Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
170/18.1T8PCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: CONSIGNAÇÃO EM DEPÓSITO
DÚVIDAS SOBRE A OBRIGAÇÃO
VALOR DO CAPITAL SEGURO
Data do Acordão: 02/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMPET. GENÉRICA DE PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 841º E 842º DO C. CIVIL; 916º NCPC.
Sumário: 1. O devedor que tenha dúvidas quanto à existência da sua própria responsabilidade e que pretenda efetuar a consignação em depósito “para o caso de dever”, não se poderá socorrer do processo de consignação em depósito.

2. O pedido da seguradora de consignação em depósito do valor máximo do capital seguro, com fundamento em que, sendo vários lesados, não se encontra determinado o montante dos dados que cada um deles sofreu, desconhecendo o valor a pagar rateadamente a cada um, disponibilizando o capital aos lesados, envolverá um reconhecimento da sua responsabilidade pelo pagamento das indemnizações até ao valor do capital seguro.

Decisão Texto Integral:







Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

L... veio, ao abrigo do disposto nos artigos 841º e ss. do CC e 916º e ss. do CPC, instaurar o presente procedimento de consignação em depósito, pedindo que se considere válida a consignação em depósito de 45.000 € por si efetuada na CGD, identificando os credores/lesados, ao todo 40, até à data conhecidos,

Alegando, para tal e em síntese:

no exercício da sua atividade, celebrou com a firma P..., Lda., o contrato de seguro do Ramo Responsabilidade Civil, ao qual foi atribuído à apólice o nº ..., que garante os riscos e capitais discriminados nas suas Condições Particulares, em especial “a responsabilidade civil extracontratual”; a cobertura de responsabilidade civil é de 50.000,00 euros (cinquenta mil euros), sujeita a uma franquia de 10%, sendo o risco seguro o “Fabrico, armazenagem e lançamento de artigos pirotécnicos” e que a duração do contrato é de um ano prorrogável pelos seguintes;

no dia 04 de abril de 2018 ocorreu um sinistro no adro da Igreja de Nossa Senhora ..., sita na ..., com explosão de um lote de artefactos de pirotecnia, cujas causas, circunstâncias e consequências, não estão, ainda, totalmente, esclarecidas; segundo informações obtidas junto dos Bombeiros Voluntários de ..., do referido acidente resultou uma morte, vários feridos graves, cerca de duas dezenas de feridos ligeiros e prejuízos materiais de montante avultado em vários outros lesados; dos vários lesados em consequência de lesões corporais, alguns encontram-se ainda, numa situação de cura clínica, outros não procederam, ainda, a qualquer reclamação e outros há que reclamaram da Demandante prejuízos, cujos montantes ultrapassam em larga medida o valor do capital seguro pela apólice contratada.

Regularmente citados, vieram deduzir reclamação os demandados ...

Por sua vez, os demandados F... e G... vieram apresentar contestação, impugnando os fundamentos da consignação em depósito apresentados pela demandante, ora pugnando pelo seu indeferimento ou subsidiariamente pelo reconhecimento dos seus créditos, ou apenas pelo reconhecimento dos seus créditos.

F... alega, em síntese, que a presente ação não tem o menor fundamento e representa uma profunda injustiça para o requerido e para os demais requeridos que estejam em situação similar a este, porquanto não se pode obrigar o credor a reclamar nesta data um crédito que existe mas que não é ainda totalmente líquido, havendo naturalmente alguns credores com lesões menores que já poderão reclamar com alto grau de certeza o seu crédito, mas não é o caso do requerido; é a própria demandante que coloca em causa que os prejuízos em causa, decorrente do dito sinistro, estejam ou não cobertos pelo contrato de seguro em apreço, acabando por invocar o instituto de abuso de direito, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé ou pelo fim social ou económico desse direito.


*

Pelo juiz a quo foi proferida decisão a julgar improcedente a presente ação, por não se verificarem os respetivos pressupostos legais, rejeitando o depósito efetuado pela Requerente.

Inconformada com tal decisão, a Requerente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

1-A Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, porquanto na mesma não houve uma apreciação correta dos pressupostos de direito constantes dos presentes autos.

2- Ignorou o tribunal a quo os artigos 49º e 102º, nº 2 da Lei do Contrato de Seguro (Decreto Lei nº 72/2008, de 16 de abril) que prevê a quantificação prévia dos danos (consequência do sinistro).

