Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1530/18.3T9LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
CASO JULGADO FORMAL
FRAUDE FISCAL
MÉTODOS INDICIÁRIOS
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE PORTO DE MÓS)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 310º, N.º 1, 311º, N.º 1, 379º, N.º 1, AL. C), 412º, N.º 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 32º, N.ºS 1 E 5, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA; 83º, N.º 1, E 85º DA LEI GERAL TRIBUTÁRIA; 103º E 104º DO RJIT
Sumário: I - A decisão instrutória traduz uma realidade mais ampla do que a simples pronúncia ou não pronúncia. A pronúncia propriamente dita, parcela da decisão instrutória constituída pelo acervo fáctico que fundamenta a imputação do crime ao agente, tem carácter provisório e não forma caso julgado.
II - As nulidades e questões prévias ou incidentais que sejam conhecidas na decisão instrutória e que tenham aptidão para valer com força de caso julgado formal não revestem o mesmo carácter de provisoriedade assinalado à pronúncia stricto sensu e só poderão ser revertidas ou modificadas se impugnadas em recurso, ressalvados os casos em que tenha havido efectiva modificação do enquadramento avaliado no momento da prolação do despacho de pronúncia, ficando ainda salvo o poder conferido ao juiz do julgamento de excluir provas proibidas, conforme previsto no art. 310.º, n.º 2, do C.P.P.

III - Os tribunais de instrução criminal integram-se nos tribunais de 1.ª instância, pertencendo ao mesmo escalão hierárquico do tribunal a que incumbirá o julgamento da causa, razão pela qual, no limite, admitir que o tribunal de julgamento pudesse alterar ou reverter uma decisão do juiz de instrução criminal relativa a nulidades, excepções ou questões prévias sem que intercorresse alteração das circunstâncias ponderadas na decisão anterior, traduziria uma afronta ao princípio da obrigatoriedade das decisões judiciais para todas as entidades, aí incluídas as próprias autoridades judiciais, concatenado com os princípios do direito ao recurso e da independência dos tribunais, este último na acepção de que os tribunais são independentes não apenas relativamente aos demais poderes do Estado, mas também independentes entre si, ressalvada a vinculação às decisões dos tribunais hierarquicamente superiores (artigos 205.º, n.º 2, 32.º, n.º 1, parte final, e 203.º, todos da Constituição da República Portuguesa).

IV - Os documentos entregues pelos inspecionados ao abrigo do dever de cooperação no decurso de inspecção tributária podem ser atendidos no processo crime para prova de crime fiscal, sem que daí resulte violação do direito ao silêncio ou do direito à não autoincriminação.

V - O recurso a métodos indiciários não traduz senão a aplicação no domínio fiscal dos princípios utilizados pelo julgador na formulação das presunções judiciais que consubstanciam a prova por presunção, deduzindo a partir de factos conhecidos os factos desconhecidos que não são ou não podem ser objecto de prova directa, constituindo um meio de prova lícito (artigos 349.º e 351.º do Código Civil) e, como tal, admissível em processo penal (artigo 125.º do C.P.P.). Caberá à acusação demonstrar a verificação dos pressupostos legais da aplicação do método de avaliação indirecta e o bem fundado das conclusões por ele alcançadas, que serão depois ponderados pelo tribunal no âmbito da livre avaliação da prova, por recurso à valoração da prova no seu conjunto com particular ênfase para os elementos directamente demonstrados e para o critério de determinação dos valores liquidados.

VI - Só a «dúvida razoável», não uma qualquer dúvida circunstancial, obriga ao funcionamento do in dubio pro reo.


Sumário elaborado pelo Relator
Decisão Texto Integral: Relator: Jorge Jacob
Adjuntas: Rosa Pinto
Maria Teresa Coimbra

*

                                                                                                                       

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Nos autos supra referenciados, que correram termos pelo Juízo Local Criminal ..., após julgamento foi proferida sentença decidindo nos seguintes termos:

(...)

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, decido condenar:

5.1. condenar o arguido AA pela prática, na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 103.º, n.º 1, als. a) e b), e 104º, nº2, b), do R.G.I.T., na pena de um ano de prisão, substituída pena pela pena de cento e oitenta dias de multa à razão diária de quinze euros, o que perfaz a pena de multa de substituição global de dois mil e setecentos euros;

5.2. condenar o Arguido no pagamento das custas processuais, que fixo pelo mínimo legal (artigo 8.º e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais, e artigo 513.º, n.º1, ambos do C.P.P.), outrossim nos demais encargos do processo (artigo 514.º, n.º1 do C.P.P.);

5.3. julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Ministério Público, em representação do Estado e, por conseguinte, condenar o arguido/demandado AA no pagamento ao Estado de uma indemnização por danos patrimoniais no montante de €68.760,28 (sessenta e oito mil, setecentos e sessenta euros e vinte e oito cêntimos),, acrescidos dos respetivos juros de mora, calculados à taxa legal de 4% e contados desde a notificação do Arguido/Demandado do pedido de indemnização civil e até efetivo e integral pagamento; e

5.4. condenar o Demandado no pagamento das custas processuais atinentes ao pedido referido em 5.3..

(…)     

Inconformado, recorre o arguido retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

1. Na sentença proferida em20-6-2023(Ref.104182420) o Tribunal recorrido não deveria ter condenado o arguido, ora recorrente, como autor material de um crime de fraude fiscal qualificado, na pena de um ano de prisão, substituída pela pena de cento e oitenta dias de multa á razão diária de quinze euros;

2. Aliás, o arguido, ora recorrente, não deveria, sequer, ter sido acusado (não devendo ter sido recebida a acusação contra o mesmo deduzida) pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de fraude fiscal qualificado, porque:

3. A Acusação é nula porque:

a) Não narra, nem sequer de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, nomeadamente o lugar, o tempo, a motivação da sua prática e outras circunstâncias relevantes;

b) A acusação é “conclusiva” e não refere os factos concretos integradores da mesma ( e que permitam ao arguido defender-se e tomar posição quanto á mesma e aos factos concretos que lhe são imputados);

c) Nem sequer é feita uma narrativa dos factos na Acusação por remissão para quaisquer documentos juntos aos autos que sejam devidamente contextualizados na acusação e aí localizados, identificados com precisão e se mostrem articulados com o desenvolvimento factual lógico e cronológico e com descrição dos factos, individualizados e a sua quantificação jurídica;

d) Motivo porque não devia a acusação deduzida ter sido aceite, por não ser o julgamento o local indicado para a mesma ser corrigida ou completada

4. A acusação deduzida não satisfaz, assim, as garantias de defesa emergentes do artº 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa, o que ora se invoca expressamente, para todos os legais efeitos;

5. O inquérito-crime que deu azo a este processo surgiu no decurso de denuncias feitas pela ex-trabalhadora BB, em Maio de 2018, quer perante a A.T., quer perante o M.P. – DIAP, quer ainda perante o ACT., tendo em consequência, também originado abertura pela A.T., do procedimento de Inspeção Tributária, cuja prova aqui produzida, foi utilizada no âmbito deste processo penal, o que é vedado pela C.R.P., por violação do principio Constitucional consagrado no artº 32º nº1 da C.R.P., como resulta do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 298/2019 de 15-5, que ora aqui se invoca expressamente para os legais efeitos.

6. O Tribunal Constitucional considerou, pois, que é inconstitucional a interpretação dos artigos 61º nº1 al, d), 125º e 126º nº2 al. a) do C.P.P. (Relativos á proibição de prova obtida contra a vontade ou sob coação do arguido), segundo a qual a prova obtida ao abrigo do dever de cooperação no âmbito de uma inspeção tributária, sem o prévio conhecimento ou decisão da autoridade judiciária competente, pode ser utilizada no âmbito de processo-crime.

7. A A.T. não concluiu em tempo a Inspeção Tributária, iniciada em meados de 2018, não procedeu a qualquer liquidação, mesmo oficiosa, de IRC. E não reagiu ao encerramento da empresa em 31-12-2019 (nomeadamente para efeitos fiscais de IRC e IVA), tendo ficado a “aguardar” a conclusão deste Inquérito-crime para nele “beneficiar” da prova obtida em sede de inspeção tributária para efeitos criminais;

8. Do descrito na conclusão anterior decorreu o impedimento para a empresa em causa de reagir, atempadamente, contra a A.T., perante o TAF de Leiria (Tribunal Fiscal competente) quanto á existência das alegadas divida(s) de IRC., dos anos indicados na acusação.

9. A quantificação da obrigação tributária deve ser norteada pelos princípios fundamentais do Direito Fiscal, de modo a ser realizada uma tributação de acordo com a efetiva capacidade contributiva do sujeito Passivo;

10. O Principio (Fiscal e Constitucional) da “tributação do lucro real” impõe deveres á A.T., designadamente a realização de ação inspetiva para aferição de todos os elementos que o contribuinte apresente em sua defesa, para prova da veracidade dos factos e declarações que apresenta. Inexistindo tal procedimento da A.T. pode ocorrer erro ou excesso de quantificação de rendimentos;

11. Á A.T. cabe observar as realidades tributárias e a verificação do cumprimento das obrigações tributárias, junto dos contribuintes, prevenindo infrações tributárias e, este ónus recai sobre a A.T., atento o princípio da tributação do rendimento real (artº 102º nº2 da C.R.P.);

12. A “liquidação” do(s) Imposto(s) indicada na acusação deduzida e, na sentença proferida padece de vicio(s) de violação de lei, por errada apreciação dos pressupostos de facto e de direito, erro e excesso de quantificação, o que é - se fosse, como devia, aplicado as normas legais do Direito Fiscal - cominado com anulabilidade, porque, para mais foi, “liquidada” de forma obscura, insuficiente e de forma que, fiscalmente, não se pode, sequer, considerar, como fundamentada.

13. As provas que constam dos autos e as produzidas em julgamento foram incorreta e erroneamente julgadas e as concretas provas em causa impõem decisão diversa da recorrida;

14. Em sede de audiência de julgamento (13-4-2023) o arguido, ora recorrente, juntou aos autos documentos que o Tribunal recorrido indevidamente, não valorou, a saber:

a) A conferência do total dos valores faturados depositados na conta ENI (empresário em nome individual) reconciliada e na conta particular ...98, anos 2015, 2016 e 2017;

b) Cópias de extrato da conta bancária nº ...98 de 31-12-2017, bem como da fatura nº ...33 de 30-10-2015 do valor de € 1.070,00, em nome de CC (...), donde se alcança a entrada, a crédito , de € 1.500,00 em 6-11-2015 e € 1.750,00 em 1-12-2015 e a saída a débito, a titulo de devolução da quantia de € 1.500,00 em 9-12-2015;

c) Cópias de documentos comprovativos de pagamentos ao arguido, em prestações, de Jazigos;

15. A 1ª testemunha de acusação, Sr. Inspetor Tributário DD, só se referiu, em concreto, aos dois clientes do arguido indicados na Acusação e, tão só, de forma lacónica confirmou, genericamente, o seu relatório de fls. 234 a 255 dos autos, com a referência de : “ indícios que levam a crer fuga ao fisco … “ sendo que confirmou não ter realizado reconciliação na atividade ENI do arguido;

16. Os elementos probatórios constantes dos autos, por si só e conjugados com as regras da experiência comum, indicam a existência de erro notório na apreciação da prova pelo Tribunal recorrido;

17. O Tribunal recorrido errou, pois, ao dar co mo provados factos (e parte de factos) descontextualizados de toda a dinâmica empresarial, na sentença recorrida, que não apreciou e valorou, como devia toda a prova existente segundo as regras de experiencia comum, daí ter errado, claramente, na apreciação de prova;

18. A livre apreciação de prova, não é o livre arbítrio, daí que a fundamentação insuficiente sem devida e concretamente sopesados e tidos em consideração todos os factos, consubstanciam uma insuficiente fundamentação e torna nula decisão e, no caso de assim se não entender sempre, então, estaríamos perante uma prova incerta ou factos incertos, o que deve favorecer o arguido, ora recorrente, por aplicação do principio “in dubio pro reo”;

19. Á luz do principio de investigação, todos os processos relevantes para a decisão que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser atribuídos “á dúvida razoável” do Tribunal, também não possam considerar-se “Provados” como erroneamente fez o Tribunal recorrido;

20. O crime de fraude fiscal consuma-se quando o agente, com intenção de lesar patrimonialmente o FISCO, atenta contra a verdade e a transparência exigidos na relação Fisco – contribuinte, através de qualquer das modalidades de falsificação prevista na respetiva norma legal. Contudo, como resulta das anteriores conclusões, o arguido, ora recorrente, não praticou, como autor material, um crime de fraude fiscal qualificado;

21. E, muito menos o arguido, ora recorrente, causou prejuízo patrimonial ao Estado (AT / FISCO), em IRC em falta, dos anos de 2015, 2016 e 2017, no valor global de € 68.760,28.

22. À A.T. cabe observar as realidades tributárias e a verificação do cumprimento das obrigações tributárias, junto dos contribuintes, prevenindo infrações tributárias e este ónus recai sobre a A.T., atento o principio da tributação do rendimento real (artº 102º nº2 da C.R.P.);

23. A “liquidação” do(s) Imposto(s) indicada, padece de vicio(s) de violação de lei, por errada apreciação dos pressupostos de facto e de direito, erro e excesso de quantificação, o que é – se fosse, como devia, aplicado as normas legais do Direito Fiscal – cominado com anulabilidade, porque para mais foi, “liquidada” de forma obscura, insuficiente e de forma que, fiscalmente, não se pode, sequer, considerar, como fundamentada.

