Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
230/12.2TBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: PETIÇÃO INICIAL
INSOLVÊNCIA
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 11/16/2012
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ALÍN.S A) E B) DO N.º 1 DO ART.º 20.º DO CIRE
Sumário: I- O CIRE privilegia o aperfeiçoamento da petição de insolvência ao seu indeferimento liminar;

II – A petição inicial de um credor tendente ao decretamento da insolvência do devedor, desde que nela se alegue matéria de facto imprecisa e conclusiva, como tal integrante dos factos-índice das alín.s a) e b) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, impõe a prolação de despacho de aperfeiçoamento e não de indeferimento liminar.

Decisão Texto Integral: Decide-se singularmente (art.º 705.º do CPC) no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

1. Relatório

            “A..., SA”, intitulando-se credora da firma “B..., SA”, requereu, no TJ da comarca de Trancoso, a sua declaração de insolvência, fundamentalmente alegando os seguintes factos:

a) – No exercício da sua actividade comercial de compra e venda, reparação e manutenção de máquinas e veículos, a requerente vendeu à requerida bens e produtos do seu comércio, no valor de € 8.680,64, constante de facturas que, vencidas, não foram pagas, ascendendo os juros à importância de € 269,07;

b) – A requerida tem um endividamento bancário de milhares de euros;

c) – Deve milhares de euros a outros fornecedores;

d) – O volume de vendas/negócios da requerida tem diminuído acentuadamente nos últimos anos;

e) – Atravessa uma situação económica e financeira extremamente grave, com cessação generalizada de pagamentos a fornecedores e credores em geral;

f) – Não dispõe de meios financeiros para solver os seus compromissos, sendo o seu passivo muito superior ao activo;

g) – Estão preenchidos os requisitos das alín.s a) e b) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, pelo que deve ser decretada a insolvência da requerida.

No despacho liminar, a Ex.ma Juíza, indeferiu liminarmente o pedido, por manifesta improcedência, com fundamento em que a requerente não fundamentou devidamente a acção em qualquer dos factos-índice elencados nesse preceito legal, v. g., da alín. a), já que se enredou em meras conclusões (“o requerimento inicial não a caracteriza com a eficácia exigida” – sic), não concretizando as dívidas da requerida à banca ou aos fornecedores, nem quais os rendimentos ou bens que integram o seu património, sendo que, quanto à alín. b) desse normativo, o valor da dívida à requerente, pelo seu valor, não revela possibilidade de incumprimento das suas obrigações.

Concluiu, assim, não estar caracterizada a situação de insolvência da requerida, não por deficiência do requerimento (o que, ressalvou, levaria a eventual convite ao aperfeiçoamento), mas porque a situação descrita, objectivamente considerada, não traduz um estado de insolvência.

Inconformada, apelou a requerente, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

a) – Admite-se que o requerimento inicial possa ser lacunoso e impreciso em alguns pontos da sua alegação, o que poderia ou deveria ter suscitado um convite ao aperfeiçoamento do requerimento, nos termos do art.º 27.º, n.º 1, alín. b), do CIRE, mas nunca o respectivo indeferimento liminar;

b) – O indeferimento liminar apenas deve ter lugar se e quando a factualidade alegada, pela sua natureza, não se inscreva em qualquer dos factos-índice de insolvência previstos nas alín.s do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, o que não é o caso;

c) – Se os factos invocados no requerimento inicial couberem em abstracto nesses índices não deve haver indeferimento liminar;

d) – Nesse caso, ou os factos invocados são deficientes e convida-se ao aperfeiçoamento, ou, por qualquer forma e após convite, mantendo-se a deficiência, o pedido improcede;

e) – O despacho recorrido antecipou para a sede de apreciação liminar a decisão quanto à insolvência em si mesma, confundindo o dever de controlar se tinham sido alegados factos abstractamente subsumíveis no esquema do n.º 1 do citado art.º 20.º, ainda que deficientemente, com a apreciação desses factos em si, pelo que deve revogar-se o despacho recorrido e substituir-se por outro que convide ao aperfeiçoamento do requerimento inicial.

            Cumpre apreciar, em decisão sumária, ao abrigo do disposto no art.º 705.º do CPC, atenta a simplicidade da questão suscitada, que é apenas esta:

            - Saber se o requerimento inicial apresenta falta de causa de pedir que imponha o seu indeferimento liminar por manifesta improcedência do pedido, ou se a falta de concretização dos factos em que se fundamenta exigia, antes, a prolação de despacho de aperfeiçoamento.


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2. Fundamentação

            2.1. De facto

A factualidade relevante para o julgamento do recurso é a referida no antecedente relatório que, brevitatis causa, aqui se dá por reproduzida.


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2. 2. De direito

Dispõe o n.º 1 do art.º 3.º do CIRE que “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações”.

E o n.º 2 que “as pessoas colectivas (…) são também consideradas insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis”.

Aquele dispositivo define o conceito básico de insolvência seja para pessoas singulares, seja colectivas, seja ela requerida por apresentação (art.ºs 18.º e 19.º do CIRE) ou por outrem com legitimidade para tal (legitimados) (art.º 20.º).

Se se trata de requerimento, mormente de algum credor, tendo como devedor pessoa singular ou colectiva, a situação de “impossibilidade de cumprir” é indiciada pelos factos elencados no art.º 20.º.