3- Nada impede que o segurador se constitua na obrigação de indemnizar terceiros, mercê da sua responsabilidade inerente no contrato de seguro quando está, apenas, “confirmada a ocorrência de sinistro”, como, aliás, foi o caso sub judice. O artigo 102º da Lei do Contrato de Seguro é uma norma apenas  “relativamente imperativa” (vidé – artigo 13º).

4- Vendo-se a Recorrente na circunstância de ter recebido várias reclamações dos sinistrados do acidente dos autos, sendo o Capital Seguro insuficiente para responder ao montante global das indemnizações, efetuou a consignação em deposito no valor de €45.000,00 (Capital Seguro).

5- Ao colocar à disposição de todos os lesados o Capital Seguro, a recorrente reconheceu o dever de indemnizar todos os lesados, proporcionalmente, em conformidade com a Lei do Contrato de Seguro e com o respetivo contrato de seguro de responsabilidade civil sub judicie.

6- Com a Consignação em Deposito a recorrente obedeceu ao disposto no art.º 142 da Lei do Contrato de Seguro.

7- A Recorrente, reconhecendo a responsabilidade contratual inerente ao contrato de seguro, está de boa-fé, e nessa medida, não pretende beneficiar uns lesados em prejuízo dos outros (vidé artigo 142º nº 2 do referido diploma legal).

8- A Recorrente, reconhecendo a responsabilidade contratual inerente ao contrato de seguro, não pretende adiantar verbas aos lesados que sofreram menos danos, em prejuízo daqueles que, por força das circunstâncias, a determinação do montante em causa é superior ou mais morosa.

9- A Consignação em Depósito deve ser admitida.

10- Pode usar a ação de consignação em depósito a seguradora que pretenda livrar-se da obrigação, depositando o máximo da sua responsabilidade para com as vítimas de acidente de viação, indicando os danos que algumas reclamam e alegando serem desconhecidos a extensão e o valor dos prejuízos sofridos por outras, tal como defendido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.03.1986 relativo ao processo 0019547.


