Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1404/08.6TBTNV-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
CULPOSO
PRESUNÇÃO
Data do Acordão: 10/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 186º/1 E 2 DO CIRE
Sumário: 1 – O conceito de insolvência culposa preenche-se mediante a prova dos requisitos enunciados no Artº 186º/1 do CIRE ou mediante a verificação das presunções a que se reportam os nº 2 e 3 do mesmo preceito.

2 – As circunstâncias enunciadas no nº 2 do Artº 186º do CIRE constituem presunções inilidíveis.

Decisão Texto Integral:    Acordam na 1ª secção cível da Relação de Coimbra:

   A..., residente na ..., interpôs recurso da sentença proferida no âmbito do incidente de qualificação da insolvência.

   Pede a respectiva revogação.

   Formula as seguintes conclusões que se resumem:

   1 – Pelo depoimento de parte prestado pelo Sr. Administrador nunca poderia ser dado como provado o que consta da sentença recorrida, pois não ficou provado que A... tenha sido notificado para entregar a escrita ou elementos desta, ou que tivesse algum bem da sociedade insolvente em seu poder;

   2 – Considerou o Tribunal a quo como culposa a insolvência, inibindo o Recrte. para o comércio;

   3 – Mas tal condenação é feita com base em presunções que foram ilididas;

   4 – Ao contrário do que refere a sentença recorrida, tal presunção não é absoluta e é susceptível de prova em contrário;

   5 – Pois, e tal como provado na sentença recorrida, o Recrte. foi administrador da insolvente entre os anos de 1995 a 1998, tendo, posteriormente a essa data, exercido funções de director comercial;

   6 – Um director comercial nunca poderá ser responsabilizado por actos que foram exercidos por administradores;

   7 – Existe uma grave contradição entre a prova dada como provada e a sentença recorrida, nomeadamente nos seguintes factos: do registo da sociedade mencionada em A) não consta, a partir do ano de 1998, a identificação de qualquer outro membro dos corpos sociais; em 20/11/2008, B..., SA., apresentou, junto da Segurança Social, declaração de situação de desemprego onde fez constar a cessação do contrato de trabalho de A... em 18/11/2008, com a categoria de director comercial/gestor de produto, por extinção do posto de trabalho;

   8 – De acordo com o depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, nunca se poderia ter dado como provado que o Recrte., até ao encerramento da actividade de B... assumiu funções de administrador dessa empresa, tal facto não corresponde à verdade, como se pode verificar com o depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento;

   9 – Nunca se poderia qualificar o facto de o Recrte. não ter entregue os documentos solicitados como uma conduta culposa, pois o mesmo já não fazia parte da sociedade insolvente, nem tinha acesso a qualquer documentação respeitante a esta;

   10 – Caso o Tribunal a quo tivesse atendido como prova às testemunhas arroladas pelo Recrte., a sentença só poderia ser outra;

   11 – Da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, resultaram os factos acima transcritos e que aqui se requer a apreciação do depoimento das testemunhas D..., E... e C...;

   12 – Conforme se pode verificar os factos acima transcritos, provenientes dos depoimentos das testemunhas, nomeadamente a testemunha C... , não era o Recrte. que tratava das vendas, nem dos preços;

   13 – Terá este Venerando Tribunal que alterar a matéria dada como provada, revogando a sentença recorrida, com todas as consequências legais daí resultantes;

   14 – Do depoimento das testemunhas nunca se poderia ter dado como provado o facto 9) da sentença recorrida, nomeadamente que o Recrte., até ao encerramento da actividade da insolvente, assumiu funções de administrador, pois tal facto não resulta provado;

   15 – Por outro lado, não se encontram observados os requisitos para que se possa qualificar a insolvência;

   16 – Estes pressupostos não se encontram demonstrados, nem provados, nem muito menos o nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência;

   17 – Também nunca se poderia ter declarado a inibição do Recrte. para o exercício do comércio;

   18 – Aqui coloca-se um problema jurídico-constitucional, colocado no que concerne à alínea b) do nº 2 do Artº 189º do CIRE;

   19 – É que tal normativo foi recentemente declarado, com força obrigatória geral, inconstitucional, por violação dos Artº 26º e 18º/2 da CRP pelo Acórdão do TC proferido em 2/04/2009, publicado no DR nº 85, 1ª série, de 4/05/2009;

