Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1230/21.7T8CVL.1.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: CADUCIDADE DA PROVIDÊNCIA
DECISÃO DE REDUÇÃO DA PROVIDÊNCIA
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 10/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA COVILHÃ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 373.º, N.º 1, ALÍNEA A) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I - No âmbito de procedimento cautelar, a caducidade da providência, a que alude o art.º 373.º do NCPCiv., com extinção do procedimento ou levantamento da providência (se já decretada), visa sancionar o comportamento do requerente, por inércia sua (conduta negligente) ou por inexistência do direito que pretende fazer valer, e não a parte requerida.

II - Se, decretada a providência requerida sem audiência da contraparte, esta veio deduzir oposição subsequente, em resultado do que a providência foi reduzida, com condenação, transitada em julgado, da requerente em obrigação de restituição do que recebeu em excesso, após o que foi levantada a providência, por caducidade decorrente da não propositura da ação principal pela requerente, tal caducidade (em desfavor da requerente) em nada obsta àquela condenação a restituir.

III - A caducidade também em nada compromete a ocorrida atividade processual no âmbito dos autos de procedimento cautelar e respetiva condenação em custas, com trânsito em julgado, incluindo as custas de parte e inerente responsabilidade.

IV - Por isso, a extinção do procedimento cautelar ou o levantamento da providência decretada, por caducidade a que alude o art.º 373.º, n.º 1, al.ª a), do ), do NCPCiv., não determinam a extinção, por falta de título executivo, da execução movida por aquela requerida, fundada na dita condenação, para entrega de coisa certa (a coisa objeto da obrigação de restituição) e para pagamento de quantia certa (dívida de custas de parte).    

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A..., Unipessoal, Ld.ª”, com os sinais dos autos,

intentou os presentes autos de execução de sentença contra

T..., Unipessoal, Ld.ª”, também com os sinais dos autos,

invocando que:

a) Em autos de procedimento cautelar, foi condenada a aqui Executada a restituir à aqui Exequente 44.741 kgs. de aço [o referido em 11) da matéria de facto indiciariamente provada], no prazo de 15 dias após trânsito em julgado da respetiva decisão, em data a indicar pela Exequente à Executada, mediante comunicação escrita, sendo ainda condenadas as partes em custas, na proporção de 1/2 para cada uma;

b) A Exequente remeteu à Executada a respetiva nota de custas de parte, no valor de € 918,00, a qual ainda não procedeu ao pagamento;

c) A Exequente interpelou por escrito a Executada para a devolução do referido aço, o que esta não acatou;

d) Assim, a execução tem duas finalidades diversas: a entrega de coisa certa (44.741 kgs. de aço) e o pagamento de quantia certa (custas de parte);

e) Nos termos do disposto no nº 5 do art.º 626.º do NCPCiv., e para a eventualidade de não se encontrar o aço, devem ser penhorados bens suficientes para garantir a quantia decorrente da eventual conversão da entrega de coisa certa em pagamento de coisa certa, devendo considerar-se que o valor daquele aço ascende a € 60.847,76.

A Executada deduziu oposição ao incidente de liquidação apresentado pela contraparte [no âmbito do requerido na al.ª e) antecedente], defendendo-se, desde logo, mediante a «exceção perentória inominada de ausência de título executivo o que determina a absolvição total do pedido» (cfr. fls. 41 destes autos de recurso em separado em formato de papel).

Para tanto, invocou a caducidade da sentença judicial provisória proferida no âmbito dos ditos autos de procedimento cautelar, por falta de instauração da ação principal, aquela de que dependia a providência, nos termos do disposto no art.º 373.º, n.º 1, al.ª a), do NCPCiv..

