Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
930/18.3T8CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
DEVER DE INFORMAÇÃO
DEVER DE PRESTAR CONTAS
COOPERATIVA
Data do Acordão: 06/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - C.RAINHA - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS 941, 943 CPC, 573 CC
Sumário: I - A decisão sobre a matéria de facto apenas pode ser alterada se a prova aduzida pela recorrente, não apenas indiciar ou sugerir, mas antes claramente impuser decisão diversa.

II - Na 1º fase da ação de prestação de contas – saber se o réu está, ou não, obrigado a prestá-las – são irrelevantes os factos atinentes à fundamentação das mesmas, os quais, eventualmente, apenas relevam para a fase da efetiva apresentação.

III - O dever de prestar contas pela forma legal - em forma de conta corrente, com deve e haver e concluindo-se por um saldo -, emerge quando alguém administra bens alheios – artº 941º do CPC – e conexiona-se com o dever de informação do artº 573º do CC.

IV - Se um sócio de cooperativa que fornece fruta a esta para ela vender e retribuir-lhe pelo preço possível, deduzidas as despesas que teve, não concorda com o preço que lhe foi atribuído, tem o direito de, independentemente da aprovação formal das contas gerais, exigir a prestação de contas/informação quanto a si, pela fruta fornecida, na aludida forma legal.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

F (…) Unipessoal Lda, instaurou contra O (…) Crl.  acção de prestação de contas.

 

Alegou, em síntese:

Ter sido sócia da Cooperativa Ré, a quem vendeu fruta, cabendo à Ré proceder ao pagamento do preço, deduzidas as respetivas despesas.

Mais alegou que a Ré não havia prestado contas, não concordando com os valores que lhe haviam sido pagos.

Pediu:

Que a ré preste contas e que seja condenada no pagamento do saldo que se apurar.

A Ré contestou.

Alegou que as contas haviam sido regulamente prestadas, e aceites pela Ré.

Em articulado de resposta concretizou a Autora que as entregas de frutas haviam sido feitas no âmbito de contratos de fornecimento celebrados com a Ré e não no âmbito da qualidade de associado.

Foi ordenada a apensação do processo de prestação de contas instaurado por  F (…) Unipessoal Lda contra  a ré O (…)porque os factos  respeitavam às mesmas campanhas de frutas, sendo os mesmos os factos em discussão.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Pelo exposto, e decidindo, julga-se a acção improcedente procedente, e, em consequência:

a) Absolve-se a Ré do pedido de prestação de contas formulado;

b) Absolve-se as Autoras do pedido de condenação como litigantes de má fé;

Custas a suportar pelas Autoras».

3.

Inconformadas recorreram as autoras.

Rematando as suas alegações com as seguintes, prolixas e tautológicas e,  parece, erráticas - nelas incluindo artigos que parecem não respeitar a estes autos e a transcrição de depoimentos testemunhais, que apenas devem constar no corpo das alegações, as quais, assim, urge, na medida do possível, sintetizar - conclusões:

(…)

Contra alegou a ré pugnado pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª - Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2ª - Procedência da ação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade  - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

Nesta conformidade  constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.1.2.

Por outro lado, como dimana do já supra referido, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

 A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.

Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua, subjetiva, convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ele efetivar uma análise concreta, discriminada, objetiva, crítica, logica e racional, de todo o acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

 A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório  com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito probatório permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.– cfr. neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 17.05.2016, p. 339/13.1TBSRT.C1; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos  in dgsi.pt;

5.1.3.

No caso vertente.

Pretende a recorrente:

- Que se deem como não provados os factos apurados  constantes nas alíneas   G),  H), I) e J), a saber:

G) A Autora F (…) esteve presente na Assembleia de prestação de contas respeitante ao ano de 2013 e aprovou as contas referente a esse exercício (art.20º da contestação);

H) A Autora F(…) esteve presente nas Assembleias de prestação de contas respeitantes aos anos de 2013, 2014 e 2015 e aprovou as contas referentes a esses exercícios (art.20º da contestação do apenso A);

I) No final de cada campanha, nos meses de Maio/Junho, a Ré reúne com os membros da cooperativa, para apresentar as receitas tidas com a campanha e respectivas despesas (art.24º da contestação e da contestação o apenso A e art.25º da contestação e da contestação do apenso A);

J) Só após a apresentação das despesas e receitas é que a Ré paga a prestação final do valor acordado (art.31º da contestação e da contestação do apenso A);

- Que  se altere o teor das alíneas K e L),

do provado:

K) Os valores da campanha de 2013/2014 foram pagos à Autora F (…).

