Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
434/13.0TBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DOS CREDORES
Data do Acordão: 03/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 17-F, 194, 215 CIRE
Sumário: 1. O princípio da igualdade de credores, previsto no art. 194º, nº 1 e 2, do CIRE, aplicável ao processo de revitalização, permite que um plano de recuperação possa estabelecer diferenciações entre os credores da insolvência, desde que “justificadas por razões objectivas”, como reza a lei, apenas estando vedada a possibilidade de, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em idênticas circunstâncias;

2. Por exemplo, entre as circunstâncias que, em concreto, podem ser atendidas para estabelecer justificadas diferenciações, contam-se a distinta classificação dos créditos, o grau hierárquico dentro da mesma categoria dos créditos, e a diversidade das fontes de crédito;

3. Verifica-se violação do princípio da igualdade de credores se o plano de recuperação prevê que caso uma determinada instituição bancária/financeira, ou outro credor comum, venha a financiar futuramente a recorrente verá o seu crédito de capital e juros, o reclamado e o a constituir, ser pago, constituindo ainda a devedora a favor de tal instituição (ou outro credor comum) hipoteca sobre bens imóveis desonerados, de sua propriedade, praticamente quase “impondo” um refinanciamento, e assim beneficiando esse credor em detrimento dos demais, já que tal credor novo financiador passará a credor garantido quando até agora era apenas credor comum, ficando graduado, pela totalidade dos seus dois créditos, à frente dos demais credores não disponíveis para os novos financiamentos pretendidos, cujos créditos ficarão amputados em 75%, recebendo apenas (se receberem !?), face à constituição da apontada garantia real, 25% ao fim de 15 anos.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. M (…), S.A., com sede em Cantanhede, instaurou, ao abrigo do Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas, processo especial de revitalização, requerendo a abertura de um processo de negociações com os seus credores, alegando uma situação económica difícil.

Foi nomeada administradora judicial provisória.

Foi proferida decisão sobre as impugnações da lista provisória de créditos.

Após negociações, foi o Plano de Revitalização (constante de fls. 619 e segs.) aprovado pelos credores, por mais de dois terços da totalidade dos votos expressos emitidos, com o seguinte resultado: a. Total de votos a favor - 82,68%; b. Total de votos contra - 17,32%.

Pelos credores CGD, BANIF e BES, que rejeitaram o Plano, foi requerida a não homologação do mesmo, por violação não negligenciável de regras procedimentais e de normas aplicáveis ao conteúdo do plano, e com fundamento em que a sua situação, ao abrigo do plano aprovado, é menos favorável do que a que existiria na ausência de qualquer plano, bem como na violação do princípio da igualdade entre os credores, previsto no art. 194º do CIRE.

Também pelo credor Montepio Geral, que rejeitou o Plano, foi requerida a não homologação do plano aprovado, invocando, em suma, que a sua situação, ao abrigo do plano de recuperação aprovado é previsivelmente menos favorável do que aquela que resultaria da liquidação universal do património da devedora.

Por último, veio a credora H (...), Spa, requerer que seja declarado nulo o processo de votação e contagem de votos, recusando-se, em consequência, a homologação do plano “aprovado”.

A requerente em resposta invocou que os requerimentos dos credores são extemporâneos, por emergirem após a aprovação do plano, no qual votaram. E que do plano não resulta qualquer tratamento de desfavor para os credores por contraponto a uma liquidação em processo de insolvência, não estando demonstrada em que ordem de grandeza surge prejudicada a sua situação creditória, e inexistindo por isso motivos para a não homologação do plano.

Tais requerimentos dos credores vieram, entretanto, a ser considerados extemporâneos.

*

Foi proferida decisão que decidiu recusar a homologação do plano de recuperação aprovado.

*

2. A requerente interpôs recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:

(…)

3. A CGD contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

4. O BANIF igualmente contra-alegou, defendendo a confirmação da decisão recorrida.

5. O BES também contra-alegou, concluindo como segue:

(…)

II – Factos Provados

Os factos a considerar são os que dimanam do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 635º, nº 4, e 639º do NCPC).

Nesta conformidade as questões a decidir são as seguintes.