*

Pelos Requeridos ... foram apresentadas contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Rejeição da Consignação em depósito pela incerteza da responsabilidade da devedora/Requerente.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
 O Tribunal a quo deu como provado os seguintes factos:
 1. A Demandante dedica-se à atividade seguradora;
2. No exercício da sua atividade, a Demandante celebrou com a firma P..., LDA com sede em ... o escrito particular intitulado de “contrato de seguro do Ramo Responsabilidade Civil”, ao qual foi atribuído à apólice o nº ...
3. Ao referido escrito particular de seguro são, também, aplicáveis as Condições Gerais e Especiais;
4. Este escrito particular de seguro garante os riscos e capitais discriminados nas suas Condições Particulares, em especial garante “a responsabilidade civil extracontratual”;
5. A cobertura de responsabilidade civil é de 50.000,00 euros (cinquenta mil euros), sujeita a uma franquia de 10%;
6. O risco seguro é “fabrico, armazenagem e lançamento de artigos pirotécnicos”;
7. A duração do contrato é de um ano prorrogável pelos seguintes.
8. No dia 04 de abril de 2018 ocorreu um sinistro no adro da Igreja de Nossa Senhora ..., sita na ..., com explosão de um lote de artefactos de pirotecnia, cujas causas, circunstâncias e consequências, não estão, ainda, totalmente, esclarecidas;
9. Segundo informações obtidas junto dos Bombeiros Voluntários de Penacova, do referido acidente resultou uma morte, vários feridos graves, cerca de duas dezenas de feridos ligeiros e prejuízos materiais de montante avultado em vários outros lesados;
10. Feita a participação de sinistro pelo Tomador do Seguro, a Demandante encarregou uma empresa de averiguações de proceder ao levantamento de todos os danos, bem como averiguar, na medida do possível, a identidade dos lesados, quer os lesados em consequência de lesões corporais quer os lesados em consequência de prejuízos materiais;
11. Concluiu que dos vários lesados, em consequência de lesões corporais, alguns encontram-se, ainda, numa situação de cura clínica, outros não procederam, ainda, a qualquer reclamação e outros há que reclamaram da Demandante prejuízos, cujos montantes ultrapassam em larga medida o valor do capital seguro pela apólice contratada;
12. Da cláusula 3ª, do capítulo II, das condições gerais respeitantes ao aludido escrito particular de seguro consta sob a epígrafe exclusões gerais, consta que “sem prejuízo das exclusões porventura consignadas nas condições particulares e especiais, esta apólice não garante:
1. Em caso algum, o pagamento de indemnizações decorrentes de:
a) Qualquer responsabilidade de natureza criminal;
b) Actos ou omissões dolosos cometidos pelo segurado ou por pessoas cuja responsabilidade esteja garantida pela Apólice, ou por quem sejam civilmente responsáveis;
c) a e) (…)
f) danos causados pelo tomador de seguro, pelo segurado ou por pessoas cuja responsabilidade esteja garantida por esta Apólice, quando praticados no estado de demência, embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou outras drogas;
e) a l) (…)
m) danos resultantes da violação deliberada pelo segurado e por pessoas cuja responsabilidade esteja garantida por esta Apólice, de leis, regulamentos ou normas técnicas ou de segurança, genericamente aplicáveis à atividade do segurado expressamente mencionadas nas condições particulares; (…)
2. Não garante, salvo convenção em contrário expressa nas condições particulares, o pagamento de indemnizações decorrentes de:
(…)
v) danos consequenciais indiretos, como sejam lucros cessantes e ou perdas económicas e financeiras de qualquer natureza, sofridos por terceiros que decorram de facto que implique responsabilidade civil extra-contratual do segurado. (…)”.
13. Atualmente está a correr um processo de inquérito criminal no Departamento de Instrução e Ação Penal de Coimbra (DIAP), com o nº ..., para apuramento das responsabilidades criminais pela produção do evento.
O tribunal recorrido veio a negar à Requerente o direito à consignação em depósito do valor do capital máximo garantido, com fundamento em que, “para que seja admissível a consignação em depósito, necessário se torna que não haja qualquer dúvida quanto à existência da obrigação”, face à inexistência de uma assunção clara por parte da A. da sua qualidade de devedora:
“Ora, dos factos dados como provados resulta desde logo que as causas, circunstâncias e consequências do sinistro participado pela empresa tomadora do seguro à Demandante ainda não estão totalmente esclarecidas, sabendo-se apenas que, desse mesmo sinistro, resultaram uma morte e feridos graves e ligeiros, bem como prejuízos materiais de avultado montante em outros lesados. Outrossim, apesar de naturalmente não se ignorar a existência de possibilidade de sub-rogação, sendo, aliás, a mesma muito comum nos casos em que envolvam contratos de seguros, crê-se que essa incerteza na assumpção do débito em apreço resulta igualmente, não só da circunstância de resultar provado que no dito contrato de seguro estão previstas expressamente cláusulas de exclusão da responsabilidade, tal como decorre dos factos dados como provados no pontos 12, mas também e principalmente pelo facto de ser a própria demandante que, no seu articulado, concretamente no seu artigo 18º, faz menção à possibilidade do dito sinistro poder nem estar coberto pelo seguro em apreço. De facto, em momento algum da sua alegação vertida na petição inicial, a demandante alega que a empresa tomadora do seguro é inequivocamente responsável quanto à obrigação em apreço e, por conseguinte, e por força do contrato de seguro com aquela celebrado, é ou poderá ser a ora demandante também ela responsável por essa obrigação, factos estes que o Tribunal considera serem essenciais à apreciação da pretensão da demandante. Deste modo, pode suceder que no inquérito crime, que se encontra a correr termos no DIAP de Coimbra, se apure a eventual negligência do tomador de seguro em causa no contrato de seguro em apreço, mas também não se pode ignorar que pode ser apurada a inexistência de qualquer conduta dolosa ou negligente por parte do mesmo, o que inevitavelmente, neste último caso, levaria à inexistência de qualquer obrigação de indemnização por parte da ora Demandante. Acresce que o facto da seguradora em causa vir peticionar a admissibilidade