   20 – A sentença recorrida é nula por violação do disposto nas alíneas c) e d) do nº 1 do Artº 668º do CPC. Lendo atentamente a decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto susceptível de revelar, informar e fundamentar a real e efectiva situação, do verdadeiro motivo do não deferimento da pretensão do alegante;

   21 – A sentença recorrida não está fundamentada, tanto de facto, como de direito, e não enumera nenhuma norma legal, tendo em conta o disposto no nº 1 do Artº 158º do CPC;

   22 – A sentença recorrida viola: Artº 158º, alíneas b), c) e d) do Artº 668º e 712º do CPC; Artº 13º, 20º, 202º, 204º, 205º da CRP.

   O MINISTÉRIO PÚBLICO contra-alegou, concluindo que:

   1 – Tendo em conta a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, mostram-se preenchidos todos os pressupostos legais para qualificar a insolvência da B... como culposa, com fundamento no disposto no Artº 186º/2-i) do CIRE, como foi decidido;

   2 – O Tribunal a quo fez uma correcta e lógica apreciação de toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento;

   3 – Não se verifica qualquer contradição entre a matéria de facto dada como provada e a decisão proferida;

   4 – A sentença recorrida não violou a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, plasmada no Ac. do TC nº 173/2009, porquanto não decretou a inabilitação do recorrente;

   5 – A sentença recorrida não padece das nulidades invocadas pelo Recrte., nem violou as disposições legais pelo mesmo enunciadas, já que se mostra devidamente fundamentada, quer de direito, quer de facto, e debruçou-se sobre as questões jurídicas que foram suscitadas e devida conhecer, pelo que deverá ser mantida nos seus precisos termos.


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   Façamos uma breve resenha processual para cabal compreensão dos autos.

   Aberto que foi o incidente para qualificação da insolvência de B..., SA., foi apresentado parecer pelo Administrador de Insolvência, no sentido de a mesma se dever ter como culposa, tendo em consideração a não entrega do património da insolvente pelo seu administrador.

   A... opôs-se, alegando, em suma, que apenas exerceu o seu mandato durante quatro anos, o que ocorreu desde 1995 a 1998, nada mais tendo a ver com a sociedade desde então; que neste ano passou a desempenhar funções de director comercial/gestor de produto, contrato que cessou, por extinção do posto de trabalho, em 18/11/2008, pelo que à data da declaração de insolvência já não era administrador da sociedade insolvente; que não incumpriu com o dever de apresentação à insolvência, nem fez com que ficasse mais grave a impossibilidade da sociedade de cumprir pontualmente as suas obrigações.

   O Ministério Público pronunciou-se alegando que o oponente exercia a administração da empresa insolvente, pelo que deverá ficar afectado pela qualificação da insolvência como culposa, concluindo pela prolacção de decisão a qualificar a insolvência como tal.

   Realizada audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença que qualificou a insolvência de B..., SA. como culposa, declarou o oponente, A..., afectado pela qualificação da insolvência como culposa, declarou a respectiva inibição para o exercício de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação provada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 2 anos e determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente por A... (devendo o mesmo, no caso de já ter recebido bens ou direitos para pagamento desses créditos, proceder á sua restituição).


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   Das conclusões supra exaradas, que delimitam o objecto do recurso, extraem-se as seguintes questões a decidir:

   1ª – Existe erro no julgamento da matéria de facto?

   2ª – Existe contradição entre a prova e a sentença?

   3ª – Não se encontram observados os requisitos para que se possa qualificar a insolvência?

   4ª – Por ser inconstitucional, não se pode decretar a inibição do Recrte. para o exercício do comércio?

   5ª – A sentença é nula?


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   Constatando-se que o Recrte. suscita a reapreciação da matéria de facto, iniciar-se-á a discussão por tal temática.

   A vários passos, designadamente nas conclusões enumeradas sob 6, 13, 17, 18, 19 e 20, o Recrte. suscita a questão do erro no julgamento da matéria de facto, seja porque de um determinado depoimento não se poderia extrair uma dada convicção (6), seja porque de vários depoimentos (não identificados) também não se poderia concluir por dar como provada certa matéria (13), seja porque da prova testemunhal resultaram factos que, em sede de alegações, se transcrevem (17, 18, 19), seja porque não se poderia ter dado como provado o facto 9 da sentença (20).