24. Foram pois, violados, entre outros, os artigos 6º nº1, 103º nº1 a) e b) e 104º nº2 do RGIT., os artigos 59º, nºs. 3 e 4, 63º, 74º nº1, 75º nº1, 87º e 88º da L.G.T., os artigos 10º, 28º, 30º e 49º do RCPITA., os artigos 89º a), 90º , 120º e 122º do Cod. IRC. , o artº 152º nº1 al. a) do CPA., os artigos 2º, 61º nº1 d), 125º, 126º nº2 al. a) e 283º nº3 do C.P.P., e, ainda os artigos 32º nºs. 1 e 5 e 104º nº2 da Constituição da República Portuguesa.

25. Assim, deve ser revogada a sentença recorrida, e a decisão nela decretada, sendo substituída por outra que absolva o arguido, ora recorrente do crime de que fora condenado e contemple as presentes Conclusões.

           O M.P. respondeu, pugnando pela manutenção do decidido, rebatendo a argumentação expendida pelo recorrente.

           Nesta instância, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto exarou douto parecer sustentando, em síntese, o seguinte:

           No conhecimento do recurso haverá que começar por apreciar as questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão, como é o caso da respetiva nulidade, que no caso existirá por omissão de pronúncia sobre questões relevantes, sendo de conhecimento oficioso por parte do Tribunal ad quem.

           Ao requerer a abertura de instruçãoo arguido já tinha invocado diversas inconstitucionalidades, ilegalidades e nulidades relativas à fase de inquérito, maxime quanto à acusação, alegando a violação dos seus direitos constitucionalmente consagrados, designadamente do preceituado no artº. 32º da CRP, pretensão que não obteve acolhimento em sede instrutória.

            A decisão instrutória (de pronúncia) é irrecorrível, mesmo quanto à parte em que apreciou nulidades e outras questões prévias ou incidentais, sendo os autos, de imediato e por reconhecidas razões de celeridade, remetidos para julgamento, sendo que a garantia de não inconstitucionalidade do preceito nos é dada pelo poder/dever que impende sobre o Tribunal de julgamento de voltar a apreciar essas questões, não se formando, quanto a elas, caso julgado, sequer formal (cfr., designadamente, o disposto nos artºs. 310º nº 2, 311º nº 1 e 338º nº 12 do CPP).

           O despacho previsto no artº. 311º nº 1 do CPP proferido pela Mª. Juíza a quo não aborda qualquer das questões que tinham sido colocadas pelo arguido, sequer de forma tabelar.

           Sucede que na contestação o arguido voltou a colocar, precisamente, as mesmas questões, agora ao Tribunal de julgamento, que já antes colocara no seu RAI e para as quais não obtivera merecimento.

           A contestação é também ela conformadora do objeto do processo - vinculando tematicamente o Tribunal -, quantos a factos/questões relevantes para a decisão da causa, tendo o Tribunal que deles conhecer, sob pena de, não o fazendo, incorrer em omissão de pronúncia, uma das causas de nulidade da sentença.

           Face ao teor da contestação apresentada, a Mª. Juíza a quo, depois de garantido o contraditório, exarou despacho onde menciona que as questões suscitadas serão objeto de apreciação em sede de Sentença. Porém, em fase de julgamento, nada decidiu sobre essas questões, ao contrário do que era seu poder e dever, pois as mesmas, por fazerem parte do processo teriam que ter uma resposta por parte do Tribunal.

            O tribunal de julgamento não se podia ter escudado no facto de estar já tudo decidido, de não ser uma segunda instância de decisão e muito menos no facto de a decisão da Mª. Juíza de Instrução ser irrecorrível (e assim é; contudo não forma caso julgado), pois o poder-dever de o Juiz de julgamento voltar a apreciar as nulidades e as questões prévias e incidentais que possam afetar a validade do processo, ainda que tenham sido apreciadas em sede de despacho de pronúncia, faz parte da “válvula de segurança que garante a conformidade e harmonização constitucional da solução processual encontrada, como acima já afirmámos, designadamente face aos direitos de defesa do arguido, maxime o direito ao recurso e ao segundo grau de jurisdição (artº. 32º da CRP), que de outra forma sofreriam uma compressão desproporcionada, sendo direito do arguido obter um despacho de primeira instância que se pronuncie sobre as questões suscitadas, recorrível, para, depois, o poder sindicar num segundo grau de jurisdição.

           Nesta perspetiva, o despacho que consta da sentença condenatória sobre tais questões, material e substancialmente, nada decidiu, com o argumento, inconsistente, de que tal matéria já estava decidida por despacho que não admitia recurso, interpretação normativa esta que não parece conforme à CRP por não respeitar as garantias de defesa do arguido.

           Ora, o Tribunal a quo não respondeu a essas questões, incorrendo em omissão de pronúncia, causadora de nulidade da sentença.

            O reconhecimento da nulidade desta por omissão de pronúncia prejudicará a apreciação das demais questões colocadas pelo recorrente.

            Foram colhidos os vistos legais.

Constitui jurisprudência constante que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido.

No caso vertente há que conhecer das seguintes questões resultantes das conclusões do recurso:

- Nulidade da acusação por violação das garantias de defesa, ao não conter factos que permitam a aplicação de uma pena, nomeadamente, o lugar, o tempo, a motivação da prática dos factos e outras circunstâncias relevantes;

- Utilização de prova ilícita;

- Violação de lei na liquidação do imposto indicada na acusação;

- Erro de julgamento;

- Erro notório na apreciação da prova;

- Violação do princípio in dubio pro reo;

- Ausência de verificação do crime de fraude fiscal qualificada.

Acrescerá ainda o conhecimento da omissão de pronúncia apontada pelo Exm.º Procurador-Geral Adjunto.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

            1.A M..., Unipessoal, Lda., com o NIPC ...99, foi dissolvida e cancelada a matrícula por inscrição no registo de 31 de Dezembro de 2019.

           2.A identificada Sociedade tinha sede na Rua ..., ..., Porto ..., e por objeto a transformação, comércio, importação e exportação de calcários, mármores, granitos e outras pedras, bem como a transformação, fabrico, montagem, comércio, importação e exportação de jazigos, campas, cantarias e outros produtos relacionados com a atividade e, ainda, atividades de construção civil e obras públicas.

           3.Em termos fiscais, tinha como atividade principal a fabricação de Artigos de Mármores e de Rochas Similares (CAE: 23701).

            4.Na qualidade de sujeito passivo de obrigações fiscais, em sede de IRC, encontrava-se enquadrada no regime geral de tributação e, em sede de IVA, enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral.

           5.O arguido AA foi o sócio-gerente da M..., Unipessoal, Lda., desde 2014 até à sua extinção.

           6.Nessa qualidade, era o Arguido quem detinha o poder de decisão, quer no domínio da gestão comercial, quer financeiro, nomeadamente celebrando negócios, contratando trabalhadores, recebendo dinheiro, emitindo faturas, cumprindo as obrigações tributárias do sujeito passivo e utilizando os lucros do mesmo para o seu sustento, estando de si dependente o cumprimento das obrigações fiscais que a sociedade constituía.

            7.Durante os anos de 2015, 2016 e 2017, a M..., Unipessoal, Lda., obteve proveitos, através de serviços prestados no âmbito da descrita atividade societária, nos valores de €132.842,72, €75.015,87 e €100.278,54, respetivamente, e tudo no valor global de €308.137,16.

8.O Arguido, agindo por si e na qualidade de qualidade de legal representante da M..., Unipessoal, Lda., não fez constar na contabilidade da mesma e nas declarações de rendimentos para IRC desses anos (Modelo 22), que enviou à Autoridade Tributária, os indicados proveitos, por referência aos serviços efetivamente prestados nos referidos exercícios.

           9.Nas referidas declarações de rendimentos, o Arguido, atuando por si e na qualidade de legal representante da M..., Unipessoal, Lda., declarou como resultado líquido tributável apenas os seguintes valores: 1) ano de 2015: volume de negócios 198.245 e resultado tributável 5.649; 2) ano de 2016: volume de negócios 207.120 e resultado tributável 7.026; 3) ano de 2017: volume de negócios 245.984 e resultado tributável 9.204.

            10.Sucede que, nos anos de 2015, 2016 e 2017, o Arguido, agindo por si e na qualidade de legal representante da M..., Unipessoal, Lda., emitiu várias faturas por valores inferiores aos efetivamente acordados e recebidos pelos serviços societários prestados e/ou não emitiu quaisquer documentos referentes a estes e efetivamente pagos.

            11.Nos anos de 2015 e 2016, o Arguido, agindo por si e na qualidade de qualidade de legal representante da M..., Unipessoal, Lda., prestou serviços, emitindo faturação apenas pelo valor parcial recebido, omitindo assim o valor total efetivamente recebido nas referidas declarações de rendimentos enviadas à Autoridade Tributária, nos termos constantes da tabela do 11.º parágrafo do Despacho de Pronúncia (que, por seu turno, deu como reproduzida a tabela constante do 11.º parágrafo do Despacho de Acusação), cujo teor se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

            12.Ainda nos anos de 2015 e 2016, mas também de 2017, o Arguido, agindo por si e na qualidade de qualidade de legal representante da M..., Unipessoal, Lda., prestou serviços, emitindo faturação apenas pelo valor parcial recebido, omitindo assim o valor total efetivamente recebido nas referidas declarações de rendimentos enviadas à Autoridade Tributária, nos termos constantes da tabela do 12.º parágrafo do Despacho de Pronúncia (que, por seu turno, deu como reproduzida a tabela constante do 12.º parágrafo do Despacho de Acusação), cujo teor se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

            13.Acresce que, o Arguido, agindo por si e na qualidade de qualidade de legal representante da M..., Unipessoal, Lda., rececionou na conta bancária n.º ...98, da Banco 1..., de que é titular, por depósitos em numerário, correspondentes a serviços prestados e não faturados: 1) em 2015, o valor global de €95.512,51, correspondente a 174 depósitos em numerário; 2) em 2016, o valor global de €75.014,55, correspondente a 162 depósitos em numerário; 3) em 2017, o valor global de €€89.250,12, correspondente a 142 depósitos em numerário; valores esses que, constituindo lucros da sociedade, não fez constar na contabilidade da sociedade e nas declarações de rendimentos para IRC desses anos (Modelo 22).

            14.Assim, para efeitos de IRC, foram realizadas prestações de serviços nos montantes de; 1) €142.905,51 (€10.930,00+€36.463,00+€95.512,51) em 2015; 2) €82.989,55 (€1.925+€6050,00+€75.014,55) em 2016; 3) e €106.074,27 (€16.824,15+€89.250,12) em 2017, omitidos pelo Arguido, agindo por si e na qualidade de legal representante da M..., Unipessoal, Lda.

            15. Tal deu origem a falta de liquidação de IRC nos termos constantes da tabela do 15.º parágrafo do Despacho de Pronúncia (que, por seu turno, deu como reproduzida a tabela constante do 15.º parágrafo do Despacho de Acusação), cujo teor se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

           16.Donde, o IRC em falta ascende aos valores de: 1) €29.607,65 em 2015; 2) €17.108,86 em 201; e 3) €22.043,77 em 2017, perfazendo o valor global de €68.760,28 (sessenta e oito mil, setecentos e sessenta euros e vinte e oito cêntimos).

           17.Com a descrita atuação, o Arguido, agindo por si e na qualidade de legal representante da M..., Unipessoal, Lda., obteve a vantagem patrimonial ilegítima global de €68.760,28 (sessenta e oito mil, setecentos e sessenta euros e vinte e oito cêntimos).

           18.O arguido AA agiu por si e em representação da M..., Unipessoal, Lda., em nome desta e no interesse coletivo, de forma livre, com o propósito concretizado de não fazer constar na contabilidade da sociedade e na correspondente declaração fiscal de rendimentos, as operações tributárias efetivamente realizadas, omitindo-as, de modo a pagar, em sede de IRC, um valor inferior ao que efetivamente deveria ter sido pago, obtendo com isso uma vantagem patrimonial ilegítima e causando prejuízo ao Estado de valor equivalente, colocando em crise o regular funcionamento do sistema fiscal e dos interesses por este servidos.

           19.O Arguido conhecia o funcionamento da incidência fiscal, nomeadamente que em sede de IRC, a omissão de proveitos tinha a virtualidade de diminuir a matéria coletável e logo a diminuição do pagamento do respetivo imposto.

            20.O Arguido fez assim crer aos Serviços da Administração Tributária que as declarações periódicas de IRC e a contabilidade apresentadas se baseavam em documentos que titulavam fielmente os proveitos obtidos na sequência das prestações de serviços realizadas, induzindo-os em erro quanto à sua autenticidade, e, nessa sequência, locupletando-se com o montante supra indicado.

            21.O Arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

 (do Pedido de Indemnização Civil)

           22.Por força da descrita conduta do demandado AA, que agiu sempre por si e enquanto legal representante da M..., Unipessoal, Lda., a Fazenda Nacional sofreu um prejuízo no montante de €68.760,28 (sessenta e oito mil, setecentos e sessenta euros e vinte e oito cêntimos).

            23.Tal é o valor resultante da omissão, pelo demandado, de proventos

obtidos através de serviços prestados no âmbito da descrita atividade societária, ao não fazer

constar na contabilidade da sociedade e nas correspondentes declarações fiscais de rendimentos, a globalidade dos proventos obtidos nos anos de 2015, 2016 e 2017.

(da situação pessoal e profissional do Arguido)

           24.O Arguido obtém, mensalmente, a título de rendimentos e pensões, o montante global de cerca de quatro mil euros.

           25.O Arguido reside com a sua Esposa, em casa própria.

           26.O Arguido encontra-se bem inserido socialmente, participando em várias atividades comunitárias e culturais.

           27.O Arguido é visto como pessoa trabalhadora, responsável e prestável, que gosta de ajudar os outros.

           28.O Arguido não tem antecedentes criminais.

O julgamento de facto foi motivado nos seguintes termos:

A convicção do Tribunal, sempre sob a égide das regras da experiência comum, baseou-se, no que respeita aos factos julgados referidos, mormente, à conduta do Arguido, primeiramente numa sua vertente estritamente objetiva, desde logo, e atenta a natureza da matéria factual sub judice, nos elementos documentais juntos aos autos em sede de inquérito, incluindo dos autos principais, do segundo volume do Processo Penal Tributário e do Apenso I, concretizando: os prints extraídos da base de dados da Autoridade Tributária de fls. 72 a 80, a informação da Autoridade Tributária de fls. 235 a 255 e respetivos anexos a fls.256 a 519, a certidão permanente de fls. 520 a 526, os prints extraídos da base de dados da Autoridade Tributária de fls. 530 a 577, e os documentos bancários (integrantes do dito Apenso 1), cuja análise levou, em sede de inquérito.

O teor e alcance probatório dos ditos elementos documentais foi confirmado e melhor explicitado, em audiência de discussão e julgamento, por meio dos depoimentos prestados por:

i. DD, Inspetor Tributário, em exercício de funções na Direção de Finanças de Leiria, que, justamente, e de forma segura, confirmou o por si diretamente constatado, precisamente por referência aos ditos documentos que individual e conjugadamente analisou, designadamente os extratos e cópias de extratos, das transferências e dos cheques, no confronto com as faturas emitidas e com o que estava na contabilidade da Sociedade, constantes de fls.234 e seguintes do Processo Tributário m apenso, com o que foi confrontado e cujo conteúdo confirmou;

ii. EE, contabilista certificado de 67 anos de idade, nomeadamente ao serviço do Arguido, desde a constituição da Sociedade e até 2019, na medida em que confirmou que a documentação com base na qual fazia a respetiva contabilidade era-lhe trazida pela administrativa e depois sócia, do mesmo passo que Companheira do Arguido, de nome FF; bem ainda, e depois de confrontado pela Defesa com o documento número 1 junto pelo Arguido em audiência de julgamento, e adiante, já a instâncias do Ministério Público, reconheceu que o Arguido “não depositava tudo”, nem sabendo explicar o documento com que foi confrontado, acrescentando, ainda, que, “se fosse uma empresa nós no gabinete não deixávamos fazer isso”; e

iii. BB, presentemente assistente de banca de 54 anos de idade, ex-funcionária por conta do Arguido durante 4 anos, ate há cinco anos, que, de forma clara, explicou as suas funções para as quais fora contratada – “havia uma ficha, a do cliente, em que era apresentada a proposta, e na parte de trás, o cliente assinava e aceitava ao valor, e eu levava essa proposta para a empresa, (se aceitava, recebia comissão?), inicialmente foi-me dito que sim”; assim como o que, porém, sucedia: “não me dizia se tinha sido vendido, passado um mês passava no mesmo cliente, (…) as coisas eram vendidas; eu era aquela pessoa que ia dar a cara, dava valores e depois nem sabia que ia ao cliente um mês depois vender uma coisa que o cliente já tinha comprado por um preço completamente diferente”; tendo, ainda, com particular interesse, referido que “alguns eram emitidos a favor da empresa, outros a favor da (..) GG”.

De referir, pela sua relevância, que o parecer emitido pela Instrutora da Direção das Finanças de Leiria, em 03.05.2022, o foi, justamente, com base nos “factos pessoalmente verificados pelo Sr. Inspetor, descritos de fls.234 a 519”, que se consubstanciaram, conforme constante daquele Parecer, no seguinte:

(2 imagens)

e suportaram as seguintes:

(imagem)

Toda a prova documental já constante da fase de Inquérito, conjugada com a prova pessoal/testemunhal supra explicitada produzida nesta fase de Julgamento suporta, do mesmo passo que corrobora, ainda mais, nesta Fase, as ora reproduzidas Conclusões, que conduziram à prolação do Despacho de Acusação no final daquela primeira fase do presente procedimento criminal, do mesmo passo que estiveram na génese do Despacho de Pronúncia proferido a final da Instrução, até porque nem os documentos juntos pelo Arguido no início da primeira sessão da audiência de julgamento, isto é, em 13.04.2023, nem a prova testemunhal por si indicada e produzida em audiência de julgamento, analisadas em si e concertadamente, lograram abalar o alcance e valor probatórios daquela prova documental e pessoal, consignando-se, de resto, que o Arguido exerceu o seu direito ao silêncio.

Relativamente, em particular, aos depoimentos prestados pelas Testemunhas da Defesa, foram sobretudo vagos e genéricos, pelo que o seu valor e alcance probatório foi parco ou nulo numa matéria tão técnica e específica como a que se trata nos presentes autos. Ademais, quanto a alguns desses depoimentos, como seja o prestado pela Filha do Arguido, que foram muitas as reservas suscitadas, e que permanecem no espírito desta Julgadora, a respeito da credibilidade que pudesse merecer, justamente, e em suma, porque, por força de ser tão vago, não se descortinou, nem se descortina, se se encontra (ou não) a dizer a verdade ou se, para ajudar o Arguido, no caso o seu Pai, optou por contar “meia verdade” ou omitir a verdade de molde a ajudá-lo neste procedimento criminal, situação que de igual modo se pode anotar com relação a praticamente todas e cada uma das demais Testemunhas indicadas pela Defesa, que, segundo relatos das Próprias, pareciam ter ficado a dever favores e/ou dinheiro ao Arguido.

Assim:

a. HH, comercial de estruturas metálicas de 54 anos de idade, disse que o Arguido lhe fornece obras de pedra para apartamentos quando trabalhava na construção civil, e que lhe ficou a dever dinheiro, “por um negócio que correu mal” e, confrontado com o documento número 9, confirmou que foi “assinado por ele e senhora dele, foi pagando até ao montante de 64, 65 mil euros”; porém, a instâncias do Ministério Público, não soube esclarecer da emissão ou não da respetiva fatura, nem se recordava se o foi em nome individual ou se da empresa;

b. II, reformada de 53 anos de idade, que disse conhecer o Arguido por ter feito um jazigo para o filho, começou por, confrontada com o documento n.º6, parecer não saber do que se tratava, para depois descrever os detalhes do negócio, dizendo que lhe passou a fatura (“sim, quando paguei o total, ele deu-me um papel”), para, a final do seu depoimento, dizer coisa diversa, isto é, que não se lembra se passou fatura;

c. JJ, reformado de 69 anos de idade, disse que trabalhei no cemitério ... como coveiro daí conhecendo o Arguido e tendo-se tornado amigo, tendo, nesse quadro, feito uma campa, falado “a essa senhora que comprou ou ajudou comprar terreno”, porém pouco ou nada soube em concreto contar sobre o negócio, atalhando, apenas, que “as pessoas não tinha possibilidade de comprar então ele (o Arguido) ajudava a comprar esses terrenos”;

d. KK, reformado de 81 anos de idade, disse conhecer o Arguido porque “ele ia lá montar campas à ...” e porque trabalhou no cemitério na ..., tendo, porém, e à imagem das demais Testemunhas, prestado um depoimento genérico e vago, ao invés de concreto e pormenorizado, que lograsse rebater o alcance dos elementos documentais juntos aos autos em inquérito e a análise dos mesmos feitos pelo identificado Inspetor; limitando-se, nomeadamente, a contar que o Arguido “telefonava e falava com as pessoas, (…) quando ia montar os serviços, deixava uma fatura, eu às vezes fazia recebimento (…) as pessoas não era naquele dia que pagavam” e contar que “ficou com dinheiro que recebeu para ajudar um filho metido na droga” e que, quando ele me foi para pedir o dinheiro, disse que tinha a casa à venda, depois fizemos um acordo se houvesse possibilidade de ir pagando aos poucos, ele concordou”, confirmando o conteúdo do documento número sete (“isto é as prestações, era, andei 8 anos a pagar isto, era consoante eu tinha criação de porcos consoante eu vendia os porcos”, o que fazia em dinheiro);

e. LL, reformado de 71 anos de idade, conhecido do Arguido das relações profissionais, por ter sido inspetor tributário, e também das relações pessoais no âmbito do clube da terra/associação, limitou-se a atestar a boa inserção social e bom caráter do Arguido, o mesmo sucedendo com

f. MM, reformado de 76 anos de idade, conhecido do Arguido há 50 anos, por este ter sido presidente do Clube ..., corroborando a sua boa inserção comunitária e social, bem como a forma como é prestável e gosta de ajudar os demais – “colabora com as atividades do concelho, bombeiros, banda, gosta de ajudar o próximo”;

g. GG, proprietária de empresa pedreira de 47 anos de idade, Filha do Arguido, conforme já se adiantou, prestou um depoimento cuja verosimilhança deveio impossível a este Tribunal descortinar, porquanto protagonizou, nomeadamente a instâncias do Ministério Público, uma narração muito vaga e evasiva uma vez confrontada com os depósitos de valores na sua conta particular – que, inclusivamente, começou por dizer desconhecer –, não tendi logrado esclarecer de forma completa e detalhada, a sua origem e razão de ser, refugiando-se na invocação que tal terá tido lugar num período difícil da sua vida, em que se encontrava de relações cortadas com o seu Pai e reconduzindo tais depósitos a donativos de terceiros que conheceu em retiros espirituais e a ajudaram na realização de tratamentos médicos para poder engravidar;

Concretamente a respeito deste depoimento, a tarefa de inquirição dos Sujeitos Processuais, com destaque para o Ministério Público e até para esta Julgadora, revelou-se especialmente delicada, precisamente pela delicadeza do quadro de vida que a Filha do Arguido trouxe para audiência de julgamento e na qual se suportou para, frequentemente, à maioria das instâncias lhe colocadas, não responder ou pouco esclarecer justificando não se lembrar.

Contudo, e sem desvalorizar o quadro difícil de sofrimento físico e psicológico pelo qual esta Testemunha terá passado, não conseguiu este Tribunal acreditar, pelo menos totalmente e sem margem para dúvida, no que veio dizer, não só por ter sido demasiado vaga e evasiva, como também, e sobretudo, por ter protagonizado afirmações contraditórias quanto ao momento temporal em que retomou as relações pessoais e profissionais com o seu Pai e, neste âmbito, por ter sido ainda mais evasiva e contraditória quanto aos depósitos em numerário que a Própria efetuou na conta do Pai, escudando-se, e bastando-se, na afirmação de que fez por lhe ter sido pedido, o que é tão mais estranho se considerarmos o elevado número de depósitos, bem como de montantes depositados, com o que foi confrontada, porém não soube explicar, outrossim a, por si referida, ausência de relação com o seu Pai àquela data – “(como explicar depósitos em numerário na conta do pai?) certamente pediu-me para visitar a ele e à empresa (mas não tinha relação?) mas isso não implica que não me pedisse algum favor (e quantas vezes isso aconteceu?) não me recordo, foram poucos; (quantas vezes foi fazer depósito?) nesse período de 2015, 5, 10 (e se lhe disser que só em 2015 foram 174?) pois, é possível (e em 2016 162, em 2017 142? confrontada com anos e valores, alguma explicação para isto?) ele pediu-me para fazer, eu fiz (…), (sabia a razão dos depósitos?) só pedia para passar mo banco para depositar”;

h. NN, trabalhador da construção de 56 anos de idade, disse conhecer o Arguido porque fez um jazigo para o pai que lhe faleceu e o ajudou, foi impreciso quanto aos termos do negócio (valores e ano), porém, e estranhamente, atenta a vaguidão da parte inicial do seu depoimento, firme em dizer que o Arguido lhe passou “uma fatura e ao fim quando eu aguei, passou recibo em como tinha pago”;

i. OO, reformada de72 anos de idade, irmã do Arguido, limitou-se a confirma que o pai faleceu e receberam indemnização da companhia de seguros, pelos 9600 contos, que foi dividida pelos irmãos; e

j. FF, trabalha na empresa do Arguido, de 65 anos de idade e sua esposa, protagonizou um depoimento muito vago, reconhecendo a Própria que não se lembra com precisão dos negócios, incluindo do relacionado com o jazigo, em conseguindo explicar transferências efetuadas na sua conta, contrapondo, apenas, que “no começo cometia alguns erros no NIB da conta”.

Neste conspecto, e ora quanto aos factos considerados provados sob os pontos 18. a 21., constitui a conclusão que se impõe perante a análise dos factos provados sob os pontos anteriormente analisados à luz do normal acontecer: ao, nos anos de 2015, 2016 e 2017, emitindo várias faturas por valores inferiores aos efetivamente acordados e recebidos pelos serviços societários prestados, assim como ao não emitir quaisquer documentos referentes a estes e efetivamente pagos, sabendo que a tanto estava obrigado na sua veste de contribuinte, o Arguido necessariamente sabia que colocaria, conforme colocou, em causa a verdade da respetiva situação tributária em sede de I.R.C., visando, com isso, a sua sonegação e evitando o seu pagamento, assim como necessariamente sabia que colocava em causa o património da Fazenda Nacional, do mesmo passo que a verdade da respetiva situação tributária, violando os deveres de colaboração e lealdade, nada constando dos autos, ademais, que infirme tal conclusão ou, sequer, indicie que não tivesse atuado livre e consciente da contrariedade ao Direito da conduta por si encetada.