de uma consignação em depósito não pode, sem mais, permitir que se conclua pela certeza e, concomitantemente, assumpção clara pela mesma dessa certeza do débito fundador da respectiva consignação, ou seja, pela confissão de dívida. Assim, no entendimento do Tribunal, do elenco de factos alegados e ora dados como provados não resulta, de forma alguma, muito pelo contrário, a certeza e consequentemente a exigibilidade do débito em apreço, sendo que ainda é, nesta data, duvidosa a sua existência, porquanto não foram ainda apuradas as causas do sinistro em apreço. Sabe-se apenas, ao invés, tal como resulta provado, que nas circunstâncias espácio-temporais descritas no ponto 8 dado como provado ocorreu um sinistro relacionado com a explosão de um lote de artefactos de pirotecnia, tendo resultado uma morte, feridos graves e ligeiros, e inúmeros danos materiais, estando ainda a serem investigadas as suas causas. Do exposto, crê-se que não é possível concluir pela existência de um dos pressupostos legalmente exigíveis para que se pudesse admitir a consignação em depósito em apreço, a saber a inequivocidade/certeza quanto ao débito que funda essa mesma consignação, a qual nem sequer foi alegada pela demandante, factualidade essa que se considera essencial à apreciação da pretensão deduzida nos presentes autos, razão pela qual, sem mais delongas, não se admite a mesma, por manifestamente inadmissível.”
 Insurge-se a Apelante contra o decidido alegando que o tribunal interpretou erradamente os artigos 49º e 102º, nº2 da Lei do Contrato e Seguro, argumentando que ao colocar à disposição de todos os lesados o capital seguro, reconheceu o dever de indemnizar todos os lesados, proporcionalmente.
Desde já adiantamos ser de dar razão ao Apelante quando afirma que, ao colocar à disposição de todos os lesados o capital seguro, reconheceu o dever de indemnizar todos os lesados, proporcionalmente, uma vez que é precisamente esse o sentido ou o objetivo do processo de consignação em depósito.
A tal respeito dispõe o artigo 841º do Código Civil (CC) sob a epígrafe “Consignação em depósito”:
1. O devedor pode livrar-se da obrigação mediante depósito da coisa devida, nos seguintes casos:
a) Quando, sem culpa sua, não puder efetuar a prestação ou não puder fazê-lo com segurança, por qualquer motivo relativo à pessoa do credor.
b) quando o credor estiver em mora.
2- A consignação é facultativa.
O devedor pode encontrar-se em situação de querer cumprir a obrigação e não lhe ser possível fazê-lo, pelo que, então, dado o interesse em se libertar, concede-lhe a lei o meio da consignação em depósito, que lhe faculta a exoneração da dívida[1].
A consignação em depósito constitui o meio de que se pode servir o devedor, ou a qualquer credor a quem seja lícito cumprir a obrigação (artigo 842º), para forçar o credor a receber a prestação[2].
Não podendo um devedor cumprir por mora do credor ou quando, sem culpa sua, não possa cumprir por razões atinentes à pessoa do mesmo credor, o artigo 841º, numa filosofia de favorecimento, dá ao devedor, ciente da sua obrigação e contra ou sem a vontade do credor, a possibilidade exoneratória através deste processo especial de consignação em depósito da “coisa devida”[3].
A consignação em depósito é um meio de extinção das obrigações através do cumprimento[4]: aceita a consignação pelo credor ou declarada válida por decisão judicial, a obrigação extingue-se (artigo 846º CCº), embora não pela realização ao credor, mas pela realização ao consignatário, adquirindo o credor o direito de lhe exigir a respetiva entrega.
Para o devedor apresenta a vantagem de que fica liberado desde a data do depósito e validando-se a consignação não se contam juros.
A instauração de um processo de consignação em depósito envolverá, em princípio, o reconhecimento por parte do requerente (se invoca uma obrigação própria) da sua qualidade de devedor, de tal modo que, se o mesmo for aceite pelo credor ou vier a ser julgada válida por sentença transitada em julgado, a obrigação se extingue sem possibilidade de posterior revogação (o artigo 845º, só permite que a coisa depositada possa ser retirada até ser aceite pelo credor ou julgada válida).
Discutindo-se no âmbito dos trabalhos preparatórios ao Código Civil sobre se o devedor poderia consignar para o caso de dever – considerando-se exonerado no caso de se vir a julgar que deve e podendo levantar a coisa na hipótese contrária –, Adriano Vaz Serra, reconhecendo que a consignação feita para o caso de a dívida existir não pareceria poder submeter-se inteiramente, quando aceite, ao regime geral da consignação, veio propor a seguinte norma: “Se houver, sem culpa do devedor, dúvidas acerca da existência da dívida, pode recorrer-se a uma consignação feita sob condição de a dívida existir, caso em que o credor só pode só pode receber o objeto consignado depois de, por acordo entre ele e o devedor ou por decisão judicial, se esclarecer que a dívida existe”.
Não tendo tal proposta sido adotada pelo legislador, torna-se claro que o devedor que tenha dúvidas quanto à existência da sua própria responsabilidade não se poderá socorrer deste mecanismo.
A consignação em depósito, enquanto causa de extinção de uma obrigação, só é admissível se quem a requer não tiver duvidas da existência da mesma, ou seja, se apresente como efetivo devedor[5].
Vejamos, assim, os termos em que a Requerente/Seguradora se apresenta a requerer a consignação em depósito do capital máximo da apólice respeitante ao seguro celebrado com a P..., na sequencia do sinistro ocorrido no dia 4 de abril de 2018.
A Requerente faz assentar o seu pedido de consignação em depósito na seguinte alegação:
“c) Cumprimento da obrigação de indemnizar
13 – Nos termos do artigo 102º do Decreto Lei nº 72/2008 de 16 de abril “o segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida …”, sendo que, a “obrigação do segurador vence-se decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos” (artigo 104º do mesmo diploma legal) e, essa obrigação tem como limite o “capital seguro” (artigo 138º do mesmo diploma legal).
14 – Até à presente data, estão determinados o número de lesados como adiante se descreverá, mas não está determinado o montante de danos que cada lesado sofreu, sabendo-se, apenas, que o montante global das indemnizações, ultrapassa, em muito, o valor do capital seguro.