L) Os valores das campanhas de 2013/2014, 2014/2015 e 2015/2016 foram pagos à Autora F (…).;

para o a provar:

“K) A R. efectuou vários pagamentos por conta da campanha de 2013/2014 à Autora F (…)”

“L) A R. efectuou vários pagamentos por conta das campanhas de 2013/2014, 2014/2015 e 2015/2016 à Autora F (…)”.

- Que se aditem os seguintes factos os seguintes factos:

AA

Na campanha de 2013/2014, a Autora F (…) produziu e entregou à Ré 515.825 quilos de fruta para que a Ré a vendesse.

BB

Na campanha de 2013/2014, a Autora F (…) produziu e entregou à Ré 737.342 quilos de fruta para que a Ré a vendesse.

CC

Na campanha de 2014/2015, a Autora F (…) produziu e entregou à Ré 571.112 quilos de fruta para que a Ré a vendesse.

DD

Na campanha de 2015/2016, a Autora F (…)produziu e entregou à Ré 240.806 quilos de fruta para que a Ré a vendesse.

EE

O ano fiscal da Ré corresponde ao ano civil, de 1/1 a 31/12

FF

o ano económico (ou de produção) da Ré decorre de 1/7 a 30/6 do ano seguinte

A Julgadora fundamentou as respostas nos seguintes termos:

«No que respeita aos Factos Provados G) e H) decorrem da ponderação dos documentos de fls.36v a 37 e de fls.49v a 51v, do apenso A.

Em relação aos Factos Provados I) e J) resultam os mesmos da ponderação dos documentos de fls.38 a 41v e 52 a 62v do apenso A).

Resultaram ainda das declarações prestadas pelas testemunhas (…) que descreveram, de forma que se afigurou isenta e credível, e mostrando-se conhecedores da vida da Cooperativa Ré, a forma como o decorria o encerramento das campanhas de fruta e como eram feitos os respectivos pagamentos.

Quanto aos Factos Provados K) e L) resultam dos documentos de fls.42 a 44v e 63 a 72 do apenso A.

No que respeita aos Factos Não Provados 1), 2) e 3) nenhuma prova se produziu quanto aos mesmos.

Na verdade, a testemunha (…) nada sabia em concreto do que havia sido acordado entre as Autoras e a Ré, ainda que tenha referido, por diversas vezes que a relação existente era cooperativa/produtor associado.

E o mesmo foi afirmado pelas testemunhas (…)tendo estas últimas esclarecido que não existe entre a Ré e os seus associados qualquer relação de fornecimento mas, sim, entrega de fruta no âmbito das finalidades da cooperativa.».

Já a recorrente entende que os factos provados nas alíneas G a J) não o podem ser porque a prova documental e testemunhal produzida nos autos não corrobora o seu teor.

E que tal acervo probatório  impõe que se deem como provados os factos por ela indicados nos termos sobreditos.

Foi apreciada a prova.

Perscrutemos.

Relativamente às al. G) e H).

Os documentos citados na sentença – atas da assembleia da ré -, provam que as autoras estiveram presentes e aprovaram, como sócios, os relatórios de contas relativos aos exercícios da ré dos anos de 2013 a 2015.

Qual o sentido a dar a tal aprovação, rectius se  a mesma é, ou não,  suficiente para se concluir que as contas  atinentes à fruta entregue pelas autoras à ré foram em tais assembleias aprovadas por aquelas, é questão  a dilucidar em sede de subsunção e interpretação, ie. é, ou é mais, questão de direito  do que questão de  facto.

No respeitante às alíneas I) e J).

As recorrentes não impugnaram os documentos de fls. 38 e sgs. e 52 e sgs. do apenso.