- Classificação do crédito comum de D (…), sem sujeição a condição (?).

- Da existência de uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano de insolvência.

2. Relativamente à 1ª questão enunciámo-la com um ponto de interrogação, porque nos dá a impressão, segundo as primeiras 7 conclusões de recurso, que a recorrente apenas pretende desvalorizar a argumentação usada na fundamentação jurídica da decisão recorrida acerca do relevo aí dado ao peso do voto favorável dado pelo credor comum, condicional, D (…), ao plano de recuperação da ora apelante.

Mas, depois, quer o ponto I. da parte II do corpo das alegações quer a parte final da 2ª conclusão de recurso deixa dúvidas se a recorrente não pretenderá questionar que o dito credor devia ser considerado como credor comum, mas sem condição.

Se assim se entender, e devendo, então, tal questão ser conhecida, podemos já adiantar, que a apelante não tem razão.

Efectivamente mostram os autos que tal credor foi considerado como tendo um crédito comum, mas sob condição, por decisão judicial de 20.9.2013 (vide fls. 446/457). Tal classificação não foi objecto de recurso, pelo que tal decisão transitou em julgado.

E assim é apesar de a recorrente ter voltado a insistir na mesma tecla (vide fls.494/496) e de o tribunal ter emitido, em 17.10.2013, novo despacho confirmativo do anterior (vide fls. 525).

Mais, ainda, o próprio credor D (…) veio requerer (vide fls.476) que o seu crédito fosse classificado sem condição - porque entretanto tinha resolvido o contrato com a ora recorrente e tornado o seu crédito por incumprimento desta como definitivo -, mas o tribunal indeferiu tal pretensão 2 vezes (!?) quer pelo seu referido despacho de 17.9.2013 quer por novo despacho de 18.10.2013 (vide fls. 557/561). Despachos de que não houve recurso (quer do referido credor, quer da ora apelante).

Ou seja, para que não haja alguma dúvida ou subsistam teimosias, tal credor D (…) goza de um crédito sobre a devedora/recorrente, classificado como comum, sob condição.      

3. Na decisão recorrida escreveu-se que:

C) Violação não negligenciável das regras procedimentais aplicáveis ou das normas aplicáveis ao conteúdo do plano

Conforme preceituado no artigo 215.º, aplicável ex vi artigo 17.º F, n.º5, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, “O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.”

Flui do disposto que, após a votação e aprovação do plano de recuperação, incumbe ao juiz decidir se deve homologar ou recusar o plano no prazo de dez dias a contar da recepção do mesmo, sendo que, a decisão do juiz vincula os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações.

De facto, do artigo 215.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, decorre o dever de o Juiz recusar a homologação do plano de recuperação aprovado, caso seja confrontado com situações de violação não negligenciável … das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza.

Sucede que, no âmbito do poder/dever que dispõe de recusar a homologação do plano de recuperação, como bem salienta Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, pág. 291, há-de o juiz ater-se às situações de “violação grave não negligenciável” das regras … de conteúdo do plano, pois que, já as “Violações consideradas menores, que não ponham em causa o interesse do devedor e dos credores afectados, não constituirão causa suficiente para que o juiz possa recusar a homologação do plano”.

Por sua vez, não distinguindo o legislador o que deve entender-se por violação não negligenciável que constitua fundamento da recusa de homologação do plano de recuperação, e estando abrangidos pelo artigo 215.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas … os … vícios … de conteúdo, considera-se, acompanhando Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit. pág. 826, que são não negligenciáveis ou não desculpáveis, todos aqueles que importem forçosamente uma violação de normas imperativas que comportem a produção de um resultado não autorizado pela lei, sendo já porém negligenciáveis todas as outras infracções que atinjam regras de tutela particular que podem ser afastadas com o consentimento do protegido.

Com efeito, é sabido que o processo especial de revitalização, nascido no âmbito do programa revitalizar criado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 11/2012, de 3 de Fevereiro, e tendo como desiderato essencial afirmar-se como uma solução de reestruturação empresarial mormente a revitalização de empresas economicamente viáveis mas que se encontrem, pelas mais diversas razões, em situação difícil, não pode ser percepcionado como mais um expediente dilatório de prorrogação da declaração de insolvência, devendo antes ser encarado como um efectivo meio para a viabilização e/ou recuperação do devedor.