Quanto à situação profissional, económica, pessoal e social do Arguido, considerou-se as declarações prestadas pelo Próprio a final da audiência de julgamento, assim como os depoimentos prestados por Testemunhas por si indicadas nos termos supra explicitados.

No que concerne à ausência de antecedentes criminais, teve-se em atenção o respetivo certificado de registo criminal, juntos aos autos em 11.04.2023.

As questões suscitadas:

Na apreciação do recurso haverá que começar pelas questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da decisão, colocando-se a questão de saber se ocorre nulidade por omissão de pronúncia, como entende o Exm.º Procurador-Geral Adjunto à luz do disposto no art. 379°, nº 1, al. c), 1.ª parte, do Código de Processo Penal (diploma a que se reportam todas as demais normas citadas sem indicação de origem), matéria que é, aliás, de conhecimento oficioso pelo tribunal ad quem [1].

Arguiu o recorrente a nulidade do processo e, por referência ao art. 32º da Constituição da República Portuguesa, a violação das suas garantias de defesa. Aliás, já no requerimento de abertura de instrução tinha invocado diversas inconstitucionalidades, ilegalidades e nulidades respeitantes à fase de inquérito e à acusação deduzida, apontando violação das garantias constitucionais decorrentes do art. 32º da Constituição da CRP sem, contudo, ter logrado acolhimento, tendo a decisão instrutória mantido na íntegra a acusação deduzida. Na parte que agora releva, essa decisão tem o seguinte teor:

Da nulidade da acusação:

De acordo com o disposto no artigo 283º, nº. 3 al. a) a d) do CPP a acusação contém, sob pena de nulidade:

a) As indicações tendentes à identificação do arguido;

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado;

d) A indicação das disposições legais aplicáveis;(…)

A acusação deve conter a descrição dos factos de que o arguido é acusado, efectuada de forma discriminada e por referência a cada um dos actos constitutivos do crime, devendo ser feita menção a todos os elementos da infracção e aos factos concretos praticados pelo arguido, sem imprecisões ou referências vagas e genéricas, as quais nunca poderão determinar uma decisão de condenação.

A acusação é formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado com a pena prevista na lei.

“Elemento essencial da acusação é a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, ou seja, os elementos constitutivos do crime, sendo estes que constituem o objecto do processo e como tal o objecto do julgamento” (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 1994, Volume III, pág. 114 e 115).

Perante a estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente imposta – artigo 32º, nº. 5 da Constituição da República Portuguesa - os poderes de cognição do tribunal estão limitados ao objecto do processo, definido pelo conteúdo da acusação.

As garantias de defesa a que alude o artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, inculcam também, claramente, a necessidade de o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles possa convenientemente defender-se.

A descrição dos factos e de todas as circunstâncias pertinentes deve ser muito cuidada, pois se é certo que na fase de julgamento podem ser ainda consideradas as circunstâncias que não impliquem alteração substancial dos factos, é de todo o interesse que todas as circunstâncias conhecidas no momento da acusação sejam nela descritas para serem objecto de defesa, de apreciação no julgamento e consideradas na decisão.

A referência à necessidade de narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e de indicação das disposições legais aplicáveis, deve ser entendida nos termos supra referidos.

Isto é, a acusação deve conter todos os factos necessários para uma eventual solução de direito adequada.

A dedução da acusação sem observância dos requisitos legais do nº. 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal constitui nulidade dependente de arguição nos termos do disposto no artigo 120º e 121º do Código de Processo Penal.

O arguido requerente da instrução veio invocar a nulidade da acusação com fundamento no facto de a mesma não apresentar uma descrição circunstanciada do comportamento assumido pelo mesmo.

No caso concreto a acusação apresenta uma descrição circunstanciada do comportamento do arguido, com a descrição dos factos imputados, a indicação do período temporal em que os mesmos ocorreram, a forma de actuação assumia pelo arguido ao longo desse período e a indicação da motivação subjacente à sua actuação.

O arguido leu a acusação e teve a percepção clara dos factos que ao mesmo são imputados, razão pela qual veio requerer a abertura de instrução, invocando argumentos e circunstâncias para rebater os factos descritos na acusação e o entendimento seguido pelo MP tendo por base os dados recolhidos pela autoridade tributária.

Pelo exposto, entende-se que a acusação não padece da nulidade invocada, contendo a mesma a descrição de factos de natureza objectiva e subjectiva necessários ao preenchimento do crime imputado ao arguido, sendo que o arguido entendeu a acusação deduzida e em tempo reagiu à mesma requerendo a abertura de instrução.

No caso concreto as garantias de defesa do arguido não foram afectadas.

Assim sendo improcede a nulidade invocada.

(…)

IV – Das questões suscitadas na instrução.

a) O arguido invoca que foi violado o princípio constitucional consagrado no artigo 32º, nº. 1 do CPP, uma vez que o inquérito surgiu na sequência de denúncia feita por uma ex trabalhadora, tendo tido como consequência a abertura de procedimento de inspecção tributária, cuja prova foi utilizada no âmbito do processo penal. Refere o arguido que o Tribunal Constitucional considerou que é inconstitucional a interpretação dos artigos 61º, nº. 1, al. d); art. 125º e 126º, nº. 2, al. a) do CPP, relativos à proibição de prova obtida contra a vontade e coacção do arguido.

No que concerne à questão da nulidade/proibição da valoração da prova (documental e testemunhal) recolhida em sede de inspecção tributária, cumpre referir que no âmbito do procedimento de inspecção tributária o sujeito passivo do imposto está sujeito e obrigado a um rol de deveres que não se coadunam com os direitos do arguido.

Na área do procedimento tributário, o contribuinte está sujeito ao dever de colaboração ou cooperação.

A Administração Tributária está interessada na arrecadação de receitas, estando dotada de várias prerrogativas de actuação. No entanto a sua actividade está vinculada aos “princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários” (artº 55º da Lei Geral Tributária (LGT), DL nº 398/98, de 17 de dezembro).

Adquirida a notícia de um crime tributário, procede-se a inquérito, sob a direcção do Ministério Público, com as finalidades e nos termos do disposto no Código de Processo Penal – cfr. art. 40º, nº 1, do RGIT, como sucedeu no caso concreto, sendo que por despacho proferido pelo Ministério Publico em 13.09.2018 (fls.58) foi delegado no NIC da Direcção de Finanças de Leira, a realização de diligências de investigação relativamente a factos aptos a integrar em abstracto a prática de crime de fraude fiscal.

A questão primordial é a de saber se podem ser usados em processo penal documentos obtidos em inspecção tributária ao abrigo do dever de cooperação e depoimentos de quem procedeu a essa inspecção; ou se tal utilização viola direitos consagrados do arguido, ao silêncio e à não “auto-inculpação”.

Tal ponderação tem de ser feita tendo presente que o arguido em processo penal goza do direito ao silêncio e no âmbito da fase administrativa da inspecção impende sobre o mesmo o dever de colaboração.

O arguido defende a vigência irrestrita e sem quaisquer limitações do direito à não auto-incriminação e do direito ao silêncio, o que se não pode aceitar por representar a prevalência sem quaisquer limitações do princípio nemo tenetur se ipsum accusare sobre os valores constitucionais de tutela do sistema fiscal.

Veja-se o artigo de Helena Magalhães Bolina, «O direito ao silêncio e o estatuto dos supervisionados», Revista do CEJ, 2º semestre 2010, nº14, pp. 383 e ss. – apesar de o respectivo objecto ser “o processo de contra-ordenação no âmbito do mercado de valores mobiliários”, grande parte dos argumentos têm aqui aplicação.

Mesmo considerando que os direitos à não auto-incriminação e ao silêncio têm fundamento imediato nas garantias processuais que a CRP impõe (artº 32º) e na exigência constitucional de um processo penal equitativo (artº 20º, nº4) e que as garantias de defesa são extensíveis a qualquer processo onde possam ser aplicadas sanções de carácter punitivo, incluindo não penal, esta vigência alargada não impede que tais direitos possam ser legalmente restringidos no âmbito do ordenamento

jurídico português Figueiredo Dias e Costa Andrade, apud Estudo cit. de Helena Magalhães Bolina, p.418.

Ora, tais restrições existem justamente no quadro do desempenho pelo Estado, via Administração Fiscal, de funções de apuramento da situação tributária dos contribuintes, atento o carácter primordial dessa vigilância-fiscalização e simultaneamente, a repercussão na esfera colectiva.

Por esta via, garantido está o princípio da proporcionalidade, previsto no artº 18º, nº2, da CRP.

Os documentos e elementos recolhidos pela Administração Fiscal junto dos contribuintes, ao abrigo de um dever geral de colaboração ou na sequência de deveres de informação que a estes são impostos, não constituem prova proibida.

E sendo validamente recolhidas no âmbito da fase administrativa (inspectiva), tais provas deverão ser tomadas em consideração no processo criminal em que sejam arguidas as pessoas que entregaram esses elementos.

O dever de colaboração constitui uma restrição do princípio da não auto-incriminação, justificada pela necessidade de assegurar a incumbência constitucional da tutela do sistema fiscal e legítima por expressamente prevista na legislação tributária ordinária.

Tais elementos podem ser sempre amplamente contraditados.

Por conseguinte, as provas de ordem documental e pessoal mencionadas na acusação não configuram “métodos proibidos de prova”, nem enfermam de nulidade insanável.

Do exposto conclui-se que o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, é uma marca irrenunciável do processo penal de estrutura acusatória, visando garantir que o arguido não seja reduzido a mero objeto da atividade estadual de repressão do crime, devendo antes ser-lhe atribuído o papel de verdadeiro sujeito processual, armado com os direitos de defesa e tratado como presumivelmente inocente. Daí que para proteção da autodeterminação do arguido, este deva ter a possibilidade de decidir, no exercício de uma plena liberdade de vontade, qual a posição a tomar perante a matéria que constitui objeto do processo.

Este princípio, além de abranger o direito ao silêncio propriamente dito, desdobra-se em diversos corolários, designadamente nas situações em que estejam em causa a prestação de informações ou a entrega de documentos autoincriminatórios, no âmbito de um processo penal.

Estando em causa, em concreto, documentos utilizados como prova num processo penal, que haviam sido entregues no cumprimento de deveres de cooperação com a administração tributária quando esta se encontrava no exercício de atividades inspetivas e fiscalizadoras necessárias ao apuramento de uma determinada situação tributária, documentação e informação cedida pelo contribuinte à administração tributária, no cumprimento dos aludidos deveres de cooperação, as mesmas são utilizáveis, não apenas no processo de inspeção, que poderá dar lugar à correção da situação tributária, mas também num eventual processo de natureza sancionatória penal, que venha a ser instaurado na sequência ou no decurso da inspeção.

Sendo certo que a imposição aos contribuintes de deveres de cooperação com a administração tributária, que poderá incluir a entrega, a solicitação desta, de documentos que, depois, num processo de natureza sancionatória penal, possam ser usados contra esses próprios contribuintes, constitui uma compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, que se traduz numa restrição não desprezível daquele princípio, importa apreciar se tal restrição é ou não constitucionalmente aceitável, tendo sido já objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional esta questão e tendo este Tribunal concluído que “ a interpretação normativa em questão não viola qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente o direito à não autoincriminação, incluído nas garantias de defesa do arguido em processo penal, asseguradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, nem qualquer dos restantes direitos constitucionais invocados pelo Recorrente».

A este respeito cita-se aqui o ACÓRDÃO do Tribunal Constitucional Nº 279/2022, processo n.º 1093/2021, 1.ª Secção, Relatora: Conselheira Maria Benedita Urbano, nos termos do qual se decidiu:

“ a) Não julgar inconstitucional a norma resultante da interpretação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), e 125.º do Código de Processo Penal, no sentido de que os documentos obtidos por uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.°, n.º 1, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira, e 59.°, nº 4 da Lei Geral Tributária, ocorrida previamente à instauração da fase de inquérito, podem posteriormente vir a ser usados como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal movido contra o contribuinte”

O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20-01-2014, proferido no processo nº. 97/06.0IDBRG.G2, Relator ANTÓNIO CONDESSO, em cujo sumário se pode ler:

I – Existindo embora alguma tensão dialética entre o dever de cooperação do contribuinte, na área do procedimento tributário, e o direito ao silêncio e a não facultar meios de prova, reconhecido ao arguido no processo penal, podem neste ser usados os documentos obtidos pelas autoridades fiscais ao abrigo daquele dever de cooperação.(…)

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O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.02.2020, proferido no processo nº 2792/13.8IDPRT.P1, Relator JORGE LANGWEG, em cujo sumário se pode ler:

“Sempre que a administração tributária, em inquérito penal, solicita a técnico oficial de contas de um contribuinte algum elemento contabilístico – v.g. extrato de conta-corrente -, que o fornece, tal não constitui um método proibido de prova à luz do disposto no artigo 126º, 2, a), do Código de Processo Penal e violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, por não ter sido imposto algum tipo de colaboração ao contribuinte arguido”.

O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29.01.2007, Relator CRUZ BUCHO, em cujo sumário se pode ler.

“ I – Sustenta o recorrente, que os valores das retenções descriminadas na sentença foram considerados provados apenas com base nas contas correntes anexas aos autos e que tais contas correntes não provam que o contribuinte deve determinada quantia às Finanças, não fazem prova bastante dos valores concretos deduzidos e retidos sobre ordenados e rendas pagas.

II – No entanto, antes do mais importa frisar que conforme resulta da motivação da sentença, o tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nas declarações dos arguidos conjugadas com o depoimento da testemunha Inspector Tributário que realizou a acção inspectiva à sociedade arguida e com a documentação junta aos autos, e como salienta o Ministério Público junto do tribunal recorrido foi precisamente com base nos elementos que a sociedade arguida fez chegar à administração fiscal que foi possível determinar os valores do IRS em causa e que foram tomados bons pelo Fisco.

III – E se é certo que o recorrente reconhece que os valores de IRS retidos e não pagos, categorias A e F “foram extraídos pela análise das fotocópias dos extractos de conta corrente divisionárias que evidenciavam saldos credores”, são esses elementos contabilísticos que pretende por em crise, alegando:

a) a conta corrente apenas regista movimentos contabilísticos a crédito e débito pelo que para se justificar os lançamentos contabilísticos, necessário se toma analisar os documentos que suportam a conta corrente, tais como entre outros, facturas, recibos, notas de débito, notas de crédito, os quais não constavam dos autos nem foram juntos pela Direcção de Finanças.

b) A empresa apresentava erros na contabilidade, conforme decorre da leitura do relatório de acção inspectiva pelo que existe a possibilidade de as conta correntes apresentarem erros de lançamento

c) Por força do princípio da presunção de inocência, incumbindo ao Ministério Público a prova dos factos constitutivos do crime, não compete aos arguidos carrearem quaisquer elementos que infirmassem a correcção dos valores apurados.

IV – Mas não se nos afigura que o recorrente tenha razão.

V – Na verdade, as verbas ali mencionadas foram inscritas pela sociedade arguida, de acordo com as regras da contabilidade pública, e cujo representante, ora recorrente, parece menosprezar, sendo certo que nos termos do artigo 75° da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Dec.-Lei n.o 398/98, de 17 de Dezembro “Presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na presente lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal.”

VI – É certo que entre nós vigora o princípio da presunção de inocência já que segundo o artigo 32°, nº 2 da Constituição da República, todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, pelo que, em face desta presunção compete à acusação a narração ainda que sintética, e a prova dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena em processo criminal.

VII – Simplesmente, o recorrente parece esquecer um outro prlncípio fundamental: o dever de colaboração ou de cooperação fiscal por parte dos contribuintes expresso v.g. no artigo 59°, nº 1 da citada Lei Geral Tributária (“Os órgãos da administração tributária e os contribuintes estão sujeitos a um dever de colaboração mútua”) e no artigo 48°, nº 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Dec.-Lei nº 433/99, de 26 de Outubro (“O contribuinte cooperará de boa fé na instrução do procedimento, esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo os meios de prova a que tenha acesso”), colaboração que é no dizer de Salvator la Rosa “uma componente indispensável da determinação dos impostos” (apud Saldanha Sanches “Ónus da prova e deveres de cooperação”, in Fisco, nº 6, 15Mar 1989, págs. 25-26,) e não viola aquele princípio constitucional da presunção de inocência (como em Espanha o Supremo Tribunal já teve oportunidade de afirmar – cfr. Miguel Angel Montanés Pardo, La Presunción de Inocência, Aranzadi, 1999, pág. 136), embora entre um e outro, mais exactamente o direito ao silêncio ao silêncio do arguido no processo penal fiscal e o seu dever de cooperação, no processo administrativo de fiscalização, em certas áreas – que não as do caso em apreço - se estabeleça uma certa “tensão dialética” (na terminologia de Nuno Sã Gomes, Evasão Fiscal, Infracção Fiscal e Processo Penal Fiscal, cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, nº 177, 1997, págs. 371-314).

VIII – Assim, embora caiba à Administração fiscal a prova da existência do facto tributário (cfr. v.g. o artigo 74°, nº 1 da citada Lei Geral Tributária), o que no caso foi feito, como vimos, pelos elementos contabilísticos disponibilizados pela sociedade arguida, representada pelos arguidos, nomeadamente o recorrente, pretendendo o contribuinte impugnar aquele facto compete-lhe fornecer explicações plausíveis para as disparidades assinaladas, em nome do princípio da cooperação.

IX – Por isso, como bem se salienta na sentença recorrida e corresponde à verdade, ao contrário do insinuado pelo recorrente, após a conclusão da acção inspectiva foi cumprido o dever de audição da sociedade arguida e nenhum reparo foi feito então quanto ao teor do relatório da inspecção no que concerne aos valores de IRS apurados como tendo sido retidos e não entregues.

X – Por outro lado, como bem salienta o Ministério Público junto do tribunal recorrido: «(…) que outras pessoas que não os arguidos (e entre eles o arguido recorrente) tinha ou tem à sua disposição todos os documentos contabilísticos que estão na base da inserção daqueles valores na sua contabilidade, como “entre outros, facturas, recibos, notas de débito, notas de crédito “?

(…) Se é certo que ao arguido não cabe qualquer ónus de prova sobre o que concretamente lhe é imputado, correponde-Ihe o correspectivo direito inequívoco e inalienável de defesa que, contudo, deverá ser feito de um modo sério, plausível, consistente e razoável sob pena de, não tendo tais qualidades, não ter qualquer virtualidade de toldar ou perturbar a convicção que resulta da prova carreada a favor dos factos que lhe são imputados”

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Pelo exposto e contrariamente ao alegado pelo arguido a prova recolhida no âmbito da investigação feita pela administração tributária pode ser usada no âmbito do processo penal tributário, sendo que no caso concreto não ocorreu nenhuma das situações a que alude o artigo 126º do CPP.

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b) O arguido refere ainda que foi violado o Regulamento Geral da Proteccção de Dados, aprovado pelo Regulamento 2016/79 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27.04.2016 que entrou em vigor em Portugal em 25.05.2018 e Lei nº. 58/2019 de 8 de agosto. De acordo com o arguido foram violados os princípios relativos à privacidade e tratamento de dados pessoais referente a pessoas estranhas ao processo, nomeadamente em relação à sua filha, neta e ex mulher.

Ora não assiste razão ao arguido uma vez que foi por despacho do MP proferido a fls.92 e 110 que foi oficiado ao Banco de Portugal o envio dos extratos das contas bancárias relativamente às quais existiam suspeitas ao abrigo do disposto no artigo 79º, nº. 2, al. e) do RGICSF.

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c) O arguido invoca ainda que a Autoridade Tributária não concluiu a inspecção tributária iniciada em meados de 2018, não procedeu a qualquer liquidação, mesmo oficiosa de IRC, o que impede o arguido de reagir atempadamente contra a AT perante o TAF de Leiria, quanto à existência das alegadas dívidas IRC dos anos indicados na acusação. No entanto e como resulta da acusação não estão em causa factos que se reportem ao ano de 2018 no âmbito destes autos. O arguido no âmbito do processo penal pode contraditar todos os factos alegados na acusação, os quais só podem determinar uma decisão de condenação do arguido se os mesmos em julgamento e face à prova produzida venham a ser considerados como provados.

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d) Refere ainda o arguido que a liquidação do imposto indicado na acusação viola a lei, por violação dos preceitos do direito fiscal, uma vez que se baseou num rendimento presumido e não teve em conta o rendimento real.

Ora nada impede que a liquidação seja efectuada pela autoridade fiscal por avaliação indirecta, pois que essa actividade está sujeita a tributação, sob pena de se incentivar a prática de actos ilícitos, porque, por exemplo, o autor não tem contabilidade organizada, e se incentivar os prevaricadores no não cumprimento das normas legais e ainda serem exonerados dos impostos que seriam devidos.

Pelo exposto é perfeitamente legítima e legal a avaliação indirecta.

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Pelo exposto não resultaram abalados em sede de instrução os indícios já recolhidos em sede de inquérito e que fundamentaram a acusação deduzida contra o arguido, alicerçada na prova indicada na acusação.

Assim sendo, encontram-se indiciados todos os factos descritos na acusação pública, pelo que se decide pronunciar o arguido pelo crime de que está acusado.

A decisão instrutória é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a imediata remessa dos autos ao tribunal competente para o julgamento, conforme estatui o art. 310º, nº 1, do CPP.

O Exmº Procurador-Geral Adjunto sustenta que a constitucionalidade deste preceito é assegurada pelo dever do tribunal de julgamento de voltar a apreciar as questões suscitadas na instrução, não se formando quanto a elas, sequer, caso julgado formal, afirmação em que não nos revemos.

Na verdade, quanto às nulidades suscitadas na fase de instrução e desatendidas na decisão instrutória, não pode o juiz de julgamento pronunciar-se sobre elas na fase de saneamento dos autos e antes de produzida prova. É esse o sentido do nº 2 do art. 311º quando condiciona a possibilidade de rejeição da acusação aos casos em que o processo tenha sido remetido para julgamento sem ter havido instrução.

Na interpretação que fazemos do art. 311º, também o respectivo nº 1, na parte em que impõe ao presidente que se pronuncie sobre as nulidades e outra questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e de que possa desde logo conhecer, tem como pressuposto a inexistência de prévia tomada de posição judicial sobre o tema, nomeadamente, na fase de instrução, salvo se tiver ocorrido entretanto alteração de vulto (v.g., o decurso, entretanto, do prazo de prescrição do procedimento criminal, antes declarado não prescrito em sede de instrução), princípio que vale também para o estatuído no art. 338º, nº 1.

É certo que com a remessa do processo para julgamento após a prolação de despacho de pronúncia se estabelece uma relação de tensão entre as exigências de celeridade e de não protelamento do processo (fundamento da limitação do direito ao recurso assumida em letra de lei no art. 310º, nº 1) e as exigências de tutela dos direitos do arguido na vertente da garantia do direito de defesa. A irrecorribilidade da decisão instrutória não poderá em caso algum redundar num impedimento desproporcional do exercício do direito de defesa que ao arguido é reconhecido, havendo que salvaguardar em qualquer caso o direito a um processo justo e equitativo e a uma efectiva tutela jurisdicional. Nessa medida, o Tribunal Constitucional vem enfatizando que o trânsito em julgado, enquanto mecanismo essencial à estabilidade e segurança das decisões judiciais, não poderá funcionar como obstáculo intransponível ao exercício do direito de defesa.

O fim último da decisão instrutória é a tomada de posição sobre a prossecução do processo para julgamento, sem que se alcance por seu intermédio um juízo de culpabilidade do arguido ou de definitiva procedência da acusação [2]. Diferindo o objeto da pronúncia do objecto da sentença, bastando-se a decisão instrutória com um juízo meramente indiciário enquanto a sentença condenatória exige um juízo de certeza sobre a matéria de facto e, reflexamente, sobre a questão da culpabilidade, pode assumir-se que o despacho de pronúncia não forma caso julgado.

Esta última afirmação carece, não obstante, de maior aprofundamento:

Não se forma caso julgado relativamente à pronúncia propriamente dita, constituída pelo acervo fáctico que fundamenta a imputação do crime ao agente. Essa factualidade poderá vir a ser considerada provada, não provada, ou mesmo alterada com a latitude consentida pelas regras da alteração não substancial (art. 358º), ou segundo as regras da alteração substancial se houver concordância do M.P., do arguido e do assistente e desde que daí não resulte alteração da competência do tribunal (art. 359º, nº 3) e nessa medida a imputação criminal constante do despacho de pronúncia traduz uma decisão de carácter provisório por natureza, podendo soçobrar em julgamento.

Não assim relativamente às nulidades ou questões prévias ou incidentais que sejam conhecidas na decisão instrutória e que reúnam aptidão para valer com força de caso julgado formal. Essas decisões não revestem o mesmo carácter de provisoriedade assinalado à pronúncia stricto sensu e só poderão ser revertidas ou modificadas se impugnadas em recurso; afirmação que, diga-se desde já, não recolhe unanimidade, havendo divergências no que concerne aos poderes dos tribunais de 1ª instância para reapreciação de questões já apreciadas na fase instrutória [3].

Não vemos, no entanto, que uma tal reapreciação possa ser levada a cabo por um tribunal de primeira instância, como decorre já da orientação que perfilhamos quanto à restritiva interpretação do art. 311º, nº 1 e do art. 338º, nº 1. Os tribunais de instrução criminal, como os juízos criminais quando actuam nessa veste, estão integrados nos tribunais de 1ª instância. São tribunais pertencentes ao mesmo escalão hierárquico do tribunal a que incumbirá em momento ulterior o julgamento da causa, razão pela qual, no limite, admitir que o tribunal de julgamento pudesse alterar ou reverter uma decisão do juiz de instrução criminal relativa a nulidades, excepções ou questões prévias, traduziria sempre uma afronta ao princípio da obrigatoriedade das decisões judiciais para todas as entidades, aí incluídas as próprias autoridades judiciais, concatenado com os princípios do direito ao recurso e da independência dos tribunais, este último na acepção de que os tribunais são independentes não apenas relativamente aos demais poderes do Estado, mas também independentes entre si, ressalvada a vinculação às decisões dos tribunais hierarquicamente superiores (artigos 205º, nº 2, 32º, nº 1, parte final e 203º, todos da Constituição da República Portuguesa) [4] / [5].

Esta posição encontra acolhimento no texto do acórdão n.º 482/2014, do Tribunal Constitucional, na parte em que se reporta à análise da alteração do nº 2 do art. 310º: «(…),  só o reconhecimento da atribuição de autoridade de caso julgado formal às decisões proferidas pelo juiz de instrução permite compreender a ressalva introduzida no n.º 2 do artigo 310.º do CPP, pela revisão operada em 2007, ao passar a acautelar expressamente a possibilidade de o juiz de julgamento excluir provas proibidas, apesar da irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciou o arguido pelos factos constantes da acusação, mesmo na parte respeitante à decisão de nulidades e outras questões prévias ou incidentais (artigo 310.º, n.º 1 do CPP). Na verdade, aquele normativo mais não faz do que ressalvar do caso julgado formal da decisão instrutória a decisão do juiz de julgamento relativa à exclusão de provas proibidas. Se o caso julgado formal não se verificasse, não seria preciso consagrar expressamente esta exceção. Ora, se se reconhece a intangibilidade do caso julgado formado pela decisão do juiz de instrução que decide o objeto do julgamento a realizar por outro juiz, por maioria de razão, não poderá deixar de se reconhecer a vinculação no processo (caso julgado) das decisões proferidas pelo juiz de instrução cujo conteúdo se apresenta como, material e formalmente, autonomizado da decisão instrutória (cujo escopo se esgota na definição do objeto do futuro julgamento)».

           Não obstante, a inadmissibilidade de recurso da decisão instrutória de pronúncia nos termos previstos no art. 310º, nº 1, tem que ser objecto de uma interpretação conforme à Constituição, o que exige a possibilidade de aferição ulterior das questões apreciadas na decisão instrutória que comprimam ou restrinjam os direitos fundamentais do arguido. De outro modo, suscitando o arguido nulidade ou questão prévia que viesse a ser desatendida pelo juiz de instrução criminal e daí resultando uma definitiva impossibilidade de reapreciação, seria intoleravelmente comprimido o seu direito de defesa e estaria comprometido o acesso a um processo justo e equitativo. De tal forma que quanto a essas questões haverá que reconhecer ao arguido a possibilidade de suscitar a sua reapreciação em recurso a interpor da decisão final condenatória [6]/[7].

           

           O que deixámos exposto já permite entrever que segundo a perspectiva que perfilhamos não ocorre verdadeira omissão de pronúncia. Estando vedada ao juiz do julgamento a reapreciação das questões já abrangidas por decisão em primeira instância, no caso, decididas pelo Tribunal de Instrução Criminal, sobre elas não poderia a Mmª Juiz ter dito mais do que disse; o que não significa que tais questões não pudessem ser suscitadas em recurso, sob pena de não mais poderem ser reapreciadas.

           

           Posto isto, debrucemo-nos sobre as questões suscitadas no recurso, tal com resultam das respectivas conclusões.

           Num primeiro momento o recorrente veio arguir a nulidade da acusação, sustentando que esta não narra, ainda que sinteticamente, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, nomeadamente o lugar, o tempo, a motivação da sua prática e outras circunstâncias relevantes; é “conclusiva” e não refere os factos ao menos por remissão para quaisquer documentos juntos aos autos que sejam devidamente contextualizados na acusação e aí localizados, identificados com precisão e se mostrem articulados com o desenvolvimento factual lógico e cronológico e com a descrição dos factos, individualizados e a sua quantificação jurídica, razão pela qual não satisfaz as garantias de defesa emergentes do artº 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

           A questão já havia sido suscitada em sede de instrução e foi conhecida por despacho em que se decidiu que a acusação apresenta uma descrição circunstanciada do comportamento do arguido, com a descrição dos factos imputados, a indicação do período temporal em que os mesmos ocorreram, a forma de actuação assumida pelo arguido ao longo desse período e a indicação da motivação subjacente à sua actuação, tendo-se concluído que a acusação não padece da nulidade que lhe é apontada por conter a descrição de factos de natureza objectiva e subjectiva necessários ao preenchimento do crime imputado ao arguido.

            Registe-se a este propósito que a omissão de narração de factos somente integra a causa de nulidade da acusação prevista no art. 283.º, n.º 3, alínea b), quando esteja em causa uma total omissão da descrição fáctica, não já quando a acusação contiver deficiência que possa comprometer o enquadramento jurídico que lhes foi assinalado.

           Como refere Maia Costa, a indicação rigorosa do tempo ou do lugar da infracção pode por vezes ser difícil ou mesmo impossível. Essencial é que a referência feita na acusação a esses elementos de facto seja suficientemente precisa que permita ao arguido defender-se adequadamente [8].

           Na verdade, assim sucede no caso dos autos, constando da acusação um manancial fáctico que permite sem margem para dúvidas assimilar os exactos termos da imputação factual, abrangendo esta tanto os elementos materiais como os elementos subjetivos do tipo legal de crime imputado ao arguido. Se tais factos correspondem ou não à verdade, se têm ou não fundamento ou se têm a relevância que o Ministério Público lhes atribuiu e se são ou não susceptíveis de consubstanciar o crime imputado ao arguido é matéria que não se prende com a validade da acusação, mas com a sua procedência.

           Não se verifica, pois, a apontada nulidade da acusação nem ocorre violação das garantias asseguradas pelo art. 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.

           Prossegue o recorrente sustentando que o inquérito-crime que originou o presente processo surgiu no decurso de denuncias feitas pela ex-trabalhadora BB, em Maio de 2018, quer perante a A.T., quer perante o M.P. – DIAP, quer ainda perante o ACT., tendo em consequência, também originado abertura pela A.T., do procedimento de Inspeção Tributária, cuja prova foi utilizada no âmbito deste processo penal. Entende o recorrente que a prova obtida do contribuinte pela A.T. ao abrigo do dever de cooperação no âmbito de um processo de Inspeção Tributária enquanto decorre igualmente inquérito-crime está ferida de inconstitucionalidade, por violação do principio constitucional nemo tenetur se ipsum acusare, consagrado no artº 32º nº1 da Constituição da República Portuguesa. Tendo o arguido o direito ao silêncio e a não contribuir para a sua condenação, esse princípio não foi aplicado ao caso em concreto em virtude de ter sido obrigado, enquanto contribuinte, ao abrigo do dever de cooperação, a prestar a informação requerida pelos inspetores tributários, que foi depois usada no âmbito do processo-crime. Para que a utilização de prova fosse legitima, a sua obtenção teria necessariamente de passar pelo crivo de um Juiz de Instrução que admitiria, ou não, o acesso a documentos e outros elementos de prova, o que não sucedeu no caso em apreço.

            Coloca-se assim a questão de saber se os documentos obtidos em inspecção tributária ao abrigo do dever de cooperação podem ser utilizados no subsequente processo crime, ou se pelo contrário da utilização de tais elementos resulta violação do direito ao silencio e à não autoincriminação do arguido.

           A argumentação do recorrente estriba-se em mecanismos processuais gizados para garantir o direito de defesa e o direito a um fair trial, mas excede manifestamente o respectivo âmbito de aplicação.

           Começando pelo último dos argumentos apontados, a falta de razão do recorrente evidencia-se na exacta medida em que na fase de inquérito não se exige a intervenção de um juiz de instrução para a apreensão de documentos, salvo em casos pontuais, como resulta do regime traçado nos arts. 268º e 269º.

           Esse argumento constitui apenas uma das manifestações do inconformismo do recorrente com a utilização de documentos que se viu compelido a entregar ao obrigo do dever de cooperação, no decurso da inspecção tributária. Numa vertente mais impressiva, o recorrente alega que se viu compelido a entregar esses documentos sob pena de incorrer em responsabilidade contraordenacional e mesmo criminal, vislumbrando aí uma forma de coacção. Mas também aí lhe não assiste razão, pois essa cooperação era-lhe legalmente exigível enquanto contribuinte, como ele próprio reconhece. Sendo assim, não se poderá afirmar que tenha sido «coagido» a entregar os documentos, pois não resulta coacção no cumprimento de um dever ou de uma obrigação legal pela circunstância de o incumprimento do dever (legal) poder desencadear a aplicação de uma sanção. O conteúdo sancionatório constitui elemento de perfectibilização da norma jurídica cujo cumprimento o legislador pretende assegurar, traduzindo a sanção para o incumprimento do dever uma mera afirmação do ius imperium do Estado enquanto ente público.

           A prova obtida pela forma descrita foi licitamente alcançada no processo tributário. Para que fosse ilícita seria necessário que se verificasse alguma das situações previstas no art. 126º, nºs 2 e 3, o que no caso não sucedeu.

           Claro que o arguido tem o direito ao silêncio e à não autoincriminação, assumindo esses direitos foros de garantia constitucional. Contudo, a generalidade dos direitos constitucionais não são direitos absolutos, tendo cada um deles que se compatibilizar com outros direitos constitucionalmente tutelados, dependendo a primazia de uns e outros da escala de valores que a própria Constituição da República, porventura, permita determinar.

           Ora, a par dos direitos, liberdades e garantias que a cada cidadão assistem, a Constituição da República assegura também a legitimidade do sistema fiscal que, segundo o art. 103º do diploma fundamental, visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza. Só por lei podem ser criados impostos, determinando esta a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes, consignando-se ainda que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei. 

           A importância que a actividade fiscal representa para a realização das funções que ao Estado incumbem justifica o dever de colaboração estabelecido no art. 59º da Lei Geral Tributária (adiante referida como LGT), que se afirma numa vertente de correspectividade, assente na colaboração do contribuinte com a administração fiscal e desta com o contribuinte; assim como justifica as especiais prerrogativas de que goza a Autoridade Tributária para o cumprimento da sua função, tal como prevê o art. 63º, nº 1, da mesma Lei. A Administração Tributária está, de todo o modo, segundo o art. 55º do diploma a que no vimos reportando, obrigada a exercer as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários.

            Quanto à demais argumentação expendida pelo recorrente a este propósito, chamamos à colação o texto do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20/01/2014, quando refere que «(…) um direito fundamental pode estar em conflito com outros direitos ou com bens constitucionalmente protegidos. O fenómeno da colisão ou conflito de direitos fundamentais verifica-se quando o seu exercício colide, por exemplo, com a defesa e protecção de bens da colectividade e do Estado constitucionalmente protegidos (conflito entre direitos e outros bens constitucionais) Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 135..

           Na verdade, o que os Recorrentes fazem é o apanágio da vigência irrestrita e sem quaisquer limitações do direito à não auto-incriminação e do direito ao silêncio; o que se não pode aceitar por representar a prevalência sem quaisquer limitações do princípio nemo tenetur se ipsum accusare sobre os valores constitucionais de tutela do sistema fiscal  Veja-se o artigo de Helena Magalhães Bolina, “O direito ao silêncio e o estatuto dos supervisionados”, Revista do CEJ, 2º semestre 2010, nº14, pp. 383 e ss. – apesar de o respectivo objecto ser “o processo de contra-ordenação no âmbito do mercado de valores mobiliários”, grande parte do argumentário teorético ali defendido pela Autora tem também aqui plena aplicação.

           Mesmo considerando que os direitos à não autoincriminação e ao silêncio têm fundamento imediato nas garantias processuais que a CRP impõe (artº 32º) e na exigência constitucional de um processo penal equitativo (artº 20º, nº4) e que as garantias de defesa são extensíveis a qualquer processo onde possam ser aplicadas sanções de carácter punitivo, incluindo não penal, esta vigência alargada não impede que tais direitos possam ser legalmente restringidos no âmbito do ordenamento jurídico português Figueiredo Dias e Costa Andrade, apud Estudo cit. de Helena Magalhães Bolina, p.418.

           Ora, tais restrições existem justamente no quadro do desempenho pelo Estado, via Administração Fiscal, de funções de apuramento da situação tributária dos contribuintes, atento o carácter primordial dessa vigilância-fiscalização e simultaneamente, a repercussão na esfera colectiva (no conjunto de utilidades prestativas do Estado, da polícia às forças armadas, passando pelos hospitais, escolas e estradas…) e individual (de cada um dos cidadãos pagadores de impostos).

            Os documentos e elementos recolhidos pela Administração Fiscal junto dos contribuintes, ao abrigo de um dever geral de colaboração ou na sequência de deveres de informação que a estes são impostos, não constituem prova proibida.

           E sendo validamente recolhidas no âmbito da fase administrativa (inspectiva), tais provas deverão ser tomadas em consideração no processo criminal em que sejam arguidas as pessoas que entregaram esses elementos.

            Aliás, não faria qualquer sentido que um agente tributário, no desenvolvimento de uma acção inspectiva, deparasse com uma infracção criminal, que está obrigado a denunciar V.g., os artºs 242º, nº1, al. b), do CPP, e 62º, nºs 1 e 2, al. j) do DL 413/98, de 31.12 (Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária). , e não pudesse suportá-la com os meios de prova entretanto obtidos ao abrigo do dever de colaboração.

           Os deveres de informação e de colaboração a cargo dos contribuintes são instrumentos indispensáveis para o funcionamento efectivo e eficaz da máquina fiscal, indispensável à prossecução de outros interesses constitucionalmente protegidos.

            O dever de colaboração constitui uma restrição do princípio da não auto-incriminação, justificada pela necessidade de assegurar a incumbência constitucional da tutela do sistema fiscal e legítima por expressamente prevista na legislação tributária ordinária.

           Tais elementos podem ser sempre amplamente contraditados Como o foram, efectivamente, no caso em apreço, quer na fase de julgamento quer na de instrução, requerida pelos Recorrentes. no âmbito do processo criminal que venha a ser instaurado, nele operando naturalmente, com total amplitude, todas as garantias de defesa Como nestes autos também vem acontecendo.

            Posto, naturalmente, que se não tenha ultrapassado o ponto de compressão dos direitos de defesa constitucionalmente consagrados encontrado na salvaguarda do direito a não prestar depoimento contra si próprio, núcleo essencial do direito à não auto-incriminação e conteúdo do direito ao silêncio (artº 61º, nº1, al. d), do CPP)» [9]  .

           Acompanhamos na íntegra estas afirmações, concluindo que a utilização no processo crime dos documentos obtidos no decurso da inspecção tributária não viola o direito ao silêncio ou o direito à não autoincriminação, nem fere as garantias decorrentes do art. 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.

           

           Prossegue o recorrente alegando que a Autoridade Tributária não concluiu a inspecção tributária iniciada em meados de 2018 e não procedeu a qualquer liquidação, mesmo oficiosa de IRC, o que o impede de reagir contra a AT perante o TAF de Leiria, quanto à existência das alegadas dívidas IRC dos anos indicados na acusação.

        Não obstante, resulta da matéria de facto que não estão em causa nestes autos factos reportados ao ano de 2018, acrescendo, de todo o modo, que o recorrente teve a oportunidade de contraditar toda a matéria pela qual foi pronunciado, pelo que este argumento se oferece como irrelevante.

           Alega ainda o arguido que a liquidação do imposto indicado na acusação é ilegal por violação dos preceitos do direito fiscal, uma vez que se baseou num rendimento presumido e não teve em conta o rendimento real, incorrendo em erro de apreciação dos pressupostos de facto e de direito, erro e excesso de quantificação, “liquidada” de forma obscura, insuficiente e de forma que, fiscalmente, não se pode, sequer, considerar, como fundamentada.

            Assim, questão que se coloca é a de saber se a determinação do rendimento por métodos indiciários pode ser usada como fundamento para a condenação do agente pelo crime de fraude fiscal.

           Tempos houve em que a jurisprudência propendia maioritariamente para a orientação que negava a possibilidade de utilização do rendimento determinado por métodos indiciários como fundamento de determinação do valor em dívida para daí se retirarem consequências ao nível da incriminação do arguido por crimes de natureza fiscal. A relevância e dimensão da criminalidade económica e financeira e o peso que os crimes de natureza fiscal nela vinham assumindo conduziu a uma acrescida reflexão e estudo teórico sobre o tema, tendo-se verificado um considerável desenvolvimento jurisprudencial sobre esta matéria, fruto da frequência com que estes crimes foram surgindo nos tribunais e foram sendo tratados em sucessivas decisões dos tribunais superiores. Admite-se hoje a quantificação do montante do imposto para aferição dos pressupostos objetivos da responsabilidade criminal por recurso a métodos indiretos. Esse modo de avaliação está contemplado na Lei Geral Tributária, que explicita devidamente o seu âmbito de aplicação. Prevalece sempre a avaliação directa, visando a determinação do valor real dos rendimentos ou bens sujeitos a tributação, assumindo a avaliação indirecta um carácter subsidiário relativamente àquela (arts. 83º, nº 1 e 85º, nº 1, da LGT).

           A avaliação indirecta pode efectuar-se, entre outros casos, nas situações de impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto  [art. 87º, nº 1, b), da LGT], situação que poderá resultar, para além do mais, das situações de anomalia decorrente da inexistência ou insuficiência de elementos de contabilidade ou declaração, falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução quando não supridas no prazo legal, mesmo quando a ausência desses elementos se deva a razões acidentais [art. 88º, al. a), da LGT]. Daí o seu carácter excepcional, posto que em princípio apenas terá lugar quando o contribuinte não cumpra os deveres declarativos a que está obrigado, ainda que excepcionalmente possa resultar de caso fortuito ou acidental (v.g., a destruição dos elementos necessários à realização da declaração por força dum evento naturalístico não imputável ao sujeito fiscal).

           A determinação indiciária consiste numa avaliação de lucros tributáveis ou rendimentos líquidos por recurso a elementos que permitam extrair presunções relativas aos valores omitidos. Trata-se de uma forma de avaliação indirecta que visa a determinação do valor dos rendimentos tributáveis a partir dos elementos de que a administração tributária disponha, ainda que de natureza meramente indiciária, e procura reconstituir, mesmo que apenas aproximadamente, a verdade fiscal, tanto assim que a LGT determina quanto a ela a aplicação, sempre que possível e desde que a lei não prescreva em sentido diferente, das regras da avaliação directa (art. 85º, nº 2, da LGT).

            Este recurso a métodos indiciários não traduz senão a aplicação no domínio fiscal dos princípios utilizados pelo julgador na formulação das presunções judiciais que consubstanciam a prova por presunção, deduzindo a partir de factos conhecidos os factos desconhecidos que não são ou não podem ser objecto de prova directa, constituindo um meio de prova lícito (349º e 351º do Código Civil) e, como tal, admissível em processo penal (art. 125º do CPP).

           Repare-se que no actual sistema fiscal português (tal como sucede, tanto quanto nos é dado conhecer, na generalidade dos sistemas fiscais europeus contemporâneos), a liquidação tributária parte normalmente de uma declaração produzida pelo próprio sujeito fiscal passivo, vinculado por um dever de cooperação e de verdade que não afronta princípios constitucionais por força da natureza assinalada aos tributos fiscais, de realização dos fins políticos, sociais e económicos do Estado. Assim, a veracidade da declaração fiscal e a sua correspondência com a situação real do contribuinte traduz uma obrigação do sujeito tributário passivo, assumindo o recurso a métodos de determinação indiciária do imposto devido um carácter anómalo.

           De todo o modo, será sempre à Autoridade Tributária que caberá a verificação da regularidade da declaração produzida e a sua conformidade com a verdade fiscal, podendo investigar o que tiver por conveniente para esse efeito, substituindo-se, se necessário, ao sujeito passivo na obtenção dos elementos reveladores da situação fiscal deste, e proceder à liquidação do imposto devido.

            Em termos probatórios, estabelece o art. 74º, nº 3, da LGT que em caso de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação.

           

           Em sede penal, inexistindo qualquer proibição expressa de utilização de métodos indirectos para determinação do valor da fraude fiscal consubstanciada na actuação ilícita, haverá que reconhecer, no entanto, algumas limitações:

           - Desde logo, será necessário que os valores alcançados por essa forma possam ser assimilados no processo de formação da livre convicção do julgador por apelo a juízos que não ponham em causa as máximas da experiência, pressupondo assim uma relação directa e segura entre o valor alcançado por métodos indirectos e os elementos que lhe servem de base;

           - Simultaneamente, será de exigir que não se verifiquem circunstâncias ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado atingido;

           - Por fim, esse resultado não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo, pressupondo sempre a existência de uma base indiciária directamente demonstrada ou assente na verificação das máximas da experiência, na razoabilidade e na normalidade das situações da vida.

           Trata-se, no fundo, das exigências de validade da prova por presunção. Caberá à acusação demonstrar a verificação dos pressupostos legais da aplicação do método de avaliação indirecta e o bem fundado das conclusões por ele alcançadas, que serão depois ponderados pelo tribunal no âmbito da livre avaliação da prova, por recurso à valoração da prova no seu conjunto com particular ênfase para os elementos directamente demonstrados e para o critério de determinação dos valores liquidados.

            A impugnação da validade e razoabilidade dos juízos formulados pela primeira instância na fixação da matéria de facto só poderá ser efctuada em recurso através de uma de duas vias processualmente previstas para a impugnação do julgamento de facto:

           - Mediante a alegação de erro de julgamento, por referência à prova produzida em audiência, visando a alteração da matéria de facto pelo tribunal de recurso; ou

- Através da chamada revista alargada, mediante invocação dos vícios enumerados no nº 2 do art. 410º, desde que estes resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

            A diferença de fundo entre estas duas vias reside no objecto da apreciação. Enquanto o recurso com impugnação da matéria de facto por referência à prova produzida em audiência tem como objecto o julgamento, a revista alargada recai sobre a decisão. Aliás, o proémio do nº 2 do art. 410º é expresso ao dispor que o vício relevante para a verificação da previsão de qualquer das suas alíneas terá que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, donde se segue a inadmissibilidade da sua verificação por recurso a elementos externos, nomeadamente, documentos juntos aos autos ou outros meios de prova produzidos em audiência.

           O recorrente veio alegar a existência «(…) de vício na apreciação da prova produzida que resulta da própria decisão recorrida por si só, da prova constante dos próprios autos, conjugado com as regras da experiência comum, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova (artº 410º nº2 alineas a) e c) do C.P.P.).

            Desde logo em sede de audiência de julgamento (13-4-2023) o arguido, ora recorrente juntou aos autos documentos que o Tribunal recorrido, indevidamente, não valorou, como:

            - A conferência do total dos valores faturados depositados na conta ENI (empresário em nome individual) reconciliada e na conta particular ...98 , anos 2015, 2016 e 2017;

           - Cópias de extrato de conta bancária nº ...98 de 31-12-2017 bem como da fatura nº ...33 de 30-10-2015 do valor de € 1.070,00, em nome de CC (...),donde se alcança a entrada, a crédito, de €1.500,00 em 6-11-2015 e 1.750,00 em 1-12-2015 e a saída, a débito, a titulo de devolução da quantia de € 1.500,00 em 9-12-2015;

            - Cópias de documentos comprovativos de pagamentos ao arguido em prestações de jazigos:

            - Testemunha II entre Maio/2014 a Abril/2016;

            - Testemunha KK entre Janeiro/2008 a Dezembro de 2016;

            - Testemunha HH , entre Outubro de 2011 a Setembro/2017 (Docs. 6, 7 e 9 juntos aos autos em 13-4-2023)».

           Resulta desta alegação uma evidente confusão entre a revista alargada e a impugnação de facto no âmbito da alegação do erro de julgamento, modos distintos de impugnação do julgamento de facto.     

           Através do alegado, o recorrente procura demonstrar a verificação dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova, com sede legal no artº 410º, nº2, alíneas a) e c), mas fá-lo ao arrepio do regime legal, como resulta das considerações que se expenderam supra quanto ao funcionamento da revista alargada, que não poderá contar senão com o texto da decisão recorrida, por si só ou concatenado com as regras da experiência, como resulta do próprio texto da lei e vem sendo sistematicamente apontado pela jurisprudência.

           Trata-se, não obstante, de vícios de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, pelo que conheceremos desses vícios, ainda que de forma necessariamente singela porquanto o texto da decisão em crise não permite tê-los por verificados.

            Assim, numa breve aproximação ao âmbito de cada um daqueles vícios e por referência à posição que relativamente a eles vem sendo jurisprudencialmente assumida, adiantaremos o seguinte:

           A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada traduz-se numa insuficiência dos factos provados para a conclusão que deles se extraiu. Verifica-se nas situações em que se evidencia que a decisão de direito foi tomada sem que se tenham apurado factos suficientes para uma decisão ponderada no âmbito das soluções plausíveis. Se a decisão, condenatória ou absolutória, não tiver suporte seguro nos elementos de facto provados, devendo concluir-se que tais factos não consentem a decisão encontrada, ou se «houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa» [10], estaremos perante o vício previsto nesta alínea.

            Por seu turno, o erro notório na apreciação da prova “existe quando, do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta evidente, por não passar despercebido ao comum dos observadores, uma conclusão sobre o significado da prova, contrária àquela a que o tribunal chegou a respeito dos factos relevantes para a decisão de direito” [11], exigindo-se que seja um erro manifesto, um erro evidente, decorrente da leitura do texto da decisão. A interpretação que se traduz numa outra leitura, meramente possível ou razoável, da prova produzida, não traduz erro notório, não se tendo por verificado este vício quando o recorrente discorda da forma como o tribunal valorou a prova produzida e fixou a matéria de facto.

            No caso vertente não se verifica qualquer erro notório, ostensivo ou evidente na apreciação da prova, assim como se não verifica insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porquanto os factos assentes, tal como foram descritos pelo tribunal a quo, conferem suporte seguro à decisão alcançada e são coerentes com a fundamentação que a sentença recorrida assinalou.

            Restaria, pois, a via da impugnação ampla da matéria de facto, através da alegação de erro de julgamento por referência à prova produzida em audiência, visando a alteração da matéria de facto fixada.

           O recorrente alegou, efectivamente, o erro de julgamento, e ainda ensaiou a impugnação da matéria de facto para esse efeito. Ensaiou, dissemos, porque referiu testemunhas e documentos, mas omitiu completamente o procedimento processual previsto no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP.

                Desde logo, a alegação de erro de julgamento por referência à prova produzida em audiência pressupõe o cumprimento dum ónus de impugnação especificada. Querendo impugnar a matéria de facto, o recorrente tem que organizar o recurso com observância do formalismo previsto nos nºs 3 e 4 do art. 412º; nomeadamente – e para além do mais – tem que indicar nas suas conclusões os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e tem que indicar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Esta última indicação faz-se com a menção das concretas provas (para cada facto impugnado) – que impõem decisão diversa, em obediência a um objectivo prático, que é o de garantir que a impugnação apresentada tem subjacente fundadas razões de discordância.

            Tendo a prova sido gravada, essa indicação faz-se por referência ao consignado na acta, nos termos do nº 2 do art. 364º, acrescido da indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação. É este o sentido útil da lei.

Expliquemo-lo mais detalhadamente:

Segundo o nº 2 do art. 364º, “quando houver lugar a gravação magnetofónica ou audiovisual, deve ser consignado na acta o início e o termo da gravação de cada declaração”.

Por seu turno, o nº 4 do art. 412º diz que as especificações previstas nas alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, “…devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.

Portanto, impugnando um determinado ponto de facto, que concretizará, o recorrente terá que indicar as provas que fundamentam a impugnação, identificando os depoentes ou declarantes cujas afirmações corroboram a posição sustentada, indicando, por referência ao consignado na acta, as passagens concretas que fundamentam a discordância relativamente ao aspecto em análise. 

Esta indicação concreta implica a indicação dos segmentos relevantes da gravação; o que não significa que apenas os segmentos indicados pelo recorrente venham a ser ouvidos, posto que o tribunal de recurso procederá à audição “… das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa” (nº 6 do art. 412º).

Subjaz a este apertado regime de impugnação, em primeiro lugar, a finalidade assinalada ao recurso de facto, que apenas visa apreciar e, porventura, suprir eventuais vícios da apreciação da prova e da fixação da matéria de facto em primeira instância; não se procura encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso [12]. Acrescem ainda razões de ordem prática: garantir que o recorrente não reduz a sua impugnação a considerandos genéricos sobre o sentido da prova e a credibilidade dos depoimentos e assegurar, simultaneamente, a racionalização da actividade do tribunal superior. Por um lado, responsabiliza-se o recorrente pela indicação precisa dos elementos que impõem uma decisão diversa da recorrida, indicando o trecho do depoimento que pretende invocar e a sua localização; e ao mesmo tempo, faculta-se um acesso simples do tribunal de recurso aos elementos que o recorrente invoca.

Ora, o recorrente não indicou os pontos de facto incorrectamente julgados, assim como não indicou os segmentos da gravação que apoiam a posição que sustenta relativamente à prova, limitando-se a tecer considerações sobre os depoimentos que invoca. Omitiu, no entanto, a indicação concreta das passagens relevantes, transcrevendo-as (art. 412º, nº 4), precisando ainda o segmento da gravação onde se encontram. Só assim o tribunal de recurso poderia conhecer com exactidão o âmbito da impugnação e aceder a essas passagens, nos termos do nº 6 do art. 412º e decidir se outras deveriam também ser ouvidas, nos termos da parte final da mesma norma.

Ora, se as conclusões do recurso, acima transcritas (que servem, entre outras finalidades, a da delimitação do objecto do recurso [13], operando a vinculação temática do tribunal superior e definindo o âmbito do conhecimento que obrigatoriamente se impõe ao tribunal ad quem), não cumprem as exigências legais relativas à impugnação da matéria de facto, certo é que também na motivação o recorrente não procedeu às indicações a que estava obrigado para validamente impugnar o julgamento de facto. Se a omissão se limitasse às conclusões, o vício do recurso seria sanável, ainda assim, mediante convite para aperfeiçoamento, nos termos do art. 417º, nº 3. Não já quando o vício vem da própria motivação visto esta ser inalterável, não podendo as conclusões exceder os limites definidos por aquela.

Nesta medida, não tendo o recorrente impugnado a matéria de facto nos termos que lhe eram legalmente exigíveis nem sendo admissível alteração da motivação do recurso, vedado está a este Tribunal da Relação conhecer da matéria de facto.

Alega ainda o recorrente a violação do princípio in dubio pro reo, mas sem razão.

A compreensão daquilo que constitui a estrutura da convicção judicial analisada a par das exigências impostas por aquele princípio exige que se tenha presente que a dúvida relevante em processo penal não é a dúvida absoluta, antes uma dúvida metódica que reconhece a impossibilidade de concluir com segurança pela verificação de um determinado facto. De igual modo, também a certeza judiciária não é uma certeza contra todas as possibilidades, mas uma certeza lógica e racional, assente na prova, fundada num equilibrado sentido da vida e na normalidade das situações. É neste equilíbrio entre o juízo de certeza respaldado na prova e a inconsistência de factos que apesar da prova produzida não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal que é moldada a decisão penal. É esta «dúvida razoável», não uma qualquer dúvida circunstancial, que obriga ao funcionamento do in dubio pro reo, reflexo do princípio da presunção da inocência e que constitui também princípio relativo à prova [14] / [15].

           Essa dúvida razoável terá que firmar-se no conjunto da prova produzida e na razoabilidade das situações da vida. É aquela dúvida que se forma no espírito do julgador quando este, na apreciação crítica a que procede, não encontra alicerces para ter como assente um determinado facto.  Poderá sobrevir por total ausência de produção de prova (quando a prova directa não confirma o facto e não é de admitir o funcionamento de prova indirecta), por os meios de prova que apontam no sentido da verificação do facto (positivo ou negativo) não se apresentarem como convincentes, ou ainda porque as premissas que permitiriam considerar como provado um concreto facto admitem coerentemente ter como verificados factos alternativos com igual grau de probabilidade. Todas estas situações geram uma impossibilidade ôntica de verificação do facto, que até poderá ser verdadeiro, mas que não estará comprovado.

           Assim, se uma vez produzida e analisada a prova subsistir uma dúvida razoável sobre a veracidade do facto, o non liquet daí resultante será necessariamente valorado a favor do arguido. Se, pelo contrário, for alcançada uma certeza judiciária, o facto deve ser firmado como provado.

           Em sede de recurso, em que o tribunal superior não dispôe da oralidade/imediação relativamente à prova produzida, o juízo de non liquet ao arrepio da decisão de primeira instância só será de admitir se manifestamente a prova produzida não comportar outra alternativa, revelando-se absolutamente inadmissível face às regras da experiência comum, firmar o facto como provado [16]. O que o tribunal de recurso não pode é interferir com a opção do tribunal recorrido assente numa solução verosímil, racionalmente explicitada e com lastro na prova produzida.

           Simplesmente, no caso dos autos não se vê que qualquer dos factos criminalmente relevantes tenha escapado a este crivo, em prejuízo da presunção de inocência. A decisão sobre a matéria de facto foi motivada por referência às provas que fundamentaram a convicção do tribunal, efectuando a sua análise crítica com respeito pelas regras da experiência comum, nada permitindo afirmar que o tribunal a quo se tenha deparado com uma situação de dúvida e a tenha resolvido em desfavor do arguido ou que uma equivalência de soluções possíveis com igual peso impusesse um juízo de dúvida.

           De resto, se é certo que o tribunal recorrido logrou a prova de alguns dos factos que teve como assentes através de prova indirecta e de presunções judicias, superando por esse modo as interligações fácticas que não lograram directa demonstração, nem por isso resulta de algum modo inquinada a validade da prova ou se configura uma decisão contra dúvida intransponível. Mesmo quando são apontadas em audiência soluções alternativas para um facto não se segue como consequência necessária que o tribunal seja obrigado, apenas por essa razão, a permanecer em estado de dúvida. A dúvida que resulta do confronto com outras soluções plausíveis também consentidas pela prova, em termos tais que se possa afirmar que ante as circunstâncias do caso se perfilam várias soluções em termos de facto com apoio na prova produzida e igualmente verosímeis, só conduzirá a um non liquet naqueles casos em que não seja dissipada pela prova assente na oralidade/imediação. Aliás, é precisamente aqui que o princípio da livre convicção se afirma em toda a sua plenitude.

           Não é este o caso, repete-se, não se vendo que em momento algum a decisão do tribunal no âmbito da livre valoração da prova tenha beliscado o preceito constante do art. 32º, nº 2, 1ª parte, da Constituição da República Portuguesa; assim como não houve qualquer inversão do princípio a que nos reportamos, como sustenta o recorrente a dado passo da motivação, posto que todos os factos assentes encontram conforto na prova produzida sem que se possa afirmar que o tribunal recorrido fixou quaisquer factos por o arguido não ter logrado demonstrar uma outra realidade.

           Em conclusão, não ocorrendo qualquer vício que afecte a validade da matéria de facto assente, há-de esta considerar-se definitivamente fixada.

            Prossegue o recorrente, alegando que o crime de fraude fiscal é um crime de perigo em que o bem jurídico protegido é a ofensa à conta do Estado na rúbrica que inclui as receitas fiscais destinadas á realização de fins públicos de natureza financeira, económica ou social, consumando-se quando o agente com intenção de lesar patrimonialmente o fisco, atenta contra a verdade e a transparência exigidos na relação fisco-contribuinte, através de qualquer das modalidades de falsificação previstas na respetiva norma legal. Nessa medida, o crime de fraude fiscal só poderia ser cometido através de ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a A.T. especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria coletável, da ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à A.T. ou da celebração de negócio simulado. Sustenta que não praticou, na forma consumada, um crime de fraude fiscal qualificado, p. e p. pelos artigos 103º nº1 a) e b) e 104º nº2 al. b) do RGIT e muito menos causou prejuízo ao Estado em IRC em falta, dos anos de 2015, 2016 e 2017, no valor global de € 68.760,28.

               O art. 103º do RGIT, na parte que agora releva, dispõe nos termos seguintes:

            1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:

           a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;

           b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;

            c) (…)

           2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000.

           3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

            Por seu turno, dispõe o art. 104º deste diploma:

            1 - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:

            (…)

            2 - A mesma pena é aplicável quando:

            a) A fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente; ou

            b) A vantagem patrimonial for de valor superior a (euro) 50 000.

            (…)

           

            Decorre do citado art. 103º do RGIT que a fraude fiscal abrange todas as condutas ilegítimas que tenham em vista a não liquidação, entrega ou pagamento do imposto ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causar a diminuição das receitas tributárias, constituindo um crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa), traduzindo ainda um crime de perigo que tem como objecto as receitas fiscais do Estado, verificando-se a sua consumação «(…) independentemente da verificação do dano ou da obtenção de vantagem patrimonial, desde que "as condutas ilegítimas tipificadas" visem ou sejam preordenadas à obtenção de vantagens patrimoniais "suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias". Isto é, será suficiente que a conduta seja preordenada a tal fim, sendo a eventual verificação do resultado lesivo apenas relevante em sede de aplicação concreta e medida da pena» [17].

           Acrescente-se, já agora, que a verificação do tipo nem sequer depende do procedimento de liquidação do imposto, sendo a matéria de facto, tal como se encontra definitivamente fixada, elucidativa relativamente à verificação dos requisitos do tipo na sua modalidade qualificada.

            Consequentemente, o recurso improcede na sua totalidade.

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente em 4UC.

                                                           Coimbra, 10 de Abril de 2024

 (Processado pelo relator com recurso a meios informáticos e revisto por todos os signatários)


[1] - Cf. Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, anot. ao art. 379º: “Quanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento do nº 2, estabelece que «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso», o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. (…)”.
[2] - Ainda que se formule um juízo de probabilidade relativamente a uma futura condenação.
[3] - O próprio Tribunal Constitucional já admitiu, ainda que não de forma unânime, a validade dessa reapreciação da decisão instrutória pelo tribunal de julgamento. Entre outros, vejam-se os Acórdãos desse Tribunal n.ºs 95/2009 e 430/2010.
[4] - Importando assinalar duas excepções: os casos em que tenha havido efectiva modificação do enquadramento avaliado no momento da prolacção do despacho de pronúncia, seja por alteração das circunstâncias, seja pelo apuramento em audiência de matéria que imponha decisão diversa; e o poder conferido ao juiz do julgamento de excluir provas proibidas, este expressamente previsto no art. 310º, nº 2, do CPP.
[5] - Veja-se, a propósito, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 520/2011, que decidiu «Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 286.º, 288.º, 308.º, 310.º, n.º 1, 311.º e 313.º, n.º 4, do mesmo Código, quanto interpretadas tais disposições legais no sentido de que, tendo sido proferido despacho de pronúncia, na sequência de instrução, seguido de despacho emitido ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal, está vedado ao Tribunal Colectivo, na fase introdutória da audiência de julgamento, declarar extinto o procedimento criminal e, em consequência, determinar o arquivamento dos autos, por falta de relevância criminal dos factos imputados aos arguidos». A fundamentação deste aresto é particularmente elucidativa na parte em que afirma que «Esta limitação dos poderes do juiz de julgamento tem como fundamento um reconhecimento da autoridade do caso julgado formal. Tendo já sido decidido pelo juiz de instrução criminal, por decisão transitada em julgado proferida nesse processo, que o arguido deve ser submetido a julgamento pelos factos constantes do despacho de pronúncia, entende -se que o juiz do julgamento não pode reponderar a relevância criminal dos factos imputados ao arguido, com a finalidade de emitir um segundo juízo sobre a necessidade de realização da audiência de julgamento».
[6] - Ou mesmo em recurso interposto da decisão instrutória, apesar da letra do art. 310º, nº 1, do CPP, se a restrição decorrente desta norma conformar interpretação que deva considerar-se inconstitucional. Veja-se o Acórdão nº 482/2014, do Tribunal Constitucional, em cujo dispositivo, na al. c), se decidiu «julgar inconstitucional a norma do artigo 310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal no sentido de ser irrecorrível a decisão do juiz de instrução, subsequente à decisão instrutória, que aprecie a [arguição de] nulidade insanável decorrente da violação das regras de competência material do Tribunal de Instrução Criminal».
[7] - Em bom rigor, há que admitir a possibilidade de suscitar a reapreciação no primeiro recurso que deva subir imediatamente e nos próprios autos. É que poderá não chegar a haver sentença, se porventura o processo vier a terminar antes desse momento, nomeadamente, na fase de saneamento do processo. Concede-se que em tais casos não haverá, em regra, um interesse em recorrer por parte do arguido, mas poderá existir por parte do Ministério Público ou do assistente.
[8] - Código de Processo Penal Comentado, anot. ao art. 283º.
[9] - Proc. nº 97/06.0IDBRG.G2, disponível em www.dgsi.pt/jtrg
[10] - Acórdão do TRC de 12-09-2018, proc. nº 28/16.9PTCTB.C1
[11] - Entre outros, cf. o Ac. do STJ de 22 de Abril de 2004, in Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano XII, tomo 2, págs. 166/167.
[12] - No sentido apontado, veja-se o Acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss.
[13] - Jurisprudência constante dos tribunais superiores.
[14] - Também, porque é fundamentalmente um princípio geral do processo penal - cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pág. 217.
[15] - Figueiredo Dias, idem, pág. 213.
[16] - Neste sentido, veja-se o Ac. da Relação de Coimbra, de 6/03/2002, CJ, ano XXVII, 2º, pág. 44.
[17] - Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 2/10/2013, proc. nº 105/11.2IDCBR.C1