Logo, tais documentos fazem prova, desde logo quanto às declarações neles constantes, a não ser que as recorrentes fizessem prova da sua falsidade, o que não invocaram e consecutiram – artº 376º nº1 do CPC.

Tais documentos reportam-se a reunião de sócios para  apresentação das liquidações de 2013/2014 e 2014/2015 relativamente aos preços de venda da fruta entregues pelos sócios e respetivos factores condicionantes, como o seu calibre, e, bem assim, aos  inerentes custos de comercialização.

Neles se faz menção de que:

 « O valor médio por variedade de cada sócio difere do valor médio da central se a percentagem de cada calibre for muito diferente da percentagem média da estação.

Um sócio com % de fruta de indústria/danificada mais elevado, vai receber uma média final menor»

Por seu turno, os depoimentos das testemunhas (…), e versus o defendido pelas recorrentes, não são suficientes para infirmar o teor de tais documentos; antes pelo contrário, e pelo menos na sua essencialidade relevante, os corroboram.

Aquela verbalizou que, tanto quanto sabe, realizam-se reuniões de sócios para se inteirarem das vendas  da fruta entregue à ré e respetivos preços e custos.

Este disse que os preços são pagos a cada sócio em função do preço médio «da central», mas que o concreto preço recebido por cada sócio pode variar em função de a sua fruta ser melhor ou pior do que a fruta que define aquele preço médio.

Logo, a prova produzida e invocada pelas recorrentes, não impõe, como a lei exige, a censura da convicção probatória da julgadora.

No máximo e concedendo, pode admitir-se alguma dúvida sobre a realidade de tais factos; mas esta, considerando os meios probatórios constantes nos autos, está ainda ínsita na margem de álea concedida pela lei ao julgador; e assim, e porque é este, e não as partes, que titula o poder/dever de julgar, a sua convicção deve prevalecer.

Ademais, e ex vi lege - artº414ºdo CPC – em caso de dúvida  sobre a veracidade de um facto, a questão resolve-se –  por motivos de certeza e segurança que aqui sobrelevam sobre critérios de justiça -  contra a parte a quem o facto aproveita,  ou seja, no caso vertente, contra  as recorrentes.

No concernente às als. K) e L).

Neste particular a prova deve fazer-se, essencial e determinantemente, via documental.

Ora versus o defendido pelas recorrentes, nos autos existem documentos, como sejam os de fls. 38 a 44 deste processo e de fls.  52 a 69 do apenso, que demonstram o vertido nestes pontos pela julgadora.

Pelos vistos, as insurgentes apenas valorizam os documentos que lhes interessam, quais sejam os que se referem aos pagamentos por conta, e desvalorizam outros, exatamente com o mesmo valor probatório, que vão contra as suas pretensões.

Mas no processo existem faturas, emitida pelas próprias sociedades demandantes, a comprovar que, na sequência e no culminar dos aludidos pagamentos por conta, se verificou o pagamento, a «liquidação», nos seus dizeres, das campanhas 2013/2014,  2014/2015  e 2015/2016 – cfr. Fls. de  42 destes autos e 62, 65 e 69 do apenso.

O depoimento da testemunha (…) não infirma esta prova documental.

No depoimento, a testemunha, na parte em que menciona que na campanha de 2013/2014 apenas existiu uma «tranche» de pagamento, e não houve contas finais, acaba por admitir que fala apenas por aquilo que tem conhecimento decorrente das suas funções, nem sequer sabendo o que foi combinado em termos de preço da fruta.

Ora este depoimento é contrariado pelos documentos supra mencionados, dos quais emerge inequivocamente que, só na campanha de 2013/2014, existiram, para a F (…), cinco pagamentos por conta  nos meses de dezembro de 2013, fevereiro de 2014 (2), março e abril de 2014, sendo o último pagamento e liquidação da campanha em julho de 2014; e, para a F (…),  três pagamentos por conta em dezembro de 2013, fevereiro e março de 2014, com liquidação da campanha em dezembro de 2014.

Finalmente os factos aditandos.

Apenas podem ser provados e considerados os factos que tenham interesse para o desfecho da lide tal como as partes a delinearam e a perspetivação do seu objeto/finalidade precípuos.