Na sequência, por decisão datada de 07/07/2022 (ref. ...54), foi considerado que:

- «nos autos de providência cautelar foi, entretanto, proferida decisão, já transitada em julgado, a declarar caducada a providencia cautelar, ao abrigo do disposto no artigo 373º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil e, consequentemente, a determinar levantamento da providência e a extinção do procedimento cautelar, atendendo a que não foi intentada a ação principal»;

- «A providência cautelar tem feição provisória ou interina, suprindo temporariamente a falta da providência final. Pela sua própria natureza e pelas condições em que é decretada, a providência cautelar tem uma vida necessariamente limitada», termos em que, «tendo sido determinada a caducidade da providência cautelar (…) e, consequentemente, o levantamento da providência e a extinção do procedimento cautelar, a presente execução deixou de ter título que a legitime».

Por isso, foi ali fixado o seguinte dispositivo:

«(…) ao abrigo do disposto no artigo 849º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Civil, declara-se extinta a presente ação executiva.».

Inconformada com o assim decidido, vem a Exequente interpor o presente recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([1]):

«1. A Apelante foi notificada da sentença proferida nos presentes autos, datada de 07/07/2022, que determinou a extinção da instância executiva e por não se conformar com a decisão ali contida e sua fundamentação, interpõe o presente recurso.

2. Discorda-se, inter alia, do segmento decisório que sustenta: “Assim, tendo sido determinada a caducidade da providência cautelar a que estes autos correm por apenso e, consequentemente, o levantamento da providência e a extinção do procedimento cautelar, a presente execução deixou de ter título que a legitime.” […]

3. A decisão que determina a redução de uma providência cautelar previamente e sem audição da requerida, decretada, não está sujeita à regra da provisoriedade intrínseca da decisão que determina a sua procedência.

4. Os critérios que determinam e moldam os arts. 372.º e 373.º do CPC são substancialmente diferentes, o contraditório previsto no referido art. 372.º uma extensão do princípio da igualdade de partes prevista no art. 4.º do CPC.

5. Por decisão de 05/01/2022, confirmada por douto Acórdão de 17/03/2022, foi a providência cautelar reduzida, sendo a aqui Apelada condenada a devolver 44.741,00 Kg do aço referido em 11) da matéria de facto indiciariamente provada, em 15 dias após trânsito em julgado.

6. Igualmente, foi a Apelada condenada em matéria de custas, tendo, pelo iter processual adequado sido apresentada a nota discriminativa e justificativa de custas de parte.

7. Após interpelada para o efeito, a aqui Apelada não procedeu à entrega do aço, nem ao pagamento do valor do mesmo, nem das custas de parte.

8. Munida de sentença condenatória transitada em julgado a Apelante apresentou em juízo acção executiva tendente a cobrar o montante de custas de parte, bem como a reaver a quantidade de aço a que, nos termos da sentença proferida, foi a Apelada condenada a entregar à Apelante.

9. Na sede da Apelada não foram encontrados os bens (aço) em questão, como contactado o legal representante da Executada foi esclarecido o seguinte: “Presente na sede da executada e após contacto telefónico com o Sr. Eng.º AA, legal representante da executada, o mesmo informou que não pode vir ao nosso encontro porque se está a deslocar para Lisboa. Mais informou relativamente ao aço em questão que o mesmo já não existe e para procedermos como entendêssemos.” […] – cfr. termo lavrado pela Sra. Agente de Execução, já junto aos autos.

10. A Apelada requereu a conversão da execução para entrega de coisa certa em pagamento para quantia certa, suscitando, da mesma forma, o incidente tendente a obter a liquidação do valor dos referidos bens (aço).

11. Ardilosamente, ou nem tanto, a Apelada não deu entrada da acção principal, o que fez expressamente saber aos autos requerendo a caducidade da providência cautelar em 27/05/2022.

12. Em 08/06/2022 foi proferida sentença onde foi determinado o levantamento da providência cautelar e a extinção do procedimento cautelar nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 373.º do CPC.

13. Por sua vez em 07/07/2022 foi proferida decisão que determinou a extinção da instância executiva por inexistência de título executivo, por via da referida caducidade da providência cautelar.

14. A decisão dada como título executivo foi a decisão que determinou a redução da providência cautelar inicialmente determinada sem contraditório prévio da Apelante.

15. A Apelante em sede de contraditório, exercido nos termos do art. 372.º do CPC, logrou obter a redução da providência cautelar, tendo a referida decisão ordenado expressamente à Apelada a devolução dos bens (aço) que lhe foram entregues na sequência da providência decretada e de que a Apelada indevidamente se apoderou.

16. A decisão de redução da providência cautelar, para mais confirmada por douto Acórdão desta Relação, não tem a característica de provisoriedade da decisão que determina a procedência da providência cautelar.

17. Tal decisão não tem (não pode ter sob pena de perder qualquer efeito útil) a sua eficácia dependente de uma qualquer acção principal a intentar pela Apelada.

18. O entendimento da decisão recorrida veta de inutilidade o contraditório que deve ser assegurado à providência determinada sem contraditório prévio.

19. Não se compreendendo, na linha do entendimento da decisão recorrida, de que serviria, afinal, a sentença que determinasse a revogação ou a redução da providência após o contraditório da Requerida.

20. Compreendidas assim as coisas de nada valeria o contraditório previsto no art. 372.º do CPC, uma vez que a decisão inicial seria letra morta caso a Requerente da providência não desse entrada à acção principal. Para isso bastaria deixar caducar a providência cautelar, como foi o caso dos autos.

21. Não temos dúvidas que a decisão que decreta a providência tem natureza provisória, ainda que dotada de executoriedade.

22. No entanto, tal provisoriedade somente sucede quanto ao que foi decretado pela providência cautelar.

23. Mas não é dessa decisão que aqui se trata.

24. O que aqui tratamos é da decisão que reduziu a providência inicialmente determinada, é essa a decisão que consubstancia o título executivo que deverá subsistir, independentemente do desfecho da própria providência.

25. O entendimento subscrito pela decisão recorrida põe em crise o princípio do contraditório e o princípio da igualdade das partes estatuídos nos arts. 3.º, 4.º e 372.º do CPC.

26. Tal posição coloca uma das partes como dominus do processo, privilegiando aquele que obtém, sem contraditório, um benefício do qual não tem Direito.

27. Seria, no fundo, a prevalência da forma sobre a substância!

28. A título académico, mas ilustrativo da presente situação, no entendimento perfilhado pela decisão recorrida, caso a referida decisão proferida tivesse condenado a Apelada em litigância de má-fé, também a não apresentação em juízo da acção principal abalaria os efeitos de tal decisão, deixando a mesma, também neste segmento, de ser título executivo.

29. A decisão sobre a relação material controvertida, na parte em que determinou a redução da providência (inicialmente decretada sem contraditório prévio da requerida) e consequente devolução do aço, tem força obrigatória dentro e fora do processo constituindo caso julgado material nos termos do art. 619.º, n.º 1 do CPC, uma vez que transitou em julgado.

30. Não tem o despacho que determinou a caducidade da providência cautelar, salvo melhor opinião, a virtualidade de obrigar a Apelante a dar entrada a uma nova acção judicial destinada a obter o mesmo resultado daqueloutra decisão transitada em julgado (que determinou a devolução do aço pela Requerente da providência). Tal redundaria em violar o caso julgado (já formado naquela decisão), para além de violar o princípio da economia processual (art. 130.º do CPC), princípio de aproveitamento dos actos e princípio da igualdade (art. 13.º da CRP e art. 4.º do CPC).

31. A caducidade da providência não retira, nem pode retirar, a validade aos títulos executivos dados à execução (título composto – sentença transitada em julgado e custas de parte apresentadas – quanto à finalidade da execução para pagamento de quantia certa; e sentença transitada em julgado quanto à finalidade da execução para entrega de coisa certa).

32. Deverá, assim, a decisão recorrida ser revogada sendo substituída por outra que determine o prosseguimento da instância executiva.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá

o presente recurso ser procedente, e em consequência revogar-se a decisão recorrida, substituindo-se por outra que determine o prosseguimento dos autos de execução, incidente de convolação e liquidação, clamando-se, assim, pela costumada e sã

JUSTIÇA!».

