Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
459/13.6TAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: DIFAMAÇÃO
Data do Acordão: 11/09/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA INSTÂNCIA LOCAL DA MARINHA GRANDE – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 180.º DO CP
Sumário: I - É próprio da vida social a ocorrência de algum grau de conflitualidade entre os membros da comunidade. Fazem parte do seu estatuto ontológico as desavenças, diferentes opiniões, choques de interesses incompatíveis que causam grandes animosidades.

II - No caso vertente, estamos perante uma reclamação que reflecte algum tipo de censura, que recai sobre as faltas sistemáticas de uma funcionária e a passagem de uma baixa médica “fora” do prazo. No fundamental trata-se de uma reclamação com um tom expositivo mais convicto, mais crítico, talvez até impulsivo.

III - Do teor da “reclamação” não se lê qualquer ataque pessoal ao assistente, ou aos seus serviços. Como é referido na sentença recorrida o que, efectivamente ressalta da reclamação é estranheza do arguido pelo facto de ter sido passada uma baixa médica com efeitos retroactivos.

IV - A faculdade de crítica não está isenta de limites.

V - Não se detecta no comportamento do arguido um situar-se além de tais limites, pelo que não se verifica o elemento objectivo do crime.

Decisão Texto Integral:

Acordam  no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.


***

No processo acima identificado, após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que:

a) Absolveu o arguido A... , da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º1, do Código Penal, de que vinha acusado.

b) Julgou improcedente por não provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante/assistente e, em consequência, absolveu o arguido/demandado A... do pedido contra si formulado.

Desta sentença interpôs recurso o assistente K... , sendo do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do recurso:

1 - O ofício que o arguido, concebeu, redigiu, assinou e dirigiu à ARS – Sub. Região de Saúde do Centro em (...) , e que intitulou de “Baixa médica irregular” “Reclamação”, compatibilizado com as declarações pelo mesmo prestadas em audiência de julgamento e portanto, constituem declarações confessórias, reafirmou ser estranha, esquisita, irregular a baixa médica atribuída pelo recorrente no exercício da sua profissão de médico e este fez “batota” para fazer “jeitos” à utente em questão, não constitui uma mera “reclamação” como o Tribunal entendeu, mas sim crime de difamação p. e p. pelo artº 180 nº1 do C. Penal.

2 - O arguido, atenta a sua profissão, como advogado e Provedor da Santa Casa, para fundamentar junto da ARS Sub Região de Saúde do Centro em (...) , juntou ao oficio a cópia da baixa médica, que requisitou e  onde se encontra devidamente  identificado o médico que a emitiu, e portanto, contrariamente ao constante do facto não provado e identificado sobre a alínea a), não podia ignorar que a baixa médica emitida pelo recorrente à

funcionária da Santa Casa da Misericórdia, era o seu próprio médico de família.

Deveria portanto o facto considerado  na alínea a) como não provado, por provado.

3 - Resulta das declarações confessórias prestadas pelo arguido em audiência que o mesmo declarou que o recorrente para lhe dar a baixa com data de 14/5/2013 com efeitos a partir do dia 8, nem sequer viu ou observou a funcionária, pelo que, o facto não provado e identificado pela letra b) , deveria ter sido considerado por provado;

4 - Mesmo considerando que o arguido atuou no exercício do direito à crítica, o que não é verdade, nem é o caso, o arguido, mercê da sua profissão de advogado, experiente, astuto, avisado, que é, não podia ignorar que tal direito possui limitações estruturais e de apresentação, nomeadamente:

- trata-se de defesa ou denúncia de um interesse público-social;

- estar a opinião/reclamação incumbida de uma verdade objetiva dos factos;

- ser a opinião/crítica conduzida com correção de linguagem;

- ser a opinião expressa com continência dos termos utilizados ou empregues.

Portanto não se tratou de mera reclamação.

5  - O arguido com a conduta descrita, quis sim atingir o recorrente no seu brio profissional e reputação de médico, porque perfeito conhecimento possuía de que a sua conduta era de molde a produzir ofensa na sua honra e consideração.

6 – O arguido com a conduta descrita cometeu portanto o crime de difamação, pois para se verificar a prática deste crime, se basta a consciência de que o  que transmitiu à ARS de (...) ofende e ofendeu  o recorrente na sua honra e consideração e esta consciência resulta do próprio depoimento  prestado em audiência.

7 – O arguido quis e conseguiu com a conduta adotada ofender e ofendeu a dignidade pessoal e profissional do recorrente/assistente e assim atingiu a sua honra e consideração  por causa do exercício da sua profissão de médico e fê-lo de forma deliberada, livre e consciente, com manifesta intenção de o prejudicar social e profissionalmente.

Conforme se alegou o arguido tinha ao seu dispor a possibilidade de obter junto da Direção do Centro de Saúde onde o assistente prestava serviço, informações sobre o modo de funcionamento das baixa médicas, mas não o fez. Foi dirigir-se à Diretora da ARS.

8 – Uma vez que na realidade o arguido cometeu o crime de que vinha acusado, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, em consequência ser o arguido condenado pela prática do crime de difamação, e, procedente o pedido de indemnização civil formulado.

9 – Com a sentença proferida foi violado o disposto nos artºs 127 e 180 do Código Penal.

            VV. Exªs assim decidindo farão a costumada Justiça.
           
O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela procedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto apenas apôs o visto.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência cumpre agora decidir.

O recurso abrange matéria de direito e de facto já que a prova foi documentada.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão:
1. Com data de 15 de Maio de 2013, o arguido, na qualidade de Provedor da Santa Casa da Misericórdia da (...) remeteu para a ARS – Administração Regional de Saúde do Centro – Sub Região de Saúde do Centro, (...) , um ofício por si assinado, na qualidade de Provedor da Santa casa da Misericórdia e com o assunto identificado como: “Baixa médica irregular” “Reclamação”.
2. O ofício referido em 1. apresenta o seguinte teor:
 “Exmo.s Senhores:
 Serve a presente para apresentar reclamação quanto a uma baixa médica, que consideramos irregular, dada a uma nossa empregada, J.... , beneficiária da Segurança Social com o n.º (...) , porquanto:
 1.º - Esta Senhora tem muito má assiduidade ao serviço, desde há mais de ano;
 2º- Normalmente chega atrasada ao trabalho, devendo iniciar às 8,00 horas e chegando muitas vezes às 10,00 horas;
 3º- Falta por tudo e por nada, sem nunca avisar previamente;
 4º- A partir do dia 6 do corrente, deixou de comparecer ao serviço, tendo sido instaurado contra ela um processo disciplinar.
 5º- No dia 14 do corrente apresentou-se na instituição, exibindo uma baixa médica, que de que juntamos cópia (doc. 1), onde consta que esta baixa teve o seu início no dia 8.
 Não percebemos como é que uma pessoa vai ao médico no dia 14 e esta a considera doente desde o dia 8, provavelmente sem a ter visto.
 Vimos assim trazer o assunto ao conhecimento de V. Exª , na medida em que isto não parece uma coisa correcta.
 Aguardando, as notícias, com os nossos cumprimentos, subscrevemo-nos,
Anexa: 1 documento.
 Atenciosamente,

O Provedor”.
 3. O arguido com o teor do ofício referido pretendeu por em causa a veracidade da baixa médica da referida funcionária da Santa Casa da Misericórdia.
 4. O ora assistente era o médico de família do arguido.
 Mais se provou que:
 5. O arguido, como Provedor da Santa Casa da Misericórdia da (...) , verificou que uma trabalhadora do lar das (...) , J... , faltava ao serviço e, muitas vezes, sem qualquer justificação.
 6. (…) tendo trabalhado no dia 6 de Maio de 2013, a partir daí deixou de comparecer, perturbando, com isso, o serviço que estava organizado.
 7. O arguido não divulgou, nem publicitou o acontecimento.
 Mais se provou, com relevância para a decisão a proferir, que:
             8. O assistente exerce a profissão de médico no Centro de Saúde da (...) há cerca de 20 anos.
 9. O assistente além de médico do serviço público, exerce também na mesma localidade, a medicina privada, nomeadamente na Clínica – (...) ,Lda e, bem assim, presta serviço à Cooperação dos Bombeiros Voluntários da (...) há cerca de 15 anos.
10. O arguido foi, até há pouco tempo, utente do assistente, o qual era seu médico de família no Centro de Saúde.
11. A reclamação apresentada pelo arguido referida em 2. Chegou ao conhecimento da Directora Executiva do (...) , Dra. L... , a qual remeteu ao ora assistente uma carta com o seguinte conteúdo:
“Assunto Certificado de Incapacidade Temporária – Misericórdia da M. Grande
“Pese embora a emissão de qualquer Certificado de Incapacidade Temporária a um utente esteja no âmbito da autonomia técnica de cada médico, na situação em apreço, a que se refere o documento em anexo, muito gostaríamos de saber se existe algum dado adicional que possa  ser relevante, e que nos ajude a responder à entidade patronal da pessoa visada.
Agradecemos que a resposta nos seja dada no prazo de cinco dias úteis.”
 12. O assistente sentiu-se sofrido, indignado vexado, humilhado, envergonhado com o teor da reclamação apresentada.
 13. O demandante, como profissional de medicina é querido dos seus utentes pela dedicação que lhe entrega, quer em termos de diagnóstico médico quer ao nível de prescrição.
 Mais se provou que:
14. O arguido é Provedor da Santa Casa da Misericórdia da (...) há 18 anos.
15. O arguido actualmente está reformado, auferindo mensalmente cerca de €1.200 a título de reforma.
16. O arguido é advogado e exerce a advocacia.
17. O arguido tem regime de contabilidade organizada, auferindo no ano de 2015 um saldo positivo de €5.000,00.
18. Do Certificado de Registo Criminal do arguido “nada consta” averbado.
*
Factos Não Provados:
Não se provaram, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:
a) O ora arguido com o teor do ofício referido, apesar de perfeito conhecimento possuir que havia sido o seu próprio médico de família, o ora assistente, a emitir a baixa médica da referida funcionária da Santa Casa da Misericórdia, conseguiu pôr em causa a veracidade da baixa médica que havia sido emitida, e bem assim,
b) Pretendeu e conseguiu, comunicar à ARS que o assistente ao emitir a baixa médica à dita doente, nem sequer a viu, nem a observou, ou seja, de forma livre, voluntária e consciente, transmitiu à ARS, que o assistente emitiu uma baixa médica falsa.
c) O arguido pretendeu por em causa a dignidade profissional do assistente, o seu bom nome como médico da instituição – Bombeiros Voluntários da (...) , e bem assim a sua imagem profissional perante o Centro de Saúde onde desempenha funções e perante a sua Direcção e ainda a sua própria actividade de medicina privada, objectivo que conseguiu obter.
d) Actuou o arguido de forma intencional, com intenção de ofender o assistente, no seu bom nome e dignidade profissionais, como médico do serviço público e como médico do serviço privado.
 *
Os factos da acusação particular, da contestação e do pedido civil que não se deram como provados nem como não provados, são factos conclusivos, de direito ou irrelevantes para a decisão da causa.
 *
Motivação da Decisão de Facto:
 Dos Factos Provados

Na formação da sua convicção, o Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, a qual, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal, foi apreciada segundo a livre convicção do julgador e as regras da experiência comum.
 Relativamente aos factos provados 1 e 2 os mesmos resultam da análise do teor do documento que se encontra junto aos autos a fls. 4, compatibilizado com as declarações do arguido, o qual admitiu ser o autor do documento em questão, referindo designadamente, “fiz o ofício, fui eu que o redigi, fui eu que o concebi e fui eu que o assinei”.
 A prova do facto provado 3, resulta da própria análise do teor do aludido documento, apreciado à luz das regras da experiência comum. Com efeito, do teor literal da reclamação em causa, é manifesto que, foi pretendido por em causa a veracidade da baixa médica, tanto mais que o próprio assunto é uma “reclamação” e “baixa médica irregular”, o que não quer dizer que tal tenha sido conseguido, como mais adiante apreciaremos, aquando da motivação dos factos não provados.
 O facto provado em 4., resultou da convergência das declarações do assistente e arguido, os quais confirmaram tal facto.
Os factos provados nos n.º 5 e 6 resultaram, em primeira análise, das declarações do arguido, que confirmou que tal situação chegou ao seu conhecimento, concatenadas com os depoimentos das testemunhas E..., directora técnica do Lar das (...) , e F..., funcionária do Lar da Santa Casa da Misericórdia da (...) estando incumbida do processamento dos salários, e as quais, devido às suas concretas funções, demonstraram ter conhecimento dos factos em questão.
Quanto ao facto provado no ponto 7, tal resultou quer das declarações do arguido, quer do depoimento das testemunhas E..., directora técnica do Lar das (...) , e F..., funcionária do Lar da Santa Casa da Misericórdia da (...) (estando incumbida do processamento dos salários), de onde ressalta que não foi um assunto que tenha sido tema de conversa ou comentário, na Misericórdia, foi um assunto “que não se espalhou”. As referidas testemunhas lograram convencer o Tribunal da veracidade do seu depoimento, atenta a forma objectiva e descomprometida como o mesmo foi prestado.
 Acresce que, as testemunhas B..., C... e E..., as quais revelaram ter conhecimento da existência da aludida reclamação, referiram que tal facto lhes foi transmitido pelo próprio assistente.
 O facto provado a 8., resultou das próprias declarações do assistente.
 O facto provado a 9, resultou das próprias declarações do assistente conjugadas com o teor dos depoimentos das testemunhas B..., C... e E..., cujo depoimento mereceu credibilidade ao Tribunal atenta a ausência de hesitações e contradições durante a sua prestação, mostrando-se as mesmas isentas.
 Quanto ao facto provado a 10, resultou das próprias declarações do assistente.
 A prova do facto provado a 11., resultou da análise do teor do documento junto aos autos a fls. 71.
 A prova dos factos provados a 12 e 13, resultou das próprias declarações do assistente conjugadas com o teor dos depoimentos das testemunhas B..., C... e E..., as quais mereceram credibilidade como acima referido.
 A prova dos factos provados de 14 a 17, resultaram do teor das próprias declarações do arguido.
 Finalmente quanto à ausência de antecedentes criminais, foi valorado o certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 118.
 *
 Vejamos, agora quanto aos factos não provados:
Quanto ao facto não provado a), o mesmo resultou da análise do teor dos documentos juntos aos autos a fls.14/15, não resultando, assim, dos autos que, na sequência da “reclamação”, a validade da baixa médica (“certificado de incapacidade temporária”) tenha sido posta em causa. Acresce que não resultou provado que o arguido, ao efectuar a reclamação, tivesse conhecimento do médico que passou a aludida baixa, pois que, o arguido negou tal conhecimento, logrando convencer o Tribunal, atenta a sinceridade que tais declarações mereceram neste particular. Atente-se que, não obstante o nome do médico subscritor constar da referida “baixa”, tal facto não abala a convicção de que as afirmações do arguido foram, neste particular, sinceras.
De resto, do teor da própria reclamação, não é feita referência a nenhum médico em particular, o que reforça tal convicção.
Quanto ao facto não provado b), o mesmo foi assim considerado, atenta a ausência de prova da sua verificação, uma vez que, do próprio texto da reclamação, não resulta de forma expressa e inequívoca que o arguido tenha afirmado que o médico não viu a paciente, como, aliás, resulta do segmento “provavelmente”.
 De resto, inexistem nos autos quaisquer outros meios de prova que permitam concluir com toda a segurança pela verificação do facto em questão.
Quanto aos factos não provados c) e d) os mesmos foram assim considerados atenta a total ausência de prova nesse sentido, tanto mais, que não resulta dos autos, que o arguido tenha divulgado publicamente os factos em questão.
 De resto, analisado o teor da própria reclamação em si, não vislumbramos que a mesma, objectivamente, possa conter um juízo difamatório relativamente ao médico em questão.
 Com efeito, a reclamação tem de ser lida e interpretada no seu todo, e extraído o contexto em que a mesma foi feita.
 Analisado o teor da reclamação, resulta que o objectivo da mesma visava, sobretudo e principalmente, alertar a entidade participada para um procedimento que, no entender do arguido, participante, poderia não ser regular.
Na génese da reclamação, estão, pois, alegadas faltas ao serviço da funcionária do lar, e alegadas perturbações que tais faltas causavam ao serviço.
De resto, analisado o teor da reclamação sob a perspectiva do homem-médio, o que ressalta ter causado estranheza ao participante/reclamante, ora arguido, é o facto de ter sido passada uma baixa médica com efeitos retroactivos.
Ou seja, cremos que, as finalidades pretendidas com a aludida reclamação, visavam  sobretudo alertar a entidade participada para a alegada irregularidade do procedimento observado, e não, em concreto, proferir um juízo difamatório sobre o médico que passou a baixa à funcionária.
De resto, o meio utilizado pelo arguido, uma reclamação para a ARS segue determinados trâmites, havendo necessariamente processar-se com auscultação do visado que possa elucidar a situação em crise – razão pela qual o aqui ofendido dela teve conhecimento.
Acresce que não resultou provado que o arguido tenha divulgado publicamente o teor da reclamação que apresentou junto da ARS.
*
            Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respectiva motivação. Portanto, são apenas as questões suscitadas pela recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar.