A presente ação é uma ação de prestação de contas.

Ora a ação de prestação de contas tem apenas por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

Constituem doutrina e jurisprudência pacíficas:

 «O processo de prestação de contas comporta duas fases distintas.

Na inicial decide-se, antes de mais e tão só, se o réu deve prestar contas.

Na subsequente, se a decisão for afirmativa, há lugar à prestação de contas, definindo-se os termos em que a mesma se deve processar.

Só depois de proferida decisão a impor a obrigação de prestar contas, é que o autor tem de ser notificado para contestar as contas apresentadas pelo réu» – Ac. do STJ de 30.01.2001, p. 00A296 in dgsi.pt.

Sendo que:

 «O ónus da prova da realização das despesas arroladas nas contas apresentadas cabe ao respectivo apresentante das contas» – Ac. do STJ de 03.10.2003, p. 03A1753.

Acresce que:

«para que o arbítrio no julgamento das contas possa ser prudente e avisado, é lícito ao juiz proceder a actos de instrução, por forma a habilitá-lo a negar a aprovação de verbas de receita que lhe parecerem baixas e às verbas de despesas que reputar exageradas.

Com vista à observância do julgamento segundo o seu prudente arbítrio, o juiz deverá:
i) Colher as informações que entender convenientes;

ii) Mandar proceder às averiguações que considerar úteis;

iii) Incumbir pessoa idónea de dar parecer sobre as contas» - Ac. cit., apud  ALBERTO DOS REIS, Processos Especiais, Vol. I, 322 e 323.

Finalmente importa ter presente que:

« A acção especial de prestação de contas destina-se, tão só, a apurar e aprovar o conjunto das receitas efectivamente obtidas, durante um período de tempo determinado, a partir do conjunto de bens alheios administrado pela pessoa obrigada a prestar essas contas e das despesas realizadas por esse administrador nesse mesmo lapso temporal e, caso seja apurado um saldo patrimonial positivo, condenar o prestador de contas a pagá-lo.

 A acção especial de prestação de contas não constitui o meio próprio para aquilatar do mérito da administração dos bens alheios em referência ou para determinar se, com um outro tipo de gestão do património em causa, poderiam ser obtidas receitas que o não foram e condenar o prestador de contas a pagar um qualquer saldo patrimonial não efectivamente apurado - AC. da RL de  19.03.2013, p. 10954/11.6TBOER-B.L1-1.

Vale isto por dizer que os factos aditandos são irrelevantes nesta fase.

Primeiro, nesta 1ª fase, urge apreciar se a ré é, ou não é, obrigada a prestar contas.

Depois, se for obrigada e se as autoras não concordarem com as mesmas, é que, porventura, estes factos poderão ser alegados e ter a sua relevância, nos termos, vg. do disposto no artº 945º nº2 do CPC.

5.1.4.

Nesta conformidade, e no indeferimento desta pretensão, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:

A) A Autora F (…) Unipessoal Lda é uma produtora agrícola que se dedica à produção, comércio, importação e exportação de produtos agrícolas, nomeadamente frutícolas e hortícolas (art.1º da petição inicial);

B) A Autora F(…) Unipessoal Lda é uma produtora agrícola que se dedica à produção, comércio, importação e exportação de produtos agrícolas, nomeadamente frutícolas (art.1º da petição inicial do apenso A);

C) Nesse âmbito exercem a sua actividade nos pomares que lhes pertencem, procedendo ao seu cultivo, regando e tratando das árvores, podando-as, pulverizando e apanhando a fruta (art.2º da petição inicial e art.2º da petição inicial do apenso A);

D) A Ré é uma Organização de Produtores de Frutos e Hortícolas e reveste a forma de Cooperativa Agrícola (art.3º da petição inicial e art.3º da petição inicial do apenso A);

E) No exercício da sua actividade a Autora F (…) obrigou-se a produzir pêras e maças durante a campanha de 2013/2014 e a transportá-las para a estação da Ré (art.7º da petição inicial);

F) No exercício da sua actividade a Autora F (…) obrigou-se a produzir pêras e maças durante as campanhas de 2013/2014, 2014/2015 e 2015/2016 e a transportá-las para a estação da Ré (art.7º da petição inicial do apenso A);