Na sua contra-alegação, a Recorrida defende a rejeição do recurso, por incumprimento do dever de apresentação de conclusões – considera que as conclusões formuladas «são desprovidas de qualquer esforço de sintetização», não passando, no essencial, de uma reprodução do corpo alegatório, com violação, assim, do disposto no art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv. –, e, caso assim não se entenda, conclui pela improcedência da apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Foi o recurso admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, sendo então ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foram mantidos tais regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do recurso

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, está em causa na presente apelação, em matéria de direito, saber:

a) Se deve o recurso ser rejeitado, por inobservância do ónus legal de formulação de conclusões;

b) Se, afastada a rejeição do recurso, ocorrendo caducidade da providência cautelar decretada, com levantamento da mesma, «tudo se passa como se a providência não tivesse sido instaurada», deixando a execução «de ter título que a legitime», levando à extinção total da ação executiva, ou, ao invés, subsiste a executoriedade da decisão cautelar, devendo a execução prosseguir os seus termos, como pretendido pela Recorrente.

III – Questão prévia

Da (in)observância do ónus legal de formulação de conclusões

Como já mencionado, pugna a Recorrida pela rejeição do recurso, por incumprimento do dever de apresentação de conclusões, considerando que as conclusões da Apelante são desprovidas de sintetização.

Decidindo, dir-se-á que dispõe no art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv. no sentido de dever a parte recorrente alegar e concluir, havendo as conclusões de ser sintéticas e de conter a indicação dos fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da decisão impugnada.

Caso ocorra deficiência das conclusões apresentadas, designadamente por inobservância do dever de sintetização, deve o relator formular convite ao aperfeiçoamento/sintetização, sob pena de não se conhecer do recurso na parte afetada (n.º 3 daquele art.º 639.º).

No caso, as conclusões da Apelante, num total de 32 pontos conclusivos, estendem-se por menos de cinco páginas completas, enquanto a motivação/alegação do recurso preenche cerca de dezoito páginas (de fls. 48 v.º a 57 v.º do processo físico).

Assim, embora fosse possível um maior esforço de síntese da Recorrente, afigura-se-nos que aquelas cinco páginas incompletas constituem sintetização suficiente do acervo conclusivo, posto a motivação ocupar as ditas dezoito páginas, o que torna desnecessário um convite ao aperfeiçoamento conclusivo (sintetização).

Acresce que as questões recursivas não podem considerar-se de manifesta simplicidade, posto estar em causa a (in)existência de título executivo na dupla vertente de execução para entrega de coisa certa e para pagamento de quantia certa, sabido que nesta última vertente o título não se cinge apenas à sentença exequenda, a haver de ser complementada (com a alegada nota de custas de parte).

Por isso, estando em causa a dita (in)existência de título executivo quanto a execução para entrega de coisa certa e, por outro lado, para pagamento de quantia certa, e não se mostrando que as conclusões apresentadas sejam uma mera reprodução, em termos de extensão, da alegação/motivação do recurso, é de concluir pela existência de conclusões da Apelante nos moldes legalmente previstos.

Donde que improceda a pretensão da Recorrida de rejeição da apelação.

IV – Fundamentação

          A) Matéria de facto

Ante os elementos documentais dos autos, os pressupostos fácticos, a considerar, são os que já antes se deixaram explicitados (cfr. relatório supra), aqui dados por reproduzidos, a que apenas deve acrescentar-se o seguinte:

1. - a decisão do procedimento cautelar, anteriormente ao cumprimento do princípio do contraditório, foi no sentido de julgar procedente o procedimento cautelar comum e, em consequência, condenar a Requerida «A..., Unipessoal, Ld.ª» a permitir que a Requerente «T..., Unipessoal, Ld.ª» retirasse da obra ali identificada «os equipamentos, utensílios e materiais elencados no ponto 11) da matéria de facto provada, em data a indicar pela requerente à requerida, mediante comunicação escrita, com o acompanhamento de funcionário judicial, bem como com o corte da via pública da Rua ..., junto à Rotunda ..., ..., pelo tempo necessário para a retirada dos aludidos equipamentos, utensílios e materiais e se necessário, com recurso à força pública», incluindo «47,600 quilos de aço para moldar/aplicar»;

2. - porém, cumprido aquele princípio do contraditório, foi decidido assim:

«Em face do exposto, julga-se parcialmente procedente a oposição deduzida, revoga-se parcialmente a providência ordenada e, em consequência, determina-se o levantamento parcial da providência decretada, no que diz respeito ao aço, condenando-se a requerente T..., Unipessoal, Ld.ª. a restituir à requerida A..., Unipessoal, Ld.ª., 44,741KG (quarenta e quatro mil, setecentos e quarenta e um quilogramas) do aço referido em 11) da matéria de facto indiciariamente provada, no prazo de 15 (quinze) dias após trânsito em julgado da presente decisão, em data a indicar pela requerente à requerida, mediante comunicação escrita.

Fixo ao presente procedimento cautelar o valor de 36.150,31€ (trinta e seis mil, cento e cinquenta euros e trinta e um cêntimo).

Custas por ambas as partes, na proporção de 1/2 para cada uma.»;

3. - Esta decisão veio a ser confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.

B) O Direito

1. - Da (in)existência de título executivo e decorrente extinção da ação executiva para entrega de coisa certa

A Recorrente, fundada em sentença de procedimento cautelar que havia sido instaurado pela contraparte, intentou, por sua vez, execução com dupla finalidade: entrega de coisa certa (44.741 kgs. de aço) e pagamento de quantia certa (€ 918,00 a título de custas de parte, por via da operada condenação em custas do procedimento cautelar).

Quanto à primeira daquelas finalidades – a que agora importa (depois se cuidará da outra) –, é líquido que, julgada procedente, num primeiro momento (anteriormente à observância do princípio do contraditório), a providência cautelar, veio depois, ouvida a Requerida (a aqui Exequente/Apelante), a ser julgada parcialmente procedente a oposição desta, com revogação parcial da providência ordenada, e consequente levantamento parcial da mesma no que respeita ao aço, condenando-se a Requerente (aqui Executada/Apelada) a restituir à Requerida os mencionados 44.741 kgs. de aço.

É esta, pois, a condenação que a Apelante pretende ver executada, na vertente de execução para entrega de coisa certa.

Todavia, como se constatou, esbarrou com a decisão recorrida, a qual considerou que nos autos de providência cautelar foi, entretanto, proferida decisão, já transitada em julgado, a declarar caducada a providencia cautelar, ao abrigo do disposto no art.º 373.º, n.º 1, al.ª a), do NCPCiv., com o consequente levantamento da providência e a extinção do procedimento cautelar, por não ter sido intentada a ação principal.

Por isso, na perspetiva de tal decisão recorrida, tendo o procedimento cautelar, pela sua natureza, uma feição provisória, apenas suprindo temporariamente a falta da providência final, a caducidade da providência cautelar decretada e o respetivo levantamento determinam para a presente execução a ausência de título executivo.

Ora, é certo que a Apelante não põe em causa que tenha ocorrido tal decisão transitada de caducidade da providencia cautelar, com o decorrente levantamento da providência decretada, por não ter sido intentada a ação principal, nos termos do disposto no art.º 373.º, n.º 1, al.ª a), do NCPCiv..

O que a Recorrente não aceita é que, no que lhe concerne – enquanto parte requerida na dita providência –, a decisão de redução, após exercício do contraditório, do âmbito da providência inicialmente decretada, com obrigação de restituição (a seu favor), esteja também sujeita a uma esfera de provisoriedade inerente ao procedimento cautelar declarado caduco.

Quer dizer, enquanto a providência decretada a favor da parte requerente do procedimento cautelar estaria sujeita a caducidade, por essa parte não ter intentado a ação principal – como dito expressamente na al.ª a) do n.º 1 do aludido art.º 373.º, a sanção da caducidade ocorre se o requerente não propuser aquela ação principal –, o mesmo não ocorreria com a ulterior decisão (inversa) de redução, a favor da Requerida, do âmbito da providência já decretada.

Como a Apelante expressamente refere, a sua perspetiva é a de que, embora a decisão de decretamento da providência tenha natureza provisória, ainda que dotada de executoriedade, tal caráter provisório se cinge «ao que foi decretado pela providência cautelar» (conclusões 21 e 22), e não à inversa redução do âmbito da providência anteriormente decretada (conclusões 23 e segs.).

Daí que não colham, como tem de entender-se, as considerações da Apelada em contrário (tecidas no acervo de conclusões da contra-alegação), na parte em que fundadas na não impugnação da decisão de caducidade e levantamento da providência.

Com efeito, a ora Apelante conformou-se e continua a conformar-se com essa decisão de caducidade, sendo que o levantamento da providência respeita, logicamente, à providência que foi decretada a favor da Requerente (a aqui Apelada).

Isto é, na lógica da ora Recorrente o que caducou foi a matéria de condenação, que sobre si recaiu (enquanto ali demandada), a permitir que a Requerente do procedimento cautelar retirasse da obra «os equipamentos, utensílios e materiais elencados no ponto 11) da matéria de facto provada».

O que a Apelante discute não é, pois, a decisão, enquanto tal, de caducidade e levantamento da providência decretada a favor da parte requerente do procedimento cautelar, por tal Requerente não ter intentado a ação principal, mas o âmbito de aplicação – já em termos interpretativos – dessa dimensão de caducidade (e levantamento), considerando que não atinge a determinada redução da providência a favor da Requerida (por excesso dessa providência inicialmente decretada).

Donde que não possa dar-se razão à Apelada quando esgrime que a discordância da Recorrente se reporta à decisão de caducidade e levantamento da providência decretada, a qual não deveria ter deixado transitar em julgado, termos em que também não pode colher a invocação de ser abusivo e contraditório vir agora pugnar contra a extinção da execução por falta de título executivo.

Com efeito, trata-se aqui de planos diferentes e inconfundíveis, posto a Recorrente se conformar com aquela decisão de caducidade e levantamento da providência decretada, apenas entendendo, sem contradição, no plano interpretativo, que tal dimensão de caducidade apenas se aplica à decisão que decretou (afirmativamente/positivamente) a providência (a favor da respetiva parte requerente), e não, pois, à oposta decisão posterior de redução (levantamento parcial) do âmbito da providência antes decretada (agora já a favor da contraparte/requerida).

Posto isto, vejamos, então, quem tem razão.

É bem claro que o preceito do art.º 373.º do NCPCiv., referente à caducidade da providência, visa sancionar comportamentos do requerente do procedimento cautelar, em vez de comportamentos da contraparte (requerido), estabelecendo, por isso, que o procedimento cautelar (intentado, logicamente, pelo requerente contra o requerido) se extingue ou, se já decretada a providência (a favor do requerente), esta caduca, sendo levantada, em determinados casos de inércia do requerente ou de improcedência da sua pretensão.

Assim ocorre no caso de omissão pelo requerente de propositura tempestiva da ação principal [al.ª a do n.º 1 do dito art.º 373.º], tal como no caso de negligência do requerente em promover o andamento dessa ação principal [al.ª b) do mesmo normativo], ou no caso de improcedência de tal ação principal [al.ª c)], no caso de absolvição da instância, desde que o requerente não proponha nova ação em tempo [al.ª d)] e, por fim, em caso de extinção do direito que o requerente pretende acautelar [al.ª e)].

Por isso é que, em observância do princípio do contraditório, não será de decidir a extinção do procedimento ou o levantamento da providência sem prévia audição do requerente do procedimento (n.º 3 do aludido art.º 373.º), posto tratar-se de matéria que o prejudica (e, assim, beneficia a contraparte).

Em suma, a dita caducidade da providência surge sempre como decisão desfavorável ao requerente, tendo implícita uma penalização ao mesmo, seja por comportamento negligente (em termos processuais), seja por improcedência do seu direito/pretensão.

E o resultado de tal caducidade também é sempre desfavorável ao requerente, ocasionando a extinção do procedimento cautelar por si intentado (o qual não vinga) ou o levantamento da providência, se já decretada esta.

Assim sendo, a caducidade da providência constitui um desfecho que favorece a parte requerida e desfavorece o requerente, tanto mais que determina – insiste-se – o levantamento da providência, se já decretada esta, como ocorreu in casu.

Quer dizer, no caso dos autos, a providência decretada – com a amplitude resultante da redução do âmbito inicial ([2]) –, por via da inércia da Requerente (que não intentou a ação principal), foi objeto de levantamento, tornando-se, assim, insubsistente, em desfavor da Requerente (e em favor da Requerida).

Efetivamente, só caberia à Requerida propor ação em caso de decisão de inversão do contencioso (cfr. art.º 371.º do NCPCiv.), o que não ocorreu na situação retratada nos autos ([3]).

No quadro normativo do art.º 373.º do NCPCiv. nunca cabe à parte requerida intentar a ação principal, o que constitui tarefa exclusiva da parte requerente, sob pena de extinção do procedimento por si intentado ou levantamento da providência decretada a seu favor.

A determinada redução (em benefício da parte requerida), após contraditório, do âmbito da providência inicialmente decretada, não pode ficar condicionada à instauração da ação principal pelo requerente, nem caduca por força da inércia deste, caso em que se estaria, se assim pode exprimir-se, a «beneficiar o infrator», nem fica sujeita à instauração de qualquer ação pelo requerido, uma vez que não ocorreu inversão do contencioso.

Como limitação ao inicialmente decretado, a redução da providência orienta-se em favor da parte requerida (por força das razões que fez vingar após a sua defesa, no exercício do contraditório), tal como a favorece a caducidade da providência, seja por extinção do procedimento, seja por levantamento da providência já decretada.

Em qualquer desses casos, a parte desfavorecida (por conduta que lhe é imputável) é a requerente da providência, não podendo um comportamento negligente desta levar a uma desvantagem para a contraparte (e a uma vantagem para si própria), o que viria completamente ao arrepio da intenção da lei, uma vez que a delineada caducidade da providência visa sancionar – e nunca premiar – a parte requerente do procedimento cautelar.

Por isso, a decisão de redução do âmbito da providência cautelar (inicialmente decretada e, depois, restringida), quadro em que se insere a condenação da Requerente em (obrigação de) restituição (em favor da Requerida), não está sujeita à caducidade da providência, não podendo penalizar a parte requerida (e beneficiar a parte que a lei pretende ver penalizada).

Se a providência inicialmente decretada se vem a mostrar excessiva, com decorrente obrigação para a Requerente de restituição do que recebeu em excesso, por não lhe ser devido, tal reposição do devido (até com condenação a respeito na decisão do procedimento cautelar) não pode ficar na dependência de uma ação a intentar por quem se viu despojado indevidamente do que lhe pertencia, militando a favor da parte requerida (e em desfavor da requerente) a ulterior decisão de caducidade da providência, com levantamento da providência decretada.

Em suma, a decisão de caducidade da providência não pode penalizar a parte requerida, num caso em que não houve inversão do contencioso, militando a redução do âmbito da providência cautelar, com condenação em restituição que impende sobre a Requerente, no mesmo sentido do decretado levantamento da providência por caducidade.

Termos em que, ressalvado sempre o devido respeito pela posição do Tribunal a quo (e da Requerente/Apelada), não é o levantamento da providência, por caducidade, idóneo a penalizar a Requerida, subsistindo por isso a condenação cautelar da Requerente, no quadro da redução da providência, em obrigação de restituição.

Assim sendo, em tal condenação pode a Requerida fundar a ação executiva para entrega de coisa certa (a coisa objeto daquela obrigação de restituição), ao que não obsta a natureza cautelar dos autos, como enfatizado na decisão em crise ([4]) e indiscutido pelas partes no recurso, uma vez que a Recorrida se limita a reafirmar a argumentação da decisão em crise, insistindo em que da caducidade do procedimento cautelar decorre a extinção da execução por condenação no âmbito daquele.

Procede, pois, nesta parte a apelação.

2. - Da inexistência de título executivo e decorrente extinção da execução para pagamento de quantia certa

Resta a execução para pagamento de quantia certa, referente a custas de parte, tendo ocorrido condenação a respeito na decisão final da providência cautelar e invocando a Exequente ter cumprido as normas legais referentes à nota de custas de parte.

Ora, cabe dizer desde já que também nesta parte a apelação tem de proceder.

A decisão recorrida não foi detalhada neste particular, podendo, ainda assim, ter-se como implícito na respetiva fundamentação que o Tribunal a quo entendeu, também aqui, que a caducidade da providência implica a inexistência de título executivo.

Porém, parece claro que a caducidade da providência não pode afetar a condenação em custas, incluindo as custas de parte.

Com efeito, as custas resultam da atividade processual, a qual existiu e não pode ser desconsiderada por, em virtude de a Requerente não ter intentado a ação principal, a providência requerida e decretada ter sido levantada.

Assim como subsiste a dita atividade processual, também tem de entender-se subsistir a respetiva condenação em custas, tanto mais que transitada em julgado, o que o Tribunal aceita e as partes não colocam em causa.

A caducidade da providência, pelo motivo aludido, não inutiliza a sentença nem a condenação (por responsabilidade tributária) que a mesma transporta: se, como dito pelo Tribunal recorrido, «Com a caducidade da providência cautelar a mesma perdeu, assim, a sua eficácia, a sua vitalidade», tal só ocorre quanto à concreta providência requerida e decretada (a favor, pois, da Requerente), em nada beliscando o processado, a atividade processual inerente e a respetiva condenação em custas, as quais são devidas por quem ficou vencido na causa cautelar, na proporção estabelecida na sentença, ademais com trânsito em julgado.

Em suma, mantendo-se a condenação em custas, incluindo custas de parte, com trânsito em julgado, não poderá vingar a conclusão no sentido de a subsequente caducidade da providência decretada, com levantamento desta, implicar, sem mais, a inexistência de título executivo em matéria de execução por dívida de custas de parte.

Donde que, mantendo-se a execução, deva proceder também nesta parte a apelação, com revogação da decisão recorrida.

(…) 

***
VI – Decisão

Pelo exposto, julgando-se procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se, assim, o prosseguimento da execução, se a tal nada mais obstar.

Custas da apelação pela Recorrente – parte vencida no recurso (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 11/10/2022

         

Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

                                      

Fernando Monteiro





([1]) Cujo teor se deixa transcrito (com destaques retirados).
([2]) É sabido que, no caso de contraditório subsequente ao decretamento da providência, com dedução de oposição pelo requerido, a decisão posterior «constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida» (cfr. art.º 372.º, n.ºs 1 e 3, do NCPCiv.). 
([3]) Cfr., sobre a matéria, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, ps. 51 e segs. e 66 e segs., bem como Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, ps. 436 e seg. e 440 e seg..
([4]) Nesta é referido, sem impugnação nesta parte, que não se discute, «ab initio, o reconhecimento da verificação de título executivo para a instauração da presente ação executiva, reclamando-se, da executada, a restituição de 44,741KG (quarenta e quatro mil, setecentos e quarenta e um quilogramas) do aço referido em 11) da matéria de facto indiciariamente provada», admitindo-se, assim, «a executoriedade de uma decisão transitada em julgado, proferida numa providência cautelar».