Questões a decidir:
- Se se encontram preenchidos os elementos constitutivos do crime de difamação;

            Sustenta o recorrente que, o ofício que o arguido, concebeu, redigiu, assinou e dirigiu à ARS – Sub. Região de Saúde do Centro em (...) , e que intitulou de “Baixa médica irregular” “Reclamação”, compatibilizado com as declarações pelo mesmo prestadas em audiência de julgamento e portanto, constituem declarações confessórias, reafirmou ser estranha, esquisita, irregular a baixa médica atribuída pelo recorrente no exercício da sua profissão de médico e este fez “batota” para fazer “jeitos” à utente em questão, não constitui uma mera “reclamação” como o Tribunal entendeu, mas sim crime de difamação p. e p. pelo artº 180 nº1 do C. Penal.

Dispõe o art 180 nº 1 do Código Penal que:
Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias”.

O art 180 do Código Penal protege a honra e a consideração de uma pessoa, sendo a honra “aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale”.

E, a consideração “ aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa á falta de consideração ou ao desprezo público” (Prof. Beleza dos Santos, ob. cit).

O elemento objectivo do crime em análise estrutura-se “em dois grandes segmentos: um, o segmento da ofensa propriamente dita, que pode ser concretizado, por quem quer que seja – logo inexistência de qualquer limitação no que se refere ao universo dos candidatos positivos a sujeito activo – através da a) imputação de facto ofensivo da honra de outrem, b) por meio de formulação de um juízo de igual modo lesivo da honra de uma pessoa ou ainda c) pela reprodução daquela imputação ou juízo; o outro segmento, o segmento do rodeio ou do enviesamento, exige que as condutas anteriormente descritas se não façam directamente ao ofendido mas se levem a cabo dirigindo-se a terceiros”.(José faria da Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal).

O elemento subjectivo exige o dolo sendo suficiente a imputação baseada, apenas no dolo eventual.

É próprio da vida social a ocorrência de algum grau de conflitualidade entre os membros da comunidade. Fazem parte do seu estatuto ontológico as desavenças, diferentes opiniões, choques de interesses incompatíveis que causam grandes animosidades.

Estas situações, entre outros meios, expressam-se ao nível da linguagem, por vezes de forma exagerada ou descabida. Onde uns reconhecem firmeza, outros qualificam de gritaria, impropérios, má educação ou indelicadeza.
Mas como se escreveu no  acórdão da Relação do Porto, “
o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função” – ac. de 12.6.02, Recurso 332 /02, de que foi relator o Des. Dr. Manuel Braz.

Como é referido no Ac da Rel. do Porto de 11/11/2015 relatado pelo Exmo. Desembargador Borges Martins não cabe aos tribunais avaliar se uma afirmação é justa, razoável ou grosseira.

Apenas há um limite: não pode ser atingida a honra do visado – um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior - Comentário Conimbricence, Tomo I, pág. 607.

Também esta ideia do Prof. Faria Costa a ter em conta: o facto de a honra ser um bem jurídico pessoalíssimo e imaterial, a que não temos a menor dúvida em continuar a assacar a dignidade penal, mas um bem jurídico, apesar de tudo, de menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe. Uma prova evidente de tal realidade pode encontrar-se nas molduras penais - de limites extraordinariamente baixos - que o legislador considerou adequadas para a punição das ofensas à honra. E a explicação para tal “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico, para uma certa perda da sua importância relativa, pode justificar-se, segundo cremos, de diferentes modos e por diferentes vias. Por um lado, julgamos poder afirmar-se uma sua verdadeira erosão interna, associada à autonomização de outros bens jurídicos que até algumas décadas estavam misturados com essa pretensão a ser tratado com respeito em nome da dignidade humana que é o núcleo daquilo a que chamamos honra. Referimo-nos a valores como a privacidade, a intimidade ou a imagem, que hoje já têm expressão constitucional e específica protecção através do direito penal. Por outro lado, cremos ser também indesmentível a erosão externa, a que a honra tem sido sujeita, quer por força da banalização dos ataques que sobre ela impendem - tão potenciados pela explosão dos meios de comunicação social e pela generalização do uso da internet, quer por força da consequente consciencialização colectiva em torno do carácter inelutável de tais agressões e da eventual imprestabilidade da reacção criminal – págs. 104-105,”Direito Penal Especial”, Coimbra Editora, 2004.

No caso vertente, estamos perante uma reclamação que reflecte algum tipo de censura, que recai sobre as faltas sistemáticas de uma funcionária e a passagem de uma baixa médica “fora” do prazo. No fundamental trata-se de uma reclamação com um tom expositivo mais convicto, mais critico, talvez até impulsivo.

“Diferente seria o caso de se tratar de expressões gratuitamente injuriosas, não correlacionadas com a ideia que se pretende exprimir ou a formulação de juízos de valor que não exprimissem uma polémica tomada de posição contra um particular modo de gerir um assunto processual, mas apenas uma vontade de agressão gratuita e de confronto com o personagem que se arroga ofendido” (ac. cit).

No caso dos autos o que se retira da reclamação e é mesmo disso que se trata é uma exposição efectuada pelo arguido, enquanto provedor da Santa Casa da Misericórdia dirigida á Administração Regional de Saúde referente a uma baixa que o arguido intitula de “irregular” na medida em que a funcionária em causa faltou desde o dia 8 e apresentou a baixa médica apenas no dia 14 mas com efeitos desde o dia 8. 

Do teor da “reclamação” não se lê qualquer ataque pessoal ao assistente, ou aos seus serviços. Como é referido na sentença recorrida o que, efectivamente ressalta da reclamação é estranheza do arguido pelo facto de ter sido passada uma baixa médica com efeitos retroactivos.

A faculdade de crítica não está isenta de limites. Para que o facto se justifique deve corresponder ao escopo para o qual aquela faculdade é concedida (não tender, por isso, a outros fins, como frequentemente acontece na prática) e deve ser desenvolvida com correcção de modos. Se são ultrapassados os limites da necessidade, ou se os modos usados são por si mesmos injuriosos (contumélia, denegrição pessoal ou similiares), a crítica é ilegítima – cfr. Antolisei, Manuale di Diritto Penale, parte especiale - I, Giuffrè, Milano, 2002, pág. 213 (Ac. cit).

Ora não se detecta no comportamento do arguido um situar-se além de tais limites. A crítica pode consistir numa desaprovação, em que são emitidos muitas vezes juízos depreciativos da acção de quem lida com bens problemas patrimoniais ou pessoais de outrem – nada impedindo que humanamente essa acção possa ser deplorável ou desastrosa.

Parece necessário não desencorajar todos os que colaboram com a administração da justiça, evitando que incorram em sanções severas nas hipóteses nas quais o conteúdo das suas narrações não corresponda plenamente a tudo quanto efectivamente aconteceu ou quando não estejam certos da veracidade daquilo que narram à Autoridade Judiciária – cfr. Ciro Santoriello, Calunnia, Autocalunnia e Simulazione di Reato, Cedam, 2004, pág. 59.
A protecção penal conferida à honra só encontra justificação nos casos em que objectivamente as expressões que são proferidas não têm outro sentido que não seja o de ofender, que inequívoca e em primeira linha visam gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome de alguém.

Na jurisprudência mais recente dos Tribunais Superiores mantém-se esta orientação, como se pode ver no Ac. TRL, de 14.4.2015, CJ, Tomo II, pág. 314, o qual considerou que «apelidar a ex-cônjuge de “estúpida” e “gorda” não consubstancia um crime de injúrias; e o Ac. do STJ, de 22.1.2015, que a aplicou a um caso em que um funcionário foi apelidado de “farsola”, aresto este relatado também pelo Conselheiro Dr. Manuel Braz.

Neste contexto, dúvidas não nos subsistem, que bem andou o Tribunal ao absolver o arguido.


Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 5 ucs.

Coimbra, 09 de Novembro de 2016

(Alice Santos - relatora)

(Abílio Ramalho - adjunto)