G) A Autora F (…) esteve presente na Assembleia de prestação de contas respeitante ao ano de 2013 e aprovou as contas referente a esse exercício (art.20º da contestação);

H) A Autora F (…) esteve presente nas Assembleias de prestação de contas respeitantes aos anos de 2013, 2014 e 2015 e aprovou as contas referentes a esses exercícios (art.20º da contestação do apenso A);

I) No final de cada campanha, nos meses de Maio/Junho, a Ré reúne com os membros da cooperativa, para apresentar as receitas tidas com a campanha e respectivas despesas (art.24º da contestação e da contestação o apenso A e art.25º da contestação e da contestação do apenso A);

J) Só após a apresentação das despesas e receitas é que a Ré paga a prestação final do valor acordado (art.31º da contestação e da contestação do apenso A);

K) Os valores da campanha de 2013/2014 foram pagos à Autora F (…)(art.35º da contestação),

L) Os valores das campanhas de 2013/2014, 2014/2015 e 2015/2016 foram pagos à Autora F (…) (art.35º da contestação do apenso A);

5.2.

Segunda questão.

As recorrentes assacam à decisão várias nulidades.

Mas, bem vistas as coisas, a questão  jurídica de fundo por elas levantada e esgrimida não se atém aqueles vícios formais – os quais, a existirem, são pouco mais do que inócuos, pois que, mesmo assim, o tribunal ad quem tem de conhecer do objeto da apelação: artº 665º nº1 – mas antes à ilegalidade da mesma.

A julgadora decidiu invocando o seguinte discurso argumentativo:

«Estabelece o art.941º do Código de Processo Civil que "a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação de receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se".

A obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (art. 573º do Código Civil) e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.

Como afirmava Alberto dos Reis, in Processos Especiais, vol.I, 1982, pg.303, pode formular-se o princípio geral de que "quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses".

Ou seja, a obrigação de prestar contas tem lugar todas as vezes que alguém trata de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios, (cfr.Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1975 in BMJ 243, pg.265).

Nos termos do art.943º, nº2 do Código de Processo Civil "se o Réu contestar a obrigação de prestar contas o autor pode responder e apresentar provas” e o juiz decide.

Deste modo, contestando o Réu a sua obrigação de prestar contas, coloca-se uma questão prévia e prejudicial – o determinar a existência dessa mesma obrigação de prestação de contas.

No caso de o Réu negar a existência da relação jurídica invocada pelo Autor como fundamento para a obrigação de prestação de contas ou no caso de afirmar que de tal relação jurídica não deriva a obrigação de prestação de contas, persistirá sobre o Autor o ónus da prova dos factos constitutivos da obrigação de prestar contas a favor do Réu.

Já no caso de o Réu afirmar que prestou já as contas a que estava obrigado, encontrando-se, assim, desonerado, recairá sobre o Réu o ónus da prova de que tais contas foram prestadas, não se podendo ignorar, porém, que a prestação extrajudicial de contas pressupõe que o Réu elaborou recebimentos e pagamentos globais e totais, em forma de conta corrente, concluindo por um saldo, não bastando o mero acesso à contabilidade ou o envio regular de documentação contabilística.

Alegaram as Autoras, reiteradamente (e veementemente), que não estava em causa nos presentes autos a relação Cooperativa/Associado mas, sim, a relação Cooperativa/fornecedor, no âmbito da qual foram celebrados contratos de compra e venda e acordado um preço a calcular ponderados os custos a deduzir.

Entendem as Autoras que impenderia sobre a Ré a obrigação de esclarecer a forma de cálculo do Preço médio e quais os custos dedutíveis, e que perante a recusa da Ré se impunha a prestação de contas.

Ora, compulsados os Factos apurados nos presentes autos constata-se que não lograram as Autoras provar ter sido celebrado qualquer contrato de compra e venda ente Autoras e Ré.

Tal como supra se expôs, caberia às Autoras alegar e provar a relação juridica invocada como fundamento para a obrigação de prestação de contas.