E, no que aqui interessa, pelas alín.s a) e b) do n.º 1, que presumem de insolvente o devedor quando se verifique suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas, ou falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento revele a impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.

Quer dizer, o incumprimento de uma obrigação, como o pagamento de uma dívida, só releva para efeitos de insolvência se o seu montante for suficientemente elevado ou as circunstâncias da falta de pagamento revelarem impossibilidade de o devedor cumprir em tempo a generalidade das suas obrigações.

O preceito em causa (como os demais das diversas alíneas) configura facto-índice ou facto-presuntivo de insolvência.

Como ressaltam Carvalho Fernandes e João Labareda[1], o incumprimento de só alguma ou algumas obrigações apenas constitui facto-índice quando pelas suas circunstâncias evidencia a impossibilidade de pagar, devendo então o requerente, juntamente com a alegação de incumprimento, trazer ao processo essas circunstâncias, das quais, uma vez demonstradas, é razoável deduzir a penúria generalizada.

Em matéria processual preceitua o n.º 1 do art.º 23.º do CIRE que a apresentação à insolvência ou o pedido de declaração desta faz-se por meio de petição escrita, na qual são expostos os factos que integram os pressupostos da declaração requerida e se conclui pela formulação do correspondente pedido.

Tal qual em qualquer petição em processo civil (cujo Código, de resto, é de aplicação subsidiária ao CIRE – art.º 17.º) ao requerente compete o ónus de alegação da matéria de facto integrante da causa de pedir, de forma clara e esclarecedora (art.º 467.º, n.º 1, alín. d), do CPC).

No caso de insolvência a requerimento do credor necessariamente haverá que indicar-se a verificação de um dos factos-índice elencados no n.º 1 daquele art.º 20.º, sob pena de manifesta improcedência do pedido de insolvência e consequente indeferimento liminar do pedido (art.º 27.º, n.º 1, alín. a) do CIRE).

Como salientam Carvalho Fernandes e João Labareda[2], tal como sucede no processo comum (art.º 508.º, n.º 1, alín. b) e n.º 3 do CPC), também a alín. b) do n.º 1 do art.º 27 do CIRE aponta no sentido de o juiz privilegiar o aperfeiçoamento da petição ao seu indeferimento, “visto que o objectivo geral é o de aplicar o remédio adequado à situação de penúria que realmente se verifique e não o de, por razões que poderão ser de índole predominante ou exclusivamente formal, retardar simplesmente as soluções que se impõem, com isso agravando a situação dos envolvidos.

De resto, foi seguramente por essa razão e em clara prevalência das regras da economia processual que o legislador preferiu conservar, para o processo de insolvência, a velha metodologia do processo civil comum, anterior à reforma de 1995-1996, mantendo a oportunidade do despacho de aperfeiçoamento antes da decisão sobre o destino do processo”.

Esse preceito, ao prever o convite ao aperfeiçoamento, não confere ao juiz uma faculdade, mas um poder vinculado, um poder-dever que se impõe em ordem à satisfação dos superiores interesses da economia e aproveitamento processuais.

Voltando ao caso em apreço, é manifesta a razão do despacho recorrido quando, para além do crédito em que a requerente funda o seu direito a ver decretada a insolvência da requerida, tudo o mais é matéria conclusiva, seja o endividamento desta perante bancos e fornecedores, seja a situação económico-financeira (de penúria, quer-se dizer) em que se encontra, seja a cessação generalizada de pagamentos a fornecedores e credores em geral, ou ainda a falta de meios financeiros para solver os seus compromissos, ou finalmente a apresentação de passivo muito superior ao activo, quadro este que a requerente expressamente integrou nas alín.s a) e b) do n.º 1 do cit. art.º 20.º do CIRE.

Todavia, ao invés do decidido, trata-se de insuficiência ou imprecisão na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, mais que falta absoluta de alegação[3], nesse sentido, aliás, que não no propugnado na decisão recorrida, apontando a jurisprudência aí citada.

E daí que, em vez do indeferimento liminar, se justificasse, antes, a prolação de despacho de aperfeiçoamento, com vista à concretização da factualidade alegada (art.º 27.º, n.º 1, alín. b), do CIRE).


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            3. Resumindo e concluindo

            I- O CIRE privilegia o aperfeiçoamento da petição de insolvência ao seu indeferimento liminar;

            II – A petição inicial de um credor tendente ao decretamento da insolvência do devedor, desde que nela se alegue matéria de facto imprecisa e conclusiva, como tal integrante dos factos-índice das alín.s a) e b) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, impõe a prolação de despacho de aperfeiçoamento e não de indeferimento liminar.


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4. Decisão

Face a todo o exposto, na procedência da apelação, revoga-se o despacho recorrido, que se substitui por outro a ordenar a notificação da requerente para, no prazo de 5 dias, apresentar nova petição inicial, corrigida nos termos assinalados, seguindo-se, depois, os demais termos processuais.

            Sem custas.


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(Francisco Caetano)



[1] “CIRE, Anot.”, 2008, pág. 135.
[2] Ob. cit., pág. 162.
[3] V. art.º 508.º, n.º 3 do CPC.