15 – Nos termos do artigo 142º do referido diploma legal “Se o segurado responder perante vários lesados e o valor total das indemnizações ultrapassar o capital seguro, as pretensões destes são proporcionalmente reduzidas até à concorrência desse capital” (vidé artigo 49 nº 1).
16 – A Demandante está de boa-fé, e nessa medida, não pretende beneficiar uns lesados em prejuízo dos outros (vidé artigo 142º nº 2 do referido diploma legal).
17 – Do mesmo modo que não pretende, adiantar verbas aos lesados que sofreram menos danos, em prejuízo daqueles que, por força das circunstâncias, a determinação do montante em causa é mais morosa.
18 – Assim como, não pretende deixar de contemplar, na medida do possível, todos os lesados, independentemente de se saber se, na realidade, o evento que determinou tais prejuízos, está ou não coberto pelo seguro contratado.
Pelo que,
19 – À semelhança ao regime geral da garantia das obrigações (artigo 601º do Código Civil) impõe-se, no caso presente, o rateio entre os lesados,
Ou seja,
20 - Sendo o capital da apólice insuficiente, os vários lesados com direito a serem indemnizados devem ser pagos rateadamente no respeito pelo princípio par conditio creditorum (Romano Martinez – Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp).
(…)
Nestes termos e nos melhores de direito, verificada que está a situação descrita no artigo 841º nº 1 alínea a) do Código Civil, a Demandante requer a V. Exas. se digne considerar válida a Consignação (artigo 846º do Código Civil) e, por consequência, deferir o depósito de 45.000,00 euros, na Caixa Geral de Depósitos (artigo 916º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil), sendo que para feitos do disposto no artigo 917º do Código de Processo Civil, se identificam os lesados / credores conhecidos, para citação e consequente reclamação do seu crédito (artigo 604º do Código Civil), seguindo-se os ulteriores termos.”
Da leitura de tal alegação não se pode retirar que a Requerente pretenda fazer o depósito em termos condicionais e unicamente para a hipótese de se vir a reconhecer a sua responsabilidade em indemnizar baseada no contrato de seguro celebrado com a lesante. O motivo invocado para o pedido de consignação em depósito – como alternativa ao pagamento imediato aos lesados – é um só, a indeterminação do valor a pagar a cada um dos lesados, uma vez que o valor dos danos é consideravelmente superior ao valor máximo do capital segurado, sendo que, encontrando-se definida a obrigação da Requerente quanto ao respetivo montante – 45.000,00 € –, bem como a identificação dos lesados, é desconhecido o valor que caberá a cada um deles, uma vez que aqueles 45.000 € serão a ratear pelos lesados, proporcionalmente ao valor dos seus créditos.
Se é certo que no artigo 18º a Requerente refere que quer “contemplar, na medida do possível todos os lesados, independentemente de se saber se, na realidade, o evento que determinou tais prejuízos, está ou não coberto pelo seguro contratado”, não se pode daí retirar a vontade de um depósito condicional – que, de facto, não se enquadraria neste processo –, mas, tão só, que pretende, desde já – e sem esperar pelo apuramento de responsabilidades, nomeadamente no processo crime que está a decorrer – disponibilizar desde já aos lesados o valor máximo que lhe pode ser exigido em cumprimento do contrato de seguro em apreço.
 Quanto à referência, na decisão recorrida de, no inquérito crime, “poder vir a ser apurada a inexistência de qualquer conduta dolosa ou negligente por parte do mesmo (tomador de seguro), o que inevitavelmente, neste ultimo caso, levaria à inexistência de qualquer obrigação de indemnização por parte da ora demandante”, tal não importaria a desresponsabilização da seguradora, assim como, a eventual verificação de alguma cláusula de exclusão da responsabilidade sempre se encontraria dependente da sua invocação pela própria seguradora.
A Seguradora/Requerente pode, desde já, assumir a satisfação da indemnização aos lesados, independentemente do eventual resultado do processo crime, sendo que, como resulta da apólice junta aos autos, tal seguro não garante o pagamento decorrente de indemnizações decorrentes de responsabilidade criminal, nomeadamente por atos ou omissões dolosos.
E o certo é que a Requerente veio peticionar a consignação em depósito invocando o disposto nos artigos 102º e 104º da Lei do Contrato de Seguro, determinando o primeiro que “O segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstancias e consequências”, e o segundo que “a obrigação do segurador se vence decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o artigo 102º”.
Como tal, dá-se razão ao Apelante quando afirma nas suas alegações de recurso que:
embora as circunstâncias do acidente não tenham sido concretamente apuradas, a recorrente, no cumprimento do seu dever contratual, colocou à disposição de todos os interessados o valor do Capital Seguro evitando que algum deles fosse beneficiado em relação a outros, respeitando, assim, a exigência de rateio previsto no já citado artigo 142º e evitando, deste modo, pagamentos para além do limite de Capital Seguro (artigo 142º nº 2 “à contrário”).
A recorrente – ao contrário do que muito se afirma – agiu de forma célere e de modo a que, no mais curto espaço de tempo, todos os beneficiários fossem, na medida do possível, ressarcidos à luz do contrato de seguro cuja eficácia era plena no momento do sinistro.
Reconheceu, portanto, sem margem para dúvidas de que o Capital Seguro deveria ser distribuído por todos os lesados, ao ter colocado à sua disposição o valor de 45.000,00 euros.”
Esta disponibilização do capital aos lesados envolve o reconhecimento, ainda que tácito, de que é “devedora” da quantia depositada.
De qualquer modo, se dúvidas restassem ao tribunal relativamente à questão de saber se, com o requerimento de consignação em depósito estava a Requerente, ou não, a assumir o dever de indemnizar os lesados, proporcionalmente, até ao valor máximo do capital seguro, poderia ter pedido esclarecimentos à parte.
Como tal, entende-se verificarem-se os pressupostos de que o artigo 841º, nº 1 do CC faz depender o direito do devedor a requerer a consignação em depósito da coisa devida, sendo de revogar a decisão recorrida, com o consequente prosseguimento do processo para apreciação das demais questões em aberto.

A apelação será de proceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento dos autos para conhecimento das demais questões suscitadas nos autos.

Custas a suportar pelos apelados.               

                                                                Coimbra, 25 de janeiro de 2021

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. O devedor que tenha dúvidas quanto à existência da sua própria responsabilidade e que pretenda efetuar a consignação em depósito “para o caso de dever”, não se poderá socorrer do processo de consignação em depósito.

2. O pedido da seguradora de consignação em depósito do valor máximo do capital seguro, com fundamento em que, sendo vários lesados, não se encontra determinado o montante dos dados que cada um deles sofreu, desconhecendo o valor a pagar rateadamente a cada um, disponibilizando o capital aos lesados, envolverá um reconhecimento da sua responsabilidade pelo pagamento das indemnizações até ao valor do capital seguro.


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[1] Adriano Vaz Serra, “Consignação em Depósito, venda da coisa devida e exoneração do devedor por impossibilidade da prestação resultante de circunstancia atinente ao credor”, in BMJ nº40 – Janeiro 1954, p.5.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. II, 3ª ed. Coimbra Editora, p.128.
[3] José Carlos Brandão Proença, “Lições de Cumprimento e não Cumprimento das Obrigações”, Coimbra Editora, p.30.
[4] Tiago Azevedo Ramalho, Código Civil Anotado, Vol I, 2017, Coordenação Ana Prata, p.1061.
[5] Cfr., Acórdão do TRP de 08-07-2002, relatado por Fonseca Ramos, disponível in www.dgsi.pt.