Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ALICE SANTOS | ||
Descritores: | DIFAMAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 11/09/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | LEIRIA (SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA INSTÂNCIA LOCAL DA MARINHA GRANDE – J1) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 180.º DO CP | ||
Sumário: | I - É próprio da vida social a ocorrência de algum grau de conflitualidade entre os membros da comunidade. Fazem parte do seu estatuto ontológico as desavenças, diferentes opiniões, choques de interesses incompatíveis que causam grandes animosidades. II - No caso vertente, estamos perante uma reclamação que reflecte algum tipo de censura, que recai sobre as faltas sistemáticas de uma funcionária e a passagem de uma baixa médica “fora” do prazo. No fundamental trata-se de uma reclamação com um tom expositivo mais convicto, mais crítico, talvez até impulsivo. III - Do teor da “reclamação” não se lê qualquer ataque pessoal ao assistente, ou aos seus serviços. Como é referido na sentença recorrida o que, efectivamente ressalta da reclamação é estranheza do arguido pelo facto de ter sido passada uma baixa médica com efeitos retroactivos. IV - A faculdade de crítica não está isenta de limites. V - Não se detecta no comportamento do arguido um situar-se além de tais limites, pelo que não se verifica o elemento objectivo do crime. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal. *** No processo acima identificado, após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que: a) Absolveu o arguido A... , da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º1, do Código Penal, de que vinha acusado. b) Julgou improcedente por não provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante/assistente e, em consequência, absolveu o arguido/demandado A... do pedido contra si formulado. 1 - O ofício que o arguido, concebeu, redigiu, assinou e dirigiu à ARS – Sub. Região de Saúde do Centro em (...) , e que intitulou de “Baixa médica irregular” “Reclamação”, compatibilizado com as declarações pelo mesmo prestadas em audiência de julgamento e portanto, constituem declarações confessórias, reafirmou ser estranha, esquisita, irregular a baixa médica atribuída pelo recorrente no exercício da sua profissão de médico e este fez “batota” para fazer “jeitos” à utente em questão, não constitui uma mera “reclamação” como o Tribunal entendeu, mas sim crime de difamação p. e p. pelo artº 180 nº1 do C. Penal. 2 - O arguido, atenta a sua profissão, como advogado e Provedor da Santa Casa, para fundamentar junto da ARS Sub Região de Saúde do Centro em (...) , juntou ao oficio a cópia da baixa médica, que requisitou e onde se encontra devidamente identificado o médico que a emitiu, e portanto, contrariamente ao constante do facto não provado e identificado sobre a alínea a), não podia ignorar que a baixa médica emitida pelo recorrente à
funcionária da Santa Casa da Misericórdia, era o seu próprio médico de família. Deveria portanto o facto considerado na alínea a) como não provado, por provado. 3 - Resulta das declarações confessórias prestadas pelo arguido em audiência que o mesmo declarou que o recorrente para lhe dar a baixa com data de 14/5/2013 com efeitos a partir do dia 8, nem sequer viu ou observou a funcionária, pelo que, o facto não provado e identificado pela letra b) , deveria ter sido considerado por provado; 4 - Mesmo considerando que o arguido atuou no exercício do direito à crítica, o que não é verdade, nem é o caso, o arguido, mercê da sua profissão de advogado, experiente, astuto, avisado, que é, não podia ignorar que tal direito possui limitações estruturais e de apresentação, nomeadamente: - trata-se de defesa ou denúncia de um interesse público-social; - estar a opinião/reclamação incumbida de uma verdade objetiva dos factos; - ser a opinião/crítica conduzida com correção de linguagem; - ser a opinião expressa com continência dos termos utilizados ou empregues. Portanto não se tratou de mera reclamação. 5 - O arguido com a conduta descrita, quis sim atingir o recorrente no seu brio profissional e reputação de médico, porque perfeito conhecimento possuía de que a sua conduta era de molde a produzir ofensa na sua honra e consideração. 6 – O arguido com a conduta descrita cometeu portanto o crime de difamação, pois para se verificar a prática deste crime, se basta a consciência de que o que transmitiu à ARS de (...) ofende e ofendeu o recorrente na sua honra e consideração e esta consciência resulta do próprio depoimento prestado em audiência. 7 – O arguido quis e conseguiu com a conduta adotada ofender e ofendeu a dignidade pessoal e profissional do recorrente/assistente e assim atingiu a sua honra e consideração por causa do exercício da sua profissão de médico e fê-lo de forma deliberada, livre e consciente, com manifesta intenção de o prejudicar social e profissionalmente. Conforme se alegou o arguido tinha ao seu dispor a possibilidade de obter junto da Direção do Centro de Saúde onde o assistente prestava serviço, informações sobre o modo de funcionamento das baixa médicas, mas não o fez. Foi dirigir-se à Diretora da ARS. 8 – Uma vez que na realidade o arguido cometeu o crime de que vinha acusado, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, em consequência ser o arguido condenado pela prática do crime de difamação, e, procedente o pedido de indemnização civil formulado. 9 – Com a sentença proferida foi violado o disposto nos artºs 127 e 180 do Código Penal. VV. Exªs assim decidindo farão a costumada Justiça.
Sustenta o recorrente que, o ofício que o arguido, concebeu, redigiu, assinou e dirigiu à ARS – Sub. Região de Saúde do Centro em (...) , e que intitulou de “Baixa médica irregular” “Reclamação”, compatibilizado com as declarações pelo mesmo prestadas em audiência de julgamento e portanto, constituem declarações confessórias, reafirmou ser estranha, esquisita, irregular a baixa médica atribuída pelo recorrente no exercício da sua profissão de médico e este fez “batota” para fazer “jeitos” à utente em questão, não constitui uma mera “reclamação” como o Tribunal entendeu, mas sim crime de difamação p. e p. pelo artº 180 nº1 do C. Penal. Dispõe o art 180 nº 1 do Código Penal que: O art 180 do Código Penal protege a honra e a consideração de uma pessoa, sendo a honra “aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale”. E, a consideração “ aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa á falta de consideração ou ao desprezo público” (Prof. Beleza dos Santos, ob. cit). O elemento objectivo do crime em análise estrutura-se “em dois grandes segmentos: um, o segmento da ofensa propriamente dita, que pode ser concretizado, por quem quer que seja – logo inexistência de qualquer limitação no que se refere ao universo dos candidatos positivos a sujeito activo – através da a) imputação de facto ofensivo da honra de outrem, b) por meio de formulação de um juízo de igual modo lesivo da honra de uma pessoa ou ainda c) pela reprodução daquela imputação ou juízo; o outro segmento, o segmento do rodeio ou do enviesamento, exige que as condutas anteriormente descritas se não façam directamente ao ofendido mas se levem a cabo dirigindo-se a terceiros”.(José faria da Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal). O elemento subjectivo exige o dolo sendo suficiente a imputação baseada, apenas no dolo eventual. É próprio da vida social a ocorrência de algum grau de conflitualidade entre os membros da comunidade. Fazem parte do seu estatuto ontológico as desavenças, diferentes opiniões, choques de interesses incompatíveis que causam grandes animosidades. Estas situações, entre outros meios, expressam-se ao nível da linguagem, por vezes de forma exagerada ou descabida. Onde uns reconhecem firmeza, outros qualificam de gritaria, impropérios, má educação ou indelicadeza. Como é referido no Ac da Rel. do Porto de 11/11/2015 relatado pelo Exmo. Desembargador Borges Martins não cabe aos tribunais avaliar se uma afirmação é justa, razoável ou grosseira. Apenas há um limite: não pode ser atingida a honra do visado – um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior - Comentário Conimbricence, Tomo I, pág. 607. Também esta ideia do Prof. Faria Costa a ter em conta: o facto de a honra ser um bem jurídico pessoalíssimo e imaterial, a que não temos a menor dúvida em continuar a assacar a dignidade penal, mas um bem jurídico, apesar de tudo, de menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe. Uma prova evidente de tal realidade pode encontrar-se nas molduras penais - de limites extraordinariamente baixos - que o legislador considerou adequadas para a punição das ofensas à honra. E a explicação para tal “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico, para uma certa perda da sua importância relativa, pode justificar-se, segundo cremos, de diferentes modos e por diferentes vias. Por um lado, julgamos poder afirmar-se uma sua verdadeira erosão interna, associada à autonomização de outros bens jurídicos que até algumas décadas estavam misturados com essa pretensão a ser tratado com respeito em nome da dignidade humana que é o núcleo daquilo a que chamamos honra. Referimo-nos a valores como a privacidade, a intimidade ou a imagem, que hoje já têm expressão constitucional e específica protecção através do direito penal. Por outro lado, cremos ser também indesmentível a erosão externa, a que a honra tem sido sujeita, quer por força da banalização dos ataques que sobre ela impendem - tão potenciados pela explosão dos meios de comunicação social e pela generalização do uso da internet, quer por força da consequente consciencialização colectiva em torno do carácter inelutável de tais agressões e da eventual imprestabilidade da reacção criminal – págs. 104-105,”Direito Penal Especial”, Coimbra Editora, 2004. No caso vertente, estamos perante uma reclamação que reflecte algum tipo de censura, que recai sobre as faltas sistemáticas de uma funcionária e a passagem de uma baixa médica “fora” do prazo. No fundamental trata-se de uma reclamação com um tom expositivo mais convicto, mais critico, talvez até impulsivo. “Diferente seria o caso de se tratar de expressões gratuitamente injuriosas, não correlacionadas com a ideia que se pretende exprimir ou a formulação de juízos de valor que não exprimissem uma polémica tomada de posição contra um particular modo de gerir um assunto processual, mas apenas uma vontade de agressão gratuita e de confronto com o personagem que se arroga ofendido” (ac. cit). No caso dos autos o que se retira da reclamação e é mesmo disso que se trata é uma exposição efectuada pelo arguido, enquanto provedor da Santa Casa da Misericórdia dirigida á Administração Regional de Saúde referente a uma baixa que o arguido intitula de “irregular” na medida em que a funcionária em causa faltou desde o dia 8 e apresentou a baixa médica apenas no dia 14 mas com efeitos desde o dia 8. Do teor da “reclamação” não se lê qualquer ataque pessoal ao assistente, ou aos seus serviços. Como é referido na sentença recorrida o que, efectivamente ressalta da reclamação é estranheza do arguido pelo facto de ter sido passada uma baixa médica com efeitos retroactivos. A faculdade de crítica não está isenta de limites. Para que o facto se justifique deve corresponder ao escopo para o qual aquela faculdade é concedida (não tender, por isso, a outros fins, como frequentemente acontece na prática) e deve ser desenvolvida com correcção de modos. Se são ultrapassados os limites da necessidade, ou se os modos usados são por si mesmos injuriosos (contumélia, denegrição pessoal ou similiares), a crítica é ilegítima – cfr. Antolisei, Manuale di Diritto Penale, parte especiale - I, Giuffrè, Milano, 2002, pág. 213 (Ac. cit). Ora não se detecta no comportamento do arguido um situar-se além de tais limites. A crítica pode consistir numa desaprovação, em que são emitidos muitas vezes juízos depreciativos da acção de quem lida com bens problemas patrimoniais ou pessoais de outrem – nada impedindo que humanamente essa acção possa ser deplorável ou desastrosa. Parece necessário não desencorajar todos os que colaboram com a administração da justiça, evitando que incorram em sanções severas nas hipóteses nas quais o conteúdo das suas narrações não corresponda plenamente a tudo quanto efectivamente aconteceu ou quando não estejam certos da veracidade daquilo que narram à Autoridade Judiciária – cfr. Ciro Santoriello, Calunnia, Autocalunnia e Simulazione di Reato, Cedam, 2004, pág. 59. Na jurisprudência mais recente dos Tribunais Superiores mantém-se esta orientação, como se pode ver no Ac. TRL, de 14.4.2015, CJ, Tomo II, pág. 314, o qual considerou que «apelidar a ex-cônjuge de “estúpida” e “gorda” não consubstancia um crime de injúrias; e o Ac. do STJ, de 22.1.2015, que a aplicou a um caso em que um funcionário foi apelidado de “farsola”, aresto este relatado também pelo Conselheiro Dr. Manuel Braz. Neste contexto, dúvidas não nos subsistem, que bem andou o Tribunal ao absolver o arguido. |