   Percorridas as alegações, em parte alguma se mencionam os factos, por referência ao questionário, relativamente aos quais se acusa o erro de julgamento.

   De salientar que, no âmbito do incidente, foi elaborada base instrutória.

   O Artº 685ºB/1-a) do CPC dispõe que quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente, obrigatoriamente, especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto incorrectamente julgados.

   Os pontos de facto julgados são aqueles a que reporta a decisão que se debruça sobre a matéria de facto, a saber, os concretos quesitos ou, na ausência de questionário, os artigos dos articulados para onde se remete.

   No caso concreto, a decisão em referência debruçou-se sobre a base instrutória.

   Não vindo efectuada a especificação mencionada no Artº 685ºC/1-a) do CPC, não se conhece do objecto do recurso nesta parte.


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   É a seguinte, a matéria de facto cuja prova se obteve:

   1 – Nos autos de insolvência que correm por apenso, sob o nº 1404/08.6TBTNV, por sentença proferida em 7/01/2009, transitada em julgado em 19 de Março seguinte, B..., SA., pessoa colectiva nº 503522910, foi declarada insolvente.

   2 – Por força da mesma sentença, F... foi nomeado para o exercício do cargo de administrador da insolvência.

   3 – Mediante escritura pública outorgada em 13/09/95, denominada de “Constituição de Sociedade”, foi constituída a sociedade identificada em A).

   4 – Consta de escrito complementar á escritura mencionada em C) a designação de “ A...” como “Administrador único” da sociedade identificada em A), “para o quadriénio de mil novecentos e noventa e cinco a mil novecentos e noventa e oito”.

   5 – Em 30/10/95, mediante a Inscrição – Apresentação 10/19951030, foi registada a constituição da sociedade identificada em A).

   6 – Mediante a mesma Inscrição – Apresentação de 30/10/95, “ A...” foi identificado como “Administrador Único”.

   7 – Consta da mesma Inscrição – Apresentação de 30/10/95 a seguinte menção: “Prazo de duração do (s)  mandato (s): Quadriénio 1995/1998”.

   8 – Do registo da sociedade mencionada em A) não consta, a partir do ano de 1998, a identificação de qualquer outro membro dos corpos sociais.

   9 – A... até ao encerramento da actividade de B... assumiu funções de administrador dessa empresa.

   10 – A... também desempenhou as funções de Director Comercial/Gestor de Produto na B....

   11 – Em 20/11/2008, B..., SA., apresentou, junto da segurança social, “declaração de situação de desemprego”, onde fez constar a “cessação do contrato de trabalho” de “ A...”, em “2008/11/18”, com a categoria de “Director Comercial/Gestor de Produto”, por “extinção do posto de trabalho”.

   12 – Em 18/05 e 18/08/2009, no âmbito do processo de insolvência mencionado em A), A... foi notificado para proceder, junto do administrador da insolvência, á entrega dos bens que compõem o património da insolvente, assim como dos elementos que compõem a contabilidade desta última.

   13 – Em 29/06 e 23/11/2009, o administrador de insolvência comunicou ao processo que a si não lhe haviam sido entregues os “bens da empresa” e os “documentos da contabilidade”.

   14 – Até ao presente, ao administrador da insolvência não foram entregues, quer os bens que compõem o património da insolvente, quer os elementos da insolvente, quer os elementos que compõem a contabilidade desta última.

   15 – B... foi citada nestes autos em 17/12/2008, fazendo-se a seguinte menção na carta de citação: “Fica advertido de que os documentos previstos no nº 1 do Artº 24º do CIRE devem estar prontos a ser imediatamente entregues ao administrador nomeado, caso a insolvência venha a ser decretada”.

   16 – Em 25/02/2010, no âmbito do processo de insolvência mencionado em A), A... foi, de novo, notificado para proceder, junto do administrador da insolvência, á entrega dos bens que compõem o património da insolvente, assim como dos elementos que compõem a contabilidade desta última.


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   Entre as questões que acima enunciámos, impõe-se, por razões de lógica processual, que nos debrucemos agora sobre a invocada contradição entre a prova e a sentença.

   O Recrte. limita-se a alegar que existe uma grave contradição entre a prova dada como provada e a sentença recorrida, nomeadamente nos seguintes factos: do registo da sociedade mencionada em A) não consta, a partir do ano de 1998, a identificação de qualquer outro membro dos corpos sociais; em 20/11/2008, B..., SA., apresentou, junto da Segurança Social, declaração de situação de desemprego onde fez constar a cessação do contrato de trabalho de A... em 18/11/2008, com a categoria de director comercial/gestor de produto, por extinção do posto de trabalho.

   Começamos por salientar que não se percebe o que seja contradição entre a prova dada como provada e a sentença recorrida.

   Para o caso de o Recrte. pretender que existe contradição entre aqueles factos, cumpre assinalar que os mesmos em nada se contradizem.

   Na verdade, uma coisa é o registo da qualidade de administrador ou membro dos corpos sociais que, segundo a sentença, não existe desde 1998; outra, bem distinta, é a apresentação, junto da Segurança Social, de uma declaração, com vista á obtenção de subsídio de desemprego, na qual se faz constar que o ora Recrte. viu o seu contrato de trabalho cessado em dado momento e por dada causa. Não havendo registo da qualidade de membro de corpos sociais, não se vê como possa haver contradição com a declaração de titularidade de algum contrato de trabalho.

   Sem dependência de qualquer outra argumentação por parte do Recrte., improcede esta questão.


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   Por razões de sequência processual, ocupemo-nos agora da invocada nulidade da sentença.

   Alega o Recrte. que a sentença sofre de nulidade por violação do disposto nas alíneas c) e d) do nº 1 do Artº 668º do CPC, porquanto ali não se indica um único facto concreto susceptível de revelar, informar e fundamentar a real e efectiva situação, do verdadeiro motivo do não deferimento da pretensão do Alegante.

   É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão (c) ou o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (d).

   Relativamente á nulidade decorrente de contradição, nada vindo alegado a esse propósito, e não se vislumbrando em que assenta a invocação da mesma, improcede a questão.

   No que concerne à nulidade decorrente de omissão de pronúncia, parece o Recrte. querer significar que a sentença não se debruçou sobre os motivos que invocou na sua oposição.

   Conforme se expôs acima, o ora Recrte. deduziu oposição baseando-se na circunstância de não ser administrador desde 1998, de não ter incumprido com o dever de apresentação e que o incumprimento não fez com que a sociedade ficasse impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações, concluindo que a insolvência nunca se poderá considerar culposa.

   Na sentença em recurso, depois de se explanarem as normas legais aplicáveis, integrando-as em face dos conceitos suscitados nos autos – designadamente o conceito de insolvência culposa –, conclui-se que o regime legal contém uma presunção “júris et de jure” relativamente à questão da culpa na insolvência, analisa os factos tidos como provados á luz do regime que especificou, concluindo que o ora Recrte. foi administrador de facto da insolvente, notificado pelo administrador da insolvência para apresentar os bens e os documentos contabilísticos, o que não fez, nem justificou, pelo que o considerou como não cumpridor dos deveres de apresentação e colaboração. Nessa medida, veio a considerar verificada a situação prevista no Artº 186º/2-i) do CIRE e culposa a insolvência.

   Deste resumo, facilmente se constata que a sentença não omitiu pronúncia sobre as questões suscitadas nos autos, tendo fundamentado cabalmente a sua exposição.

   Donde se conclui que a mesma não enferma de qualquer nulidade.


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   Passemos, então, à questão que enunciámos em terceiro lugar, a saber, se não se encontram observados os requisitos para que se possa qualificar a insolvência.

   Comecemos por sublinhar que a insolvência foi qualificada como culposa ao abrigo do disposto no Artº 186º/2-i) do CIRE, muito concretamente por se considerar que, de forma reiterada, “ A..., na qualidade de administrador de facto da insolvente, tem incumprido os deveres de apresentação e colaboração que sobre si recaem, concretamente não entregando ao Administrador da Insolvência, apesar das interpelações que lhe foram dirigidas, os bens da empresa e a documentação relativa à sua contabilidade”.

   Invoca o Recrte. que, por um lado, a presunção contida naquele normativo legal não é absoluta e, por outro, que não sendo ele administrador da empresa, não se pode qualificar o facto de não ter entregue os documentos como uma conduta culposa, que essa conduta tenha criado ou agravado a situação de insolvência, que tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo que conduziu á insolvência e que seja dolosa ou praticada com culpa grave.

   A noção geral de insolvência culposa consta no Artº 186º/1 do CIRE.