Destarte, e não tendo resultado provado a relação jurídica invocada pelas Autoras, é forçoso concluir que não impende sobre a Ré a obrigação de prestação de contas, nos termos peticionados, improcedendo o pedido.»

(sublinhado nosso)

Este discurso, ssdr, não se apresenta, na sua essencialidade relevante, e perante os factos apurados e a lei aplicável, o mais curial.

Tal como se diz na decisão, pode estabelecer-se uma conexão entre a ação de prestação de contas  do artº 941º do CPC e a obrigação de informação prevista no artº 573º do CC, o qual prescreve:

«A obrigação de informação existe, sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias.»

No caso sub judice, versus o mencionado na sentença, as autoras provaram a relação jurídica da qual emerge o dever da ré de prestar contas e prestar  a informação por aquelas desejada, qual seja, o fornecimento à ré de fruta para ela vender pelo melhor preço que fosse possível, reembolsando depois as fornecedoras, deduzidas as despesas que tivesse.

A ré assim fez, pagando a fruta às autoras pelo preço que em seu entender, foi o possível, indiciariamente abaixo do normal, o que, na sua versão, terá acontecido, vg.,  porque a fruta entregue pelas autoras não tinha o calibre adequado e não era da melhor qualidade.

Porém, no entendimento destas, tal preço é inadmissível, por escasso, e/ou muito duvidoso, pelo que pretendem que a ré as elucide da bondade do mesmo.

Tal como defendem as recorrentes, o facto de elas terem aprovado as contas da cooperativa, enquanto sócios da mesma, não lhes retira o direito de, enquanto fornecedores e a título individual, se insurgirem quanto ao preço, até porque tal aprovação  deve ser entendida como reportada à regularidade formal das contas.

Note-se que não se provou que as autoras  tenham estado  presentes nas reuniões das campanhas de 2013/2014, 2014/2015 e 2015/2016,  que tenham aprovado as contas referentes a tais campanhas, e que não tenham levantado qualquer obstáculo – factos negativos 4 e 5.

E o facto de terem já recebido o preço que a ré entendeu pagar-lhes não lhes retira o direito, de saberem como e porquê a ré chegou a tal preço, pois que não se provou que  tenham dado a sua anuência ao mesmo, e se ele,  vg., perante os demais elementos da contabilidade da ré, é, ou não é, como defendem, adequado.

Tal como aduzido na sentença no  trecho supra sublinhado, tendo a ré dito que já prestou contas, competia-lhe provar que as prestou pelo modo legalmente exigível, e pretendido pelas autoras, qual seja, através da  «elabor(ação),  de recebimentos e pagamentos globais e totais, em forma de conta corrente, concluindo por um saldo, não bastando o mero acesso à contabilidade ou o envio regular de documentação contabilística».

Por conseguinte, e no que aos seus fornecimentos de fruta tange, assim não tendo feito, e dada a presença da relação jurídica que faz emergir tal obrigação da prestação de contas, estas têm de ser prestadas pela forma legal.

Procede o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC

I - A decisão sobre a matéria de facto apenas pode ser alterada se a prova aduzida pela recorrente, não apenas indiciar ou sugerir, mas antes claramente impuser decisão diversa.

II - Na 1º fase da ação de prestação de contas – saber se o réu está, ou não, obrigado a prestá-las – são irrelevantes os factos atinentes à fundamentação das mesmas,  os quais,  eventualmente, apenas relevam para a fase da efetiva apresentação.

III - O dever de prestar contas pela forma legal - em forma de conta corrente, com deve e haver e concluindo-se por um saldo -, emerge quando alguém administra bens alheios – artº 941º do CPC – e conexiona-se com o dever de informação do artº 573º do CC.

IV - Se um sócio de cooperativa que fornece fruta a esta para ela vender e retribuir-lhe pelo preço possível, deduzidas as despesas que teve, não concorda com o preço que lhe foi atribuído, tem o direito de, independentemente da aprovação formal das contas gerais, exigir a prestação de contas/informação quanto a si, pela fruta fornecida, na aludida forma legal.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e, consequentemente, declarar a obrigação da ré em prestar contas às autoras, seguindo o processo os seus termos.

Custas recursivas pela ré.

Coimbra, 2020.06.23.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos