e 205.º do Código Civil). Neste sentido, créditos e outros direitos não são coisas móveis como elementos típicos do crime; porque não são coisas em sentido material ou jurídico, não podem constituir objecto do crime Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 97/98.. Revertendo à situação dos autos, desde logo a matéria de facto provada evidencia claramente que o objecto da acção praticada pela arguida é a quantia em dinheiro de mais de 60.000 euros, coisa móvel, e não qualquer direito ou crédito. * Não se verificou inversão do título de posse sobre o dinheiro, como sustenta a arguida?No caso do dinheiro, a sua simples confusão no património do arguido ou até o seu uso não serão suficientes para se dar como assente a apropriação. A inversão do título de posse ocorrerá, nesta situação, quando o arguido dispuser dele de forma injustificada ou não o restituir no tempo e na forma juridicamente devidos. Prof. Figueiredo Dias, idem, p. 103. Como é referido no Ac. do S.T.J. de 10/11/2004 In site da dgsi., proc. 04P2252., «a prova da apropriação deve ser de tal modo que revele exteriormente a intenção de actuar uti domini, supondo, em caso de coisa de máxima fungibilidade como é o dinheiro e em situações de preexistência de relação contratualmente formatada, a exteriorização de comportamentos que se afastem manifestamente do domínio ainda próximo das disfunções de cumprimento e mora, e revelem, claramente, que a confundibilidade patrimonial e a utilização de quantias monetárias ocorram com a plena e determinada intenção de não restituir». No caso sub judice, o tribunal autorizou a arguida, na qualidade de herdeira e cabeça de casal, num determinado contexto, e com certa finalidade, que não estava autorizada a exceder qualitativa e quantitativamente, a levantar do Banco o dinheiro indispensável para saldar os encargos e dívidas da herança indivisa, ficando, no entanto, obrigada a remeter, mensalmente, ao tribunal, o comprovativo do levantamento mensal efectuado. Contra a decisão expressa do tribunal e contra a vontade do conjunto dos herdeiros daquela herança indivisa, a arguida apropriou-se de mais de 160.000 euros pertencentes à herança, quantia esta que gastou em proveito próprio, fazendo-a coisa sua. Assim, é óbvio que a arguida desencaminhou o dinheiro, não lhe dando o destino para que lhe havia sido entregue. Por outro lado, a arguida não devolveu a quantia global que lhe foi confiada. A circunstância de ter utilizado abusivamente o dinheiro em proveito próprio, porque usado fora da finalidade que motivou a sua entrega, aliada ao facto de não ter ainda restituído o dinheiro, são comportamentos a nosso ver concludentes de que dele se apropriou. Deste modo, a arguida cometeu o crime qualificado de abuso de confiança, p. p. artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), por referência à alínea b) do artigo 202.º, ambos do Código Penal, por que foi acusado. * 11. Da aplicação do perdão de pena:A actuação da arguida, embora traduzida numa pluralidade naturalística de acções, executadas em momentos separados no tempo, comporta um único crime de abuso de confiança, uma vez que aquelas estão subordinadas a uma única resolução criminosa. Isto resulta, sem qualquer dúvida, dos pontos n.ºs 13 e 14 da matéria de facto. E se assim é, a cessação do crime apenas se verificou em 15 de Outubro de 2002, data da prática do último acto de levantamento de dinheiro pela arguida. Se só estão abrangidas pelo perdão as penas correspondentes às infracções praticadas até 25 de Março de 1999 (artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio), a pena imposta à arguida nestes autos não pode ter esse benefício. * 12. Da suspensão da execução da pena, sob condição:«De acordo com o disposto nos artigos 50.º, n.º 2, e 51.º, n.º 1, alínea a), do CP, o poder-dever de condicionar a suspensão da execução da pena rege-se pelo critério da conveniência e adequação à realização das finalidades da punição, sendo que, no caso de imposição de deveres, a condicionante deve ser reportada às exigências de reparação do mal do crime, e a subordinação pode consistir no pagamento, do todo ou da parte que o tribunal considerar possível, da indemnização devida ao lesado» Cfr., Ac. do S.T.J. de 20/09/2006, proc. n.º 1611/06 - 3.ª Secção.. «Nos crimes da natureza daquele em que a arguida foi condenada, assume particular relevância a reparação do dano (ou parte dele) como meio de obtenção da paz social, posta em causa com a conduta ilícita; por outro lado, tal reparação será de exigir como forma de o arguido se mostrar merecedor da confiança que o tribunal, como intérprete da comunidade social, depositou nele, ao suspender-lhe a execução da pena, pois sendo o dano reparável, uma das manifestações elementares da vontade do arguido em conformar o seu procedimento futuro com os padrões exigidos pelo direito - pressuposto em que assentou o juízo de prognose favorável - será ressarcir até onde lhe for possível o prejuízo causado» Cfr., Ac. do STJ de 21/12/2006, proc. 06P2040, site da dgsi.. Porém, «a decisão de suspensão da execução da pena de prisão, quando sujeita a condições, deveres ou regras de conduta, nos termos permitidos pelo artigo 50.º, n.º 2, do CP, tem de pressupor e conter um razoável equilíbrio entre a natureza das imposições à pessoa condenada, e a eficácia e integridade da medida de substituição, já que a natureza excessiva ou dificilmente praticável do dever imposto determinará, em si, necessariamente, uma posição interior de anomia, rejeição ou desinteresse, contraditaria com as finalidades e a intenção de política criminal subjacentes ao instituto da suspensão da execução» Cfr., Ac. do STJ de 11/02/2004, proc. n.º 4033/03 - 3.ª Secção.. Os deveres condicionadores da suspensão terão de obedecer, assim, a um princípio de razoabilidade (n.º 2 do artigo 51.º, do CP), ou seja, deverão poder ser satisfeitos pelo condenado de acordo com as suas normais possibilidades. Mas que traduzam um sacrifício para o visado, de modo a fazer-lhe sentir a natureza punitiva de um tal dever. Será na conjugação destes dois vectores - reforço das finalidades da punição e normal possibilidade de cumprimento - que se hão-de definir os deveres condicionadores da suspensão da pena. O princípio da razoabilidade «tem sido entendido pela jurisprudência como querendo significar que a imposição de deveres condicionadores da suspensão da pena deve ter na devida conta as “forças” dos destinatários (ou seja, as suas condições pessoais e patrimoniais e o nível de rendimentos de que dispõe) de modo a não frustrar à partida o efeito reeducativo e pedagógico que se pretende extrair da medida, sem contudo cair no extremo de tudo se reconduzir e submeter às possibilidades financeiras oferecidas pelos proventos certos e conhecidos do condenado, sob pena de se inviabilizar, na maioria dos casos, o propósito que lhe está subjacente, qual seja o de dar ao arguido margem de manobra suficiente para que possa desenvolver diligências que lhe permitam obter os recursos indispensáveis à satisfação da condenação» Cfr., Ac. do STJ de 19/05/2006, proc. n.º 770/05 - 5.ª Secção.. De acordo com os factos provados, os quais determinaram a condenação da arguida, esta levantou e fez sua, ilegitimamente, quantia superior a 60.000.00 euros, pertencente ao património autónomo de herança indivisa. Mais se provou que a arguida exerce a sua actividade profissional de auxiliar de cozinha num estabelecimento de hotelaria. Vive com o marido, tendo o casal um filho de maioridade a cargo. O agregado da arguida habita em casa pertença da herança da referida C.... Deste modo, os factos revelam a arguida como pessoa de fracos recursos económicos. Mas, paralelamente, não podemos olvidar o valor particularmente elevado de que a arguida se apropriou e gastou em proveito próprio, a pressupor, segundo as regras de experiência comum, a existência no presente de alguns bens de valor significativo. Perante o exposto, afigura-se-nos razoável condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento pela arguida, à herança indivisa, no período da suspensão da execução da pena, da quantia de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros). * 13. Da legitimidade dos demandantes para a dedução do pedido de indemnização civil:
Decidiu, nesta vertente, o tribunal a quo: «No que tange ao pedido civil deduzido pela assistente e demais demandantes de fls. 485 e ss., poder-se-iam aqui tecer os considerandos supra expostos quanto à natureza alheia do património hereditário relativamente a cada um dos herdeiros. E enquanto lhes é alheio, não podem os demandantes, de per si, peticionar a condenação da arguida/demandada a devolver ou entregar um bem ou direito que não lhes pertence. Por isso que aqueles sejam parte ilegítima para o pedido que deduziram». Verifica-se uma situação de litisconsórcio quando ocorre a intervenção de pluralidade de partes no processo, podendo o mesmo ser activo ou passivo e voluntário ou necessário. No caso sub judicie importa verificar se estamos ou não perante um caso de litisconsórcio necessário activo. Nos termos do artigo 28.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (que estabelece os casos de litisconsórcio necessário activo), se a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados da relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade. Uma das situações em que a lei exige a intervenção dos vários interessados está prevista no artigo 2091.º, n.º 1, do Código Civil, que dispõe: «Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros». Os artigos anteriores a que o preceito se refere (2087.º, 2088.º, 2089.º e 2090.º), são os que definem os bens sujeitos à administração do cabeça-de-casal, da entrega dos bens, da cobrança das dívidas, da venda dos bens da herança e da satisfação de alguns encargos e que não têm aplicação ao caso dos autos. No processo em curso, os demandantes civis C..., D.., F..., J... e K... - na qualidade de herdeiros testamentários da herança indivisa aberta por óbito de C... -, peticionam a condenação da arguida - cabeça de casal no respectivo inventário -, no pagamento e entrega à referida herança da quantia de 242.618,00 €, acrescida de juros. Todavia, não alegam que, para além da arguida/demandada, sejam os únicos herdeiros. Decorre, aliás, dos documentos de fls. 46/92, 138/158 e 428/454, a existência de outro herdeiro testamentário, de seu nome M... Deste modo, não tendo o pedido sido intentado por todos os herdeiros (com exclusão, naturalmente, da arguida/demandada), carecem os demandantes de legitimidade activa para o efeito supra referido. * 14. Da responsabilidade pelas custas: Face à total improcedência do recurso da arguida/demandada, a esta incumbe o pagamento de custas, ao abrigo do disposto nos arts. 513.º, n.º 1 e 514.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal e arts. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.º 1, al. b), do Código das Custas Judiciais. Perante a parcial improcedência do recurso da assistente, cabe-lhe o pagamento de taxa de justiça, nos termos dos artigos 515.º, n.º 1, al. b), do CPP, e 87.º, n.º 1, al. b), do C.C.Judiciais. Tendo em conta a complexidade do processo e a condição económica dos visados, fixa-se, de taxa de justiça, à arguida, 6 UC e, à assistente, 4 UC. No que concerne ao pedido cível, as custas serão suportadas pelos demandantes (arts. 520.º, al. a) do CPP). * III - Decisão: Posto o que precede, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: a) Na procedência parcial da questão prévia suscitada pelo Ministério Público, em rejeitar o recurso da assistente C..., na parte em que impugna a medida da pena principal imposta à arguidaA...; b) Na procedência (parcial) do recurso interposto pela assistente C..., fica a suspensão da execução da pena fixada pelo tribunal a quo subordinada à condição de a arguida A... entregar, no prazo da suspensão (dois anos), à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C..., a quantia de € 35.000 (trinta e cinco mil euros). c) No mais, em manter a decisão recorrida. Relativamente à parte penal: - Custas pela arguida, com 6 UC de taxa de justiça; - Taxa de justiça pela assistente, cujo quantitativo se fixa em 4 UC. Quanto à parte cível, custas pelos demandantes. |