   Aí se define como tal a insolvência criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

   Porém, a presente insolvência não foi declarada culposa ao abrigo deste normativo, pelo que está afastada a análise pressuposta pelo mesmo no que concerne ao preenchimento dos respectivos requisitos.

   Para além desta noção geral, o CIRE contém ainda duas formas distintas de qualificar a insolvência, que pressupõem o recurso a presunções, umas ilidíveis, outras não.

   Trata-se do regime estabelecido nos nº 2 e 3 do Artº 186º do CIRE.

   Ora, quanto ao nº 2 do Artº 186º, “deve entender-se que nele se estabelecem presunções iuris et de iure”, o que decorre do uso do advérbio sempre e do confronto com o texto do nº 3 onde tal expressão não é usada (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Colectânea de Estudos sobre Insolvência, Quid Júris, 262). Assim, ocorrendo alguma das condutas ali especificadas, a insolvência considera-se culposa sem possibilidade de prova em contrário.

   O Artº 186º/2-i) do CIRE dispõe que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do Artº 188º (o parecer do administrador com vista á qualificação da insolvência).

   Assim, para concluirmos pelo bem fundado da qualificação, havemos de ter como preenchidos os conceitos aqui enumerados, a saber, não ter o administrador cumprido com os seus deveres e de forma reiterada.

   Os deveres ali reportados são os constantes do Artº 83º do CIRE, ou seja, fornecimento de informações relevantes para o processo, apresentação pessoal no tribunal, colaboração com o administrador da insolvência.

   Não cumpridos estes deveres, o incumprimento há-de ser reiterado.

   Provou-se que A... até ao encerramento da actividade de B... assumiu funções de administrador dessa empresa.

   Mais se provou que em 18/05 e 18/08/2009, no âmbito do processo de insolvência, A... foi notificado para proceder, junto do administrador da insolvência, á entrega dos bens que compõem o património da insolvente, assim como dos elementos que compõem a contabilidade desta última. Em 25/02/2010, no âmbito do processo de insolvência, A... foi, de novo, notificado para proceder, junto do administrador da insolvência, á entrega dos bens que compõem o património da insolvente, assim como dos elementos que compõem a contabilidade desta última. Porém, até ao presente, ao administrador da insolvência não foram entregues, quer os bens que compõem o património da insolvente, quer os elementos da insolvente, quer os elementos que compõem a contabilidade desta última.

   Por outro lado, B...oi citada nestes autos em 17/12/2008, fazendo-se a seguinte menção na carta de citação: “Fica advertido de que os documentos previstos no nº 1 do Artº 24º do CIRE devem estar prontos a ser imediatamente entregues ao administrador nomeado, caso a insolvência venha a ser decretada”.

   Temos, assim, em face dos factos cuja prova se obteve, cabalmente preenchidos os conceitos que pressupõem a presunção de insolvência culposa, porquanto o administrador da insolvente, notificado várias vezes para o efeito, não cumpriu com os seus deveres de colaboração e apresentação.

   Improcede, assim, a questão que ora analisamos.


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   Resta uma última questão – a inconstitucionalidade na ordem de inibição de exercício do comércio.

   Alega o Recrte. que o normativo legal com base no qual se decretou a inibição para o exercício do comércio foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional.

   O Recrte., tal como alega o Ministério Público e decorre das suas próprias alegações, labora, contudo, em erro.

   É que a declaração de inconstitucionalidade reporta-se, como o próprio afirma, à alínea b) do nº 2 do Artº 189º do CIRE, ou seja, á declaração da inabilitação das pessoas afectadas pela qualificação de insolvência.

   Na verdade, o Ac. nº 173/2009 declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do Artº 189º/2-b) do CIRE, por violação dos artigos 26º e 18º/2 da CRP, na medida em que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente.

   Tal acórdão não se pronunciou sobre a norma contida na alínea c) do nº 2 do mesmo Artº, ao abrigo da qual a sentença recorrida decretou a inibição para o exercício do comércio e outros actos pelo período de 2 anos.

   Termos em que, nada se alegando a propósito da não conformidade constitucional desta norma, improcede a questão em análise.


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   Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

   Custas pelo Recrte.

   Notifique.


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MANUELA BENTO FIALHO (RELATOR)
PAULO TÁVORA VÍTOR
FERNANDO NUNES RIBEIRO