Na verdade, tal como resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, de 30/12/2011, da Presidência do Conselho de Ministros, que deu origem à Lei 16/2012, o principal objectivo da alteração do CIRE visou direccionar este último diploma para a recuperação de empresas devedoras, “privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação”.

Assim, não esquecendo o disposto no artigo 9.º, n.º1, do Código Civil, tudo aponta e obriga a que, em sede de recusa da homologação do plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, em razão de violação não negligenciável de regras procedimentais, há-de forçosamente o Juiz atender ou pelo menos não menosprezar o favor debitoris, ou seja, ter de alguma forma presente o desiderato do Processo Especial de Revitalização acima mencionado.

Como gizam Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 827, “verdadeiramente do que se trata, para decidir se ela justifica ou não a recusa de homologação de um plano aprovado pelos credores (…) é de avaliar a relevância ou não da violação constatada.

Ora, no caso vertente, quanto à questão da violação não negligenciável … das normas aplicáveis ao seu conteúdo, a única situação a avaliar consiste, na possível violação do princípio da igualdade previsto no artigo 194.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

(…)

Preceitua o artigo 194.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o seguinte: “1- O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.

2 - O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.”

Por força do disposto no preceito legal transcrito, aplicável ex vi artigo 17.º-F, nº5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, há-de forçosamente obedecer ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.

Ora, traduzindo-se o princípio da igualdade num pilar essencial e estruturante na regulação do plano de insolvência, se este for postergado em sede de plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, tal consubstancia uma violação grave, não negligenciável, das regras aplicáveis ao seu conteúdo, razão porque, impõe-se então ao tribunal, no caso de inexistir o consentimento do lesado, recusar a sua homologação, por força do vertido nos artigos 192.º e 215.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Na senda do entendimento de Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit. pág. 753, entende-se que “o que está vedado é, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em circunstâncias idênticas.”

Na realidade, conforme vertido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16/11/2010, processo 103/09.6TYLSB-E.L1-1, disponível em www.dgsi.pt, “o que está vedado ao plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, na falta de acordo dos lesados, é sujeitar a regimes diferentes os credores que se encontrem em circunstâncias idênticas, e sem a verificação dum quadro objectivo que sustente uma tal diferenciação, sendo que, ainda que perante credores inseridos numa mesma classe, e dotados até de semelhantes garantias creditórias, nada obsta a que se estabeleçam/fixem diferenciações, exigindo-se tão só que assentem elas em circunstâncias objectivas que justifiquem o tratamento diferenciado.”

Aqui chegados, cumpre apreciar o caso concreto.

Da análise do plano de recuperação junto aos autos … resulta que não foi estabelecido um regime igualitário em relação aos credores reclamantes, uma vez que se estipulam regras específicas em relação aos créditos com financiamento e instrumentos financeiros novos, em virtude da aprovação do plano de recuperação.

Quanto a este ponto, pode ler-se no plano de recuperação o seguinte: “Paralelamente, na rúbrica “Medidas necessárias à execução do PER” é proposto aos credores a realização, junto da Devedora, de um financiamento adicional e da prestação de um conjunto de instrumentos financeiros novos. Estes financiamentos e instrumentos financeiros permitirão a reestruturação financeira da Empresa, em ordem a fazer face às contingências resultantes da optimização de recursos e meios, tudo por forma a reduzir custos, adequando-os às suas necessidades, e à criação da liquidez necessária ao cumprimento do presente plano de recuperação.

Para estimular e garantir financiamento novo e a disponibilização de instrumentos financeiros novos, a Devedora propõe, em alternativa ao previsto nos números anteriores, o pagamento do capital reconhecido na lista definitiva de créditos e dos juros conforme adiante proposto, bem como a constituição de garantias acessórias do reembolso dos actuais e novos créditos, além da manutenção das garantias existentes.”

Ora, no que concerne a esta situação, apesar de se reconhecer que a devedora possa estar dependente do recurso ao apoio e financiamento de instituições bancárias ou financeiras, tal situação não pode sobrepor-se ou obstar ao princípio da igualdade consagrado quer no artigo 194.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, quer no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Não obstante resultar do artigo 192.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplicável ex vi artigo 17.º-F, n.º5 do mesmo diploma legal, que o pagamento dos créditos sobre a insolvência, a liquidação da massa insolvente e a sua repartição pelos titulares daqueles créditos e pelo devedor, bem como a responsabilidade do devedor depois de findo o processo de insolvência, podem ser regulados num plano de insolvência em derrogação das normas do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, preceitua o n.º 2 do mesmo preceito legal, que o plano só pode afectar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado neste título ou consentido pelos visados.

Acresce que do artigo 196º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, decorre, através de enumeração exemplificativa, que algumas das providências com incidência no passivo que o plano de insolvência pode conter: (…)

d) A constituição de garantias”.

Com efeito, na senda do doutrinado por Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 761, “Haverá, todavia, que ter presente a regra da igualdade acolhida no art.º 194.º, não cabendo à assembleia atuação discriminatória neste domínio”.

Ora, no caso vertente, verifica-se que a devedora possui a maioria do seu património desonerado, mormente os prédios sobre os quais irá recair a constituição de hipotecas voluntárias, em favor dos credores que financiem a devedora, avaliados no montante de 3,03 milhões de euros.

Acresce que o plano prevê ainda que os credores que aceitem financiar a devedora, se detiver actualmente crédito reconhecido, receberá, na totalidade tal crédito.

De referir que, de acordo com o disposto no artigo 17.º-H, n.º 1, “As garantias convencionadas entre o devedor e os seus credores durante o processo especial de revitalização, com a finalidade de proporcionar àquele os necessários meios financeiros para o desenvolvimento da sua atividade, mantêm-se mesmo que, findo o processo, venha a ser declarada, no prazo de dois anos, a insolvência do devedor”, ou seja, ainda que venha a ser declarada a insolvência da devedora, as garantias atribuídas pelo plano aos credores, manter-se-ão.

Por fim, decorre ainda do plano de recuperação que os credores que optem por não financiar a devedora, apenas receberão 25% do capital em dívida, sem juros nem despesas, a pagar em prestações, após um período de carência de 3 anos e com termo no ano de 2031.

Assim, temos por um lado um credor que se prevalecerá de garantia sobre o património da devedora, recebendo a totalidade do seu crédito, ao passo que os restantes credores (incluindo entidades bancárias) apenas receberão 25% do capital (sem juros e sem despesas ou acréscimos) a pagar em prestações, após um período de carência de 3 anos e com termo no ano de 2031, ou seja, daqui a 18 anos.

Do exposto se retira, sem margem para dúvidas que, com a homologação do plano de recuperação em análise, os demais credores ficarão patentemente prejudicados, e numa situação de desigualdade em relação aos credores que financiem a devedora, sem se verificarem circunstâncias objectivas que justifiquem o tratamento diferenciado.

Acresce a esta situação o peso esmagador que o voto de um só credor (74,6433%), Domingos António Francisco, teve nos resultados da votação, sobretudo quando este credor é titular de um crédito sujeito a condição, como refere a Exma. Administradora Judicial Provisória.

Credor de cuja parceria depende a recuperação da devedora, com ele contando para a sua manutenção em laboração, como ela própria afirma no plano apresentado.

Ora, este credor tem demonstrado ao longo destes autos a intenção clara de resolver o contrato celebrado com a devedora, o que esta inexplicavelmente aceita de imediato, mesmo quando a tanto lhe estaria vedado por constituir tal aceitação ato de especial relevo, importando tal aceitação o reconhecimento de um crédito no montante de € 16.179.750,00, que como se disse, representa cerca de 75% do seu passivo.

Como afirma a devedora, “(…) o mercado angolano é por isso essencial na recuperação da M (…). Para tanto a empresa pretende recuperar a parceria já estabelecida com um investidor local de referência. Somente a recuperação dessa parceria e os esforços nela a envidar pela M (…)permitirão a retoma da relação comercial estabelecida e cessada por incumprimento contratual definitivo imputável à M (…), sem a qual, aliás, toda a recuperação da empresa está em causa (…)”.

Por outras palavras, a recuperação da devedora depende de um credor que não só não terá com a devedora qualquer parceria como resolve consigo o contrato que com ela celebrou, exigindo-lhe um crédito de € 16.179.750,00, o que a devedora aceita de imediato e sem contestar.

Face a este quadro, para além da verificada situação de desigualdade entre o credor que financie a devedora e os restantes, sem se verificarem circunstâncias objectivas que justifiquem o tratamento diferenciado, conclui-se que com o plano de recuperação da devedora dificilmente os credores receberão os seus créditos enquanto que por intermédio da ausência do plano, através da liquidação, poderiam satisfazer-se com o património avaliado no montante de 3,03 milhões de euros, sem ficarem à partida diminuídos a 25% do capital, a receber até 2031.

Assim, resulta claro que, in casu se verifica a violação das normas aplicáveis ao respectivo conteúdo do plano de revitalização da devedora M (…) S.A., maxime a prevista no artigo 194.º do CIRE e também no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa” – fim de transcrição.

No essencial, concorda-se com o discurso jurídico da decisão recorrida.

Antes de concretizar melhor, convém, previamente, arredar duas razões de contestação invocadas pela recorrente.

Em primeiro lugar, não é verdade, como a apelante afirma, que o tribunal a quo tenha recusado a homologação do plano de recuperação do devedor ao abrigo do art. 216º, nº 1, a), do CIRE (reportado à não homologação do plano a solicitação dos interessados).

O que aconteceu é que tal decisão referiu na parte final da sua fundamentação jurídica que recusava a homologação do plano ao abrigo dos arts. 17º-F, nº 5 e 216º a), do CIRE, carecendo, todavia, entender-se que a referência a este último artigo se deveu a lapso. Na verdade, na parte final da B) da fundamentação jurídica da decisão recorrida, dedicada à apreciação da extemporaneidade do pedido de não homologação do plano por parte de vários credores, aí se chegou à conclusão que tal pretensão era intempestiva, mas, depois, deixou-se bem claro, que o afastamento da aplicação do art. 216º, nº 1, a), do CIRE não punha de parte o funcionamento do art. 215º do CIRE (reportado à não homologação oficiosa do plano por parte do juiz), como resulta bem claro da seguinte passagem de tal decisão que ora se transcreve “Pelo exposto, atendendo ao facto de os requerimentos de não homologação terem sido remetidos ao tribunal em data posterior à documentação que comprova a aprovação do plano, conclui-se pela extemporaneidade dos requerimentos, o que não faz soçobrar a questão da não homologação do plano, atento o disposto no artigo 215.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, respeitante à não homologação oficiosa do plano de recuperação”.

E se alguma dúvida pudesse persistir ela é dissipada pela leitura da fundamentação jurídica da decisão recorrida, na parte que mais acima transcrevemos, onde se refere única e exclusivamente o referido art. 215º do CIRE.

Ademais a seguinte passagem “enquanto que por intermédio da ausência do plano, através da liquidação, poderiam satisfazer-se”, constante do penúltimo parágrafo da decisão recorrida que transcrevemos, não tem a importância que a apelante lhe atribui, pois nessa parte o juiz a quo apenas articulou o princípio da igualdade de credores com o resultado final, no caso de tal princípio ser desrespeitado, tentando demonstrar a desigualdade de credores que as soluções do plano acarretam.

Em suma, o plano foi recusado com base apenas na apreciação oficiosa por parte do tribunal, que a lei consente nos termos do citado art. 215º do CIRE.

Em segundo lugar não corresponde à realidade que se mostre violado o art. 17º-H, do CIRE, que reza assim «Garantias 1 - As garantias convencionadas entre o devedor e os seus credores durante o processo especial de revitalização, com a finalidade de proporcionar àquele os necessários meios financeiros para o desenvolvimento da sua atividade, mantêm-se mesmo que, findo o processo, venha a ser declarada, no prazo de dois anos, a insolvência do devedor.

2 - Os credores que, no decurso do processo, financiem a atividade do devedor disponibilizando-lhe capital para a sua revitalização gozam de privilégio creditório mobiliário geral, graduado antes do privilégio creditório mobiliário geral concedido aos trabalhadores».

Efectivamente, tal norma estatui sobre a constituição de garantias acordadas entre o devedor e os seus credores durante o processo de revitalização, com vista aos necessários meios financeiros daquele, estatuindo sobre os respectivos efeitos, o que não está em causa nos autos, pois o plano de recuperação da recorrente apenas prevê a futura constituição de garantias hipotecárias, que por ora não se mostram constituídas, nem se mostrando, também, por agora, que caso venham a ser constituídas os respectivos efeitos jurídico-económicos estejam a ser violados ou desrespeitados. 

Cabe, por conseguinte entrar no âmago da questão, na violação ou não do princípio da igualdade dos credores, plasmado no mencionado art. 194º do CIRE, e que, sem sombra de qualquer dúvida ou nuance interpretativa se aplica ao processo de revitalização, como decorre do art. 17º-F, nº 5, do CIRE, ao remeter ara o título IX do mesmo diploma. O mesmo é dizer que o princípio da igualdade de credores não tem duas leituras diferentes, uma para o processo de insolvência e outra para o processo de revitalização.

Segundo L. Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE Anotado, 2ª Ed., 2008, pág. 641), entre as circunstâncias que, em concreto, podem ser atendidas para estabelecer justificadas diferenciações, contam-se, para além da distinta classificação dos créditos, o grau hierárquico dentro da mesma categoria dos créditos, e a diversidade das suas fontes.

Ou seja, permite-se que um plano de recuperação possa estabelecer diferenciações entre os credores da insolvência, desde que “justificadas por razões objectivas”, como reza a lei, apenas estando vedada a possibilidade de, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em idênticas circunstâncias.  

Ora, como já deixámos dito, subscreve-se no essencial a argumentação da decisão recorrida, com pequenas ressalvas.  

Com efeito, veja-se que o plano prevê que o (s) credor (es) que aceite (m) financiar a devedora, se detiver (em) crédito reconhecido, receberá (ão) na totalidade tal crédito, mais o crédito emergente do financiamento, tudo garantido por hipoteca sobre os imóveis desonerados da devedora, com o cabedal de 3.030 milhões de euros.

Veja-se, igualmente, que o plano prevê que o credor que opte por não financiar a devedora, apenas receberá 25% do capital em dívida, sem juros (com ressalva dos Bancos/Instituições Financeiras que mantém direito aos juros remuneratórios, ao contrário do que se diz na decisão recorrida) nem despesas ou acréscimos, a pagar em prestações durante 12 anos, mas só após um período de carência de 3 anos, isto é um total de 15 anos, com termo no ano de 2028 (e não 2031, como se diz na decisão recorrida).

De maneira que temos por um lado um credor que se prevalecerá de garantia sobre o património da devedora, recebendo a totalidade do seu crédito, actual e futuro (o financiado) ao passo que os restantes credores (incluindo entidades bancárias) apenas receberão 25% do capital (com juros remuneratórios apenas as entidades bancárias/financeiras) a pagar num longo período de tempo, de 15 anos.

Parece-nos evidente, que a homologação do plano de recuperação em análise, importará para os credores não financiadores um patente prejuízo e uma situação de desigualdade se comparada com os credores que financiem a devedora.

Importa, também, relembrar que um só credor condicional – com o montante de 16.179.750 € -, o D (…), e que pela sua natureza de condicional pode não obter qualquer pagamento, determinou a aprovação deste plano, pois o seu voto, de per si (74,64%), era suficiente para a aprovação do plano, conhecido que a lei exige apenas a maioria de 2/3 dos votos emitidos (ou seja, 66,66 €) para tal aprovação (art. 212º, nº 1, do CIRE). Credor sobremaneira importante, pois na perspectiva da recorrente da sua parceria com tal credor depende a recuperação da devedora, com ele contando para a sua manutenção em laboração, como ela própria afirma no plano apresentado, tendo em conta a decisiva importância para a mesma do mercado angolano.

Assim, recapitulando, o plano prevê que caso uma determinada instituição bancária/financeira, ou outro credor comum, venha financiar a recorrente verá o seu crédito de capital e juros, reclamado e a constituir, ser pago, constituindo ainda a devedora a favor de tal instituição, ou outro credor, garantia real sobre bens imóveis desonerados da sua propriedade, pelo que “impondo” quase um refinanciamento beneficia esse credor em detrimento dos demais, já que este credor novo financiador passará a credor garantido quando até agora era apenas credor comum, ficando graduado à frente dos demais credores, não disponíveis para os novos financiamentos pretendidos, cujos créditos ficarão amputados em 75%, recebendo apenas – se receberem !!??, face à constituição de garantias reais – 25% ao fim de 15 anos.

Particularizando um pouco mais, decorre do plano que a recorrente carece de novo financiamento de 700.000 € mais 350.000 € em instrumentos financeiros novos, ou seja, um total de 1.050 milhões de euros. Neste caso o novo financiador (res) receberá o seu crédito reconhecido e o novo crédito, incluindo juros, pagos por inteiro, com o acrescido reforço de hipoteca (s) sobre o referido património imobiliário da devedora, que garante à vontade o respectivo pagamento. Por exemplo, o 2º maior credor, mas credor efectivo, o BCP, com o montante de 1.463.155,29 €, efectivando o apontado financiamento, receberia o crédito reconhecido e o novo, por inteiro, atento a garantia conferida pela hipoteca (s) sobre os imóveis da devedora que valem cerca de 3 milhões de euros. O mesmo aconteceria com o 3º maior credor, o Banco BIC, com o montante de 1.135.136,86 €, credor que, contudo, votou contra o plano. Enquanto os não financiadores se veriam reduzidos a um simples crédito de 25% do devido, sem qualquer garantia, e a penar pelo seu pagamento durante 15 anos.

Isto, já para não levar ao extremo do financiador futuro ser o indicado D (…) pois nesta hipótese, com um pequeno financiamento, o mesmo poderia, caso o seu crédito deixasse de ser condicional (como ele abnegadamente defendeu no processo), receber só ele e apenas ele o valor de liquidação que viesse a apurar-se no processo (cerca de 3 milhões de euros, valor dos imóveis da devedora), atento a hipoteca (s) a constituir abranger o existente e o futuro crédito, enquanto os demais credores comuns receberiam zero. E se formos para o outro extremo, se aplicarmos o raciocínio a um pequeno credor, por exemplo a H (...) Itália, Spa, ligada ao mesmo ramo de motos da devedora, com um montante de pouco mais de 57.000 €, veríamos a mesma a passar a credora graduada, e a receber o seu pequeno crédito à frente de outros credores com montantes muito, mas muito superiores.          

O busílis da desigualdade reside, então, no facto do credor financiador futuro, por esse facto passar a beneficiar de uma garantia real, hipoteca, sobre património desonerado valioso, apto a satisfazer à vontade o novo crédito, eventualmente sem concorrência de outro crédito garantido, hipoteca essa que abrange igualmente um seu anterior e reconhecido crédito comum, passando, como credor garantido, à frente de outros credores comuns, pois receberá, em princípio, por inteiro, a totalidade de ambos os créditos, enquanto os referidos credores comuns se sujeitam a receber apenas, e eventualmente, 25% do seu crédito ao fim de 15 anos.

A recorrente obtempera com a invocação do decidido no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 4.3.2013, Proc.3695/12.9TBBRG, onde se aceitou uma diferenciação na estipulação no pagamento dos créditos entre os credores bancários/financeiros e os demais credores, onde estes sofreriam maior perdão no reembolso dos seus créditos (60%) do que aqueles credores (20%), mas pela importante razão que, do total de passivo, cerca de 76% do mesmo era detido pelas entidades bancárias/financiadoras, pelo que não merecendo o plano de recuperação conducente à revitalização do devedor a adesão/aprovação da Banca, inquestionável é que estaria ele votado ao fracasso.

E objecta, também, com o sentenciado no Ac. da mesma Relação de 18.6.2013, Proc.743/12.6TBVVD.G1, onde se aceitou uma diferenciação entre os créditos tributários da Seg. Social e os dos demais credores, isto porque a igualdade dos credores não impede que seja dado tratamento diversificado a credores em função da sua categoria e, designadamente, em face da natureza comum ou privilegiada dos créditos, e que mesmo entre credores inseridos na mesma classe e dotados de semelhantes garantias creditórias, não está radicalmente afastada a possibilidade de se estabelecerem diferenciações desde que a estas não presida a arbitrariedade e, pelo contrário, deixem visíveis circunstâncias objectivas que justifiquem o tratamento diferenciado, tendo sido por razões suplementares ligados à origem do crédito que, no caso se justificou a alegada diferenciação de tratamento.

Situações, bem de ver, que são bem diferentes do nosso caso.

No caso ora em apreço, nos termos do plano apresentado apenas os credores que manifestarem interesse e vierem a financiar a devedora verão os seus créditos integralmente pagos. Ou seja, como bem salienta o recorrido BES, para verem os seus créditos integralmente pagos, os credores da devedora devem continuar a financiá-la, sob pena de verem os seus créditos altamente reduzidos, com pagamento muito diluído no tempo e sem quaisquer garantias do seu efectivo recebimento. Embora esteja previsto no CIRE a possibilidade de a devedora poder recorrer ao apoio e financiamento dos credores, mormente das entidades bancárias/financeiras, o recurso a tais financiamentos não pode colidir ou por em causa o princípio basilar da igualdade de credores, previsto no já indicado art. 194º do CIRE. Pois, com a homologação do plano teríamos que os credores financiadores receberiam a totalidade dos seus créditos fazendo-se valer das garantias entretanto constituídas a seu favor, enquanto os demais credores, além de verem os seus créditos reduzidos em 75% de capital, apenas veriam o seu crédito ser pago, após um período de carência de três anos, em prestações durante doze anos. Isto é, os credores não financiadores da devedora ficariam numa situação absolutamente mais gravosa do que os demais.

Face a este quadro, é evidente a situação de desigualdade entre o credor que financie a devedora e os restantes, sem se verificarem circunstâncias objectivas que justifiquem o tratamento diferenciado. Resulta, assim, que no caso em análise se verifica a violação das normas aplicáveis ao respectivo conteúdo do plano de revitalização da devedora.

Pelo que andou bem a decisão recorrida na sua não homologação.

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) O princípio da igualdade de credores, previsto no art. 194º, nº 1 e 2, do CIRE, aplicável ao processo de revitalização, permite que um plano de recuperação possa estabelecer diferenciações entre os credores da insolvência, desde que “justificadas por razões objectivas”, como reza a lei, apenas estando vedada a possibilidade de, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em idênticas circunstâncias;

ii) Por exemplo, entre as circunstâncias que, em concreto, podem ser atendidas para estabelecer justificadas diferenciações, contam-se a distinta classificação dos créditos, o grau hierárquico dentro da mesma categoria dos créditos, e a diversidade das fontes de crédito;

iii) Verifica-se violação do princípio da igualdade de credores se o plano de recuperação prevê que caso uma determinada instituição bancária/financeira, ou outro credor comum, venha a financiar futuramente a recorrente verá o seu crédito de capital e juros, o reclamado e o a constituir, ser pago, constituindo ainda a devedora a favor de tal instituição (ou outro credor comum) hipoteca sobre bens imóveis desonerados, de sua propriedade, praticamente quase “impondo” um refinanciamento, e assim beneficiando esse credor em detrimento dos demais, já que tal credor novo financiador passará a credor garantido quando até agora era apenas credor comum, ficando graduado, pela totalidade dos seus dois créditos, à frente dos demais credores não disponíveis para os novos financiamentos pretendidos, cujos créditos ficarão amputados em 75%, recebendo apenas (se receberem !?), face à constituição da apontada garantia real, 25% ao fim de 15 anos.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, assim se confirmando a decisão recorrida.

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Custas pela recorrente. 

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 Coimbra, 11.3.2014

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

  Inês Moura